Não sei se porque são filmes revistos, mas sempre fica uma pulga por detrás da orelha de que já teria escrito sobre, em formato resenha, como aqui ocorre. Masculine-Feminine é um filme de 1966, e creio que é a terceira vez que o assisto. Componente da grade de programação do canal Telecine Cult, este filme de Jean Luc Godard pode ter sido encarado por mim algumas vezes também aos pedaços. A revisão agora é completa para satisfazer o interesse da proposta da resenha crítica. Diferente de outros filmes, talvez Masculine-Feminine tenha despertado mais na surpresa da primeira vista e tenha caído em elementos comuns a outros filmes nessa revisão. Escrevo isto enquanto acompanho o filme e os comentários seguintes vão ratificar ou retificar essa percepção.
O começo do filme em preto e branco é arrastado. Paul conhece Madeleine em um café, encontra um pretexto para lhe dirigir a palavra pela primeira vez. Ao reconhecê-la, pergunta pelo seu nome, menciona um amigo em comum e a possibilidade de um emprego. A crítica política é o forte desse filme, com a primeira entrega quando Paul (Jean Leaud) afirma ter prestado os meses de serviço militar obrigatório para o exército da França, se queixa da falta de lazer, de descanso, da solidão, da perda de contato com o mundo exterior e do excesso de ordens, obediência e imposição feitas pelos superiores aos jovens que, segundo ele, primeiro recebem esse tratamento do que opções culturais para criação.
Madeleine acompanha atenta ao discurso do jovem Paul. O amigo que eles têm em comum seria Dumas, que trabalha em um jornal. Paul não sabia ou faz que não sabia. Madeleine também já havia trabalhado em periódico, se dedicando às fotos.
Desde essa sequência do filme estão claros os posicionamentos políticos, como sindicalizados e comunistas. Em conversa com o amigo, Paul e ele concluem que a baixa adesão aos partidos ocorre porque ps trabalhadores têm jornadas de trabalho longas, apenas casa, comida e trabalho, sem tempo para dedicarem-se a mais estudos e lazer, muito menos a fazer política para justamente mudar essa realidade. Uma conclusão apontada na Europa de 1965, 20 anos após a conclusão, entre aspas, da Segunda Guerra Mundial (que teve desdobramentos, julgamentos e decisões mais tardar).
Entre a política, desde a manifestação da empregada que atira no patrão na saída do café na cena inicial, Godard encontra espaço para as conversas de casal com banalidades sempre involucradas em filosofia densa. Para um simples convite para sair entre Paul e Madeleine, se misturam questões do que os jovens pensam da vida, sobre como se sentiriam felizes, quais os limites a que se pode chegar e submeter a um primeiro encontro, quais são os limites das mentiras sociais que são contadas todos os dias para a digestão da convivência. A cena ocorre enquanto Madeleine está se maquiando e penteando seu cabelo. Godard estava sempre atento às nuances sociais sobre comportamento da juventude, atitudes, pensamentos, aberturas de espaço e oportunidades e feminismo. Seus filmes são memória viva, na ficção que imita, que segue lado a lado aos acontecimentos contemporâneos, a Nouvelle Vague da França sessentista, época de cisões e transformações.
Acoplados em saídas juntos e com um grupo de jovens militantes, encorajados e encorajadores para juventude da época, Paul e Madeleine partem em missões, seja de colocação de cartazes e dizeres pela cidade até pressionar a embaixada dos Estados Unidos com direito à pichação a carro e protestos para que largassem a injusta investida no Vietnã, combatentes do napalm. Durante cena, Paul e o amigo prestam abaixo-assinado para libertação de presos políticos no que dizia respeito ao Rio de Janeiro. Não era a primeira vez que o Brasil estava nos planos e nos assuntos de Godard, que também investia nesse como um destino para Bruno Forestier em O Pequeno Soldado, quando almejava deixar a França. É de se dar conta que quase sempre os personagens de Godard almejam fugas mal sucedidas, como em O Pequeno Soldado, O Desprezo, Acossado e Pierrot le Fou, atingindo o objetivo, aparentemente, ao final da prisão de Alphaville, contrariando a ideia de prisão de segurança máxima lançada por aquele universo distópico futurista.
Em cena no trem, Paul combina uma ação militante enquanto ouvem um diálogo inusitado. Uma loira está sentada em banco junto a dois negros e os três passam a se insultar. Enquanto ela chama os migrantes de assassinos em potencial, eles rebatem que ela seria apenas uma vagabunda com sonhos hollywoodianos. O preconceito racial é foco pelo que acontecia na Europa e nos Estados Unidos, sobre a dissolução de colônias africanas na independência de virarem países e o tratamento aos novos migrantes europeus.
"Não é a consciência do homem que determina a existência, mas a existência social que determina a consciência"
Enquanto isso, Madeleine e Paul não passam por bons momentos e ele questiona se deve mantê-la em sua vida, ao passo que também precisaria dela, por ser desalojado pela proprietária de seu apartamento, que o alugaria ao próprio sobrinho. Situações reais. O filme também é permeado pelo surrealismo. Entre as brincadeiras e cenas extravagantes. Paul implica com um jogador de pinball (Godard adora inserir o lazer da época com cenas em bares, mesas de sinuca, boliche e os novos fliperamas) e o jogador misterioso saca uma faca e o ameaça. Conforme Paul foge e sai da imagem, o rapaz, de cutillo em punho, esfaquea a si mesmo e é amparado pela volta de Paul. Surreal.
Madeleine começa a se afastar do estilo de vida de Paul ao alavancar uma carreira de cantora. Seu disco faz sucesso no Japão, atingindo as primeiras posições, o que também ocorria em casa. O relacionamento deles esfriava, mas prosseguia. A amiga de Madeleine, Elizabeth também interferia e tecia seus comentários negativos, em desaprovação ao andamento. Durante investidas e diálogos, a temática que aparece bastante nesta película é sobre os métodos anticoncepcionais, novidades cada vez mais introduzidas na época. Tanto a pílula quanto dispositivos internos de resolução cirúrgica eram afirmados e assim recomendados ou ao menos postos em pauta durante a trama que envolvia os personagens principais.
Paul realiza uma entrevista com amiga de Madeleine a respeito de questões políticas e pauta a ocorrência de guerras pelo mundo, a preocupação com empregos e o controle de natalidade. Godard requenta temas entre um filme e outro, mantendo as pautas de seu interesse e, é claro, de interesse público à tona. Outro estilo narrativo presente nas obras é a introdução de notícias e de figuras em voga na época, por exemplo, para mencionar a temática da música pelo fato de Madeleine ser cantora, uma notícia sobre o sucesso de Bob Dylan aparece direto dos periódicos de papel.
Na cena do restaurante em que estão Paul, minimizado por Elizabeth ao afirmar, antes da chegada de Madeleine, que não havia chance dele com elas, porque não eram o tipo de garotas para ele e que ele ficaria sempre infeliz, o que revolta Paul, na cena do restaurante aparece uma sequência bastante forte sobre o título do filme. Apesar do título ter sido mencionado em uma brincadeira entre Paul e seu amigo, a questão do Feminino aparece em três momentos em sequência.
Madeleine recebeu discos autografados de presente, por sua carreira satisfatória e troca de contatos. Paul minimiza e tenta sempre sair por cima por um gosto musical refinado; ele é fã de música clássica e não das cantoras que estão fazendo sucesso nos anos 60. Parece não ser fã da própria namorada, não a admira e reconhece, apenas a quer manter de posse. Em uma das mesas do restaurante, Madeleine reconhece a mulher que assassinou o homem no começo do filme. Fofoca que ela agora trabalha de prostituta e, sendo prostituta, é continuada a cena com a negociação entre ela e o cliente. Propõem preços e situações diferentes, ela admite odiar os alemães porque seus pais morreram na Alemanha durante a guerra. Uma preocupação com o quão recente se foi e se esquece uma guerra devastadora para história da humanidade.
Em outra mesa, Brigitte Bardot, a princípio no papel de ela mesma, ensaia falas de uma peça, mas é totalmente submetida às instruções do arrogante diretor, que discursa sem parar e interfere na atuação da moça. São três mulheres submetidas em sequência ao machismo, à dominação, à imposição e à inferioridade em geral. Seja em um relacionamento com um partidário de esquerda, autoconsiderado progressista, seja na profissão mais antiga em que se submete ao cliente, seja na relação trabalhista enquanto profissional de atuação cênica. Três casos no mesmo restaurante, de forma escrachada ou velada para esta crítica.
A 1h15 de filme, aproximadamente, Paul e as amigas vão ao cinema. O filme em exibição mostra cenas de um relacionamento abusivo e com agressões inclusive físicas. Mais alertas para o objetivo da película. Apesar dos absurdos mostrados na tela, a inquietação de Paul é terem mudado o formato da transmissão e nisso ele se levanta rapidamente e, impositivo e pró-ativo, se dirige à sala de projeção para reclamar a mudança. Antes disso, vale a lembrança de sua ida ao banheiro, quando encontra um casal homossexual atrás de uma das portas, dentro de uma cabine, e, após urinar, o militante picha a porta com os dizeres "Abaixo à República de covardes".
Após Paul reclamar sobre as diretrizes e regulamentações da exibição de um filme em cinema de acordo com algum código que lê, ele sai da cabine de transmissão e picha um muro contra Charles de Gaulle. Alguns operários próximos ao local assistem à cena e um casal está a trocar carícias ao lado da parede, numa possível cena de prostituição, tudo à luz do dia. Ao retornar para o filme, cenas de violência sexual são sugeridas pelo ator que interpreta o homem com a mulher. Ele a pega de maneira agressiva e também a dirige a seu órgão para sexo oral. São cenas que desagradam aos personagens do filme de Godard, que ameaçam deixar a sessão.
Catherine-Isabelle, atriz que atua com seu próprio nome, amiga de Elizabeth e Madeleine, conversa com o amigo de Paul em uma cozinha. O amigo de Paul está muito interessado nela, mas não é recíproco. Ele desconfiava que a moça prefira Paul, que mantém o relacionamento capenga com Madeleine. Na sabatina à moça, são feitas perguntas sobre suas preferências, sobre sua vida sexual, sobre perspectivas e se ela se interessa pelas questões de política global. É interessante pensar que há poucos anos, no Brasil, perguntas do mesmo tom seriam totalmente estranhadas, enquanto pós 2013, por exemplo, a politização disparou no interesse de jovens e das redes sociais, com engajamento premeditados ou orgânicos. Na época, 1966, explorar tanto os assuntos políticos talvez soasse piegas para maioria dos jovens, que se politizariam mais nos anos a seguir. A cultural Paris e a França foram o berço do movimento conhecido como Maio de 68, abordado em outras críticas.
Bastante política se soma na parte final do filme. Paul está com Catherine-Isabelle na rua, um homem passa e pede fósforos. Ele rouba a caixa de Paul. Em seguida cumprimenta uma pessoa em um carro estacionado e pede para transferir bons votos às crianças. Ele retorna, estão em frente a um hospital dos "americanos", Paul o segue e tenta reaver a caixa de fósforos. Godard, muito esperto, não persegue essa cena e posiciona a câmera sobre a espera de Catherine. Paul volta nervoso que o homem havia se jogado gasolina e se incendiado. Catherine estranha que foi em frente ao hospital dos EUA. Paul informa que o homem deixou uma última mensagem em prol do Vietnã.
Em seguida, os jovens caminham em direção aos estúdios de música onde Madeleine ensaia as composições para seu novo disco. Ela inclusive é recebida por um repórter de rádio. Os Beatles aparecem novamente, pois Madeleine responde que eles e Bach são seus compositores favoritos. Na companhia de Catherine, Paul havia largado um raciocínio assaz interessante: "se mato um homem sou um assassino, se mato milhões sou um conquistador, se mato a todos sou Deus". Catherine apenas responde que não acredita em Deus.
O filme encaminha o encerramento com uma série de questionamentos que Paul fazia para um instituto de pesquisa e opiniões. As perguntas eram direcionadas aos franceses para saberem suas opiniões de comportamento, sobre interesse e entendimento da realidade política, com perguntas sobre o que é ser comunista, se sabem de guerra entre Iraque e o povo curdo, o que pensam das minissaias ou dos métodos contraceptivos. Paul conclui que as perguntas que eram para registrar o comportamento da população acabam perdendo o foco e objetivo principais para virar uma batalha de juízos de valor. Os ideais progressistas e conservadores seguem essas tendências até os dias atuais de 2025. Paul pensava que manipulava as pessoas na formulação das perguntas em rápidas trocas de assunto e que as pessoas em seguida o manipulavam com respostas falsas, infrutíferas e, portanto, improdutivas para o objetivo das pesquisas.
Em depoimento para polícia, as moças explicam o desfecho trágico de Paul. A mãe dele havia lhe conseguido dinheiro (os homens dependem das mulheres) para adquirir um apartamento. E conseguiu em uma área nobre de Paris. Madeleine, ao saber da notícia, quis morar junto dele, mas Paul recusou. Irônico que quando ele precisava de lugar para moradia contava com Madeleine. Quando adquiriu para si, a recusou. Como não há imagens do desfecho, apenas o depoimento das jovens, não se descarta que a morte de Paul, ao cair em um buraco, tenha sido acidental. A questão final é Madeleine Zimmer, grávida de Paul, saber o que faria com o filho que tem no ventre. Sendo dele, a criança sem o pai seria abortada ou não? O aborto é uma questão central das sociedades modernas, sobre a autonomia que a mulher possa ter, acima de questões tradicionais, religiosas e burocráticas, de decidir o futuro do que ela começa a produzir no ventre. Mesmo mulheres bastantes progressistas como Madeleine tinham total incerteza, insegurança e restrições ao futuro. O método que Elizabeth havia proposto a ela era inacreditável: agredir-se com um pau que sustenta cortina.
Fim.
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Paul reclama do militarismo no começo do filme Masculino-Feminino. Apesar de não serem submetidas diretamente ao exército, as mulheres enfrentam outras formas de dominação, até pela atuação do próprio progressista Paul
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