Foi encontrado o corpo na rua, no centro de uma pequena cidade interiorana. Calcularam que ali caiu pela noite, mesmo sem precisar o horário. A temperatura e demais características corporais indicavam isso. Talvez alguma câmera de vigilância possa demonstrar o momento exato. Cena forte se forem exibir em algum noticiário. Mas ele não era importante o suficiente para sua morte aparecer assim em horário comercial na televisão. Morreu quase no anonimato. Quase, pois estava com as comprovações de identificação na carteira.
Descobriram sua filiação e que seus pais já haviam morrido há alguns anos. O tiveram quando já eram velhos para ter filhos. Buscaram mais algumas identificações. Não exercia a profissão de biólogo, mas possuía a carteirinha do Conselho Regional de Biologia. Uma dúvida que pairava é se o infarto fulminante o levara tranquilo ou preocupado. Muitos jovens até sonham com essa morte. Quem sabe morrer dormindo? Afogado ou consumido por incêndios ninguém quer nessa loteria. Apesar do infarto, que, quanto mais jovem, mais acomete, ele possuía uma expressão dolorosa na face. Se o conhecessem mesmo como o conheci, saberiam que essa expressão havia se desenvolvido em sua face já havia dois pares de anos.
O legista era jovem também. Na profissão. Se formou em medicina aos 32. Aos 34 assumia no hospital esse cargo havia apenas dois meses. Nunca tinha visto cadáver tão jovem. Achou algo de familiar naquele corpo que agora essa companhia naquela madrugada de maio, mais fria do que o habitual para época. O legista se chamava Pablo. Seria possível que seus pais nem soubessem da origem hispânica do nome, mas Pablo era Pablo e não Paulo porque sua mãe era argentina. Da fronteira, mas era.
Pablo pediu ao plano de saúde, vencido há cinco meses por falta de pagamento, informações sobre o biólogo não praticante. Queria saber porque aquele jovem era vítima do infarto que o aquietou para eternidade. Não poderia ser vítima de mero acaso na roleta das sortes. Ou poderia.
Se constituíssemos os passos do jovem biólogo (não-biólogo) de 26 anos, descobriríamos que desceu de seu apartamento (menos inadimplente do que o plano de saúde, mas também em atraso) e se arrastava pelas ruas noturnas e desertas daquele pacato município. Tinha como uma de suas filosofias não fazer barulho, então talvez os vizinhos do apartamento praiano pensassem se tratar de alguma emergência canina para usar o jardim, ou de algum dos vizinhos necessitados de exercitar na praia, espairecer a mente, etc. Mas ele tentava contato para algum motorista socorrê-lo. Não conseguiu. Na verdade havia apenas três vizinhos no prédio naquela noite, sendo um casal. Se dava bem com nenhum deles. Os demais haviam voltado para suas cidades natais ou alguma visita a familiares. A garagem estava deserta naquele pátio que, tomado pela escuridão, em aspectos lembrava um frigorífico.
Para sair pelo portãozinho que rangia já se arrastava. Pelo arrastar da passagem metálica os poucos ouvintes poderiam imaginar que se tratava de um passeante com cachorro ou corredor fitness. Nada disso. Ele se arrastava. Pé ante pé sem saber qual seria seu último passo. Presenciava a calçada de forma turva e repleto de flashbacks.
O legista não poderia saber disso. Mas queria entender o que acometia aquele jovem desafortunado, mais jovem do que ele. Mais jovem do que qualquer cadáver que havia lhe parado nas mãos. Ele se acostumando a mandar para funerária os aposentados que curtiam mais ou menos tempo de recursos repassados pelo governo.
Pablo lembrou de um problema que o havia buscado e encontrado aos 25 anos. Portanto, nove anos atrás. Isto antes dele completar o terceiro período de Direito. Antes de ver a vida com outros olhos. Os mesmos, evidentemente, mas sejamos licenciados poeticamente. Com esses outros olhos, sentiu-se salvo e quis salvar mais gente. Procurou outra possibilidade que a família bem abastada financeiramente concordaria: a Medicina.
Tomado pela decisão de agradecer pela nova oportunidade que lhe fora dada, estudou mais um pouco e voltou ao frenético (cada vez mais) ritmo dos vestibulares. Passou em Medicina em uma modesta posição que não ocupava destaque nem inveja entre os companheiros e companheiras. Mas assim conduzia sua jornada de remissão e ao mesmo tempo agradava a exigente família, tanto do lado brasileiro quanto do lado argentino.
Ao trabalho solitário daquela noite em que as lâmpadas falhavam, Pablo fez uma incisão em uma parte íntima do corpo do jovem biólogo. Fez outra incisão. Ensandecido, fez mais outra. Fez o quarto riscado e congelou seus olhos, aqueles mesmos mas diferentes olhos dos tempos de Direito. Olhou direito. Observou por outro ângulo. Olhou medicina. Levou um susto. Não queria crer na coincidência. Aquela verdade que ele relembrava, que o atormentava em noites sudoríparas, mas que já, à essa altura enquanto legista, salvando ninguém, defrontando-se só com mortos, ele queria esquecer.
Largou o bisturi ensanguentado. Viu mais do que supunha ou deveria. Mas ao mesmo tempo era tomado, desde antes do decisivo corte, daquele remate em direção à verdade, ao mesmo tempo era tomado pela adrenalina do reencontro com a pior fase de sua vida.
O jovem médico legista, ex-estudante de Direito sofria neurologicamente a partir do nervo pudendo. Sempre que pesquisava, ainda enquanto aspirante a advogado, se deparava que o problema era mais comum em mulheres. Mas ele tinha urgência em descobertas. Rodou médicos até a confirmação de seu diagnóstico. Entre as primeiras dores da lesão até a sentença e a fisioterapia que lhe salvou a vida (ele não entendia como) passaram-se meses de apreensão e soterramento de seus estudos presenciais na Faculdade de Direito. Jurou que se escapasse dessa faria Medicina para ajudar pessoas nessa específica e rara situação. Nessa e em outras derrocadas.
Durante aqueles meses todos, imaginou pelo quê havia passado o jovem biólogo. Dores na região pubiana. Perdas alternadas na sensibilidade dos testículos e do pênis. Diferença da pressão anal. Sensações nervosas alteradas pela medula. Sensação de dormência e formigamento dos nervos trigêmeos, do rosto. Sensação de flacidez nos músculos. Perda e alteração de massa corpórea. Alteração na sensação cutânea por todo o organismo. Hiperativação das glândulas responsáveis pelo suor. Irritabilidade. Má absorção de vitaminas. Fraqueza nos membros inferiores, mas também nos posteriores. Dificuldades sexuais. Hiperaudição. Tilintar nos dentes. Sensação do corpo tornando-se borracha. Confusão mental à primeira cerveja. Depressão por esta salada de sintomas. Talvez mais alguns sintomas que perderam-se no curadouro do tempo, que o afastava da época mais nefasta de sua vida.
Eram sintomas que poderiam estar esquecidos, guardados a sete chaves até aquela hora, mas voltariam em formato de pesadelos em alguma desavisada noite. Voltaram no corpo do biólogo de 26 anos, pairado inerte na maca à sua frente. Ele juntou o bisturi e tentou desligar os pensamentos naquela câmara frigorífica. Ele engoliu em seco e olhou nos olhos sem vida do companheiro de raro acaso, temido ou inimaginável problema. Lembrou os longos meses em que nada sabiam sobre seu adoecimento. Engoliu novamente em seco. Piscou profundamente os olhos. Ao voltar a abri-los, notou que era ele quem estava sobre a maca.
O companheiro de turno já havia ido para casa. Nem conhecera o famoso biólogo daquela madrugada. Ele olhou ao redor em vão. Havia mais ninguém com ele num raio de muitos e muitos metros. O equivalente à mais de quadra se somarmos os degraus todos até aquele setor isolado. Ele voltou os olhos incrédulos para sua própria imagem nove anos mais jovens.
Os olhos sem vida do rapaz, agora os seus próprios olhos castanhos, tomaram alguma expressão. Pareciam mais escuros, com alguma reação, mas pouco vívidos. Pareciam vindos do além. Os olhos responderam à inspeção antes feita somente por Pablo. Ele deparou-se com aquele impossível enigma. Era como se tivessem colocado um espelho abaixo dele. A diferença estava na nudez de seu cadavérico corpo nove anos mais moço. Ele que havia juntado o bisturi deixou-o cair novamente. Toda essa narração passando-se em sutis instantes.
- Você tem uma dívida. Vim lhe buscar. - Disse o Pablo de 25 anos.