29 de março de 2019

quem está aí

quem será que está
deste outro lado me lendo
à esta hora da noite ou do dia
tremendo
diante de minha caligrafia

quem será que está
deste outro lado lambendo
a ponta do dedo
que passa a página
e lê em silêncio
guardando segredo
sem baixar a guarda

quem será que está
absorvendo
o que cuspi de veneno
da picada da cobra
do preço da sobra
de mais um dia

quem será que está
aguçando minha fantasia
enquanto escrevo
e não sei
quem é você
que está lendo
só tentando ou entendendo

a poesia
que é um trevo na estrada
é peso pena
ou dez mil toneladas
uma cena
ou toda história greco-romana-indo-arábica

diabos
quem será que está
deste outro lado
como foste invocado
para ler-me onde o leme me levou
nesses papéis agora desguardados

2017

dois mil e dezessete
remendado
fita crepe
quando a mente
não der conta
sobrepostas
as minhas e as tuas
memórias
as tuas e as minhas
histórias
opostas
adjacentes
convergentes
bom te ver

Estou vivendo ou

Será que estou vivendo ou apenas recarregando o celular todas as noites? Será que estou vivendo ou apenas dando os últimos grãos de ração pra Melissa antes de chavear as portas dos fundos de casa? Será que estou vivendo ou apenas roubando 1,6 segundo do motorista ao mostrar minha carteira estudantil do transporte de apoio da universidade, para estar apto a embarcar?

Será que estou vivendo ou apenas reaquecendo o almoço pra combinar com algo pra janta? Será que estou vivendo ou apenas trocando as músicas do celular de mês em mês pra caminhar as mesmas ruas?

Será que estou vivendo ou apenas contabilizando quanto de internet tenho e quanto mês falta? Será que estou vivendo ou apenas observando panoramicamente a quantidade de maluco que nos cerca e não se pergunta se está vivendo ou apenas...

Dois litros do mesmo suco cheio de corante pra consumir em até 3 dias e ninguém me acompanha e se eu tomar tudo deve até ser ruim pra saúde e se não tomar tudo, vai fora.
Típico dilema da vida entre se ferrar de um jeito ou de outro.

Será que estou vivendo ou apenas produzindo lixo? Separando os reciclados, ao menos. Será que estou vivendo ou ocupando lugar na fila, na poltrona ou em pé no corredor do ônibus? Será que estou vivendo ou só reparando nas pichações dos banheiros e das paredes externas dos prédios? Mas será que eu estou vivendo ou apenas lendo autores pra dizer que li, pra não lembrar mais do que um resumo bem detalhado possa trazer. Horas e horas compenetrado em leitura para o quê?

Será que estou vivendo ou somando horas em jogos online? Como me disse, um companheiro de curso em uma das voltas para casa, em que, criando coragem no assunto, revelou uma somatória de horas para cada vídeo game diferente que ele pratica no mundo virtual. Quantas horas frente à tela, ganhando ou perdendo? Ganhando ou perdendo no jogo e no tempo, na experiência, no estresse ou desestresse? Quanto vale tudo isso?

Será que estou vivendo ou somente somando decepções diariamente? Será que estou vivendo ou apenas desistindo antes de entrar nas filas? Será que estou vivendo ou apenas repetindo a pronúncia nas aulas de língua estrangeira? Será que estou vivendo ou apenas reparando nos rostos quando as nucas que estão à minha frente se cambiam defronte ou em ângulos quase de frente a mim? Será que estou vivendo ou virando os olhos quando enxergaria vida neles?

Será que estou vivendo ou apenas contando as moedas de xerox? Contando as moedas no raro tempo que me sobra a degustar a semanal cerveja? Contando que alguma vaga de emprego me surja para ser efetivado. Vivendo ou bicando de bico em bico para arrumar mais uns trocos para trocar por mais almoços-jantas, xerox e cerveja.

Será que estou vivendo ou apenas me preocupando com os gatos de rua, que, na minha visão nada empírica, se multiplicaram no fim da Gonçalves Chaves? Eu estou vivendo ou apenas questionando como seria a interrogação invertida no início e a interrogação final no meio das frases, assim como é no Espanhol. Estou vivendo ou tirando seu tempo em conversas informais e de assuntos aleatoriamente não selecionados previamente? Estou, nisso tudo, vivendo ou somente me questionando se viver é tudo isso? E será que é mais um pouco? Um texto sobre vivendo.

24 de março de 2019

perdi muito tempo

perdi muito tempo
agora acelero os processos
sei que o fogo às vezes é lento
nos manifestos desses decretos

mas entenda que perdi muito tempo
e não o compro de volta nessa venda
estava com os olhos vendados
e o tempo vendido cobra seu prazo

entenda que perdi muito tempo
e escrevo isso com naturalidade
porque acostumei meus dedos
com essa que é da poucas verdades

entenda que perdi meu tempo
como um cachorro a dar saudade
que saudade é difícil traduzir
em outras linguagens

perdi muito tempo
como um funcionário
a esperar aumento
de seu salário

perdi muito tempo
como um rosário
espera
os dedos a roçá-lo

perdi muito tempo
como um diabo
com o inferno aberto
e ninguém a visitá-lo

selos

verifique meus versos
veja e fique imersa
nesse universo
nessa conversa

chegue aqui mais perto
dentro da minha meta
sem ficar obsoleto
dessa ideia neta
de outras ideias

seu seio
me anseia
seu selo
sela
seu cabelo
me pela
pela pele
elo
meu
com ela
belo e quente
como cera de vela
serpente que atrela
pertencente
à nossa aquarela
vermelho escuro
amarela
luz do poste
da rua dela

domingos

acordei tarde. descobri que havia visita e não quis almoçar. fingi um pouco dormir e depois peguei o celular. e depois fingi dormir e depois peguei o celular. e as visitas não ficaram muito tempo. meio que notam sua ausência e depois esquecem e conversam alto e se empolgam e lembram de sua ausência e depois esquecem e conversam alto. e segui ali, pensei em ler, mas a cabeça ainda doía, aí penso que a leitura vai avançar como se fosse uma pedra se movimentando no rim e talvez eu tenha mais dificuldade de gravar as informações, o que torna a leitura ainda mais inútil, porque, pra quê ela serve se não armazenarmos? só para dizer que leu? não li. e, sim, minha memória piora, são meus péssimos hábitos noturnos. ponto ou interrogação? ponto, porque é uma afirmativa, são meus péssimos hábitos noturnos, sim.

esperei saírem e esperei mais uns minutos pra não ficar tão evidente meu desejo que saíssem e então saí do quarto. só voltei a mexer nos lençóis para ajeitá-los após a refeição. não senti vontade de me higienizar. um dos poucos amigos jogou na timeline um texto sobre a relação entre saúde mental e saúde bucal. faz sentido, eu devia ter percebido a relação havia algum tempo.

tive que aquecer o almoço que há tão pouco era uma refeição familiar. o arroz estava empedrado, ou seja como chamem, mas o pouco de água quente ajudou a esvair esse processo de solidificação excessiva. era arroz com massa, muita gente tem preconceito com arroz com massa, porque é muito, como que chamam? carboidratos. é, carboidratos. mas eu até como. aqueci tudo novamente, menos os bifes. se havia salada, não sobrou pra mim. normal. uma alface me deixaria 5 ou 6% mais feliz. não comi muito. achei que esperar até às 14 pra me levantar me daria fome, mas não deu. um outro cara de porto alegre coloca na timeline que está com vergonha do quanto emagreceu e nem consegue mais usar bermuda, outro fruto da doença aquela. aquela maldita, vitimiza gente muito boa. eu considero muito boa. nem é me juntar ao grupo, mas é uma espécie de consciência de que ela atinge muita gente inteligente, ou muito sensível, ou na somatória, aquela inteligência perspicaz, e é gente decepcionada, decepcionada com as demais, com o mundo em volta, com a incapacidade de mudar as coisas, quiçá sua própria vida, imagina o mundo, cara, moçambique, zimbábue, esses eu conhecia os nomes desde que explorei o mapa-múndi aos 5 anos, mas tem um terceiro, malawi, creio que é malawi. se não for, vai ficar assim, porque é a sinceridade de quem não pesquisou durante a elaboração disso aqui, sacas?

é minha mente trabalhando tal qual o desenho de um mapa em carbono, o mais fiel e fidedigno possível. enfim, não almocei muito, não tenho exatamente vergonha de usar bermuda, embora me incomode a quantidade de pelos e as pernas por vezes muito finas também. tirei uns pelos esses dias e o púbis segue coçando, já deveria ter passado a sensação pela minha experiência nisso. ainda uso a mesma espuma de barbear da adolescência. pensava que precisaria renovar e gastar com isso seguidamente, mas que nada, ela ainda está ali, ainda é cheirosa e resolve na hora de aparar a barba. quando a gente é jovem pensa muita coisa errada, falta a vivência e a malícia e hoje que tu adquire um pouco disso, adquire o que não devia também e segue fudido dos pensamentos.

não tenho problema em lavar a louça, tenho lavado seguido até, verdade pura. mas a cuba, a pia levantou um cheiro horrível. aquele detergente amarelo já não me agrada, mas hoje foi péssimo. e só precisava lavar o que sujei, porque o que eles sujaram já havia sido limpo e seco e guardado. mas foi uma péssima sensação, logo depois do almoço, que não foi grande coisa. almocei, mas terminei sem vontade e despejei um pouco do arroz que sobrou para o balde que alimentava nossas galinhas, mas elas morreram. só sobrou uma, a mais moribunda de outros tempos, que meu pai chegou a dar remédio e comida no bico e a bicha velha sobreviveu, de forma inacreditável mesmo. tá lá agora, manca e solitária, esperando a morte chegar. as pombas em volta, aqueles bichos malditos, comem tudo e parece que troçam depois. as pessoas são como as pombas, se juntam nas praças, fazem merda e cagam por sobre as outras se for o caso.

agora pude retornar os afazeres, mandei as poucas mensagens que precisava, preciso me readequar ao calendário acadêmico, enquanto escrevo isso, lembro que posso utilizar a carteira estudantil pra ganhar descontos, pra rever pombas e tentar desviar delas. assim a gente segue. meu celular estava com quase nenhuma bateria, mas agora está na tomada, carregando no mais pleno dos gerúndios, a barrinha subindo. e assim tento subir a minha barrinha de energia também. meu time tem desfalques, mas é bem superior, o céu está bem azul. vai ser um dia legal pra muita gente. bom domingo a todos e todas.

21 de março de 2019

Chicletes e cigarros

A morte me invita a um tango. Uma milonga estendida, que se desenrola como um comprido tapete vermelho. Um pouco mais escuro, um pouco mais bordô. Ela me convida como escassas vezes sou convidado. Me tira do canto daquele baile onde não danço. Me tira daquele balcão em que o barman só se demonstra gentil para comigo porque estou consumindo. Logo que ele pare de encher meu copo e eu, indiretamente, seus bolsos, ele vai zangar-se.

Mas a morte retira meu olhar daquela pista de dança tão próxima em metros e tão distante espiritualmente. Minha alma velha já não sente-se interessada em misturar-se a esses corpos jovens. A música de edições eletrônicas para o formato final, inicialmente inatingível para os cantores e cantoras e com sons possíveis somente pelo remix, essa música paira distante. Não me invade mais aos ouvidos, não estimula mais meu cérebro e tampouco me revolto por não acessá-la como os demais.

A morte me conduz pelo braço aos fundos do salão, ao pátio para os fumantes. Ela sempre tem os cigarros para dividir. Nunca a encontrarás sem que ela esteja com os bolsos internos equipados por diferentes marcas. Com um estilo e todo o charme que lhe é delegado, ela vai sacar o isqueiro e terminar de acender a chama entre vocês. Os cigarros vão se beijar antes de vocês. O dela já estará aceso sem que tenhas visto, enquanto estava no salão. O seu será aceso a partir do dela, que está semi-consumido.

Ela ignora os acontecimentos em volta e estabelece seu próprio ritmo, o mais arrastado e capturante que pensas e talvez nem possas imaginar. É preciso ser sensível para conhecê-la e muitos se vão dessa vida sem notá-la anteriormente. Para quem a ignora, ela pode até deixar o tempo passar, mas será vingadora e voraz quando lhe der na telha. Mas para nós, sensíveis, ela faz parte da trama. Ela te encontra em bares rústicos com portas de vai-e-vem, seja lá como se escreve isso. Ela te fita no meio de uma festa de musicalidade proporcionada por djs. Enquanto todos saltam com os braços para cima e deixam o corpo entrar em stand by enquanto as canções todas, em todas as caixas de som, te cercam dessa forma, lá está ela, mirando-te, olhos penetrantes.

Ela joga seu charme do jeito que aprendeu em milhares de episódios. Maquiagem caprichada, olhos negros, pele clara, cabelos negros, pupilas certeiras, pistoleira de uma só bala, que ela sabe ser suficiente para derrubá-lo. Ela sabe que é irresistível. Tem o capricho demoníaco de saber que pode fazer o que quiser. É a pior mulher de todas. É a melhor mulher de todas. Justamente por ser a melhor se torna a pior de todas, como não raramente.

Por ser a melhor ali contigo será a pior de todas quando não estiver. Você pensará nela finitas noites, enquanto ela permitir. O serviço que ela começou, ela mesma acaba. Vocês marcarão encontros e será divertido de início. Ela te fornecerá os vícios mais inconsequentes, você estará atiçado pelas mais simples e complexas armadilhas dela. Você vai ignorar seus amigos, porque quer estar junto dela. Você notará aos poucos que se encontra com ela sempre de noite. Talvez em uma ou outra tarde ela surja, como uma adolescente rebelde próxima das escolas, mas nunca em aula. Ela não assiste às aulas, ela te espera nos corredores ou na fila do ônibus. Ela masca chiclete com facilidade e faz bolas grandes que logo estouram, que logo explodem como o relacionamento.

Você desconfia que ela te trai. Mas é verdade que ela tem muitos trabalhos por aí. Você não gosta das roupas negras e depressivas que ela utiliza, mas você não consegue se livrar dela. Ela sempre sabe o que fazer e sempre faz o que quer. Você não sabe o que fazer e nem faz o que quer.

Por vezes você quer se livrar dela, mas não há mais como. Chegará a hora em que ela te mastigou tanto tempo como um chiclete que perde o gosto, e será tarde demais. Você, ou o seu coração, será o chiclete que ela vai descartar. Pode ser prudente e descartá-lo a um lugar discreto, uma lixeira próxima, ou pode deixar ali à exposição, embaixo de uma classe, no chão, ou em qualquer lugar não propício ao descarte.

Vai chegar a hora em que você percebe que não consegue se livrar dela, perseguidora, obsessiva. Ela vai se livrar de você. É o papel dela antes de se arrumar novamente, sorrir maliciosamente ao espelho, com seu piercing no smiley (ela nunca te ensinou o nome certo disso), o sorriso mais diabólico e inquisidor da história. E ela vai repeti-lo, sádica e criminosa. Você era o chiclete, mas está tão sem gosto que deve ser um restolho de nicotina. Apagado e pisoteado nos fundos de uma festa com isolante acústico. E ninguém ouve seu último suspiro.

hasta cuando

se escondendo da morte
logo ela vem
lá vem ela no bote

se escondendo do azar
mas que sorte!
outra vez não me viu
e a noite vai passar

até quando?
até quando ela deixar
deixar pra lá deixando

8 de março de 2019

surtos

O surto é uma bomba relógio
Se for só um susto é um privilégio
Se der em nada demais

O cuco é aquele relógio de parede
Com sede ele sai na hora programada
Enquanto o surto é surpreendente
Pode vir do nada

O surto é um curto circuito
De uma tomada congestionada
Pode ser um surto veloz
E depois sobrar nada

O surto é um episódio
Marcante em quem ouve e quem tem
O surto é uma bomba relógio
Qualquer hora refém


acordes

desculpa por ter roubado
os seus acordes
por ter iniciado sem saber
se pode

desculpa por ter roubado
as suas noites
por ter iniciado sem saber
que fode

a mente que um dia foi
o teu suporte
a gente que um dia foi
uma estrada pro norte

boa sorte

5 de março de 2019

Palafitas Paliativas

Espero que tu seja feliz
Não sei o que isso significa
Espero que feche essa cicatriz
Sempre lembro onde fica
Dos tempos que tu era minha atriz
Era a mais bonita
Dos tempos que tu era tudo que eu quis
Dessa era infinita

Meus versos eram o seu chamariz
E o silêncio hoje grita
Sentimentos gozam como um chafariz
Que inunda minhas palafitas

4 de março de 2019

Melissa tá mais alaranjada

Melissa me olha
Mia alto para mim
Não sei o que ela fala
Acho que é melhor assim

Melissa tá mais laranja
Tá igual ao governo
Mas o pelo dela é massa
E aqueles cornos usam terno

Melissa é subversiva
Minha gata comunista
Ela caça rato e quer
Nos dividir a comida

Melissa é minha gata
Caça rato e caça rata
Acho que ela não distingue
O gênero da sua caça

Melissa tem medo
De yorkshire e de vassoura
Mas Melissa não é caça
Melissa é caçadora

Melissa é educada
Ela não caga no quintal
Ela sai aos domingos
Pra dar banda no Areal

3 de março de 2019

A vida é uma toalha estendida no varal

A vida é uma toalha estendida no varal
A vida é uma navalha que não corta só o mal
A vida é uma tralha no sistema nervoso central
A vida é uma batalha do começo até o final
A vida é uma calha que inunda o quintal
A vida é uma canalha num boteco filosofal
A vida é uma falha inevitável e vital


Inspirada em
Wander Wildner - A vida é uma toalha estendida no varal