28 de novembro de 2020

Não pedem permisso

Estamos em uma era em que os jovens chamam de gatilho as situações que geram consequências, reações, enfim. Geralmente eles exemplificam para casos amorosos ou que possam levar a negatividades, gatilhos para depressão, sentimentos ruins ou mesmo arritmia cardíaca (que pode ser boa, tal qual o gozo). O que me engatilha este texto é a notícia durante a pandemia da festa da faculdade de medicina na cidade de Pelotas, aqui se tratando da universidade privada, a paga, de mensalidades condizentes com meu salário semestral.

Essa situação me 'engatilhou' de tal maneira que aqui venho. Vamos ao contexto. Pandemia global, diversas recomendações e orientações da Organização Mundial da Saúde desde o mês de março, quando o vírus da covid-19 começou a se espalhar pelo planeta. O Brasil foi atingido tardiamente, mas está duramente afetado nesses meses todos, agora que nos aproximamos do final do ano. As aulas foram no ensino remoto, virtual, entre síncrono e assíncrono (palavras novas para minha coleção) durante esses exatos meses, justamente para evitar aglomerações, reuniões em salas de aula, os perigos do contágio desse vírus tão incerto de onde pode estar. Os estudantes terminaram, concluíram o curso de suas casas. Abastadas casas, pensando novamente nesse público específico, dos estudantes e das estudantes de medicina da universidade privada, de mensalidades altíssimas.

Justamente de casa terminaram os estudos e, conforme foi dado por encerrado o semestre decisivo, quando muitos conseguiram o almejado diploma, essas mesmas pessoas acharam que seria uma boa ideia continuar investindo o dinheiro - ainda provavelmente dos pais na maioria dos casos - promovendo festas e aglomerações para comemorar. Uma inconsequência e uma contradição no âmbito do absurdo. Enquanto seus colegas de medicina, médicos e médicas formados, enfermeiros e enfermeiras batalham dia após dia com os cada vez mais lotados hospitais, visto que as contaminações e internações têm aumentado significativamente em Pelotas, enquanto passam por esse sufoco, os mais jovens, os concluidores exalam o péssimo exemplo, a desgraça em forma de músicas entoadas por programas de roteiros conduzidos por djs.

Não há mais muito o que chover sobre esse tenebroso exemplo. Justamente as pessoas que deveriam estar zelando pela saúde dos próximos e próximas, estão, através dessas pataquadas, transferindo a responsabilidade e, em alguns casos, não tenhamos dúvidas, o vírus. Não são mais somente festas clandestinas pelos bairros, são estudantes universitários, diplomados no curso de maior status e mensalidades mais caras, promovendo tudo o que não espera que promovam pela profissão que escolheram, pelo juramente que prestaram e tão prontamente estão por rasgá-lo, fatiá-lo e jogá-lo aos mil pedaços ao vento.

Palestrante chato e maldito sou eu enquanto bebo minha água e me obrigo com o corpo a responder os anseios da mente em concluir esse raciocínio. Pode passar ou recém agora estar passando o efeito da ressaca de quem participou de tais festividades, mas fica uma mancha incomensurável, inominável nos nomes e na lembrança. Justo no pior momento da pandemia, no estado inteiro do Rio Grande do Sul em bandeira vermelha pelo risco de contaminação e pela situação dos seus futuros postos de trabalho, os hospitais. Sujam o nome da instituição, sujam seus próprios nomes e fazem um panorama grotesco do futuro da medicina através desses exemplos. Pessoas que deveriam cuidar da população e se prestam a desmantelá-la em atitudes como essa. Pessoas abastadas, pessoas com situação econômica favorável, como esperar que os mais pobres deem exemplo? Com menos acessos, com menos recursos, com menos exemplos vindos de cima? É tudo absolutamente lamentável e traço esse desabafo sem roteiro pré-meditado, do qual perdoo os exageros ou as diretrizes não condizentes, se assim acharem, mas toda essa situação me enfadou de sobremaneira e aqui precisava vir tecer meus nem tão breves comentários.

Certamente também há outras pontas soltas que eu poderia explorar em meu discurso, mas por ora é isso que o gatilho da situação produziu. Talvez tão inútil quanto uma nota de repúdio, talvez ainda mais mediante as poucas pessoas que por ora acessam esses pensamentos. Julio Cortázar acabou de me confidenciar em sua Obra Crítica 3 (organizada por Saul Sosnowski) que era importante entender a situação política da Nicarágua, por exemplo, e mais importante ainda fazer algo a respeito. Entendi a gravidade, a calamidade do que as festas clandestinas, as aglomerações em nosso município e em nosso estado representam no momento, a crescente, a alta das contaminações, das internações, somadas a mais algumas mortes, vamos bater o número de 180 logo em seguida (e ainda levando em conta a subnotificação, a síndrome respiratória aguda grave que pouco se explica).

Mais de 180 perdas em um único ano em uma cidade de pouco mais de 300 mil habitantes. Isto porque a taxa dela, em geral, está abaixo do estado do Rio Grande do Sul. Ainda. Isto porque, ainda, o RS está abaixo da média nacional. O que dizer desse Brasil em que o governo não deu exemplo? Em que os estados foram coniventes ou frouxos nas medidas sanitárias, de saúde e segurança? O que dizer de um povo em que os que deveriam zelar pela saúde, incluso suas próprias, com risco a seus pais, adultos ou idosos que bancaram seus cursos universitários, esses prestam exemplo tão horrendo? O que dizer, da representação e da profissionalização medicinal enquanto isso? Como suportar tais exemplos que se repetem em ordens governistas, em seus apoiadores ruminantes, em violência discursiva e gestos de impunidade?

Impunidade! Polícia é para agredir estudante de federal, às vezes de forma xenofóbica, muitas vezes de maneira racista. Polícia é para combater pobre em praça, nos centros, agir primeiro e perguntar depois, dependendo o caso - se é que perguntam. Polícia é para esses tipos de pacto pela paz - no mesmo final de semana ainda vem a garantia de mais quatro anos dessa mesma política local. Envergonham. Contra universitários ricos, contra famílias tradicionais, contra o poder aquisitivo, contra a constituinte de jovens brancos nada contra eles. Tudo contra os pobres. Defesa de patrimônios, de propriedade privada. Nenhum efeito, como afirmou meu amigo também jornalista, nenhum uso da bala de borracha quando se precisa dela. Nada disso. Festas que seguiram.

E agora podem estar passando o efeito da ressaca. Mas a vergonha prosseguirá no assalto dessas minhas lembranças. É o Brasil que engatilha. E engatilha sobretudo nos pobres. Os ricos podem. Os ricos saem impunes. Ou como diria meu ficcionista amigo romancista: los ricos no piden permiso.

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Apêndices

Os cursos superiores, as instituições privadas, a busca da medicina por status e capital, estão agravando essas inconsequências. Evidente que a medicina sempre teve essa vertente. Mas parece piorar com os anos. A retroalimentação desse sistema excludente.

Depois reclamam de trazer médicos cubanos.

Qual é o real compromisso dos estudantes de medicina com a sociedade, sobretudo a mais pobre?

Aplicação das lógicas desse sistema: o desmonte de festas clandestinas, a intervenção do Estado em reprimir essas situações se restringem a quais públicos? Vocês sabem.

23 de novembro de 2020

Maldição auricular

Aos 19 anos passou por uma experiência traumática e prometeu ser uma pessoa boa dali em diante. Acontece que, pelas circunstâncias e vontades próprias, não conseguiu cumprir em diversos momentos. Mas não importava mais, pela promessa estava amaldiçoado para o todo o restante do tempo vivo. Desde aquela ocasião, na juventude boba e trôpega que promete besteiras como a que ele fez, não tinha mais como voltar atrás.

Cada vez que iria sair da linha, uma música alta amaldiçoava seu cérebro, interrompendo o circuito correto das sinapses, transferindo a comunicação esperada dos neurônios para alguma valeta de endereço desconhecido. Tudo jogado ao vácuo de uma lixeira inexistente, de ideias que não chegavam a se concluir, de pensamentos desconexos e apenas o som, as batidas da música alta e mirabolante, interrompendo o sistema nervoso central de pobre indivíduo.

E a linha que ele precisava caminhar era bastante tênue. Nada de agredir colega de trabalho, nem em pensamentos, estes que estavam sempre fiscalizados policialmente, com julgamentos severos por parte dessa força maior que acionava o dj automaticamente. Nada de julgar a roupa das pessoas. Nada de perder a paciência com funcionários que lhe atendessem de forma desordenada ou preguiçosamente. A vida dele estava sempre por um fio.

Se arrependia seguidamente daquela promessa deslavada, descabida, que a inocência dos seus 18 anos provocou uma reviravolta tamanha que talvez nem se internando em um mosteiro poderia resolver. A música alta poderia vir da casa vizinha. Se mudou. Poderia vir do apartamento vizinho. Se separou da mãe, que sofria tanto quanto ele com aquelas tragédias acústicas. Mas mesmo longe da mãe, a música ainda vinha perturbá-lo. Era um alto-falante que muitas vezes só ele ouvia. Nem sabia de onde vinha, mas ali estava. Agressivo, bloqueador, intrometido. Foi piorando seu estado mental em uma regressão de meses. Quando completou cinco anos do problema latente, a medicação anunciada já não dava conta e acabou em hospício.

Pensava uma boa relutar contra esse problema na solidão. Tinha colega de quarto, tinha enfermeira, tinha direito a três refeições diárias, ele que era magro e já não comia muito desde o fim da adolescência. Quando todos almejavam e muitos atingiam o sossego da madrugada em referido hospício, a música, quando ele projetava seus sonhos e o que era possível no amanhã, as canções indescritíveis vinham atormentá-lo. Não havia mais para onde ser levado. Nem pai de santo resolveu, saindo da medicina convencional para o extrapolo das crenças mais distantes. Recorreu a pelo menos três religiões, com mestres de cada uma muito interessados em suas resoluções, mas nada conseguiam fazer.

Ele brotou pulga atrás da orelha dos mais céticos. Era um caso realmente muito estranho, mas nenhum médico solucionava apaziguação. Como costumavam dizer, a paz realmente não está à venda nas farmácias. Se ele não estava crendo em Deus antes disso, agora tinha a plena imagem dele bastante rigoroso e sem dúvidas absoluto, fiscal de cada movimento seu, seja com o corpo e sobretudo com a mente. Nada passava despercebido. Ele não conseguia mais arriscar um olhar torto para as pernas da enfermeira, ou desejar que outro louco daquela ala parasse de gritar, nem que fosse a base do homicídio.

Percebeu, ao final das contas que desejar o homicídio dos terceiros impostores de sua paz não resolvia, então partiu para o suicídio. No seu velório, poucas pessoas compareceram, entre elas sua mãe, que estava mais envelhecida e cansada depois da separação do que na problemática convivência. Os responsáveis pelas diferentes religiões que ele frequentou estavam presentes, mas quem tomava a palavra era o católico, dono de maior atenção e recebimento pelos poucos invitados/comparecidos. Quando o sacerdote tomava fôlego para anunciar as palavras que tentariam salvar aquela paupérrima e sofrida alma, um carro de som inflava protagonismo pelos decibéis. Os convidados se olharam, mas ninguém descobria de onde vinha. Parecia muito próximo, do estacionamento do cemitério. A rua principal que ligava ao destino pós-necrotério era muito distante. Enfim, sem entenderem de onde vinha tamanho som alto, tiveram impressão que o descanso para aquele peregrino da desgraça, ainda estava recluso.

- Por que ele não furou os ouvidos? - Sussurrou um desconhecido dos familiares em primeiro grau.

20 de novembro de 2020

Sobre radical - apêndice sobre o caso João Alberto

"Radical é o cara que quer dar casa pra todo mundo. O que acha que tem que metralhar a PTzada temos que respeitar a opinião.

A vida não é tão sagrada quanto a propriedade privada."

Assim comentou o amigo Rogi Vieira, de Porto Alegre. No caminho para casa neste dia 19 de novembro, estava pensando justamente sobre o depoimento da amiga Denise Crispim, em São Paulo. Quando referi em texto anterior sobre as obras que emocionam pessoas, o calçamento de ruas nas cidades menores, ela propôs a correção de que esse fenômeno não é único aos pequenos centros. Nas capitais, o povo também é emocionado pelo trânsito, pelo que modifica uma via, um asfalto, um viaduto. Obras gigantes muitas vezes, com custos elevados, com demora, com licenciamentos estranhos, com o milagre dos números diante de nossos narizes. Empreiteiras e engenharias que lucram. Superfaturamentos e obras temporárias que se estendem até a vasta impressão do permanente.

Essas modificações transitórias no fluxo de veículos interessam e emocionam as classes média e mais altas. Principalmente as mais altas, onde eu sempre questionei a necessidade de super carros em vias tão deficitárias, além da necessidade da blindagem, em cidades como o Rio de Janeiro. Acessórios inacreditáveis pra estrangeiro saber. As classes patronas acabam apoiando, aprovando e votando por esses 'benfeitores'. Os empregados dos patrões tendem a seguir os mesmos caminhos. É também uma questão de identificação. O trabalhador, muitas vezes ausente com a tal consciência de classe, acaba enxergando no patrão o seu espelho superior, o seu almejo, o seu desejo máximo. Se patrão ou patroa votam no engomado, por que não eu, que almejo isto?

Mas no caminho para casa desde 19 de novembro eu pensava, pelo trânsito, como uma obra, uma via asfaltada, para quem somente passa por ali e não efetivamente mora, aquilo significa um benefício efêmero, curtíssimo, um minuto ou dois a menos de estresse no ir e vir. Às vezes segundos dependendo o trajeto. Vai evitar um arranhão no cd no carro ou que o acessório pule alguma música em algum impacto maior, causado por buraco ou pedras irregulares no calçamento. Para esses patrões e patroas, ou mesmo trabalhadores que por ali passam, a obra significativa, de encher os olhos, é um benefício curto a cada dia. Somados, podem até fazer significativa diferença, mas...

Mas pensemos na primeira frase proposta pelo amigo Rogi Vieira. Chamam de radical o político que pretendem - pasmem - dar casas à população. Moradia, item básico. Paredes, teto, quartos, onde comer, usar banheiro e dormir. Isso é ser radical na concepção que adotam. Penso que uma moradia, um auxílio-alimentação, a própria bolsa família, isto é uma mudança significativa na vida de uma mãe, de um pai, da família, com seus filhos. É arroz, é feijão na mesa. É suco para beber.

Nosso egoísmo capitalista impõe que a obra de uma rua, um asfalto seja mais importante que o básico para uma família viver. Um almoço, uma alimentação digna, uma casa para acomodarem-se. Como podemos formar uma sociedade tão cruel, tão propriamente egoísta, tão exaltadora da propriedade privada? Como isso não nos envergonha, como as pessoas não coram, como não enrubescem a face diante de calamidades como essas? O desconhecimento das secretarias de cidadania de cada município. As imensas filas de espera pelos auxílios, pelos recursos, pelas distribuições que mudam de fato a sobrevivência, o manter-se vivo de cada cidadão e cidadã.

Como nos afastamos tanto da consciência de classe, da consciência de meio social, da consciência que dividimos a cidade com pessoas que não têm o mínimo ou que dependem dessas migalhas como os seus máximos para sobreviver? Como nos afastamos de que convivemos no mesmo centro urbano? Só lembramos de tantos casos quando nos aprisionamos no medo, quando sentimos o receio de um assalto ou roubo em nossas casas? Justamente casas, casas que tantos não possuem. Assistimos a programas estrangeiros e, a partir desses objetos estranhos e distantes, relembramos nossas mazelas próximas, nossa sociedade em caos. Não é preciso assistir ao filme sul-coreano Parasita para lembrar que pessoas perdem todos os seus bens em dias de chuva torrencial. Não é preciso a situação dos moradores de porões para lembrarmos que tantas pessoas, de fato, não possuem o acesso à residência decente, seja pelo preço dos terrenos, dos imóveis, dos materiais, dos aluguéis ou mesmo da manutenção só possível através dos impostos.

A brutalidade contra as vidas

Não precisamos também ir aos Estados Unidos pelo George Floyd, se tantos brasileiros negros estão morrendo a cada dia, pela violência policial, pela violência imposta nesses bairros, pelo tráfico de drogas, por uma sociedade que é, sim, racista. Eu escrevia este texto em 19 de novembro, às vésperas do Dia da Consciência Negra e fomos surpreendidos pela proximidade do que ocorreu. A morte do sr. João Alberto, em Porto Alegre, um assassinato cometido por membros de uma empresa de "segurança", que atuava no hipermercado Carrefour, mas também atua em outras redes, para outras lojas. O desgosto máximo pela brutalidade que foi presenciada.

Eles eliminaram a vida de um homem negro como se ela fosse nada. Reduziram a menos do que um produto de prateleira de hipermercado. A violência simbólica bateu no teto. Um homem negro ser morto dessa forma, por seguranças brancos. Um com cargo policial. Novamente o envolvimento da polícia. A mesma polícia que mata em morros, em favelas, em periferias, todo dia, todo santo dia no Brasil de muitos George Floyds. De crianças expostas a esses riscos, a essa brutalidade, a essa violência, de homens e mulheres, adultos que somem. Mortes violentas, desaparecimentos, silenciamento, nenhuma investigação, muitas vezes com nenhuma "corregedoria", nenhuma solução, nenhum sopro da tal da justiça.

O intuito do texto era sobre o radicalismo que atribuem a Guilherme Boulos, que pretende, como missão suprema, poder dar residências à população, aos sem-teto. O caso chocante da morte, do assassinato de João Alberto direcionou outro foco para quando me aproximava do fechamento desta 'edição' de 20 de novembro. A violência que pregam contra quem não tem onde dormir ou o que comer, a violência que seguem pregando mesmo quando você participa de locais, de mercados constituídos, visitados pela classe média. Essa violência cerca e faz sua bandeira na nossa sociedade. Contra os sem-teto, contra os sem-terra, contra os negros em qualquer esfera social, dos primeiros grupos citados até a classe média econômica, porque ele é visto como estranho, porque ele é visto como potencial ameaça, porque ele é sub-julgado, porque ele é hostilizado, porque nossa sociedade é racista de formas mais brutais, agressivas, mas também de maneiras mais veladas.

Nem sempre é a imagem chocante das pessoas vivendo nas ruas, da crackolândia em São Paulo ou em outras cidades, nem sempre é um assassinato gravado dos holofotes de um hipermecado com luzes de neon em uma capital brasileira, às vezes é no interior, às vezes é na capital, mas nos bairros periféricos e nada muda. Nem sempre é tão chocante e presenciável, nem sempre gera essa revolta toda, como houve protestos por todo o dia 20 em várias cidades brasileiras. Às vezes é velado, às vezes é silenciado, às vezes ninguém ouve a voz de quem protesta, às vezes não damos bola. É por isso que não é só dia 19 ou 20 de novembro, não é só nesta semana. É pelo ano inteiro. É por nossos amigos, mas é por quem mais precisa e sequer conhecemos. É por quem mais grita e não é ouvido. É para lembrarmos diariamente. É para repensarmos nossos papéis sociais, nossas prioridades, nossas propriedades, nossa participação nisso tudo. É para ouvirmos mais, darmos mais voz, combatermos o fascismo de qualquer mecanismo, de qualquer direção. Uns fascismos mais instituídos, mais institucionalizados, outros querendo colocar novos ovos dessa serpente que devemos combater dia após dia, ano após ano. Quando ela estiver reduzida, não baixarmos a guarda, porque ela sempre pode se propagar. Mas lembrarmos que está longe de ser aniquilada, está em pleno combate e está nos vencendo.

E o pior, está vencendo muita gente todos os dias. Nas heranças do fascismo, do racismo e do capitalismo, que providencia que as prateleiras sejam mais protegidas do que as vidas. O episódio contra João Alberto em Porto Alegre é um exemplo completamente contrário da fala que "vidas negras importam". A de João, pela ação de nenhum cabimento dos assassinos, não importou.

Que cada George, que cada João nesses casos de bestialidade e brutidão, revoltem o suficiente para sacudir estruturas e que menos vidas sejam assim ceifadas. Porque, embora façam parecer e desvirtuem para que não nos importemos com esses casos, essas vidas importam e muito. Muito dessas heranças fascistas irá permanecer, mas as coisas não poderiam ficar assim.

18 de novembro de 2020

Política em diferentes locais

Busco nessas linhas somente o esboço, sem cientificidade, por mais que ela seja luz nesses tempos sombrios. É o que chamam de ensaio? É colocar no papel para literalmente não perder de vista. Estive conversando com a companheira Lara Crochi de Arroio Grande. Debatíamos e discutíamos questões sobre o domingo de eleições no nefasto ano de 2020 (por várias causas, como imaginam). Entre derrotas, mais derrotas e uma ou outra vitória, abordávamos os panoramas políticos locais e nacionais, em um domingo em que a ênfase tinha passado pela chegada de Guilherme Boulos ao segundo turno em São Paulo, com o PSOL, de apenas quatro prefeituras ganhas pelo país inteiro, mesmo assim chegar "na final" da maior cidade da América Latina, um campo de visibilidade vasto, um extenso tapete para propor ideias, debates e consciência política na população paulista e brasileira e, por que não? latino-americana.

Mas para além do Boulos dessa comemoração (fique aí, mesmo que não tenha mais Boulos ao convidado), para além do candidato do PSOL, concorrente no segundo turno, nossas reflexões, minhas e de Lara, passaram sobre as diferenças entre a política nos grandes centros (como em São Paulo) para os pequenos centros (como em Arroio Grande).

Muitas vezes tracei conversas sobre política com pessoas de outras grandes cidades brasileiras e elas buscam trazer um panorama da situação. Seja em Recife, em Belém do Pará ou no Rio de Janeiro. Um bom panorama poderia vir com o amigo Lucas Andrade, de Minas Gerais. Fica para uma próxima. Mas Lara conversou rapidamente sobre a esfera política de Arroio Grande, cidade próxima a Pelotas e mais próxima ainda da fronteira uruguaia, tendo somente a limítrofe Jaguarão mais além, antes das terras consideradas charruas. A cidade de AG, considerada pequena em sua constituinte, apresentou três candidaturas para prefeitura. Lara me explicou alguns prós e contras específicos da cidade.

Durante o domingo eleitoral, pesquisei diferentes municípios gaúchos e, se mais tempo me houvesse, pesquisaria as demais situações brasileiras, ao norte do nosso RS. Pesquisei motivado, confesso, em busca de emoções, que viriam através de corridas eleitorais parelhas, disputadíssimas, com diferenças de voto a voto, em um sistema em que cada aperto do botão "confirma" na urna traria grandes consequências.

Consequências. Essa talvez seja uma das palavras-chave neste texto. Em cidades menores, como é o caso da referida Arroio Grande, as consequências dos atos políticos são muito mais palpáveis para a população. Meu pai costumava mencionar que a cidade (de Pelotas) é muito grande e não havia como agradar a todos os lados. Era uma forma conformista dele mencionar que ninguém governaria para todos os setores da cidade, aqui pensados no caso geográfico. Ou seja, um prefeito ou uma prefeita poderiam, por exemplo, investir mais no bairro das Três Vendas do que no Areal. Ou mais no Centro do que na praia do Laranjal. Hipóteses para a afirmação de meu pai. Embora a discussão possa ser ampliada para investimentos em diferentes classes sociais, funcionalismo público, etc. Mas aqui, nesse parágrafo, o intuito foi a afirmação geográfica de espaço urbano (ou rural, se fosse o caso do exemplo).

Pensar nas consequências implica saber que, em uma cidade menor, cada ato de tentativa de virar votos, de tentar conquistar eleitores pelas menores causas que sejam, pode trazer consequências significativas. Observamos casos de cidades que tiveram suas eleições decididas por 200 votos, 100 votos, 30 votos! Uma rápida busca no TSE pode confirmar essas projeções. É assustador como o futuro, o destino de uma cidade, seja qual for sua relevância para quem observe de fora, pode ser decidido por detalhes. Pode ser decidido porque dona Maria não compareceu à urna, porque seu Antônio, nesse caso de 2020, teve sintomas de covid-19 e preferiu ficar em casa, conforme era recomendado que ficasse. Ou porque Moisés, que estava prestes a decidir o seu voto, acabou ficando em cima do muro. Não escolheu quem o representaria, quem lidaria com as contas, com os gastos, com os orçamentos públicos pelos próximos quatro anos. Terá que esperar, mais consciente se quer acreditar, mais quatro anos para decidir o seguinte voto municipal.

Se pensarmos na corrida para vereadores, a coisa fica ainda mais acirrada. As cadeiras são preenchidas por detalhes dos detalhes, porque Matheus fez campanha ou porque Ângela não fez. Porque o senhor Wilson foi convencido, enquanto dona Carmen preferiu ajeitar as coisas da sua vendinha naquele final de semana, da "festa da democracia". Pois é, nem todos participam e as consequências podem ser grandes. Quanto menor as cidades, mais chances a escolha pessoal tem efeito nesses casos. Apesar de, olhando o todo de nosso Brasil, essas cidades menores pareçam pouco relevantes aos olhos dos capitais. Mas, é importante lembrar, essas cidades são o berço, são tudo que algumas pessoas têm. Elas precisam abastecer e desabastecer seus comércios, buscarem a sobrevivência, colocarem suas forças trabalhistas a serviço da população em troca do suado dinheiro, o cash, o que será trocado por outros serviços e assim sucessivamente.

Ainda no campo das consequências (falei que aqui seria palavra-chave, não falei?) podemos pensar na relevância de cada obra feita. Aquela rua que ganhou um calçamento de 300 metros, mas que assim contemplou lá dona Maria e seu Antônio, essas pessoas, agraciadas pela deslumbrante civilização, poderão comparecer à espécie de caixa eletrônico e ali depositar seu agradecimento em voto, rumo à reeleição. Ora, por que vocês acham que tantos prefeitos e hoje tantas prefeitas são reeleitos? São a partir desses desarrollos.

Mas ainda no campo das consequências, pensamos no lado das mobilizações políticas por meio da transparência, da cobrança e da investigação. Em cidades menores, qualquer ato ilícito dessa parte vindo dos governantes, quando há o poder de fiscalizar e do impostor cair na malha fina da prestação de contas, quando isso é possível, o escândalo é certeiro. Não será reeleito. Mas, porém, todavia, entretanto, não é tão simples como, me desculpem, fiz parecer. Em templos coronelistas, muitas vezes é difícil mobilizar uma oposição que conclua essa árdua missão. É preciso coragem, é necessário saber com quem se está lidando. Há nomes poderosos nessas pequenas cidades e que jamais são derrubadas. Como esquecer da eterna Sucupira de Dias Gomes, do coronel Odorico Paraguaçu? Rendeu tantos contos e linhas porque não era facilmente derrubado, ninguém o tombava, apesar dos pesares.

Em cidades pequenas, é preciso quase sempre da interferência externa, por mais que isso consterne parte do policiado ou da população local. Intervenções federais, nesses casos, muito podem ser bem-vindas. Há escândalos que transpassam as resoluções locais. Entre essas consequências de investigações, de imprensa atuante, de portal para transparências, outro ponto é como o denunciante, o pivô das intrigas pode ser protegido. Não é fácil lidar com o faroeste brasileiro, mais atual do que nunca. Se as bolas de feno ou cascalhos não saem rodando pelo areal da via única em cidade formada por estabelecimentos com portas de vai-vem, ao menos os princípios do bang bang e do silenciamento, da lei do gatilho mais rápido podem ser observados em diversas cidades brasileiras. Torço por proteções, sejam divinas ou da tal da Justiça (haha) nas cidades que imaginei nesse pequeno bloco de texto.

É difícil mobilizar pessoas a fazerem uma oposição ferrenha, ativa, participativa, quando as consequências por seus atos, denúncias ou mesmo durante as investigações podem ser interrompidas de formas catastróficas, violentas, fatais. A lei do gatilho mais rápido, como referi, acaba silenciando e sepultando o trabalho de jornalistas, advogados, juízes, políticos opositores, funcionários públicos, quaisquer denunciantes que façam questão de meter a cara em televisão, jornais impressos, panfletos ou mesmo os anônimos que correm severo risco, priiiincipalmente em cidades pequenas, de serem descobertos. Quem pode saber disso? Fulano deve saber disso. Fulano trabalhou naquele departamento irregular, naquela obra, naquela licitação, naquele licenciamento criminoso, naquela fraudulação, naquele consequente escândalo. Denunciar muitas vezes é fácil, o problema é lidar com a diaba da consequência.

Quem tem guarda-costas? Quem tem as costas-quentes? Quem pode executar, de fato, o seu trabalho? Sejam postos aí cargos como jornalistas, advogados, juízes proferidores de sentença, todos possíveis corruptos, aceitadores de subornos, de acordos amigáveis para receberem parte do bolo de dinheiro irregular (e não é que teve bolo ainda no texto?). As pessoas podem aceitar simples acordos para manterem o bico calado, ou podem levar até o fim as denúncias e arcarem com pesadas, severas, não previstas em lei, consequências.

Aí está uma diferença capital entre a política realizada nas capitais e nos pequenos centros, nas menores cidades. Parecem resoluções simples, mas há muito do jogo de parentesco, de históricos coronelistas, de lavagem de dinheiro, de promessas infundadas, de voto de cabresto, de cargos de confiança, de funcionalismo público contratado, de corrupção sob o sol, nada de novo neste fronte, de conversas a salas fechadas, de acordos, de mãos que lavam outras, de mãos que se apertam e apertam de rivais e de esquecidas borrachinhas de dinheiro ou multiplicações de zero em contas correntes. Às vezes é tão evidente como a cena gravada do vice-prefeito de Joaquim Nabuco, cidade no interior de Pernambuco, em que o magnata arremessa notas de dinheiro como se fosse o próprio idoso portador de microfone gigante de lapela do Sistema Brasileiro de Televisão.

Às vezes as cidades pequenas são muito mais complexas do que imaginamos.

10 de novembro de 2020

não se via

gosto de sussurrar umas músicas

porque não canto

gosta de tulipas e crisântemos

por que não planto?

gostava do inglês

que não entendia

não sabia a letra

mas a melodia - (me dizia)


ela gostava de sussurrar umas músicas

gostava tanto

da flora que se renova

se repetindo em outro ano

gostava de inglês que

te desconhecia

se achavam o centro

a tomada da Normandia

gostava de um inglês velho

que nada mais te dizia

mas prorrogava que sim

e fingia mais uns dias

por baixo do manto

da solidão - fantasia

e gostava tanto

que não se via


Tropical 


1 de novembro de 2020

Até lá

Não sei o que escrevo. Minha obra - ah, que chique - era composta somente das músicas que eu compunha desde os 12 para 13 anos. Hoje são centenas. Depois parei de musicar algumas e dava ênfase à poesia. Tenho trabalhos da faculdade para fazer enquanto aqui estou. Eles me enfadam. O academicismo me enfada. A obrigação de produzir o que já produziram, de fazer o que os demais já fizeram. Não quero. Priorizo o inédito de quase todas as maneiras. Às vezes, por convenção social, seria melhor imitar os outros, seja pelas maneiras como esperam que você aja, seja pela repetição do que efetivamente dá certo. Mas mesmo assim me complico. Me sinto farsante em quase qualquer obra que colho como ideia alheia. Gosto como particularmente enxergo as coisas ao redor.

Após as diversas músicas, nos variados gêneros musicais, do pop rock ao rap, após as poesias de versos mais para curtos do que compridos, tive contato com as crônicas para relatar episódios da minha vida. Creio que já vinha desenvolvendo isso desde a adolescência, mas a experiência, a releitura inspiram. Para não me contradizer do primeiro parágrafo, são inspirações, não cópias, como o academicismo muitas vezes sugere. As mais diversas críticas à universidade nesse sentido são válidas. Queremos trabalhos inovadores, mas devemos nos basear inteiramente nos antigos. Para muitos é assim. O que é necessário é caminhar. Claro, sempre em vista a comprovação e a aplicação. A expansão efetiva do conhecimento.

Avancei para o gênero das crônicas com aquilo que me entalaria a garganta, com o que me machucaria aos percalços do dia a dia, com as inquietações mundanas, com as observações dos mais heterogêneos personagens que nos cruzam o caminho. A facilidade de seu formato incerto, em que posso escrever ao gosto que aparece e, ao terminar, poder chamar de crônica, sem que critiquem com isto é ou não é uma crônica. É um reduto, uma fortaleza poderosa. A sua suavidade que cabe em página ou duas, não mais do que três. O formato da crônica instiga, flui, me carrega às entranhas das ideias, às distâncias do mundo, ao contato dos outros, mesmo quando me fecho ao mundo externo.

Finalmente, o formato dos contos serviram imediatamente para o espaço do imaginário, as narrativas mesmo curtas, mas com potenciais de expansão. Quantas delas serviriam para livros, para filmes? Algumas, sim, não tenho dúvida quanto a isso, bastaria a boa vontade de expandi-las, mencionando aqui como se fácil fosse. Não é fácil, existe uma atenção mais minuciosa, um cuidado tanto maior com a escrita, porque apontar os erros alheios sempre é fácil. Na verdade, na minha autocrítica encontro muitos erros, mas a preguiça de corrigi-los me impede um resultado, digamos, mais satisfatório. Portanto, me atento aos modelos reduzidos dessas linguagens referidas, me atenho, me confino aos poemas, às músicas que um dia serão ou não gravadas, às crônicas e aos contos.

Um romance de maior fôlego exigiria tempo, que hoje não desfruto, enquanto estudante de letras - dos academicismos que por tantas vezes me enfadam - e escritor diário do jornal Diário da Manhã, e narrador de todos os santos jogos do Brasil (de Pelotas) na Série B do Campeonato Nacional. Ademais, mantenho uma rotina de leituras e visualizações de filmes para colher algumas rosas ou ao menos pétalas e sépalas nas variantes das histórias.

Não sei o que escrevo, mas permaneço atento, descritivo, trazendo detalhes, parâmetros de comparações quase sempre desnecessárias, situações geopolíticas e atuais, comparações e espelhamentos de obras produzidas com nada a ver uma e outra. Acredito que os laços entre obras distintas seja mais válido do que as obviedades dos que claramente foram inspirados uns pelos outros. Ou seja, mais me interessa juntar algo muito distante no tempo ou nos fatores culturais, observando suas semelhanças e comportamentos diferentes, do que comparar obras próximas, em que qualquer sujeito teria a capacidade de enxergar tamanha nitidez. Embora, a nitidez nem sempre esteja nítida a tantos olhares turvos, mas aí...

Não sei o que escrevo, mas escrevo aqui durante um domingo ensolarado que antecede ao feriado de finados, o mais grave da história brasileira pela imensa pandemia de covid-19. Quantos disso se foram? e, na minha vida, tantos outros se foram em 2020 por outras causas e motivos. Circunstâncias. Não sei o que escrevo, mas escrevo aqui ao som do vizinho, apelidado por nós de Dênis, o Pimentinha, um berrão de não sei qual idade, às vezes meu pensamento avança para que ele já tenha mais de 10 anos e tome rédeas ou tomem rédeas de seu próprio incerto comportamento. Outras vezes o acho tão infantil e pequeno que parece não ter mais do que cinco ou seis anos. Está em algo intermediário entre essas impressões. Dênis está saltando na piscina, embora não esteja tão calor ainda. Quando estiver estará apimentado o bastante para que eu deseje meu próximo endereço o quanto antes, embora durante a longa temporada de inverno me senti plenamente acostumado e ambientado nessa troca de casa.

Escrevo enquanto poderia fazer outras coisas, quase nada preocupado com o alcance do público - agora. Futuramente, talvez. Talvez por questões de renda. Talvez por limitações empregatícias. Talvez. Talvez um dia eu também melhor saiba o que, para quem e com qual objetivo escreva. Até lá...