Estamos em uma era em que os jovens chamam de gatilho as situações que geram consequências, reações, enfim. Geralmente eles exemplificam para casos amorosos ou que possam levar a negatividades, gatilhos para depressão, sentimentos ruins ou mesmo arritmia cardíaca (que pode ser boa, tal qual o gozo). O que me engatilha este texto é a notícia durante a pandemia da festa da faculdade de medicina na cidade de Pelotas, aqui se tratando da universidade privada, a paga, de mensalidades condizentes com meu salário semestral.
Essa situação me 'engatilhou' de tal maneira que aqui venho. Vamos ao contexto. Pandemia global, diversas recomendações e orientações da Organização Mundial da Saúde desde o mês de março, quando o vírus da covid-19 começou a se espalhar pelo planeta. O Brasil foi atingido tardiamente, mas está duramente afetado nesses meses todos, agora que nos aproximamos do final do ano. As aulas foram no ensino remoto, virtual, entre síncrono e assíncrono (palavras novas para minha coleção) durante esses exatos meses, justamente para evitar aglomerações, reuniões em salas de aula, os perigos do contágio desse vírus tão incerto de onde pode estar. Os estudantes terminaram, concluíram o curso de suas casas. Abastadas casas, pensando novamente nesse público específico, dos estudantes e das estudantes de medicina da universidade privada, de mensalidades altíssimas.
Justamente de casa terminaram os estudos e, conforme foi dado por encerrado o semestre decisivo, quando muitos conseguiram o almejado diploma, essas mesmas pessoas acharam que seria uma boa ideia continuar investindo o dinheiro - ainda provavelmente dos pais na maioria dos casos - promovendo festas e aglomerações para comemorar. Uma inconsequência e uma contradição no âmbito do absurdo. Enquanto seus colegas de medicina, médicos e médicas formados, enfermeiros e enfermeiras batalham dia após dia com os cada vez mais lotados hospitais, visto que as contaminações e internações têm aumentado significativamente em Pelotas, enquanto passam por esse sufoco, os mais jovens, os concluidores exalam o péssimo exemplo, a desgraça em forma de músicas entoadas por programas de roteiros conduzidos por djs.
Não há mais muito o que chover sobre esse tenebroso exemplo. Justamente as pessoas que deveriam estar zelando pela saúde dos próximos e próximas, estão, através dessas pataquadas, transferindo a responsabilidade e, em alguns casos, não tenhamos dúvidas, o vírus. Não são mais somente festas clandestinas pelos bairros, são estudantes universitários, diplomados no curso de maior status e mensalidades mais caras, promovendo tudo o que não espera que promovam pela profissão que escolheram, pelo juramente que prestaram e tão prontamente estão por rasgá-lo, fatiá-lo e jogá-lo aos mil pedaços ao vento.
Palestrante chato e maldito sou eu enquanto bebo minha água e me obrigo com o corpo a responder os anseios da mente em concluir esse raciocínio. Pode passar ou recém agora estar passando o efeito da ressaca de quem participou de tais festividades, mas fica uma mancha incomensurável, inominável nos nomes e na lembrança. Justo no pior momento da pandemia, no estado inteiro do Rio Grande do Sul em bandeira vermelha pelo risco de contaminação e pela situação dos seus futuros postos de trabalho, os hospitais. Sujam o nome da instituição, sujam seus próprios nomes e fazem um panorama grotesco do futuro da medicina através desses exemplos. Pessoas que deveriam cuidar da população e se prestam a desmantelá-la em atitudes como essa. Pessoas abastadas, pessoas com situação econômica favorável, como esperar que os mais pobres deem exemplo? Com menos acessos, com menos recursos, com menos exemplos vindos de cima? É tudo absolutamente lamentável e traço esse desabafo sem roteiro pré-meditado, do qual perdoo os exageros ou as diretrizes não condizentes, se assim acharem, mas toda essa situação me enfadou de sobremaneira e aqui precisava vir tecer meus nem tão breves comentários.
Certamente também há outras pontas soltas que eu poderia explorar em meu discurso, mas por ora é isso que o gatilho da situação produziu. Talvez tão inútil quanto uma nota de repúdio, talvez ainda mais mediante as poucas pessoas que por ora acessam esses pensamentos. Julio Cortázar acabou de me confidenciar em sua Obra Crítica 3 (organizada por Saul Sosnowski) que era importante entender a situação política da Nicarágua, por exemplo, e mais importante ainda fazer algo a respeito. Entendi a gravidade, a calamidade do que as festas clandestinas, as aglomerações em nosso município e em nosso estado representam no momento, a crescente, a alta das contaminações, das internações, somadas a mais algumas mortes, vamos bater o número de 180 logo em seguida (e ainda levando em conta a subnotificação, a síndrome respiratória aguda grave que pouco se explica).
Mais de 180 perdas em um único ano em uma cidade de pouco mais de 300 mil habitantes. Isto porque a taxa dela, em geral, está abaixo do estado do Rio Grande do Sul. Ainda. Isto porque, ainda, o RS está abaixo da média nacional. O que dizer desse Brasil em que o governo não deu exemplo? Em que os estados foram coniventes ou frouxos nas medidas sanitárias, de saúde e segurança? O que dizer de um povo em que os que deveriam zelar pela saúde, incluso suas próprias, com risco a seus pais, adultos ou idosos que bancaram seus cursos universitários, esses prestam exemplo tão horrendo? O que dizer, da representação e da profissionalização medicinal enquanto isso? Como suportar tais exemplos que se repetem em ordens governistas, em seus apoiadores ruminantes, em violência discursiva e gestos de impunidade?
Impunidade! Polícia é para agredir estudante de federal, às vezes de forma xenofóbica, muitas vezes de maneira racista. Polícia é para combater pobre em praça, nos centros, agir primeiro e perguntar depois, dependendo o caso - se é que perguntam. Polícia é para esses tipos de pacto pela paz - no mesmo final de semana ainda vem a garantia de mais quatro anos dessa mesma política local. Envergonham. Contra universitários ricos, contra famílias tradicionais, contra o poder aquisitivo, contra a constituinte de jovens brancos nada contra eles. Tudo contra os pobres. Defesa de patrimônios, de propriedade privada. Nenhum efeito, como afirmou meu amigo também jornalista, nenhum uso da bala de borracha quando se precisa dela. Nada disso. Festas que seguiram.
E agora podem estar passando o efeito da ressaca. Mas a vergonha prosseguirá no assalto dessas minhas lembranças. É o Brasil que engatilha. E engatilha sobretudo nos pobres. Os ricos podem. Os ricos saem impunes. Ou como diria meu ficcionista amigo romancista: los ricos no piden permiso.
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Apêndices
Os cursos superiores, as instituições privadas, a busca da medicina por status e capital, estão agravando essas inconsequências. Evidente que a medicina sempre teve essa vertente. Mas parece piorar com os anos. A retroalimentação desse sistema excludente.
Depois reclamam de trazer médicos cubanos.
Qual é o real compromisso dos estudantes de medicina com a sociedade, sobretudo a mais pobre?
Aplicação das lógicas desse sistema: o desmonte de festas clandestinas, a intervenção do Estado em reprimir essas situações se restringem a quais públicos? Vocês sabem.