28 de junho de 2023

Demência (1986)

Demência (1986), de Carlos Reichenbach, conta a história de um empresário do ramo de cigarros que está falindo economicamente e na condição de pai e marido. Assim, alucina situações das mais esdrúxulas, num surrealismo à brasileira.

Para época, mescla elementos que comparam Reichenbach a diretores mundialmente famosos, como o espanhol Luis Bunuel, ou o norte-americano David Lynch. O diretor brasileiro utiliza de imagens urbanas da metrópole São Paulo, pano de fundo das desventuras do protagonista. A articulação ocorre com o mitológico Fausto, do escritor alemão Goethe. O diabo se transfigura em diferentes encontros durante as paranoias do empresário paulista.

O filme transpassa por temas mais ou menos sutis no que se refere à política, às críticas ao capitalismo, mas também chega a debochar de uma visão que colocaria todo o bandido na condição de vítima da sociedade, conforme a cena em que uma prostituta aplicaria um golpe no protagonista e, numa reviravolta, ele assume o controle da situação, com o poder de sua arma contra a dupla de capangas que lhe passaria a perna.

No filme estão figuras excêntricas, marginais, prostitutas, amante, malandro aplicador de golpes, criminosos organizados, mas também oficiais, demais empresários sabotadores, jovens e velhas à espera de carona. Os mais diversos tipos de diabos travestidos no caminho do alucinado empresário da maior cidade do país. O filme mescla gêneros, pelo drama de elementos realistas, pela comédia também patrocinada pelo surrealismo, o suspense de até onde renderia a empreitada desvairada do ator principal, até o gênero road, quando, após peripécias, procura fugir das autoridades em escapada pelo interior.

Carlos Reichenbach consegue uma obra de média geral 4,1 no site brasileiro Filmow, para qual desprendo a quantia significativa de quatro estrelas.

⭐⭐⭐⭐

27 de junho de 2023

O Inverno / L'hiver (1969)

"Havia um tempo em que eu não sabia se era feliz ou infeliz. Sinto falta dele."

"... disfarçava suas falhas por trás das pretensões artísticas"

Paisagens belgas bem representadas em L'hiver (1969)

O filme L'hiver (1969) do diretor nascido na Tunísia e com considerada curta carreira em França, Marcel Hanoun, retrata um casal, uma atriz desistente e um diretor frustrado. Eles estão na Bélgica na tentativa da gravação de um documentário. Além das conversas mais ou menos vagas, mais ou menos filosóficas, mais oh menos nostálgicas dos protagonistas, Sophie também troca ideias com o amigo do casal, o cinegrafista, que completa o enxuto elenco da trama experimental, que mescla imagens de Bruxelas, suas pontes, seus prédios, suas águas e um pouco de seu povo, com as incursões frustradas dos profissionais na corda bamba do fracasso.

A película mostra um pouco do cinema francês da época, com cortes de imagens reflexivas, colocações mais ou menos sutis para maiores significados. Interpreto algumas passagens, como por exemplo a adição de uma música despretensiosa, desconexa, como trilha para ambientar a falta de entrosamento do casal. Ela que decidiu seguir passos da carreira do diretor, ele que a nem escala para seus projetos de difíceis conclusões. Ela que caminha em busca de respostas, gastando sapatos sobre as seculares pedras calçadas da capital belga. Ela italiana, de Veneza, que revela nem ao menos conhecer Florença, possível destino prosseguinte deles.

O diretor insatisfeito com as realizações de seu trabalho, infeliz também no casamento mantido a persistências de uma época em que ainda havia a manutenção maior de matrimônios (em relação a hoje) enquanto já se aumentavam as hipóteses/possibilidades de divórcio.

O filme demora a engrenar, não transmite tantos elementos para uma narrativa de sequência de cenas, então pode ser proveitoso para observação de quadros, cenas, escolhas sentimentais, mescla com a arte que aparece em quadros de pinturas, exploração do espaço urbano, preenchimento de vazios, elementos cinematográficos- como o diretor pensando em sua obra-, além de questões comuns a casais de quaisquer épocas, em diálogos nos quais tentam novamente nortearem-se, seja dentro da relação ou em suas vidas, em geral. Para onde irão depois disso?

Minha avaliação foi constituída em quatro estrelas das cinco possíveis

⭐⭐⭐⭐

Casal distanciado é protagonista na trama do tunisiano Hanoun

Marcel Hanoun foi autor de poucos filmes, mas produziu na cinematografia com as estações do ano, das quais já assisti o filme sobre o Verão, em que uma jovem vai para uma casa de campo e reflete sobre seu tempo na cidade, seu relacionamento e a política através das manifestações de maio de 1968 na França. Pretendo assistir ainda às estações faltantes, Outono e Primavera.



15 de junho de 2023

Que me perdoem os monogâmicos do futebol

Meu pai conhecia desde sua infância, nos velhos muros que, contrariando lógicas e passadas enchentes, mantém-se de pé. Vermelho e branco, perdoem-me, sempre foram cores que desprezei pela minha criação no Rio Grande do Sul. Nunca me imaginei torcendo efusivamente por um colorado. Perdoem-me, em especial, os monogâmicos do futebol que não entendem minha paixão por mais de um clube. Elas se complementam em ser quem eu sou. Afetado por uma cidade decadente após a grande enchente de 1974, o Hercílio Luz, bicampeão catarinense em 1957 e 1958, ainda assistiu ao então rival, Ferroviário, completar a trinca de títulos da cidade em 1970, ano especial em que o tri também veio para a seleção brasileira na Copa do México, no esquadrão de Clodoaldo, Gerson, Tostão, Jairzinho e Pelé. Em Tubarão, a enchente de 1974 destruiu casas e sonhos, causou mortes que desfalcaram uma ou mais gerações em diversas famílias. Com as benções sabe-se lá de onde, minha família passou intacta nessa tragédia. Já desfalcada de outras causas mais ou menos naturais, eu com metade dos meus originais tios, volto ao encontro de minha própria história familiar ao retornar para Santa Catarina ao final de 2021. Apenas tinha passado poucos dias em férias em cada ocasião a que vinha ao estado vizinho ao norte, mas, ao passo em que meus pais adquiriram posse no litoral do estado, posso experimentar uma vivência mais robusta, uma estadia mais longa. E aí surgiu a retomada desse amor perdido de meu pai, que durou de sua juventude até o começo da década de 1980, quando conheceu minha mãe ainda em Tubarão e logo passaram a morar em Pelotas, isto, mais ou menos, por 1987. Minha irmã e eu nascemos no extremo sul brasileiro, a pouco mais de hora da fronteira com o Uruguai, embora a influência charrua seja tão pouca por aquelas bandas, talvez no hábito do chimarrão e em poucos termos que ainda não configuram nossa linguagem como um portunhol mais escutado nas verdadeiras linhas imaginárias fronteiriças.

O Hercílio Luz Futebol Clube carrega vários vice-campeonatos, entre eles, o de segundo clube mais antigo do estado de Santa Catarina em atividade, perdendo a liderança que detinha para o retornável Carlos Renaux. Leão do Sul, como é conhecido o nosso Hercílio, acumula dois vice-campeonatos recentes na Copa Santa Catarina, além de três vices da segunda divisão catarinense. O Marcílio Dias, nome parecido com o qual muitos confundem Leão e Marinheiro, por exemplo, tem apenas um título de primeira divisão em SC, mas possui taças da segunda divisão, inclusive a taça da última Copa Santa Catarina, vencida exatamente sobre o Hercílio de Raul Cabral.

Raul é um personagem central nessa retomada do Hercílio Futebol Clube. Residente da região, assumiu o clube em 2021 e, até a escrita dessas humildes linhas, acumula 27 vitórias, 16 empates e 13 derrotas, um aproveitamento de dois por um em vitórias-derrotas, como podem ver, feito grande para um clube emergente do interior brasileiro.

A cidade de Tubarão comporta uma população pouco maior de 110 mil pessoas, podendo evoluir, talvez para 120 ou mais ao longo desta década. É uma cidade relativamente pequena para a busca, o sonho, o almejo de um futebol nacional. O Hercílio Luz em seu retorno profissional de 2008 para 2009, pela primeira vez reescalou um calendário brasileiro, com a Série D do presente 2023. E tem a vaga em garantia para disputa-la, caso não suba (e as probabilidades obviamente, em um campeonato em que de 64, apenas 4 conquistam o acesso, jogam contra), para o ano seguinte de 2024.

Além dos tubaronenses, que ainda se dividem, erroneamente ao meu ver, entre Hercílio Luz, vermelho e branco, e Tubarão, tricolor que tenta retomar um relâmpago tempo glório em que disputou o nacional e a Copa do Brasil antes da pandemia, mas atualmente está na vexatória terceira divisão catarinense, o público hercilista consiste em lagunenses, imbitubenses e demais moradores das áreas que pertenciam a Tubarão, como Capivari de Baixo. Assim as arquibancadas costumam-se povoar em pouco mais de dois mil torcedores por jogo no Catarinense - após duas grandes campanhas - em que caiu nas quartas de final em 2022 e nas semifinais para o campeão Criciúma, por conta de um gol - e controvérsias de arbitragem - em 2023. Na Série D, o público está mais baixo, a trancos e barrancos superando a barra de mil torcedores por partida, número que precisa ser ampliado nas rodadas decisivas aos fins de semana, não mais nas esvaziadas quartas-feiras à noite de um vindouro e desconvidativo inverno. É necessário novamente dobrar a meta, chegar aos dois mil torcedores e assim buscar a faixa de três mil em possíveis decisivos mata-matas. Orai por nós.

Imaginava um texto mais romântico e me restringi a muitos dados. É verdade que o sentimento nas arquibancadas antigas do Leão do Sul, que chegou a fechar durante vários anos, que retomou como Tubarão nos anos 1990 e durou até haver criação da startup do novo Tubarão, esse projeto que decolou e implodiu e tenta, teimosamente, decolar de novo, enquanto o Hercílio retomou profissionalmente em 2009, acendendo em mim, por agora, um sentimento novo, em vários um sentimento antigo. Por isso novamente peço as mais valorosas excusas aos rabugentos monogâmicos do futebol, que amam somente um clube, sofrem só por ele, em algum domingo que talvez se repita no seguinte. Eu peço a licença para declarar-me aqui ainda a Botafogos, Liverpools, e obviamente ao Grêmio. Mas o Hercílio em questão me aproximou de meu pai, que eu havia, silenciosamente, distanciado nos últimos tempos, em relutantes batalhas de humor e afastamento de quem tem por objetivos de vida escolhas diferentes, principalmente às habilidades e escolhas profissionais. Meu pai que muitas vezes não me entende, eu que muitas vezes não entendo meu pai, jovens como eu que cada vez mais, no avançar dos anos, passam a entender um pouco mais de seus antecessores na indústria da vida.

Nunca terei a resposta precisa do que meu pai sentiu ao retornar ao estádio Aníbal Costa tantos anos após sua juventude, tanto tempo depois daquele garoto de família humilde que pulava muros com os irmãos e/ou amigos, para ver minutos finais de partidas, driblar seguranças, quebrar guarda-chuvas aos gols perdidos, comemorar a braços e gritos os gols marcados, lamentando derrotas nos eternos clássicos diante dos mais bem afortunados criciumenses, sonhando em medir forças com os de Florianópolis ou os de Joinville - e hoje conseguindo contra os da capital e até ultrapassando o JEC do norte do estado. Tento imaginar aquele garoto que ele ainda conserva guardado em alguma parte do corpo ou da mente, que se confunde, eterno confuso, em lembranças difusas, em histórias que se repetem ou se embaralham em suas ideias ou problematicamente fonéticas elaborações. Meu pai que se enrola para contar, que busca pescar da memória e apresenta o mesmo insucesso de quando tentava pescar nas praias.

Por isso acredito que muito dificilmente terei a resposta do que passa por sua mente em reintegrar uma comunidade que ele havia deixado e hoje volta muito em minha insistência. Eu hoje pertenço a ela, através de já idos oito jogos, com seis vitórias, dois empates, uma invencibilidade e muitos sentimentos. Também, a exemplo de meu pai, os apresento confusos, confessando que, antes de iniciada esta jornada em escrita, imaginava ter mais bem definidos os sentimentos que passaria, tentando transcrever nessas linhas.

A verdade é que muitos torcedores, quando questionados o porquê de escolherem - ou serem escolhidos, vamos, Botafogo - tal clube de futebol, talvez não tenham essa resposta. Alguns culpam seus pais, outros foram para arquibancada ainda crianças com tios, amigos e aí deslubraram esse mundo de mais derrotas do que vitórias, ao menos sentimentalmente, porque, afinal de contas, ao final dos campeonatos, apenas um time é campeão e todos os demais não, por mais que se comemorem vagas em diferenciados sabores. Outros se descobrem mais velhos, como é meu caso, com, não é negada a influência de meu pai, mas também um sentimento familiar que se amplia, sabendo que meus tios, que posso visitar nas idas a Tubarão, também desejam o sucesso desse bravo e valente Leão do Sul.

Tenho um sentimento exatamente muito familiar ao passar pelas ruas do Aníbal Costa, um bairro ainda central de Tubarão, em ruas que me soam agradáveis com seus chalés antigos reformados, casas mais abastadas, calçadas que variam, ruas em paralelepípedos que também me recordam do interior gaúcho, até a avenida do estádio, que está localizado a uma quadra do colégio onde meu pai revela ter estudado. Um bar raiz na esquina, convidativo, em madeira. Um prédio de apartamentos em frente ao estádio, lugar propício para algum torcedor adquirir a sacada de frente para ver jogos sem pagar ingresso. A bilheteria de pouco movimento, com raras exceções, as camisas em vermelho e branco, a bateria da torcida organizada Império Vermelho. A contradição do nome império, mas vermelho, o que pode agradar e desagradar a todos. O povo que adentra conosco, negros, baianos, sergipanos, como já conhecemos, lagunenses, também imbitubenses e, é claro, os tubaronenses em maioria. Um maluco que cobra os assistentes de arbitragem na tela do estádio, eu que reclamo da demora da cera dos goleiros adversários, tento condicionar o árbitro no grito quando acredito ser falta, cobro, peço, imploro por cartões amarelos ao adversário, por acréscimo ao final se precisamos do gol. Gasto minha voz como obrigação e devoção de onde estou. Quero a vitória sempre, sabendo que em casa ela é imprescindível, necessária e a sequência atual oferece gulosos 25 jogos de invencibilidade no Aníbal Costa, como pude comemorar algumas vezes.

Vencemos a Chapecoense duas vezes, o Avaí uma vez, o campeão Brusque uma vez, empate com o Figueirense, empate com o Caxias, vitória sobre o Camboriú e sobre o Brasil. Golaços de fora da área, gols trabalhados em toque de bola sobre um gramado em bom estado, embora manchado, arrancando gritos da torcida, que acompanha, nas melhores horas, a bateria contagiante da Império Vermelho, incansáveis em busca do ritmo, da ajuda que os jogadores tanto tem reconhecido. É uma torcida ainda pequena, mas muito fiel, uma organizada que incentiva durante os 90 minutos, como pode ser até raro pelo território brasileiro. A bateria não para, a cantoria às vezes quase emudece, mas sempre algumas gargantas a mantém incendiada para o mínimo que se espera de uma torcida no estádio. Os demais seguem nas palmas, cantam as músicas de menos letra Hercílio oleoleole, Leão eô, Leão eô, HER-CIII-LIOOOOO O OOOO O OOOO HER-CIII-LIOOOO

Gosto do comportamento das torcidas barras bravas que nunca param de cantar e posso afirmar que o Império, embora em poucos membros, mantém o samba animado ao longo dos 90 minutos, mesmo que demais, mais corneteiros desanimem. E entendo até os desanimados, porque eu mesmo sou um que no íntimo, que às vezes repasso, desisto que saia um gol nosso, mas o time de Raul Cabral tem nos dado motivos para acreditar e voltar viagens a Imbituba felizes. Procuro orientar nossos atacantes para optarem pelo melhor caminho, cobro que o meio campo, que tem deixado a desejar, se movimente mais, varie as jogadas e assim o caminho das vitórias tem aparecido, obviamente não por intermédio meu, mas me sinto parte da comunidade de camisas vermelho e branca. Também me questiono como pode a camisa do Internacional, a do Náutico podem me desagradar tanto e a do Hercílio me orgulhar, me cair tão bem. As listras, o símbolo arredondado, as iniciais que tanto amo ver nos nomes meu e de Larissa, pela ordem das iniciais do clube.

As camisas de outro clube que expõem uma comunidade bastante ampla, pois já vi camisas, durante o Campeonato Catarinense, de todos os considerados 12 maiores clubes brasileiros. Você está fora aqui, Athletico Paranaense, por mais que tenha feito resultados em campo que o valham citação. A preferência pelos clubes cariocas é evidente, mas os demais paulistas também botam a cara. Creio que vi algum atleticano, mas cruzeirense agora não confirmo, então talvez possam deletar o depoimento deste parágrafo. Fato é que o Hercílio Luz se mostra bastante querido pelos torcedores de diversos clubes, daqueles que se aventuram em buscar os maiores títulos do país e da América do Sul. Dentro do Aníbal Costa, todos hercilistas em busca do mesmo objetivo, seja uma retomada épica às glórias antigas do Catarinense ou uma escalada nacional não antes vista na Tubarão de seus hoje pouco mais de 110 mil habitantes. A base do clube também tem feito bonito, disputando competições pelo Sul brasileiro e também fez boa campanha na última Copa São Paulo de Juniores, quando adentrou o universo dos 32 melhores clubes do país em categoria de base. Se foi apenas uma exceção dentro da competição, descobriremos, mas estes dias os guris conseguiram bater o forte Figueirense, mais uma vez. Tomara consigam novos triunfos e formar alguns atletas nos próximos anos. Não sejamos escravos do careca, quase aposentado, Renan Bressan, meio-campista de relevância a nível nacional, com passagem pela vizinha Criciúma, por Paraná Clube e outros.

Arremato o texto então nesse tom de breve despedida, em mais uma volta a Pelotas, que seguirei torcendo para o Leão do Sul na caminhada da Série D, mesmo estando distante. Procurando no rádio e nas imagens via internet, lejos do Aníbal Torres Costa. Espero que meu pai possa ir a mais jogos, embora ele não se encoraje muito de sair da cidade litorânea rumo a Tubarão, apesar da boa estrada e da oportunidade sempre bem-vinda de visitar seus remanescentes irmãos e talvez alguns sobrinhos. Espero que o Hercílio mantenha a chama do futebol acesa sobre Tubarão, uma cidade que tenta retomar seu espaço no mapa catarinense e também entre as maiores do Sul brasileiro. Um percurso árduo, mas que muito felicita ser cursado. Refletores que se acendem e se apagam. Um amor de verão chamado Hercílio Luz, que vem sendo mantido, abandonado agora nas escadarias frias do inverno, mas para logo ser reanimado. A camisa pode ir por cima da jaqueta ou direto na pele. Tubarão é boa no inverno, quando o frio teima em não baixar dos 10 graus, mas é escaldante no verão, que quase me derrubou em desmaio justo no melhor jogo, naqueles 3x0 sobre a Chapecoense. Espero ver mais senhores sonhadores, crianças em seus primeiros passos, mulheres que tomam cada vez mais gosto pelo futebol. Que as ideias ousadas de destrinchar um caminho tão estreito e íngreme não se percam nas tão comuns vias da vaidade no futebol, no desmanche, na incompetência e na falta de planejamento coerente. Sonhar sempre, com trabalho pela frente, para que mais pessoas possam construir suas histórias ou reencontrar aquelas em que a família já havia aberto percurso.

13 de junho de 2023

Frances Ha (2013)

O filme é assinado pelo diretor do presente filme da Barbie (2023), Noah Baumbach. Escolhi assistir sem essa importante referência, mas fui guiado pelos ares condutores da sinopse. Frances é uma jovem já não tão jovem, ou, como diria meu amigo Damasceno, jovem há mais tempo. Aos 27 anos ela ainda sonha em ser bailarina em Nova York. Pelo que se capta de uma rápida conversa e aparição telefônica de seus pais, eles moram no interior e, obviamente, se preocupam com as peripécias a que se aventura a jovem na maior cidade dos Estados Unidos.

Frances vive com sua amiga judaica Sophie em um apartamento. A protagonista nega viver com o namorado porque acredita que continuará ao lado de Sophie. Mas, ao largo da trama, é surpreendida com muitas quebras de expectativa. As pessoas que ela considera serem... contínuas em sua vida sempre tomam outros rumos. Sophie se muda com uma amiga que ambas falam mal, mas que, ao viver com ela, passa a morar na rua que mais desejava, dando um salto positivo. Além do mais, saindo da amizade tão próxima de Frances, Sophie acaba se envolvendo em um relacionamento mais longo, com Patch (ou algo assim que o chamam).

Frances experimenta várias sensações de incertezas, desilusões e solidões em meio a uma das maiores cidades do mundo. A carreira que não decola, a dificuldade para pagar o aluguel, a vida sujeita a morar e dividi-la com antes estranhos e que, mesmo na sintonia do mesmo apartamento, nunca deixam por completo de serem estranhos. Exercitamos a empatia para entender como é o universo confuso e de desfeitas dessa jovem sonhadora, que pretendia adentrar uma grande companhia de ballet, viajar a turnês como artista pela Europa e nos próprios Estados Unidos. Frances vai cambiando de horizontes de perspectiva, de sonhos que mudam de cores nesse filme todo gravado em preto e branco. O ar cult nos dá a sensação de que estamos diante de uma obra europeia antiga, de um filme norteado pelos restaurantes fumegantes, regados a conversas embaraçosas nos cafés ou nos jantares improvisados diante dos amigos. Convites para cinema, passeios solitários pelas ruas abarrotadas de estranhos. Uma Nova York que se transforma e também, como de praxe, é cenário-personagem, ora de fundo, ora escalandosa aos nossos olhos. Talvez a questão do cenário poderia ser mais explorada. A cena de Frances correndo em busca de um caixa-eletrônico na noite usa esses elementos.

O mundo de desilusões também é feito de aparências. Assim que Frances desconversa muitas vezes sobre seu desconexo futuro, realinhado sempre em tempo real na mente iludida da (nem tão) jovem. A passagem do tempo, os amores que partem, o mais importante pela sua eterna amiga Sophie, que viaja ao longe com o namorado que evolui a noivo.

As referências à França estão desde o nome da protagonista, a atmosfera que se alinha a características francesas, a viagem intermediária como medida de urgência por uma tomada de decisão, em que Frances resolve no impulso ir a Paris, porque precisava, ora precisava fazer alguma coisa.

Todos necessitamos mover-nos. O que buscamos na vida? Para onde vamos? Quem nos acompanha? Somos nós por nós mesmos? A família que está distante, os amigos que partem  os amores que não ficam. O queísmo que me persegue em prosa. As rosas que não abrem ou abrem e logo desabrocham. Frances convive com o remanejar de seu sonho na grande maçã, mordida, mastigada e cuspida dos Estados Unidos, cada vez mais maçã roída pelos rincões de sua ideia (venda de ideia) de nação. A vida comum será tão ruim? Será que não era o que nossos avós queriam? E nossos pais, superá-los ou não? Ou apenas sermos? Se as décadas, as gerações, as cartas, os sonhos e as regras mudam, para viver ou para sonhar. A vida corre, nossa própria peça de ballet onde, em algum determinado ato, talvez já substituídos os atores de nossa vasta e acumulada idade, cerram-se as cortinas.

11 de junho de 2023

Fome de Amor (1968)

Nelson Pereira dos Santos, diretor paulista e um dos fundadores do chamado Cinema Novo no país, com relevância na década de 1960, assina esta obra considerada confusa. O começo de Fome de Amor (1968) mostra um casal de namorados em Nova York e o desejo do homem, Felipe, retornar ao Brasil. Especificamente para uma ilha que ele afirma ser dono. Felipe é pintor, faz quadros e recebe o apoio de Mariana. Ela concorda em se deslocarem até a dita ilha.

Lá encontram um senhor cego e mudo chamado Alfredo, o qual seria o verdadeiro morador daquele espaço que Felipe acreditava (ou não) ser desabitado. Alfredo tem seu cão guia e a esposa, que logo se interessa por Felipe.

Acredito que a obra, ao mesmo tempo que se perde, se ganha em metáforas, citações de movimentos políticos da época, datados corajosamente por Nelson Pereira dos Santos. A narrativa fica descontínua, o entendimento envolto em névoa, mas o desenho de um país da época (e de tantas outras, portanto um clássico) atinge objetivos, quando podemos metaforiar os personagens.

Existe o esforço de Mariana para sair daquela ilha que receberia contornos de orgia - não totalmente demonstrada no filme - e assim conduzir o cego Alfredo para fora daquela traição devassa imposta por sua esposa. Vejo nessas imagens um Brasil censurado midiaticamente, debilitado no afastamento da esfera democrática, tentando sair desse círculo infernal inimaginável a Dante. Um Brasil que necessitava fugir desse caminho tortuoso em que a burguesia é retratada com deboche pelo sensível Nelson Pereira, autor de outros filmes como o clássico Rio Zona Norte, um de meus preferidos.

Um Brasil subvertido na verdade pela cegueira das festas esvaziadas em significado e apartadas das críticas sociais, que nosso povo constantemente precisa manter em exercício.
Acredito que meu esforço aqui para catalogar e deixar registrada minha opinião sobre a obra, esteja involucrado nos conteúdos que assisti imediatamente em dias anteriores. Vídeos sobre a pobreza e violência nos Estados Unidos, em ruas nefastas tomadas por moradores homeless, vivendo em barracas, em meio a lixo e usuários das mais diversas drogas, que devo abordar futuramente em outro texto. Também recém assisti ao Argentina 1985, filme premiado com a figura central de Ricardo Darín no papel de um promotor no caso considerado o mais importante da história argentina, o julgamento dos chefes militares no período atravessado em ditadura.

Enxergar imediatamente após essas questões, essas temáticas, abre horizontes acerca da visão sobre o filme Fome de Amor. Essa fome é metafórica, de um país que perdia rumos, um país alcoolizado e perdido, ilhado do mundo, como recentemente esteve na péssima repetição quimérica de um (des)governo Jair Messias Bolsonaro. Um país irreconhecível para quem acreditava nele, um país que trai seu próprio povo, um país de líderes descontrolados impunes. Um país também com sede de ser liberto, mas que ao mesmo tempo nos questiona que tipo de liberdade, pois as atuais ruas de Kensington, na Philadelphia, nos alertam para outros perigos, como o descontrole em gestação na ilha paradisíaca do filme brasileiro de 1968.

1968 é um ano que remete aos protestos e correntes formuladas na França. O Cinema Novo, pouco aproveitado em herança brasileira, condizia com técnica e semelhanças da Nouvelle Vague francesa, mas carrega sempre as especificidades de uma América Latina complexa, da qual o Brasil por oras se acerca, por oras se despede incomunicável em uma ilha que o torna ainda mais nativo, cativo de seus próprios problemas insolucionáveis ao largo da história, queiram escrever com H maiúsculo ou minúsculo. 

Por fim, não consigo encerrar essas linhas sem deixar trecho do texto do poeta equatoriano Jorge Enrique Adoum, em trecho de conferência pronunciada no V Encuentro de Poetas Latinos. México, outubro de 1990. Revista Blanco Móvil, de 1991.

Aqui o autor define nosso continente latino-americano com uma precisão impressionante.