26 de abril de 2024

Domicílio Conjugal

O trabalho obrigatório poda a criação liberta. Tive que guardar umas poucas coisas antes de deitar para escrever essas linhas e quase perdi totalmente a vontade. São 3h35 da manhã nesse exato momento. Acabo de assistir ao filme Domicílio Conjugal, com Jean Pierre Leaud e Claude Jade. Direção de François Truffaut, um dos favoritos da casa.

Estou na residência dos meus pais. Fechei a janela do banheiro porque minha mãe achou corretamente que poderia encarnar vento e do banheiro a corrente de ar bater as portas do meu e do quarto deles. Cheguei a escutar algo assim hora atrás. Ela correta. Também procurei dar descarga silenciosamente agora, o que é impossível, mas na minha cabeça eu tento. 

Minhas meias e minha cueca apertam minha circulação e parecem danificar mais ainda meus nervos e músculos. O que será do meu futuro? Procurei e a bela dentucinha Claude Jade morreu em 2006. Isso é há muito tempo. Jean Leaud ainda não foi embora, mas tem 79 anos e irá. Eu sinto muito mesmo. Percebo ao beber água na cozinha, novamente tentando não evocar ruídos, que todos vamos morrer. Pensamento que veio de filme que vi ontem, o nacional Depois a Louca Sou Eu, inspirado em livro da paulistana Tati Bernardi, com atuação de Débora Falabella.

Claude Jade morreu e Jean Leaud vai morrer. Os diretores Jean Godard e Truffaut já morreram. Eu um dia irei. É duro perceber que não darei certo com mais alguém. Na verdade é libertador e solitário. Melancólico e abridor de várias possibilidades de acabar em nada. É confortável e desconfortante. Confortante e desconfortável. É enxergar menos passado do que se pretendia e muito pouco futuro. Até pouco tempo a vida correria para frente, para diante, um horizonte a se desenhar, talvez com um emprego agradável, viagens e novas pessoas a conhecer. Agora estou contagiado pelo vírus da mesmice. Penso em pouquíssimas viagens que eu realmente deseje. Vi no documentário Terras, um trecho de rádio latino-americana anunciar que a maior fonte de renda europeia é o turismo. Quero eu dar dinheiro a mais para essa contribuição em troca de migalhas de aprendizado e satisfação visual ou paladar? Quero eu manifestar minha devoção ao continente que mais expulsou meus antepassados judaicos? Quero eu conhecer os complexos vira-latas da família, em algum lugar entre Portugal, Alemanha e Polônia? Quero eu e eu por acaso mereço?

Não planejo mais grandes viagens, mas pode ser que as venham. Não planejo mais grandes empregos, só se me arremessarem algo do tipo no colo e, veja bem, inventarei poréns para trocar grandes oportunidades e melhores salários (ou não) por resquícios de tranquilidade, evitando correrias mesmo que assim aceite cabisbaixo outras.

E não me vejo mais morando com alguém, dividindo experiências profundas em sintonia. Não acredito no amor máximo, uno, indivisível, burguês e vencedor de uma disputa célebre majoritária. Acreditaria no máximo no respeito e na não condenação ao fastio e ao tédio que engodam, sugam e massacram a vida e o sentimento de estar vivo. Acreditaria em uma união positiva para ambos os lados, sem amarras impositivas contrárias à criação e experimentação, mesmo que essas fossem, em virtude do acordo respeitoso, limitadas ao experimento onírico da bebida e da troca amistosa de conhecimentos. Isso é evoluir. É viver. É positivar a existência ao caminho do aprendizado, dá arte e do aproveitamento proveitoso dos tempos. Acreditaria nessa utopia toda, mas nem nisso acredito. Acredito consumir minha existência através de amargas linhas, amargos dias, misturados a pitadas de bom sabor, cuja ponta da língua identifique e se satisfaça em breves intervalos, antes que o soberano fastio se dissemine novamente.

Acredito tão pouco nas utopias do amor e vou tentando, colhendo flores caídas e espinhos revoltos, tentando me reerguer em novas possibilidades muito desafiantes e escassamente prometedoras. Já nada se promete porque não me engano. Ou justamente me engano porque acredito que mais nada se prometa. Talvez caminhos que eu acredito estarem fechados não sejam necessariamente o fim. Talvez.



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