Nota para escrita desta crônica: Questionar a origem biológica. Da amargura, da angústia até o rápido brotar nos olhos. E questionar na emoção o que as causa. Lembrei de tio Silvio e senti pela prima Silvia.
Isto mesmo, deixei a nota de lembrança. Do que lembrar para escrever depois. Me questionei sobre a origem das lágrimas durante a última viagem, eu enquanto passageiro (sempre o sou) no carro. O passar da paisagem pelo lado de fora sempre convida a reflexões e na ocasião foi assim também. Lembrei de uma viagem há muitos. Obviamente havia tempo, porque o falecido tio Silvio foi-se embora em 2009. Mas não foi muito antes disso o ocorrido. Uma cena qualquer, mas daquelas que acabam ficando eternizadas em nossas mentes. Ou, se não eternizadas, assim ainda permenece essa, quase década e meia depois.
A cena é tão simples que alguns talvez se perguntem como isso fica na cabeça. Mas estávamos voltando de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, onde é possível realizar compras diferentes nas free shops, pela estrada. A caravana consistia em dois carros - o nosso e o de falecido tio Silvio. No outro carro, tio Silvio, de idade mais avançada do que meus pais, dirigia, conforme dizia meu pai, já com alguma dificuldade visual. Lembro que era um carro bordô, só não me peçam a marca, porque aí deixo a desejar. Tio Silvio arriscou uma ultrapassagem em nós e concluiu com êxito, ao que meu pai se surpreendeu e destacou o arrojo do cumpadre. Não esperava por essa manobra. Meu pai guiou a viagem a maior parte do tempo, com raras exceções, baseadas nesta ultrapassagem do tio.
Lembrar desse momento me entristeceu bruscamente. De óculos escuros no verão do carro, precisei conter as lágrimas. Não sei ainda exatamente se pelo tio não estar mais entre nós, ele que veio a falecer em seguida a esse episódio. Esse episódio que não sei precisar de qual ano. Sua morte foi em 2009. Mas tanto pior é a situação atual com que minha família tem de lidar.
A filha de Silvio é a Silvia, minha prima. A prima Silvia encontra-se em estado delicado, grave, fazendo tratamentos até o momento ineficazes para sua definitiva cura. Inclusive a evolução, o estado de melhora é difícil ser visto por quem a acompanha. Ela trata os nervos do rosto, os chamados trigêmeos. Quem conhece alguém que já os tratou sabe da delicadeza da situação. Da dor constante, da ineficácia comum às tentativas. Ela permanece assim, em estado grave e isso tem se arrastado por meses. Desde o 2020 em diante.
Pois que recordo o dia em que minha mãe anunciou que a Silvia estava doente. Eu costumo despertar tarde. Perto para hora do almoço. Então alguns diálogos matinais eu ouço de fundo, sem estar bem acordado. Pesco durante sonhos ou somente nesse estado de transição, antes de uma lucidez maior. Pois foi assim que certa manhã ouvi minha mãe desligar o telefone - ou suponho que recém havia feito isso - e comunicar - aí sim mais alto - para minha irmã que a prima estava com a doença dessa sequência de anos: a Covid-19. "Sua prima está com a Covid", anunciava minha mãe, na falta de tato de preparar-se melhor para o aviso. Foi uma frase como uma flecha, um tiro certeiro, um baque. "Sua prima está com a Covid". Ainda não havia vacinas. O susto era evidente. Apesar de que, ainda em 2020, a mortalidade estava mais concentrada em idosos. Ao saber que minha prima estava com a Covid, nossa preocupação maior pairava sobre a mãe dela, idosa da mesma forma que minha mãe.
Só que a situação se desenrolou de outro jeito, como agora bem sabem. A prima não conseguiu se recuperar plenamente. Apesar dos sintomas, os exames inclusive negavam a presença do vírus da Covid. Até que um deles apontou a existência. Era tudo muito confuso. Só que as dores e o mal estar persistiram. Descobriram o problema de dores de cabeça concentrado aos chamados nervos trigêmeos. Eu que já não concebia bem a ideia de gêmeos - talvez por não havê-los em minha família - passei a agoniar mais ainda ao ouvir o termo.
A família de minha prima escalou a tentativa de cura saindo da bolha de nossa interiorana cidade para buscar ajuda em Porto Alegre, e os médicos acionaram a necessidade de ajuda até a megalópole São Paulo e, neste exato momento, o teste que ela fez com a retirada do líquido 'liquor', da coluna cervical, está em análise de laboratório em Belo Horizonte. Esperamos alguma boa nova no meio disso tudo.
Alguma boa notícia, porque ela segue com muitas dores, conforme minha namorada já havia nos alertado que o pós desse exame - de retirada do liquor - é muito complicado. Enquanto isso, minha prima é tratada com altas doses medicamentais. Seu organismo sofre sendo combatida ou não sendo combatida a doença que a acomete. E gostaríamos, mesmo, nisso tudo, algum sinal de melhora, ainda não visto.
Mas relatar toda essa situação, embora seja desabafante em meu caso, estava longe de ser o posicionamento inicial para os rumos do texto. Pensava eu nos momentos que evocamos nas lembranças e deles evocam-se as lágrimas. Como pode esse processo? Sim, talvez não seja a hora de pesquisar biologicamente esse processo, que me permanece em dúvida. Mas como é curioso. Mal eu havia processado a cena de meu tio ultrapassando naquela estrada e senti a agonia que remeteria ao choro. Os óculos escuros a proteger a minha integridade no momento, sem aparentar que as lágrimas já me vertiam.
Questiono bastante isso porque passei vários anos sem conseguir chorar, essa era a verdade. Aliás, situações que me envolvam diretamente causam essa dificuldade. Por mais que eu esteja sofrendo, nem sempre as lágrimas me vêm. Como é com vocês? Outras vezes, de forma súbita, as lágrimas surgem e me derrubam o estado emocional. Vertem a galope, a escorrer do rosto. Bem me recordo que além da cena da ultrapassagem de meu tio, talvez uma angústia causada pela lembrança foi a de que o imaginei, desde aquela ocasião anterior a 2009, saindo da pista, indo encontrar o mato. Seria uma cena desastrosa, um acidente que poderia ser fatal. Mas, em seguida, a fatalidade o encontrou, em uma pescaria que era para ser tranquila, mas acabou infartando para não mais voltar ao nosso convívio.
Todavia, a lembrança da ultrapassagem, conciliada à minha imaginação de que o carro sairia da pista, causando fatídico acidente, me leva a querer afastar os maus pensamentos. Às vezes minha mente dribla-me e propõe coisas ruins assim, gratuitamente. Daí que fico mal por esses pensamentos, que não deveriam atravessar o meu caminho. Imagino violências gratuitas, violências domésticas, às vezes sonho com coisas ruins desse modo. Será a convivência com a violência da televisão, visto que meu histórico familiar não computa tais ocorrências? Não sei, mas isso foi me adentrando a mente a ponto de se tornar recorrente. Não, não é tão comum como você possa estar pensando agora mesmo. Mas é mais recorrente do que eu gostaria, até porque gostaria que isso nunca ocorresse. Esses pensamentos nada ensaiados, essas desgraças que perturbam minha ordem, minha paz.
E essas invencionices, juntamente com os fatos reais, no caso a morte de meu tio, o mau estar contínuo de minha muito mais jovem prima, tudo isso me perturba abruptamente. E essas perturbações? Me levam a questionar a origem biológica das lágrimas. Por que, em determinadas situações, meu rosto está seco, nada me verte no lacrimejar? Em outras ocorrências, lá estão as comportas abertas, a barragem a desfazer-se sobre minha face. Qual a explicação entre a emoção e esse processo biológico? O que não muda, com ou sem lágrimas, é a angústia, a agonia, o desespero diante de situações em que mais nada podemos fazer. Se nem os estudiosos da medicina estão encontrando solução, o quê podemos nós fazer, a não ser o que geralmente sugerem pelas correntes, pelas redes, pelas famílias afora, no rezar das orações?
Chego ao final desses questionamentos me dando por conta da diferença das situações. A morte repentina de meu tio, o sofrimento há quase dois anos de minha prima. Ela podendo escapar, mas ainda não sabemos. Não sabemos a qual preço, com quais consequências, com quais sequelas. A situação é preocupante, é delicada. Torcemos por ela. Enquanto isso, se estiverem dispostas, se os funcionários junto a nossos olhos permitirem, no controle das comportas, vertem-se lágrimas no aguardo de sentenças.