31 de janeiro de 2022

Mosca na Lâmpada

Uma mosca se debate contra minha lâmpada 

Nessa lâmpada habitavam antes cupins

Talvez seja essa uma prova cabal

De que as coisas são mesmo assim


Moscas muitas vezes bateram contra minha janela

Independente da casa eu tinha de abrir para elas 

Ou continuariam a se debater o dia todo

E conhecendo as moscas, a vida toda delas


Mosquitos muitas vezes me provocaram 

Queriam meu sangue, me deixavam aflito

Mais do que o hábito hematófogo

Me agoniavam mesmo eram seus zumbidos


Baratas muitas vezes ganharam a batalha 

Se eu pudesse, não entrava, eram minha falha

Se fossem voadoras, tanto pior o horror da hora

Que somente uma chinelada amenizava 

Pancada com a sola


Enquanto escrevo isto a mosca se debate

Gostaria de deportá-la - talvez à Marte

Mas nem precisa tão longe, para qualquer parte

Deixá-la livre e com vida

Antes das derrotas cruciais o amistoso empate


Ó mosca que não habita sopa

Faz da lâmpada e seu entorno o baluarte

A enterrada

Relação de estar lúcido, raciocinando sobre o sonho, mas ainda não estar totalmente acordado. Como o que se diz de um sonho dentro de outro sonho. Consegui enterrar no basquete. Consegui encontrar pessoas do Jornalismo. Percorri a pé minha cidade em busca de minha antiga casa e haviam feito crateras na rua, para escoar o esgoto, em um serviço porco, mal feito, com os dejetos a céu aberto, difícil de acreditar. Falta de respeito com o contribuinte, com o dinheiro dos impostos, a Gonçalves Chaves com seu calçamento detonado, cortado por uma linha bizarra que abria caminho para o subterrâneo esgoto. A linha que prosseguia incômoda como uma rachadura numa parede e talvez eu mais a percorresse por curiosidade de onde acabaria tamanho absurdo. Mas obviamente terminaria na casa onde morei a suprema maior parte de minha vida. E o panorama lá nada melhorava, com a confusão cloacal. Cruzamos por um vizinho, antigo vizinho, morador da região, apenas sabíamos que ali morava porque saiu logo reclamando, indignação que logo compartilhamos. Declarou sobre o absurdo daquele córrego defeituoso, imundo, gerador de asco. Replicou nossa prévia ideia de desrespeito com o contribuinte através dos impostos.

Este era o desfecho asqueroso de um sonho um pouco menos assim. Começou até promissor. Jogávamos basquete no ginásio da escola. Seria um jogo que combinei marcarmos em algum dia inexistente, marcar de marcar, com João Antônio, pela internet. O assunto com ele surgiu porque mencionou em um jogo da NBA que o time do jornalismo, nos jogos da Universidade, mesmo atuando com apenas quatro, era mais digno. Dali puxamos assunto. Me ofereci como participante em futuros joguinhos que desde a conversa já consideramos impossíveis de ocorrer. Quase ninguém liga. Pois ainda imaginei muito mais.

Estávamos com turmas antigas formando time. Havia apenas seis em quadra à espera do início. Era horário marcado no ginásio. Propusemos um infeliz 3x3 em meia quadra. Como correr a quadra inteira com apenas três jogadores em cada time? Aí já estávamos batendo bola. Meus arremessos curtos e sem força, e sobretudo sem noção da distância até o aro. Aí chegaram mais dois e começava a se ajeitar o jogo. A bola de basquete ora virava de futebol, ora voltava a ser de basquete. Ora a chutavam, ora a buscamos novamente só com as mãos, como a boa regra do jogo. Eu já havia saltado no aquecimento, um salto preciso, voltei a me pendurar no aro de basquete, Shaquille O'Neal de meu vasto imaginário. A trave, a sustentação da estrutura, tudo balançou sob meu triunfo. Fiquei muito contente por ainda conseguir saltar bonito, como sempre consegui e chamei atenção. Eu talvez fosse o melhor saltador em altura na escola. Mas não gostava de fazer o ritual do início dos jogos de basquete. Não gostava de jogar de pivô. Não gostava de pegar rebotes. Não gostava de arriscar saltos por cima dos perigosos degraus em piscinas. Mas saltava muito, demais em altura. Por isso, apesar da minha faixa de estatura, conseguia alcançar o aro.

Mas recordei, lúcido, que não conseguia alcançar o aro enquanto manobro a bola. Ou seja, eu não conseguia enterrar. Mas dessa vez consegui. Colega meu lançou a bola em um chute de três dedos. Peguei a bola no alto, na altura da cabeça, mais ou menos, e fiz o movimento, os chamados tempos, passos rítmicos em direção à cesta. Consegui subir à altura quase do aro e apenas largar a bola na posição correta para dentro, mas, com a bola já emaranhando-se na estreita redezinha, antes de cair de volta ao solo, eu ainda subia, senti como se o ar me permitisse mais um salto dentro do salto e alcancei o aro, talvez até com sobra. Será assim uma enterrada? Provavelmente não. Mas a sensação foi. 

Após a enterrada em que dali recebia os respeitáveis aplausos pelo salto, o movimento, a cesta, todos bem concluídos, eu estava fora da quadra. Chega! Basta de às vezes chutar a bola, às vezes jogar basquete seguindo as regras direitinho. Encontrei pessoas ligadas ao Jornalismo em um quiosque, o que me poderia fazer pensar que se tratava do mercado público de nossa cidade, ideal para acomodar encontros boêmios como o da ocasião. Ou ao menos é o local que recorro à memória para aderir a um quiosque fora de praias. No meu convívio seria no mercado, enfim.

Encontro pessoas ligadas ao Jornalismo. Tento descrever a façanha recém (?) executada de enterrar a bola de basquete na cesta. Ninguém parece ligar. Percebo que me encontro tentando narrar a cena pela segunda vez para eles. Mas ninguém dá bola. Pessoas vêm, pessoas vão daquela mesinha, pessoas cumprimentam outras pessoas mais do que a mim. Azar é o meu. Fico perdido entre os vácuos e meus pensamentos, levando comigo somente a façanha de ter enterrado uma bola de basquete e, talvez, o gosto amargo da bebida, bebericada a cadinhos no copo que eu pareço jamais ignorar.

Vida imensa e minúscula

A vida, quando acaba, é imensa e minúscula. É de qualquer tamanho, a depender do ponto de vista. É minúscula pois não existe mais na realidade. O corpo não se move mais. Aquela cabeça já não pensa. Foi-se a vida. É imensa pelo legado, pelas lembranças que deixou. Grandes obras, grandes escritos, grandes amigos, relações pessoais. Boas ou ruins. Críticas ou puros elogios ao morto. Mesmo quando é desconhecido, depende o ponto de vista. ONGs se importam. Estatísticos se importam. Familiares desconhecidos pela mídia se importam. Pessoas que nunca aparecem nos jornais, mas existem. Periferias, comunidades afastadas. Indígenas sem nomes decifráveis para quem só estudou o Português. Ou mesmo Inglês ou Espanhol. Funerárias. Médicos legistas. Alguém viu e alguém lembrou. Lembranças que cabem em um dia ou em uma vida. O estado de putrefação. O enterro. O coveiro em ação.

Vidas são imensas e minúsculas. Em curta distância, já não se enxerga o corpo de uma pessoa. Do alto do avião as formigas são iguais. Nem gordas nem magras. Nem brancas nem negras. Nem santos nem bandidos. Nem Santos nem Palmeiras, nem Corinthians. Em curta distância, o amor sobrevive na cabeça. No afeto transformado e transformador das lembranças. As memórias que sabem-se poder repetir ou até superar as expectativas. O reencontro. Quando a morte ou as decisões (definitivas?) da vida se atravessam, as recordações também são imensas. Imensamente dolorosas. O sentimento de não ter mais como.

A vida quando acaba pode ser vista como imensa que foi ou que ainda é. Pode ser vista como minúscula. É o ciclo natural. Desde a escola se aprende, com mais ou com menos consciência, para pequenos órfãos ou desconhecedores do futuro dos pais, que se nasce e se morre. Não há o que fazer. Diante do inevitável, a vida soa passageira, minúscula diante da natureza e do cosmos. Barragens, maremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, climas extremos como desertos, ondas de frio ou de calor, tudo pondo a vida do ser humano à prova. O ser humano necessitado de esquemas, de tecnologias para sobrevivência. Ou seria apenas a expectativa de vida mínima diante da feroz natureza. Como estavam sujeitos à morte constantemente seus antepassados. A expectativa de vida aumentou mas ainda é baixa para quem sonha viver dois séculos. Assim como a estatura humana aumentou mas está longe (acho que ainda está) dos três metros. Os três metros me parecem mais próximos do que os dois séculos. Me corrijam se eu estiver enganado. Observamos árvores ou tartarugas ou microrganismos, invisíveis a nós sem a tecnologia, nos superarem em faixa etária.

A vida também é imensa. É tudo que nos cabe no peito. É o que as lembranças nos evocam. É o que almejamos para o futuro. Minha vó aos quase 90 querendo só mais um tempo de vida. Alimentação, banho confortável, cama para dormir. Dormir e acordar. Pois é a vida. A vida é o que ela tem. É o que ela quer. Continuar tendo consigo. Consigo e com os seus. Já viu muitos morrerem e sabe da importância deles caso seja perguntada sobre. E sabe a importância dos vivos, com ela a cada dificultar dos passos. É a vida.

Sua Terra

Era um livro velho 

Mas cheirava como novo

Era um homem velho

Mas que parecia moço 

Era uma época de seca

E ela me fez sentir

Sua terra

26 de janeiro de 2022

A vista pro mar

A vista pro mar

Cheguei a não gostar

Pela exclusividade a mim


A vista pro mar

Queria que mais gente a tivesse

Mas isso já me adverte

O Brasil é desigual


A vista pro mar

Onda a onda é a mesma

Mas o Brasil nessa pobreza

Heranças de Portugal

Pela forma de cultura

Regime da escravatura 

Onde foram nos levar...


A vista pro oceano

Sonhei isso muitos anos

Aqui todo esse verão 

Finalmente aqui e então 

Liberdade e solidão


A inflação sobe pelas paredes

Tem a fome, tem a sede 

Que água salgada não cura

A loucura de costas para o mar

Onde o asfalto é quente

O vento não circula 


A vista pro mar

Cheguei a não gostar

Pela exclusividade a mim

A temperatura 

Em uma amenidade

Privilégio da cidade

No janeiro em pleno fim


A vista pro mar

Se estende na minha frente

Quem me olha não entende

Como pude não gostar

Mas a vista pro mar

É tamanho privilégio 

Será o melhor dos tédios

O melhor pra observar

A vista pro mar

Pela frente desse prédio

Com nada de intermédio 

Entre o mar e meu olhar

Eu queria te mostrar 


Onde há prazer?

Onde há lazer

Nos dias de semana?

Se não na sua cama

Se não na sua cama


Onde há prazer

Nos dias de semana

Se não na sua cama

Se não na sua cama


Lavar a louça 

É muito chato

São muitos pratos

Para se lavar


Onde está o ser

Quando se engana?

Onde está o ser

Quando não se engana?


Quando é o melhor

Dia da semana?

Sábado na sua cama

Sábado na sua cama


Em espanhol 

Lençóis são sabanas 

Lençóis são sabanas 

Em português 

Também são savanas 

Também são barracas

Também são cabanas


Os outros dias

Somam vários dramas

Atravesso o tabuleiro 

Até a minha dama

Até essa cama

Maior que o mundo inteiro


Tenho medo de descer




24 de janeiro de 2022

Crônica sobre a origem das Lágrimas

Nota para escrita desta crônica: Questionar a origem biológica. Da amargura, da angústia até o rápido brotar nos olhos. E questionar na emoção o que as causa. Lembrei de tio Silvio e senti pela prima Silvia.


Isto mesmo, deixei a nota de lembrança. Do que lembrar para escrever depois. Me questionei sobre a origem das lágrimas durante a última viagem, eu enquanto passageiro (sempre o sou) no carro. O passar da paisagem pelo lado de fora sempre convida a reflexões e na ocasião foi assim também. Lembrei de uma viagem há muitos. Obviamente havia tempo, porque o falecido tio Silvio foi-se embora em 2009. Mas não foi muito antes disso o ocorrido. Uma cena qualquer, mas daquelas que acabam ficando eternizadas em nossas mentes. Ou, se não eternizadas, assim ainda permenece essa, quase década e meia depois.

A cena é tão simples que alguns talvez se perguntem como isso fica na cabeça. Mas estávamos voltando de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, onde é possível realizar compras diferentes nas free shops, pela estrada. A caravana consistia em dois carros - o nosso e o de falecido tio Silvio. No outro carro, tio Silvio, de idade mais avançada do que meus pais, dirigia, conforme dizia meu pai, já com alguma dificuldade visual. Lembro que era um carro bordô, só não me peçam a marca, porque aí deixo a desejar. Tio Silvio arriscou uma ultrapassagem em nós e concluiu com êxito, ao que meu pai se surpreendeu e destacou o arrojo do cumpadre. Não esperava por essa manobra. Meu pai guiou a viagem a maior parte do tempo, com raras exceções, baseadas nesta ultrapassagem do tio.

Lembrar desse momento me entristeceu bruscamente. De óculos escuros no verão do carro, precisei conter as lágrimas. Não sei ainda exatamente se pelo tio não estar mais entre nós, ele que veio a falecer em seguida a esse episódio. Esse episódio que não sei precisar de qual ano. Sua morte foi em 2009. Mas tanto pior é a situação atual com que minha família tem de lidar.

A filha de Silvio é a Silvia, minha prima. A prima Silvia encontra-se em estado delicado, grave, fazendo tratamentos até o momento ineficazes para sua definitiva cura. Inclusive a evolução, o estado de melhora é difícil ser visto por quem a acompanha. Ela trata os nervos do rosto, os chamados trigêmeos. Quem conhece alguém que já os tratou sabe da delicadeza da situação. Da dor constante, da ineficácia comum às tentativas. Ela permanece assim, em estado grave e isso tem se arrastado por meses. Desde o 2020 em diante.

Pois que recordo o dia em que minha mãe anunciou que a Silvia estava doente. Eu costumo despertar tarde. Perto para hora do almoço. Então alguns diálogos matinais eu ouço de fundo, sem estar bem acordado. Pesco durante sonhos ou somente nesse estado de transição, antes de uma lucidez maior. Pois foi assim que certa manhã ouvi minha mãe desligar o telefone - ou suponho que recém havia feito isso - e comunicar - aí sim mais alto - para minha irmã que a prima estava com a doença dessa sequência de anos: a Covid-19. "Sua prima está com a Covid", anunciava minha mãe, na falta de tato de preparar-se melhor para o aviso. Foi uma frase como uma flecha, um tiro certeiro, um baque. "Sua prima está com a Covid". Ainda não havia vacinas. O susto era evidente. Apesar de que, ainda em 2020, a mortalidade estava mais concentrada em idosos. Ao saber que minha prima estava com a Covid, nossa preocupação maior pairava sobre a mãe dela, idosa da mesma forma que minha mãe.

Só que a situação se desenrolou de outro jeito, como agora bem sabem. A prima não conseguiu se recuperar plenamente. Apesar dos sintomas, os exames inclusive negavam a presença do vírus da Covid. Até que um deles apontou a existência. Era tudo muito confuso. Só que as dores e o mal estar persistiram. Descobriram o problema de dores de cabeça concentrado aos chamados nervos trigêmeos. Eu que já não concebia bem a ideia de gêmeos - talvez por não havê-los em minha família - passei a agoniar mais ainda ao ouvir o termo.

A família de minha prima escalou a tentativa de cura saindo da bolha de nossa interiorana cidade para buscar ajuda em Porto Alegre, e os médicos acionaram a necessidade de ajuda até a megalópole São Paulo e, neste exato momento, o teste que ela fez com a retirada do líquido 'liquor', da coluna cervical, está em análise de laboratório em Belo Horizonte. Esperamos alguma boa nova no meio disso tudo.

Alguma boa notícia, porque ela segue com muitas dores, conforme minha namorada já havia nos alertado que o pós desse exame - de retirada do liquor - é muito complicado. Enquanto isso, minha prima é tratada com altas doses medicamentais. Seu organismo sofre sendo combatida ou não sendo combatida a doença que a acomete. E gostaríamos, mesmo, nisso tudo, algum sinal de melhora, ainda não visto.

Mas relatar toda essa situação, embora seja desabafante em meu caso, estava longe de ser o posicionamento inicial para os rumos do texto. Pensava eu nos momentos que evocamos nas lembranças e deles evocam-se as lágrimas. Como pode esse processo? Sim, talvez não seja a hora de pesquisar biologicamente esse processo, que me permanece em dúvida. Mas como é curioso. Mal eu havia processado a cena de meu tio ultrapassando naquela estrada e senti a agonia que remeteria ao choro. Os óculos escuros a proteger a minha integridade no momento, sem aparentar que as lágrimas já me vertiam.

Questiono bastante isso porque passei vários anos sem conseguir chorar, essa era a verdade. Aliás, situações que me envolvam diretamente causam essa dificuldade. Por mais que eu esteja sofrendo, nem sempre as lágrimas me vêm. Como é com vocês? Outras vezes, de forma súbita, as lágrimas surgem e me derrubam o estado emocional. Vertem a galope, a escorrer do rosto. Bem me recordo que além da cena da ultrapassagem de meu tio, talvez uma angústia causada pela lembrança foi a de que o imaginei, desde aquela ocasião anterior a 2009, saindo da pista, indo encontrar o mato. Seria uma cena desastrosa, um acidente que poderia ser fatal. Mas, em seguida, a fatalidade o encontrou, em uma pescaria que era para ser tranquila, mas acabou infartando para não mais voltar ao nosso convívio. 

Todavia, a lembrança da ultrapassagem, conciliada à minha imaginação de que o carro sairia da pista, causando fatídico acidente, me leva a querer afastar os maus pensamentos. Às vezes minha mente dribla-me e propõe coisas ruins assim, gratuitamente. Daí que fico mal por esses pensamentos, que não deveriam atravessar o meu caminho. Imagino violências gratuitas, violências domésticas, às vezes sonho com coisas ruins desse modo. Será a convivência com a violência da televisão, visto que meu histórico familiar não computa tais ocorrências? Não sei, mas isso foi me adentrando a mente a ponto de se tornar recorrente. Não, não é tão comum como você possa estar pensando agora mesmo. Mas é mais recorrente do que eu gostaria, até porque gostaria que isso nunca ocorresse. Esses pensamentos nada ensaiados, essas desgraças que perturbam minha ordem, minha paz.

E essas invencionices, juntamente com os fatos reais, no caso a morte de meu tio, o mau estar contínuo de minha muito mais jovem prima, tudo isso me perturba abruptamente. E essas perturbações? Me levam a questionar a origem biológica das lágrimas. Por que, em determinadas situações, meu rosto está seco, nada me verte no lacrimejar? Em outras ocorrências, lá estão as comportas abertas, a barragem a desfazer-se sobre minha face. Qual a explicação entre a emoção e esse processo biológico? O que não muda, com ou sem lágrimas, é a angústia, a agonia, o desespero diante de situações em que mais nada podemos fazer. Se nem os estudiosos da medicina estão encontrando solução, o quê podemos nós fazer, a não ser o que geralmente sugerem pelas correntes, pelas redes, pelas famílias afora, no rezar das orações?

Chego ao final desses questionamentos me dando por conta da diferença das situações. A morte repentina de meu tio, o sofrimento há quase dois anos de minha prima. Ela podendo escapar, mas ainda não sabemos. Não sabemos a qual preço, com quais consequências, com quais sequelas. A situação é preocupante, é delicada. Torcemos por ela. Enquanto isso, se estiverem dispostas, se os funcionários junto a nossos olhos permitirem, no controle das comportas, vertem-se lágrimas no aguardo de sentenças.

23 de janeiro de 2022

As Aves de Rapina

Cheguei a tempo de ver

O domingo partindo

O domingo partindo

Cheguei apenas pra sofrer

Pelas mãos do destino

Pelas mãos do destino


O anoitecer 

Dobra devagarinho

E o que sobra do céu

Tem color tão divino

Tem color tão divino


Sem filtro as estrelas

Por cima das telhas

Dispostas a serem

As constelações

Escaladas a serem

As iluminações 

Por cima do brilho

Dos novos lampiões


Cheguei a tempo de ver

O domingo partindo

O domingo partindo

Cheguei apenas pra sofrer

Pelas mãos do destino

Pelas mãos do destino


Cheguei a tempo de ver

A semana partindo 

A semana parindo 

Outra que vem começando

E num piscar de olhos

Despem-se os calendários

E já passou o ano 

E já passou o ano


Sob a lua divina

Sua mudança de planos

E as aves de rapina

Nos observando 

Nos observando 

Aqui as aves de rapina 

Elas andam em bando

Elas andam em bando


Mas cheguei a tempo de ver

O domingo partindo 

Meu partido e bandeira 

No anoitecer sucumbindo

A bandeira enrolada

O broche que nada diz

Pelas ruas vazias

Em zero chamariz


Aqui as aves de rapina 

Elas andam em bando

Elas andam em bando

Seus ninhos pelas esquinas

Os bicos de algema

Os olhares de águia

A cegueira é sistema

Mirando e vitimando

A clara e a gema 

Em mais ovos germinando

Em mais ovos germinando

A renovar o esquema

As aves que andam em bando

As aves que andam em bando

20 de janeiro de 2022

Samba triste ou MPB?

A propaganda nos invade 

Como o lixo invade os mares

Como o lixo invade os mares

A propaganda nos invade

Invasivo

Ministério de Damares

Ministério de Damares


A multa da imobiliária

É quase o valor

Dos meses que faltam

O capitalismo

Jogando de presa em alta

Jogando de presa em alta

O primeiro drible é feito

Nos desarmam e não tem falta

Desarmam e não tem falta

O juiz é companheiro

Dessa turma falcatrua

Roubam tanto quanto é dia

Quanto sob a luz da lua

17 de janeiro de 2022

Teatro Anarquista

A minha história e a tua 
No teatro anarquista 
Tão natural quanto a lua
Ao alcance da vista

A luta de classes
A manutenção do poder
A ganância do homem
O permanente sofrer

A luta de classes
A manutenção do poder
Um beijo em sua face
Logo ao amanhecer

O teatro anarquista
À vista do proletário 
Um ideal socorrista
Pra ver depois do trabalho

Os chefes da repartição 
Não gostam de atuação 
Apenas fingem de dia 
Migalhas de filantropia 
Migalhas de filantropia 
Migalhas de filantropia

A minha luta e a sua
Assim representadas
Em cenas improvisadas
A luta continua
A luta continua 
A luta continua
A lua continua 
A luta continua 

Sol a sol
O anarquismo espanhol
Ano a ano
O anarquismo italiano
Mão a mão 
O anarquismo alemão
Mas ninguém mais lutando
Que nós latino-americanos
Mas ninguém mais lutando
Que nós latino-americanos 
Que nós latino-americanos
Que nós latindo americano
Que nós latino-americanos

A invisibilidade descoberta

Me incomodam algumas palavras femininas que se tornam apenas apêndice do significado inicial destinado aos homens. As condessas apenas descendem dos condes. As abadessas apenas descendem dos abades. As baronesas após os barões. Assim posso pensar diversos exemplos. 

A deusa acrescenta letra ao já existente deus. Eu gostaria que mais palavras fossem originárias às mulheres. Conforme mulher e homem são palavras tão distintas. Agrada o zangão ser o intruso na colmeia em relação à abelha. Outros animais são originariamente fêmeas. As lentas tartarugas, mas as rápidas onças. As altas girafas. As camufladas zebras. As trabalhadoras formigas. As graciosas baleias. As primaveris borboletas. Da humanidade, o representante ainda é o homem. É ele quem sobe ao palco para responder por conta. É ele quem ainda comete os feminicídios.

É ele quem organiza a política, as armas de fogo e as guerras. A palavra enfermeira, para amenizações ou tentativas de eventuais consertos, nos soa mais natural no feminino. É o homem quem aniquila anonimamente outro na guerra. Soldados são apenas números. Suas vítimas são apenas outros números. Mas algumas vítimas - palavra feminina - nem números são.

É o homem que exclui sobrenomes nas certidões. Aqui ou nos países hispanohablantes. É ele quem invisibiliza e nega direitos. É quem juiz superior julga em âmbito fora de suas competências. É quem trancafia mulheres no Oriente Médio, mas ainda nega oportunidades e igualdades salariais por todo o mundo. É quem causa o medo em motoristas mulheres que atendem passageiros. É quem assedia sem o pudor, o desprestígio, a punição que a situação mereceria. É quem também, mesmo sem a farda da toga, julga do alto nas relações de poder. É quem julga em relações sociedade afora ou entre as paredes das casas, em relações domésticas.

A voz das mulheres é silenciada no Afeganistão nos julgamentos. Se ela é estuprada ainda será vista como impura e acusada de adultério. E vista como impura e acusada dessa forma, ela envergonha a família. E, ao envergonhar e envergonhar-se, talvez ela se mate. Ou seja morta. E "que seja", muitos dirão no Afeganistão. Mas aqui também.

E o que fazemos pelas mulheres vítimas? E o que fazemos para que não sejam vítimas, para antecipar, para prevenir, para preservar, para que não sofram? E como a relação de poder entre pessoas que conhecemos pode moldar tudo isso? Qual o nosso papel nesse tabuleiro? Quando o 'amigo' age errado. Quando um pai assume posturas que não deveria. Quando as relações de poder, trabalho e capital estão gerindo os movimentos de abusadores marionetes. Abusadores marionetes - propositalmente no masculino.

Quando a invisibilidade - palavra feminina - está no trabalho. Está no esporte. Está nas ruas. Está sob as burcas. Está na internet. Está em processos de autoras, de atrizes, de atletas famosas em busca de reconhecimento, ou de respeito, ou de punição a seus algozes. Está no anonimato da prostituição a cada dia ou a cada noite. A invisibilidade nos passa despercebida, como o próprio nome diz. Mas ela toca a muitas. E se isso, na descoberta, no descobrir da capa, na aparição do que era invisível, se isso não nos toca de volta, quer dizer muito sobre nós mesmos.

Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade por meio de livros, de depoimentos, de mulheres que, para mim, ou para alguém contaram ao longo da história.  Eu tenho o privilégio de descobrir essa invisibilidade assim. Para elas, quase sempre a descoberta é na pele. Na prática. Consigo mesmas. No susto. No trauma. Na experiência. É consigo mesmas, ou com a mãe, com a amiga, com a vizinha. É a descoberta da invisibilidade na prática. É tentar reagir e sufocar. É tentar ser ouvida e não ter voz. É tentar sair e ser aprisionada. É muitas vezes não ter para onde correr. Muitas vezes é tarde demais.

E o texto é por todas que não tiveram tempo ou modo como saírem dessas capas. Mas é também pelas que ainda podem estar gritando ou querendo e ainda há tempo. Tempo do que era invisível nos saltar aos olhos.

12 de janeiro de 2022

O Esmo Nunca é o Mesmo

Estava pelas ruas escuras de nossa noite. Identifiquei uma das praças centrais, embora ela estivesse mais reta do que qualquer lembrança. As árvores passavam total aspecto de escuridão e sombreamento. Para tentar me situar no meio daquele tabuleiro, contornei a praça em busca de uma direção. Completei o perímetro ainda perdido. Saí para o lado que considerei conveniente, com o coração ofegante de quem criou alguma expectativa, nem que fosse a preparação para enfrentar o medo de circular errante por ali, sem uma garantia de segurança. Conforme eu avançava meus passos, a obscuridade do findar do dia me perseguia e a penumbra era como uma capa que agora vestia toda cidade. Consegui em linha reta prosseguir e desafogar-me de um pesadelo em outro. Dessa vez eu sabia onde estava, no meio de nossa avenida principal. A copa das árvores era mais alta do que a praça da primeira parte de minha perdição. Porém, saber onde estava em nada significava segurança. O lampejo da familiaridade proposta pelo conhecimento deu lugar no segundo seguinte à consciência de estar em uma zona perigosa. Naquela avenida, precisamente naquelas quadras qualquer gangue poderia encontrar-me. Qualquer dupla mal intencionada poderia derrubar-me e levar-me os pertences, ou mesmo surrar-me pela mais pura adrenalina e diversão. Aqueles jovens de ambições confusas e violentas. Eu procurava seguir passeando como se estivesse confiante, de destino certeiro. Ou será que era melhor transparecer o espírito vagabundo que cobria àqueles jovens? Me misturar no recinto a céu aberto? A luminosidade dos postes não prestava cócegas à tamanha escuridão. Afundei minhas mãos nos bolsos da jaqueta. A bem da verdade era uma noite também de calor. Um cassino, ou melhor, um fliperama concentrava a atração maior. Além de ajuntar mais gente, também correspondia ao maior acúmulo de luz elétrica e, não por acaso, iluminação. As luzes praticamente cegavam aos desavisados. Menos àqueles jovens que estavam prontos para qualquer desafio. Ou ao menos assim aparentava, enquanto meu pobre coração voltava a subir marchas em disparada. Nem caminhar rápido demais para atestar medo, nem devagar demais para possibilitar uma maior ação deles todos suspeitos. Assim flutuam as ideias paranoicas que em nossas desventuras encontram porto. Por mais que colocar pessoas inocentes sob suspeita represente um preconceito que deveríamos combater, o modo de defesa naquele caminho falava mais alto. Consegui sair da avenida na esquina do posto de gasolina mais movimentado. Os motoqueiros arrancaram em ronco ensurdecedor. Os frentistas terminavam cada abastecimento com a cabeça baixa de quem não gostaria de visualizar alguém nos olhos. A resignação do trabalhador naquela zona de possível estopim de conflito. Era possível que a qualquer instante algo pesado e tremendo ocorresse. A atmosfera do ar dificultava a respiração fluente. Ou seriam somente os efeitos de meu medo iminente?

Pois consegui sair da avenida aquela pela rua do posto que fundia, na calçada oposta, com a maior igreja por aquelas bandas. Uma envidraçada em formato de enorme caixa, com vidros espelhados que faziam-nos deparar com nossos próprios vultos naquele limiar noturno. Deixei também a igreja para trás e as próximas referências eram somente os pontos de ônibus. Para minha surpresa a luminosidade voltava a orquestrar meus passos. Pisava com maior precisão, com maior certeza. Olhei pelos arredores para uma cidade de pouca movimentação. A loucura daquele barril de pólvora parecia ter passado. O céu tomava uma coloração acinzentada, como uma lata de tinta misturada entre azul, cinza e branco. A precipitação de chuva parecia evidente. Me atingiria a qualquer instante. Pude passar por uma feirinha em formato de camelódromo, onde algumas bancas estavam abertas, mais pessoas caminhavam, barulhentas, a conversar alto. Algumas delas estavam fantasiadas. Era como um grande festival, mas eu não possuía objetivo concreto. Procurei por alguns vídeo games que há anos não jogava. Estranhei o formato das bancas de jogos que estavam bastantes vazias, esquivas de opções relevantes. Só fariam com que eu comprasse algo por muito ato de engambelar. Preferi agradecer da ajuda que uns tentaram prestar e seguir adiante, tomando meu rumo. Subi pelas entranhas novamente do centro, com a impressão de que agora prosseguia novamente para a região do início sombrio de minha jornada. Caminhava eu em círculos? Passei pela rua de muitos ônibus, aquela que retirava as pessoas do centro rumo ao chamado bairro-cidade. Em uma linda fachada de prédio, que agora bem me recordo, sempre me chamou a atenção, havia o anúncio e a promessa de uma grande festa com apresentações musicais de qualidade duvidosa. Mas consultei o relógio e percebi que ela só começaria mais tarde. Ou seja, o jeito era gastar sapatos mais tempo por aquele espaço de pouca margem para erros. Consultei o relógio mais duas vezes para certificar que nada poderia ser feito. Maldita encenação e matação de tempo. Por que não caminho de volta àquela praça sombria, onde tudo de tão mal começou? Ora essa, foi exatamente o que fiz. Mãos novamente enterradas no bolso e pernas adiante. Quando saí daquela zona mais conturbada do centro, peguei um trajeto de rara elevação em nosso município. Uma chamada lomba, como diriam os porto-alegrenses. Relativa colina, subida pouco íngreme, mas não ignorável. O contorno era ao lado do maior hospital regional. Ao menos acredito eu que seja. Escrevo este relato alucinado e ébrio de meu próprio sono. Qual não foi a minha surpresa quando entrei na rua com nome de almirante e percebi a presença de um pedinte. Ele me perseguiu apressando os passos até alcançar-me. Foi logo falando em linguagem acelerada.

- Uma moedinha, meu amigo, por favor, sabe eu, não pense mal, você me conhece. Passei por você várias vezes. Sei qual é a sua. Saiba também qual é a minha. Não sou ladrão, veja bem. Meu aspecto pode confundir mas

Ele seguiria nesse ritmo e nessa ladainha por quadras, após vencermos a presença de todas as repetitivas pet shops daquela rua. Eis que ainda monossilábico e louco para livrar-me de tal intrusivo personagem, fui perdendo o raio da paciência quando o mesmo, após estar totalmente virado em minha direção, acabou não percebendo a chegada de um carro, que o colidiu com tudo. De imediato, surpreso e quase em estado de choque, pensei que a batida poderia até vitimar de forma definitiva o rapaz.

Perplexo, tentei prosseguir minha caminhada em busca de tempo ou do que fosse, mas logo mais e mais gente foi parando para tratar do assunto, se informar do assunto, na mais legítima legião da fofoca. Meu amigo de infância Igor parou com seu skate. Parecia um dos mais exaltados na rua. Talvez tenha me chamado. Uma comitiva agora me acompanhava como se eu fosse o culpado pelo fatídico acidente. Não o bastante, um policial veio direto em minha direção e me solicitando o par de pulsos para a convidativa colocação de algemas. Um querido. Novamente não bastasse a minha prisão baseada em não fazia ideia do quê, Igor Oliveira também acabou sendo levado. Parece que a polícia por ali recebia por quantidade de apreensões. E nós jovens suspeitos em lugar errado e em hora errada. Lamento informar-lhes minha desinformação quanto ao estado de saúde do pedinte tagarela. Se escapou dessa, uma das lições seria de olhar mais por onde anda. Talvez eu devesse torná-la para mim. Após tanta caminhada sem rumo, a esmo, como se diz. Quanto ao motorista culpado da performance, também não sei afirmar o que houve. Talvez tenha pago propina e sido liberado. Só não passaria totalmente impune pois as marcas da colisão com certeza se fazem presentes na lataria de seu veículo. Mas isto é apenas eu supondo.

Chegamos à prisão encaminhados por bem humorado policial. Ele estava neste estado de espírito contemplado pela promoção ou gratificação que iria receber por encaminhar tão perigosos jovens desordeiros. Se tomassem nossas acusações baseados em ficha criminal ao longo da vida, talvez jamais houvéssemos passado do consumo de maconha.

11 de janeiro de 2022

A travessa noite

Atravesso a noite em monumental silêncio

Se alguns meus poemas parecem mais idiotas

É porque os pensei ritmados em músicas

Que provavelmente jamais serão conhecidas

Assim o monumental silêncio que acompanha a leitura 

Lhe dará impressão de incompleta criatura

Que assim sobreviverá muito menos viva

Com seus traços errantes de criatura única

Que jamais deveria ter deixado a toca 

Atravessa(s) a noite em capenga experiência

10 de janeiro de 2022

Peço desculpas

Às vezes escrevo ébrio em minhas próprias tristezas. É urgente mas pode ser irrelevante ou, no mínimo, mal canalizado.

O mundo está sempre entre o otimismo do sempre e o pessimismo do nunca. Maioria dos meus textos e dos meus dias começa com 'às vezes".

Gerúndios e crisântemos

Há muita coisa bonita para ser escrita

Há muita coisa bonita para ser vivida 

Há muita coisa infinita na extensão dos gerúndios

O universo é o gerúndio em expansão 

7 de janeiro de 2022

A despedida de ontem (1966)

Para quem acompanha dessas linhas o esboço ou formato verossimilhante a um diário, tenho passado as últimas horas em forte contato com o cinema. Assisti a grandes filmes que concorreram ao Oscar de melhor película internacional. Destaque para Mar Adentro (2004), cujo eu talvez lance linhas sobre. Mesma situação de A Ponte da Desilusão (1959).

Mas término aqui um filme que eu havia começado a assistir em 2021. A Despedida do Ontem. E só agora me dou por conta de que é uma forma também de me despedir do meu ontem, do meu ano passado, 2021.

Enfim, o filme trata de um tipo de narrativa comum na Nouvelle Vague francesa dos anos 1960. Embora este de Kluge seja alemão, de 1966. A jovem Anita com ficha criminal e perseguida pelas autoridades. Estava na onda criticar os governos e seus aparatos de repressão. Ocorre que, pelo que consta, nazistas também estavam envolvidos pois perseguiram os pais da jovem Anita. Ela acaba solitária vagando pela Alemanha da época. Saindo do leste para o oeste, onde não se encontra. Críticas bem humoradas e passagens sobre a arte e a filosofia vigentes abrilhantam este filme, conforme os franceses também sabiam fazer com maestria.

Fiquei pensativo quanto ao título: Despedida de Ontem. Como é difícil muitas vezes nos despedirmos do ontem. Creio que principalmente quando assim precisamos. Quando não há tamanha necessidade, quando é indiferente, parece ser uma tarefa mais fácil. Para Anita, a despedida de ontem seria recomeçar, uma nova vida, ter para onde ir, ter com quem contar, após a ausência de sua sumida família.

Para muitos de nós a Despedida de Ontem pode ser um emprego, um caso amoroso, uma nova cidade. É o rompimento de laços, é o avançar para novos portos. É saber conviver com o passado, sabendo que ele até pode ser evocado,  mas em geral muito mais coisa é descartada ou fica a apanhar pó no porão. As despedidas de ontem em geral são menos dramáticas que a vida incessante e ofegante de Anita. Mas elas estão por aí e todos estão, em algum momento e de alguma forma, se despedindo de seus ontens. 

Ou tens ou tens: todo mundo possui folhas de calendário acumuladas por se despedir.

Jovem Anita, personagem principal da Despedida de Ontem, filme que acompanha suas travessias errantes pela Alemanha da época.


5 de janeiro de 2022

Nota

Um traço que gosto muito no autismo é nossa capacidade de formular um mundo mais idealizado dentro da cabeça, o que pode nos proteger pra realidade de fora, em uma fórmula com fantasia e ilusão. Isso sempre fez parte da minha vida e creio que o desmanche dessas barreiras seguras, o rompimento do dique com a realidade acaba causando o naufrágio. Mas os traços do mundo conforme imaginamos são uma coisa fantástica e dificilmente descritível para quem está de fora (ou seja, todo mundo).

4 de janeiro de 2022

2 de janeiro de 2022

Reflexões sobre Jorge Amado

Leio sobre vida e obra de Jorge Amado, descobrindo uma intensidade nele presente. Dela eu não fazia ideia. O processo da escrita é curioso realmente. Pode surgir de uma pessoa comunicativa e bem aventurada como ele foi, no convívio de conflitos por terras na Bahia e no Sergipe, no frequentar casas de cabarés, no frequentar e fugir de internatos. Sua ida ao Rio de Janeiro, sua participação efetiva em diversos jornais, sua militância no PCB. Sua vida afetiva e a amizade com alguns dos principais nomes ocidentais do século 20. A escrita está repleta de exemplos sobre os personagens com quem ele cruzou pelo caminho. Mas a escrita também pode surgir de nós mais introspectivos. Observadores mais distantes, curiosos interessados em vários temas, criadores a partir das leituras que armazenamos ou urgentemente fazemos - como essa - em minha cabeça.

Concordei a pleno com uma citação de Jorge Amado de que os personagens não podem ser reféns da história. A história deve ser refém dos personagens, se assim for. O que isso quer dizer? Não devemos planejar a história já com seu final, obrigando a diferentes e complexos personagens mundanos a encarar o que seria um verdadeiro circuito rumo ao desfecho. Não. Os personagens têm características próprias, agem quase que por conta própria, podendo-nos inclusive arrancar esse quase. Eles caminham com as próprias pernas. Dão seus jeitos. Alçar um roteiro, uma história pré-programada seria limitá-los, restringi-los. Melhor que os personagens, a partir, através de suas características nos mostrem aonde querem ir. Nosso lápis, nossas ideias os acompanharão.

Sublinhado isto, adiante Jorge Amado confessa nessa entrevista de 1981 que acabo 40 anos depois por ler, que devemos amar essa nossa terra. Esse nosso Brasil. Contextualizado, ele que vem de pais semeadores, ligados às terras e aos campos, que viajou por todo o país, na política e nas cassações - viajava mesmo "preso - ele aprendeu muito do valor de nossas diferentes e continentais terras e sobretudo sobre o povo aguerrido que nelas procura colher. O povo Jorge Amado definiria como a síntese de suas obras. O contato com o povo, com o qual ele tanto aprendeu. Pessoas sofridas e personagens para os quais muitos da nossa média burguesia torcem os narizes: trabalhadores, prostitutas e beberrões. Nesta enfatização, acompanho Jorge pela significação majoritária desses grupos, como ele diz, constituintes de nossa nação, presentes em relatos dele que procuram contar a realidade e o cotidiano, e deles não podemos fugir nessa transfiguração. Além da composição realística, minha admissão aqui é de que esses grupos possuem força expressiva, mistérios, curiosidades, trilhas a percorrer. Influências psicológicas, emaranhado de escolhas que os levam aonde forem. Como traçar um caminho pré-programado se o magnetismo dessas figuras pode nos surpreender em suas nuances de vidas próprias?

Comecei a escrever pensando no sentimento brasileiro despertado, porque fui assaltado aos ouvidos com músicas na vizinhança, elas devida e pomposamente nacionais, como Metamorfose Ambulante de Raul Seixas, Que País é Este? de Legião Urbana e a minha favorita das três: Malandragem da Cassia Eller. Obrigado a ouvir as três, procurei um significado, uma união, um laço entre elas. Três músicas hoje antigas que atravessam décadas até serem ouvidas aqui no litoral em pleno arrancar do 2022. Raul me causou dúvida porque já gostie mais. Influente amigo meu o desgosta. Mas penso que Raul teve o que dizer, a quem dizer em sua época. Talvez minha releitura negativa só chegaria pelo viés da repetição: ouvimos muito dele, numa quantidade limitada de canções que nos são repetidas. Situação semelhante ao Legião Urbana. Quanto mais tive paciência de aprofundar meus ouvidos para dentro dos discos de Legião, descobri ritmo semelhante a algo mais latino-americano, assim me referindo para fora dos limítrofes do país, mas dentro dos limites da América Latina. Legião tem muito do seu valor desconhecido pela repetição das mesmas músicas. Quem gosta dos pequenos trechos da banda comandada por Renato Russo, ou mesmo quem não goste, poderia dar uma chance a mais em uma profundidade mais austera.

Enfim, o foco da discussão é Jorge Amado, um amador no sentido de muito amor para dar. Inclusive em um tópico cobraria um maior profissionalismo no desenvolvimento da escrita - e das críticas - no país. Mas um apaixonado. Degustou da vida e muito dela registrou. Se inspirou e passou sua palavra adiante. Repleto de experiências, tinha muito de onde beber, de onde colher relatos para engrandecer seus livros, para retratar um realismo que muito estava em voga. Nesta vida terei em relação a ele muito menos experiências pessoais e muito menos sucesso. É impossível comparar. Porém fraternalmente, como ele estendeu o braço para muitas pessoas, incluso as que pensavam politicamente divergentes dele, caminho um pouco ao lado de Jorge, de Jorge Amado. Presto atenção em suas citações no que primeiro encaro a conhecida história dos Capitães da Areia de Salvador, mostra que reconheço do cinema brasileiro. Dali observamos um Brasil real que muitos relutam por não ver, ou pior ainda, julgam sem conhecer. Não conhecem as raízes, a falta delas, os motivos, a falta de recursos, de assistência, de oportunidades. Acompanhando o final do romance, crio uma imagem, uma ideia de perpetuação. Apesar do desfecho distinto dos personagens da trama, os capitães da areia mudam de posto ou vão para cova e o mundo segue, em uma formação entre a organização e a desorganização, em uma hierarquia que poderia parecer infantil, mas é séria em suas complexas matizes.

O chamado de Jorge, o Amado é para prestarmos atenção no Brasil. Um Brasil que ele viveu intensamente, mesmo depois fora dele, pelas lembranças que nem tentando abandonamos. Fortes, sustentadas, afincadas. Afinadas em nosso catalisador da memória. Dele recebo, presente tardio, histórias de um Brasil que não vivi, não viveria e não viverei, nem tenho como. Agradeço como uma oportunidade a mais para seguir adiante, observando detalhes que ele chamou a atenção. Perscrutando política onde é necessário adicionar mais do tempero da política, pois que sentido nos pode haver na vida, nós iniciados, sem o ideal por mudanças que consideramos necessárias? Sejam em nós, sejam pelo bem dos outros?