Terminava a leitura de Notas sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana, das mais influentes africanas da contemporaneidade. Neste livro ela aborda a experiência marcante, o fio abruptamente cortado com o luto da morte de seu pai, pessoa pela qual ela mais nutria bons sentimentos. A autora feminista comenta a experiência vivenciando o inesperado luto, ao passo que antes do ocorrido não saberia defini-lo. Enxergava essa questão crucial, que cerceia a vida, sempre nos outros, mas nunca dentro de seu próprio seio familiar.
O término dessa leitura que eu havia iniciado no mês anterior me deixou bastante reflexivo também pelo contexto. Como é de praxe de minha conduta, acabo por desenvolver a teia da empatia em direção aos escribas que me conferem seus trabalhos. Procuro imaginar todo o contexto de suas experiências, assim como por esses dias lembrava eu das passadas formaturas que eu pude acompanhar, sempre pronto para entrar em pranto, imaginando a caminhada árdua daquele ou daquela estudante. Pessoas desconhecidas mas com temas comuns como a distância familiar, física, geograficamente ou mesmo no distanciamento por contar com menos tempo, em função dos eloquentes estudos. Pessoas ocupadas, pessoas sedentas por progresso, pela promessa de tempos melhores aos estudiosos. Pessoas que não viram o tempo passar. E logo se deparam de frente para o povo pois foi chegada a formatura.
Diferente dos brindes aos formandos e seus fiéis escudeiros acompanhantes, em Notas sobre o Luto, Chimamanda Ngozi Adichie aborda um outro extremo da vida. O pesar, o véu do óbito por sobre a face da pessoa amada que ficou para posteriori. Passo a passo, a dificuldade de assimilar o que já não tem mais volta. Os lindos e eternizados momentos na memória, mas que não irão mais voltar. A ficha que bamboleia, faz seu traçado errôneo de mesa de pinball até despencar. O movimento pendular das ideias entre o negacionismo e a aceitação. Em meio a tudo isso, o disfarce necessário na sociedade que lhe exige seguir a vida. Superar. Caminhar. Ir adiante. Família para cuidar, emprego após o luto. O semáforo segue funcionando no trânsito. A chuva cai, molha e o piso seca na sucessão das estações. As faixas de pedestre recebem encontros e desencontros de quem possivelmente jamais iremos rever ou, mesmo que reveja, não percebemos. Nossa mente está em outro local. O luto é o canal de televisão exclusivo que toma conta da nossa grade de programação. Estamos gradeados, envoltos ainda à experiência mórbida.
Para a Chimamanda, a necessidade de manter a educação e o avançar dos passos da filha, oitava neta de seu falecido avô, com quem pouco acabou convivendo mas sem dúvida muito irá ouvir sobre. Inclusive nos registros carinhosos desse livro dedicatório. É um livro de memórias, de registros familiares e um convite a partilhar o Luto. A procurar entendê-lo. Seus processos, suas tomadas e retomadas, sua presença intrometida. Seu estado de expansionismo e inquietação. O luto não fica guardado em uma caixinha preta, esperando nossa intromissão em prol da palavra portuguesa saudade. O luto, ele percorre nosso corpo, bloqueia a ação de nossas mãos e o fluxo de nossa mente.
Escrevo após o término da leitura enquanto minha mãe próxima de mim sofre com uma indisposição. Pode ser algo que comeu ou a chuva que apanhamos juntos pela manhã. Mais uma vez percebo que ela não tem idade para isso. As trilhas por pedras íngremes e que tornam nossa postura a cada passo vacilante e insegura. A chuva que cai de forma surpreendente (ou nem tanto) e que interrompe num desplugue nosso ideal passeio. A volta para casa com as roupas molhadas do corpo mesmo em manhã de verão. O perigo que nos cerca quando a idade avança. Penso nela deitada indisposta sobre o sofá. Penso no pai da escritora Chimamanda, professor universitário da nobre matemática. Neste grande homem presente agora somente nas lembranças de extensa e carinhosa família ainda passante a beber colheiradas de luto. Penso em minha mãe e minha responsabilidade diante de sua inevitável velhice.
O pai de Chimamanda se foi passados os 80, se não me engano direcionado aos 90 anos. Minha mãe ainda não tem 70, mas num piscar de olhos poderá ter. Ou o pior: não ter. Devemos estar preparados. É o curso natural da vida, como diversos autores já abordaram no canto de seus acanhados improvisados diários ou nas páginas mais folhadas dos best-sellers.
É com primazia que penso em mim mesmo, mas é com constância que olho para os lados, que observo, respeito e sinto os outros. Obviamente com destaque para os que estão ao meu redor. Penso demais. E com a minha mãe, tão próxima, por ora em estado de crescente delicadeza, após a leitura bem traçada, subjetiva e biográfica das notas enlutadas de Chimamanda Ngozi Adichie, torna-se para mim impossível não reproduzir adjacente paralelo. Faço votos ao final para os que aqui chegaram para cuidarem dos seus. Que façamos, para quem conosco está, um gesto a mais, um desejo realizado a mais. Uma bondade, uma cortesia, uma bem intencionada manifestação. Espalhar os bons gestuais e as boas palavras para melhor lembrarmos de que a parte foi feita nesse caminho transitório, inconstante e surpreendente que é a vida. Estendamos a mão àqueles que tanto nos estenderam e não se pouparam em suas aceitadas missões. Notas sobre o Luto é sobre a morte, como sugere o nome, mas é sobre a vida, nossas ligações afetivas e o desejo de conservá-las, no duro aprendizado de quando perdê-las. Nos desafios racionais perante as cachoeiras da emoção. Nos percalços da vida em armazenarmos momentos que considerávamos eternos.