30 de dezembro de 2021

Notas sobre o Luto - pós leitura de Chimamanda

Terminava a leitura de Notas sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana, das mais influentes africanas da contemporaneidade. Neste livro ela aborda a experiência marcante, o fio abruptamente cortado com o luto da morte de seu pai, pessoa pela qual ela mais nutria bons sentimentos. A autora feminista comenta a experiência vivenciando o inesperado luto, ao passo que antes do ocorrido não saberia defini-lo. Enxergava essa questão crucial, que cerceia a vida, sempre nos outros, mas nunca dentro de seu próprio seio familiar.

O término dessa leitura que eu havia iniciado no mês anterior me deixou bastante reflexivo também pelo contexto. Como é de praxe de minha conduta, acabo por desenvolver a teia da empatia em direção aos escribas que me conferem seus trabalhos. Procuro imaginar todo o contexto de suas experiências, assim como por esses dias lembrava eu das passadas formaturas que eu pude acompanhar, sempre pronto para entrar em pranto, imaginando a caminhada árdua daquele ou daquela estudante. Pessoas desconhecidas mas com temas comuns como a distância familiar, física, geograficamente ou mesmo no distanciamento por contar com menos tempo, em função dos eloquentes estudos. Pessoas ocupadas, pessoas sedentas por progresso, pela promessa de tempos melhores aos estudiosos. Pessoas que não viram o tempo passar. E logo se deparam de frente para o povo pois foi chegada a formatura.

Diferente dos brindes aos formandos e seus fiéis escudeiros acompanhantes, em Notas sobre o Luto, Chimamanda Ngozi Adichie aborda um outro extremo da vida. O pesar, o véu do óbito por sobre a face da pessoa amada que ficou para posteriori. Passo a passo, a dificuldade de assimilar o que já não tem mais volta. Os lindos e eternizados momentos na memória, mas que não irão mais voltar. A ficha que bamboleia, faz seu traçado errôneo de mesa de pinball até despencar. O movimento pendular das ideias entre o negacionismo e a aceitação. Em meio a tudo isso, o disfarce necessário na sociedade que lhe exige seguir a vida. Superar. Caminhar. Ir adiante. Família para cuidar, emprego após o luto. O semáforo segue funcionando no trânsito. A chuva cai, molha e o piso seca na sucessão das estações. As faixas de pedestre recebem encontros e desencontros de quem possivelmente jamais iremos rever ou, mesmo que reveja, não percebemos. Nossa mente está em outro local. O luto é o canal de televisão exclusivo que toma conta da nossa grade de programação. Estamos gradeados, envoltos ainda à experiência mórbida.

Para a Chimamanda, a necessidade de manter a educação e o avançar dos passos da filha, oitava neta de seu falecido avô, com quem pouco acabou convivendo mas sem dúvida muito irá ouvir sobre. Inclusive nos registros carinhosos desse livro dedicatório. É um livro de memórias, de registros familiares e um convite a partilhar o Luto. A procurar entendê-lo. Seus processos, suas tomadas e retomadas, sua presença intrometida. Seu estado de expansionismo e inquietação. O luto não fica guardado em uma caixinha preta, esperando nossa intromissão em prol da palavra portuguesa saudade. O luto, ele percorre nosso corpo, bloqueia a ação de nossas mãos e o fluxo de nossa mente.

Escrevo após o término da leitura enquanto minha mãe próxima de mim sofre com uma indisposição. Pode ser algo que comeu ou a chuva que apanhamos juntos pela manhã. Mais uma vez percebo que ela não tem idade para isso. As trilhas por pedras íngremes e que tornam nossa postura a cada passo vacilante e insegura. A chuva que cai de forma surpreendente (ou nem tanto) e que interrompe num desplugue nosso ideal passeio. A volta para casa com as roupas molhadas do corpo mesmo em manhã de verão. O perigo que nos cerca quando a idade avança. Penso nela deitada indisposta sobre o sofá. Penso no pai da escritora Chimamanda, professor universitário da nobre matemática. Neste grande homem presente agora somente nas lembranças de extensa e carinhosa família ainda passante a beber colheiradas de luto. Penso em minha mãe e minha responsabilidade diante de sua inevitável velhice.

O pai de Chimamanda se foi passados os 80, se não me engano direcionado aos 90 anos. Minha mãe ainda não tem 70, mas num piscar de olhos poderá ter. Ou o pior: não ter. Devemos estar preparados. É o curso natural da vida, como diversos autores já abordaram no canto de seus acanhados improvisados diários ou nas páginas mais folhadas dos best-sellers. 

É com primazia que penso em mim mesmo, mas é com constância que olho para os lados, que observo, respeito e sinto os outros. Obviamente com destaque para os que estão ao meu redor. Penso demais. E com a minha mãe, tão próxima, por ora em estado de crescente delicadeza, após a leitura bem traçada, subjetiva e biográfica das notas enlutadas de Chimamanda Ngozi Adichie, torna-se para mim impossível não reproduzir adjacente paralelo. Faço votos ao final para os que aqui chegaram para cuidarem dos seus. Que façamos, para quem conosco está, um gesto a mais, um desejo realizado a mais. Uma bondade, uma cortesia, uma bem intencionada manifestação. Espalhar os bons gestuais e as boas palavras para melhor lembrarmos de que a parte foi feita nesse caminho transitório, inconstante e surpreendente que é a vida. Estendamos a mão àqueles que tanto nos estenderam e não se pouparam em suas aceitadas missões. Notas sobre o Luto é sobre a morte, como sugere o nome, mas é sobre a vida, nossas ligações afetivas e o desejo de conservá-las, no duro aprendizado de quando perdê-las. Nos desafios racionais perante as cachoeiras da emoção. Nos percalços da vida em armazenarmos momentos que considerávamos eternos.

29 de dezembro de 2021

Limiar da vida

No limiar da vida

Vou caminhar 

Sobre as feridas

Rumo a um altar


No limiar da vida

Não vou me importar

Com outras brigas 

Nem com as dívidas

Que sei

Não vão me pagar


No limiar da vida

Que foi

Foi tão ardida

Íngreme a subida 

Rápida descida

Que resultou

No que restou:

O limiar da vida

28 de dezembro de 2021

Abatimentos e Fomes

Como faz para não se matar um sujeito que está insatisfeito com todas as vertentes da vida? Permanece vivo com alguma luz distante que uns chamariam esperança - mesmo que entendam que para ele está totalmente opaca, ofuscada - ou será que mantém o corpo firme somente pela experiência de encarar tantas marteladas de frente, na reta da marreta, defronte para a pancada? Quer se manter longe das estatísticas dos mortos jovens, pois soube que na sua família o mais novo de todos parece que foi-se aos 36 ou talvez 38. Nenhum registro de morte infantil, apenas alguns registros de concepções que não vingaram, de missões abortadas ainda no ventre. Tenta encarar de frente. Sabe que quase metade do país vive inseguranças, como a mais grave, a insegurança alimentar, mas está de pé como reza o dito de que a América Latina não tem pernas pero camina. Sabe que milhares, mirem-se milhões de trabalhadores ainda não desistiram. Tenta entender na cabeça deles o porquê. Já imaginou o suicídio como protesto, como causa, como algo chique, manifestante contra o sistema, algo planejado, teatral até diria. Mas leu e viu exemplos de que a morte às vezes é somente crua. Debaixo do sol de algum meio-dia, no meio de uma rua que poderia ser deserta ou recoberta pela sombra diminuta dos transeuntes. Pode ser do alto de um prédio rumo ao choque com a calçada, pode ser o envenenamento, pode ser a arma de fogo ou mesmo uma arma caseira na base de esguia coragem, pode ser. Pode ser somente a fome batendo incessantemente à porta até o entre da exaustão, a hora exata da derrocada, da pedra final em composto labirinto. A fome que atazana, ronda, derrota milhares. À fome que cerceia, seca a boca, domina o sistema nervoso de paladares sedentos. A fome é implacável e por ora, somente por ora, ameniza minhas notas suicidas. Chego a sentir-me culpado de elaborá-las em tal situação, mas volto ao ponto de que gostaria de aprender a ter paciência, de que minha experiência para algo servisse em minha própria ajuda, em meu próprio socorro. Temo pela minha saúde, mas principalmente pelas de quem mais amo. Me sinto culpado em não domar esse meu instinto autodestrutivo que reage tão mal às pressões mentais que diariamente sofro quando os revés surgem. Ao invés de melhor me preparar para o que sei estar por vir eu apenas me sinto mais enchiqueirado, desconcertado, abatido, reduzido, quase abduzido de minhas faculdades combativas para enfrentar o que há por vir. Quando meu cérebro se situa no mar das imprecisões, cercado pelo mundo opressivo, tenho alguma vontade de gritar, mas muito maior é minha vontade de sumir. É isso o que sinto. Mas sobrevivo. Provavelmente não terei como ajudar muitos exemplos necessitados do combate à primeira fome, a estomacal, ou as milhares de vítimas dos alagamentos e deslizamentos na Bahia. Provavelmente não terei, mas jamais por falta de vontade ou empatia por esses grupos. Mais uma vez produzo sem saltar parágrafo, mas mais uma vez concluo dessa vez sem pular na frente de algum bonde. E por ora, ao estado calamitoso que me encontro, isso deve bastar.

27 de dezembro de 2021

Percebi que reprovo a vista do mar

Percebi que reprovo a vista do mar. Para sairmos de um prédio barulhento entre móveis arrastados e conversas de vizinhos em plena madrugada, viemos para outro prédio nessas condições, principalmente na questão dos móveis. Eu já havia sinalizado: apartamento só na cobertura, mas não fui atendido. O canto da sereia foi mais alto. A sedução de uma linda vista defronte o mar. E estou inclusive reprovando-a, como bem anuncia o título do texto. Digito isso sobre uma cama de molas desreguladas e manifestantes, para ampliar minha aflição. Mas explico porque a reprovo. No momento me posiciono contra essa vista porque ela se faz presente em uma facilidade absoluta, a hora em que eu quiser. Posso ver como está o céu ao longe no horizonte, como estão as ondas no mar. Posso ver o movimento dos caminhantes, o ir e vir de centenas de desconhecidos. Posso observar quem estaciona o carro e vai-se embora, para curtir a areia sob (e entre) os pés ou subir para academia ou bares ao redor. Posso inclusive, contra princípios mais honestos, observar um pouco da movimentação de prédios ou casas vizinhos mais próximos. Várias possibilidades, como podem ver. Porém essa vista torna-me mais preguiçoso. Ao ter a contemplação do mar tão facilmente perde-me o encanto de ir ter com ele. O contato absoluto, definitivo. A vontade de sair de casa com a gana de ouvi-lo, vê-lo e senti-lo, o mar, velho companheiro desde minhas primeiras viagens infantis. No alto da maturidade que me avança, estou perdendo aos poucos. A menor vocação para encarar a água mais fria no choque térmico, a menor diferença que faça o contato dele com minha pele. A repetição de tudo que já vivi em uma redução de significado, ao invés da ampliação.

Além do mais, já traduzi o sentimento dos últimos dias em Santa Catarina. Me sinto como em um condomínio igualitário, que, em geral, em geral me é funcional e confortável, mas não me revela o âmbito da surpresa, da caoticidade criativa que tanto aprovo em minha cidade natal. Ao deparar com um trânsito mais tranquilo, melhores condições estruturais e sociais da população e por conseguinte um menor índice de violência, também não consigo fugir da sensação de paraíso artificial. Questionar, como na reflexão anterior, meu próprio mérito. Lamentar por aqueles que aqui não chegam. Olhar para esse mar que ao nem tão longe me provoca, propaga sua sedutora energia e me questionar o porquê de estar aqui. Tentei traduzir esse sentimento de funcionalidade e determinado tédio - mesmo aqui há poucos dias - no episódio do desenho Bob Esponja, em que Lula Molusco migra de sua habitual casa para um condomínio onde todas as casas são iguais e todos os moradores possuem os mesmos hábitos que ele. Tocam clarinete, aspiram folhas com sugadores para limpar a grama, apreciam corais e fazem danças. Ao passo que os dias se repetem, Molusco sente falta dos antigos amigos, das imprevisibilidades, das confusões cotidianas. Posso me sentir um pouco assim nesse espaço. Carente de uma sociabilidade que hoje só tenho no meu bem estruturado, baseado e construído convívio, com seletos amigos e alguns ambiente profissional. Em SC eu teria que construir praticamente do zero sem saber por onde perambular essa prática, principalmente porque, como vem cedo ou tarde à tona, a pandemia de covid segue a toda, impedindo diversas atividades. O convívio social é limitado. E posso apontar isso de duas formas: pelas imposições da pandemia e também pela minha própria inabilidade, ineficiência social ou mesmo desinteresse, que posso ter criado em função das primeiras? Posso. Ao passo que também o jeito que as pessoas são assim me causam o desinteresse.

No flagelo de meu quarto, com o mar equidistante no dia a dia, em muitos desses dias, manterei alguma rotina de trabalho. Entre o conforto e o desconforto. Alguns me criticarão por talvez não desfrutar dessa experiência litorânea como deveria. Com otimismo e sossego. Alguns poucos me entenderão. Tal qual como as ondas que percorrem incessantemente o oceano, posso fazer nada.

26 de dezembro de 2021

Breve reflexão defronte o mar

Eu que sempre desejo o melhor para meus pais, eles que sempre se dedicam com exatidão, retidão e perseverança em praticar o bom convívio comunitário. Mas, do alto de um apartamento de frente para a bela e melhor vista do mar, me sinto também culpado em dispor desse alívio. Observo as famílias que vêm, estacionam seus carros e mais tarde vão-se embora. Seja lá onde moram. As tantas pessoas evidentemente gostariam da vista que tenho. E não as posso oferecer. Agradeço por meus pais que ora têm. Lamento por tantos não a terem. Lutamos sempre contra a intranquilidade. Quando pareço atingi-la, logo me percorre novo desassossego. É a constância no fluxo da vida.

25 de dezembro de 2021

Reflexões de Hermann Hesse #1

Nós vamos e iremos

Do grande Jardim Divino

Num dia de sol a pino

Em noite de lua cheia

Um poema de Hermann Hesse

Por ora é que me clareia


Nós vamos e partiremos

Do grande Jardim Divino

O canto do pássaro no hino

A aranha a tecer teia

A areia da ampulheta 

Escorre

Como as vagonetas do destino

Reflexão após Balzac e Hermann Hesse

Somos a natureza mesmo quando a destruímos. Somos a natureza mesmo ao passo que a destruímos.

17 de dezembro de 2021

Sinto como num filme de Fassbinder

Eu me sinto como num filme de Fassbinder 

Um filme que ele não faz pra vender

Eu me sinto como numa canção de Wander Wildner

Uma canção na voz de Wander


Eu me sinto como numa foz na fronteira

Sem saber as trincheiras que irão suceder

Eu me sinto como uma voz na clareira da noite

Hoje a noite vai encontrar o amanhecer


Eu me sinto como num filme de Fassbinder 

Note que o Sr. M. vai enlouquecer 

Eu me sinto como num poema do grande Baal 

Pronto para enlouquecer geral


Eu me sinto como nas lições de Bertolt Brecht

Que geral se lembra e depois se esquece 

Eu me sinto ao sol como um fim de frete 

Dinheiro suado no bolso e a testa derrete


Eu me sinto como num filme de Fassbinder

Algo nisso tudo atende os meus anseios

Alemanha dividida nos orientes

Feridas abertas não surpreende

Feridas abertas não surpreende 

Feridas abertas não surpreende

15 de dezembro de 2021

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Este filme me coçou os dedos para escrever sobre ele na primeira vista. Mas na segunda aparição dele na minha tela vocês não conseguiram fugir. 'Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre' - começo destacando a peculiaridade, a sensibilidade da escolha do título para esta obra que já nasce clássica. Nasce em demonstração, em acolhimento a todas as meninas, a todas as mulheres que precisam passar pelo que a personagem principal precisa: o aborto. É preciso dizer que este filme norte-americano supera várias barreiras que o cinema característico do país acaba deixando a desejar, por exemplo, a sensibilidade na direção. Nada de efeitos especiais ou cenas forçadas com trilha sonora e cortes rápidos. O filme é propositalmente deixado a correr, para sentirmo-nos mais e mais na pele de Autumm (Sidney Flanigan), a menina que conduz o filme com brilhantismo em sua atuação.

Não por acaso o nome dela é Outono, na tradução. Autumm passa o filme inteiro com a cara amarrada, o semblante fechado, e não é por menos. Desde a primeira cena, o ritmo do filme está ditado. Autumm se apresenta em uma espécie de show de talentos da escola, canta e toca violão, mas não é bem recebida pelo público. Logo saberemos que a bronca que os meninos têm com ela, ou o que poderia ser encarado como bronca de Autumm com os meninos, não é por acaso. Ela está de relacionamento finalizado, está em processo do começo de gravidez e tem pouquíssimas pessoas com quem contar nessa missão de evitar um nascimento nada desejado. Autumm logo percebe que não pode contar com o apoio familiar, como tantas e tantas meninas também não podem pelo mundo inteiro, seja por costumes, seja por legislação, crenças, religiões, ou conduções sociais que minimizam a opinião e a escolha da mulher sobre seu próprio corpo. Assim, em plenos Estados Unidos, Autumm, uma adolescente da Pensilvânia, recorre a outro ponto muito em comum e que talvez tenha aguçado minha atenção em relação ao filme como um todo: a viagem do interior do país para uma capital, para uma cidade de porte onde poderia realizar o procedimento, o aborto. 

Esta também é uma situação comum a muitas jovens, a muitos jovens, pessoas aí independente da idade que necessitam de consultas médicas com especialistas mais renomados ou experientes, e a partir disso se deslocam em viagens às vezes longas, com dificuldades financeiras para enfrentar ônibus ou aviões. Para Autumm, havia o agravante de que não queria ficar marcada, identificada em sua pequena localidade como a menina do aborto. Para além do preconceito que poderia sofrer comunitariamente, os próprios médicos às vezes não autorizam o tipo de procedimento, polêmico como é um aborto. São situações que às vezes fogem da alçada dos clínicos, profissionais, cirurgiões, e passam pelo crivo severo da lei que proíbe o aborto. Enfim, Autumm passa por dificuldades a nível social e legislativo, podendo sofrer as sanções do julgamento pelas demais pessoas ou perante mesmo um júri. Complicada a missão da moça, que precisa recorrer então para essa ideia em uma clínica da grande Nova York, uma das maiores cidades do mundo.

O filme se desdobra recheado de cenas de agonia ou angústia, ao menos. Gosto de imaginar esse tipo de filme, conforme um de meus diretores favoritos Alfonso Cuarón - ou mesmo o polonês Krzystof Kieslowski, trabalha com a consecutividade das angústias, parto de uma metáfora de que são como as sucessivas ondas do mar em movimento. Ao vencermos uma, logo nos deparemos com a próxima que pode nos sucumbir, nos afogar. Precisamos vencer todas, sairmos invictos ou de nada adianta, nada feito. E Autumm é uma guerreira durante todos os rolos de filme. Com sua postura reservada, de quem não tem muito em quem confiar, ela permanece calculista, introspectiva, guiando suas sensações através de uma atuação que - volto a dizer - beira o impecável em suas reações. Conseguimos senti-la, identificar-nos em suas atitudes mais retraídas e misteriosas. Como não pensar o que se passa na mente de uma jovem nessa situação delicadíssima?

A amiga de Autumm a acompanha até Nova York. No ônibus a caminho da cidade grande, um rapaz se interessa pela amiga e, insistindo, puxando assunto, consegue o número do telefone dela. Eles voltariam a se encontrar mais tarde. É interessante observar o desenvolver desse relacionamento paralelo ao drama de Autumm. A amiga vai cedendo aos movimentos aos poucos, também ambientada pela natural desconfiança em relação ao rapaz desconhecido. Sobre o rapaz, a gente consegue até dar uma chance para possíveis boas intenções, mas a impressão que sempre nos percorre é de um interesseiro, um autoconfiante, um aproveitador das meninas que vêm do interior, um suposto especialista em cidade grande que oferece ajuda e alguma diversão. Fato é que estamos tomados pela atmosfera introspectiva de Autumm e até o 'simples' (?) desenrolar de um romance paralelo àquela altura tensa nos soa como um desrespeito ao real objetivo da jornada, pois a tensão é constante enquanto Autumm não consegue resolver a situação. Terá saúde para aguentar o procedimento? Terá dinheiro e modos de sobreviver na cidade grande, entre hospedagem e alimentação? A viagem, a ida e a volta, darão certo? A preocupação da família enquanto ela está ausente? São muitas perguntas e muitas angústias que trilham esse caminho acidentado da vida da jovem.

O filme é um convite ao desconforto, à angústia, à realidade de milhares de jovens anualmente, não só pelos Estados Unidos ou para nossa realidade brasileira, mas pelo mundo todo. Umas com maior liberdade para resolver o conflito, outras com menos. Todas com algum nível de tensão que uma gravidez, uma mudança brusca no organismo pode causar. A incerteza de "com quem contar?", a incerteza de "o que virá depois?". A incerteza na mente de que "o que estou fazendo é correto?" e "mas e quanto ao que fizeram comigo?", finalmente para o ponto crucial: "sou eu a errada? ou as circunstâncias permitem?". A atuação impera nesse conjunto da obra, das dúvidas, da aflição, das hesitações de uma jovem em apuros.

Dividimos em um filme bastante cru - para os padrões estadunidenses ou nova-iorquinos - as aflições da jovem Autumm. Sua necessidade de ir superando uma gama de acontecimentos em que nenhuma mente está preparada para enfrentar, independente da idade. Recapitulando: o fim de um relacionamento, a descoberta da gravidez, a inaceitação da sociedade, a não-possibilidade de contar com a família, com a medicina de sua localidade, os riscos de uma viagem distante, os riscos de enfrentar Nova York, a companhia da única amiga, mais fiel do que sensata, a aparição de um jovem totalmente desncecessário para seu contexto de angústias, as perguntas feitas para realizar o procedimento invasivo do aborto. A necessidade de confiar em estranhos, entre a pessoalidade e a impessoalidade do procedimento em uma clínica especializada em receber jovens de diferentes partes dos Estados Unidos.

Por conta disso tudo, a recomendação de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", um filme que já nasce clássico, na alusão da luta de tantas jovens que não querem, não estão prontas, fazem a escolha por não serem mães, no ainda ou no jamais, por dignidade, por decisão financeira, por planejamento familiar, por qualquer motivo que não deveria ser levado em consideração por mim, por nós, quando a decisão é na verdade dela. Um filme de suspense, de sobretudo drama, angustiante como tantas vezes convoca o uso dessa palavra - angústia - aqui na resenha sobre. Nunca. Raramente. Às vezes. Sempre. Inesquecível a voz da interrogadora nessa cena: as pausas, o drama, o vazio tentando ser povoado, tentando ser preenchido, pelas névoas da angústia.

Atuação da estreante Sidney Flanigan está à altura da grande proposta do filme

Amizade entre as protagonistas nessa jornada que exigia muitas forças
Imagens: Reprodução do filme Never Rarely Sometimes Always (2020)

13 de dezembro de 2021

Papéis no Mundo

Queria ser uma pessoa que não gostasse tanto de estatística, embora às vezes elas sejam apenas estatísticas descontextualizadas. Para quem está lendo este texto pelo meu blog, percebo orgulhosamente que é a postagem de número 900, sendo que temos pelo menos 45 rascunhos em uma lista de espera que lembra muito os concursos públicos em que o pessoal passa e jamais sabe quando será chamado para compor a vaga pela qual teria direito. Enfim, mas vim aqui para falar que gostaria muito de ser uma pessoa que focasse em apenas uma boa ação e a executasse com fluidez, com perseverança, com entusiasmo e êxito. Mas não é meu caso.

Balanço pelas ações pendulares da vida, sempre lendo, sempre observando, sempre querendo conhecer mais e mais, mas considero que pouco me aprofundo. Mesmo o futebol, o esporte em geral, que hoje me designa um emprego, não me descem tão a fundo. Faço pouco mais do que o necessário - talvez até menos do que o necessário às vezes. Se está muito vaga ainda a ideia deste texto, deixe-me exemplificar. Uma pessoa que se proponha a ajudar idosos e monte um pequeno centro, um centrinho para atender uma dúzia de idosos, esta pessoa está prestando um serviço essencial, glamouroso, fundamental para pelo menos essa dúzia de idosos para os quais os serviços são destinados e, ainda mais, está ajudando as famílias deles, se é que as possuem. São cuidados necessários, básicos, a alimentação, a saúde, o mínimo de satisfação e de, quem sabe, entretenimento. Todos precisamos. Alguém que destine muitas de suas 24 horas por dia para esses serviços está alinhavado com os melhores princípios cristãos de existência sobre essa Terra. Ou estou errado?

Mas até o presente momento não me entendo assim. Eu já trabalhei por um tempo com lar de idosos e outro pequeno tempo também com crianças em vulnerabilidade social. Minhas dificuldades presentes na neurodivergência (ou neurodivergências) que possuo acabam limitando minhas ações para com essas campanhas, locais, auxílios. Em resumo, tenho muito boa intenção, mas pouca execução. Enfim, poderia ajudar em campanhas textuais - não têxteis, visto que nem a costura me seria uma possibilidade - em divulgações, em conversas, em um poder de persuasão e convencimento que ora me aflora. Às vezes um político. Poderia ser este meu papel no mundo? Visto que, para além de idosos e crianças, acho importante ressaltar minha compaixão, minhas sinceras condolências por cães e gatos de rua, animais selvagens, florestas e outras vegetações devastadas pelo bicho homem, moradores de rua, pessoas em geral em vulnerabilidade alimentar, órfãos, doentes terminais, pessoas que necessitam de tratamentos de urgência ou de preço não-condizente com suas realidades financeiras. É muita gente, é muita ajuda que o mundo urge, pede, grita por socorro. São os avanços na medicina e na saúde que ao mesmo tempo nos sugerem uma imagem de tão perto tão longe. O que isso quer dizer? Que muitas vezes parece possível um dado tratamento específico, especializado, mas o preço que se paga, este às vezes é alto demais. Os esforços. O deslocamento de pessoas do interior para capital. E da capital de volta para o interior. E, vejam bem, outra segunda-feira e outra vez do interior para capital. E da capital para o interior. Acompanhantes que sacrificam suas vidas por familiares ou como voluntários, como anjos, em seus entre aspas tempo livre. Pessoas que batalham severamente, turno a turno, dia a dia, no turno inverso do trabalho que as remunera. Cuidadores, tratadores, acompanhantes, dos bebês ao anciões de 90 anos.

Todos esses exemplos citados creio que enumeram possibilidades de estarmos quites com os encargos da consciência, com as metas a serem estabelecidas e cumpridas sobre a Terra, nos princípios cristãos ou seja lá quais forem os seus princípios. Há muitas formas de ajudar: mas qual é a minha? Eu que, por piedade, poderia me encontrar em qualquer um desses ramos, desses nichos, mas que, por atuação efetiva, me vejo distante do auxílio fundamental, apegado, aguerrido, dos esforços hercúleos nessa batalha constante pela sobrevivência, pela dignidade, pelo mínimo, pelo básico, ou por aquele algo a mais que pode estar em um presente de Natal, em uma campanha de Páscoa, em um aniversário especial para uma pessoa ou para uma instituição - que atenda pessoas. Doações para campanhas, doações para cumprir a meta de uma cirurgia, doações para ajudar os voluntários a combater chamas, donativos para familiares que acompanham um doente terminal em um hospital de onde não é sua cidade. Onde me encontro nisso tudo?

Será que tenho responsabilidade sobre tudo isso? Qual o meu salário? Quem me ajuda? Como me ajudo? Mesmo neurodivergente, tenho saúde o suficiente? Por ter ainda dois braços e duas pernas, estou de aparência saudável para todas as ajudas e encargos? Qual o meu papel nisso tudo? O que os donos de grandes corporações e empresas estão fazendo? Patrocínios para quem? Investimentos onde? Para onde estamos caminhando, para um mundo associativo, de combate à miséria e à fome, ou para o aumento dela, em níveis totais e talvez também percentuais. Em níveis de desigualdade, de quem tem, tem muito e quem não tem, o que faz? Como sobrevive? Como se ajuda? Como essa pessoa será ajudada? Como eu posso ajudar? O que farei, ao final deste texto? Enquanto posso me dar ao luxo de pensar, refletir, filosofar sobre, mas a pessoa em si, que necessita minha ajuda, tem pressa, tem fome, tem, talvez, escondida em algum bolso se não rasgado, a esperança. O fluído do tempo nos pressiona. A consciência permanece incauta em nosso encalço. Eu, por ora, preciso cumprir minha página diária. As últimas do esporte. Em "Piano Bar" dos Engenheiros do Hawaii, Gessinger sugeriria ainda a "hora certa, os crimes e a religião". E disso tudo que fiz, de tentar explicar, que permaneci indignado comigo mesmo, será de tudo isso que ainda o meu "nada" é uma palavra esperando tradução?

Enfim, como resumo, gostaria de me sentir mais útil em uma única função de resultados efetivos, ao invés de vagar e vagar sem sentir essa construção toda. Mas também sei, oh, sei bem, que não me sentiria bem restrito a um único ofício, enquanto minha cabeça vagueia imaginando diversas e mais diversas possibilidades. Assim tento me manter em movimento, surfando essas ondas, saboreando o vento e tentando não me desanimar por completo, entre a busca por uma 'utilidade' em um todo que ainda me soa inútil.

Lutemos - em um só parágrafo

Tenho caminhado pelas ruas e visto coisas. Tenho vergonha de carregar o isopor de meu almoço quando há pessoas procurando comida nas lixeiras. Tenho vergonha da minha proteção de protetor solar e boné quando há pessoas com mais ou com menos melanina no sol a sol no lixo a lixo. Vi uma pichação de Fora Comunistas e Fora Esquerda em frente a um bar onde só bebem idosos. Vi um descendente de japonês, achei que ele entraria na fruteira Sato, mas seguiu em frente até seu carro. Me driblou. Um rapazinho de bigode ralo e cabelos crespos em camisa verde diz que não é ladrão, já se alimentou do lixo, mas não rouba, só quer uns trocos. Algumas máscaras de proteção contra covid 19 são esquecidas pelas ruas, abandonadas sobre as calçadas. Sempre que cruzo a avenida Bento Gonçalves de madrugada enquanto passageiro de uber não sei o que vamos encontrar. De sinal aberto ou fechado. Tanto faz. É imprevisível. Algumas ruas com movimento demais. Outras vazias e olvidadas. Imóveis vazios pela alta dos preços e do aluguel. Moradores de rua improvisam colchões e escassos pertences nas fachadas de bancos. Algumas pessoas até roupa colocam em seus cachorros quando está frio mas não juntam o cocô deles. Motoristas de uber imitam taxistas com os carros encostados à espera de corridas, de passageiros que só conhecerão depois de toparem, não ao contrário. Em viagens de ônibus nunca sabemos quem sentará ao nosso lado, a não ser que o atrasado seja a gente. Nas viagens de ônibus todos compram a poltrona da janela. Às vezes compro do lado errado da melhor visão para a entrada de Porto Alegre. Às vezes o aplicativo de música acerta sem querer a que queríamos ouvir. Hora exata da encruzilhada. Achei que tinha visto um amigo no Mercado Central a beber cerveja e contar causos. Quando lhe perguntei depois se era ele, nem era, estava em Gramado. Esse mico de ter confundido eu pagaria e só por detalhe não o fui cumprimentar. Flashs de uma semana improvisando comida e vivendo sozinho. Sem saber até quando nem o que virá depois. Há uns meses, nem sabia que era possível, mas amo minha namorada fortemente enquanto aqui escrevo. Quero fazer durar todo o tempo que a nós foi reservado nessa estrada confusa da vida. Saio de nossos encontros renovado e me abate depois a desconfiança do destino, sem saber o que fazer e para onde vou. Convivo com as incertezas a cada refeição sobre a mesa. Serei acordado pela manhã por minha gata Melissa. Ela mia entre as 7 e as 9h30 da manhã. A depender da luminosidade e da fome que a atormente. Ela me atormenta assim por tabela, mas ela só sabe ser assim e é muito querida. Dentro em pouco me incomodará de novo e assim são o ciclo dos dias. Aos leitores de aqui, desejo uma sincera boa semana. Lutemos.

Pessoas

Quanto mais velhas as pessoas, mais elas se parecem por fora, mas mais distintas são por dentro, por tantas histórias e memórias diferentes que as formam.

7 de dezembro de 2021

Only Lonely

Eu não sinto fome
De viver
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

E não há mulher
E não há homem
Que torne essa vida
Menos alone

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Na vida adulta
Nas rimas do Supla
Na terra do nunca
No terreno fértil
Eu me sinto sozinho
Nessa espelunca
Eu me sinto um réptil
Dentro de uma gruta

Eu não sinto fome
- De viver -
Eu estou sozinho
Num terreno nocivo

Y no hay otra vida
Ya no hay canciones
Songs that turn on the lights
Por eses rincones

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

Nos improvisos
Nos sobreavisos
Nas placas de perigo
Nos conselhos amigos

I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
I'm a Lonely Boy
Que se auto-destrói 

2 de dezembro de 2021

Clube dos 27

Estou bem

Com a mesma idade de Kurt Cobain 

Quando partiu o tiro

Que lhe convém


Estou bem

Com a idade de Amy Wine

House

Ou outras estrelas

Da terra de Mickey Mouse


Bem

Como Jim Morrison

Sem

Absorver o som 

E os tons de tanto gim 


Estou bem

Como um Jimi Hendrix 

Sem saber

Fui lá e fiz 

Melhor do que qualquer aprendiz


Estou bem 

Como Janis Joplin 

Que morreu 

Com a idade de Kurt Cobain 

Com ou sem

coincidência 

Com ou sem

pré-destinos de nascença


Eu estou bem

E sei que ficarei

Estou bem

Isso eu sei

Estou bem

E sei que ficarei 

Isso eu sei

É sobre isso

E tá tudo bem

1 de dezembro de 2021

Amar as crianças

Acredito que se na minha família houvesse criança, eu amaria mais a vida.

Devemos amar as crianças porque

A) são mais fáceis de serem amadas

B) é delas que pode sair algo que preste pro mundo, então deve valer a tentativa de amá-las