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10/08/2025

Made in USA (1966)

Apontamentos sobre o filme:

1- as técnicas, sonoplastia, cores, roupas

2- diálogos e exagero com as mortes e armas de fogo

3- a crítica aos roteiros e execuções comerciais de Hollywood

4- as reviravoltas

5- o final sobre o fascismo

Extra: a comparação temporal entre Beatles e o cinema de Godard

Made in USA (1966) é uma das grandes obras de Godard, talvez subestimada frente a outros títulos. A ideia do filmmaker era principalmente desdenhar do cinema comercial e das propostas batidas apresentadas desde a época por Hollywood e os principais estúdios estadunidenses.

No filme, uma história clichê, como não poderia deixar de ser, de um crime, uma investigação, alguma reviravolta. A trama principal é a investigação de Paula sobre a morte de um affair chamado Richard. Para não ficar na mesmice, apesar das técnicas e comicidades que iremos comentar, Jean Luc Godard introduz fatores histórico-modernos na narrativa. O desaparecido/morto Richard era membro ativo e polêmico do Partido Comunista: elogiado por uns, perseguido por outros. Ao começo do filme, a camareira do hotel onde está Paula destaca: se os comunistas tivessem ganho a eleição, seria proibido o banjo. Conflito de classes apresentado.

Godard abusa de diálogos banais com tons forçados, frases repetidas dos clássicos norte-americanos. São falas com frases de efeito, jograis feitos entre os atores, apresentações ensaiadas e um jogo de câmeras que não é comum ao cinema de Jean Luc. A aparição de muitas armas dá o tom da investigação, de uma vida sob constante perigo, contornada e intermediada pela violência e pelas formas self services de resolução, com ou sem a atuação da lei (na intermediação policial).

As mortes desde a aparição de um intrometido no quarto de Paula, quando questionamos, de onde pode aparecer de repente um tipo desses, Paula o executa de forma cômica, com um sapato, em que ela pedia a vítima para escolher a cor da arma. Com sangue em tons muito falsos, Paula arrasta o corpo desse tiozinho, como uma autêntica cena repetitiva dos filmes hollywoodianos. É de se questionar como não cansamos (mas cansamos) de assistir a isso.

Por onde vai, Paula torna-se suspeita, é acompanhada de perto por investigadores e carrega sempre sua arma de fogo. A sonoplastia do filme é interessante, com efeitos exagerados, interrupções sonoras durante falas importantes, signo usado por Godard em filmes vindouros, como Weekend À Francesa (1967), que também será analisado durante esse apanhado de resenhas.

A figuração também é especial em relação ao que costuma apresentar Godard. Como é um dos seus primeiros filmes coloridos, o diretor exagera nas cores vibrantes, nas vestimentas forçadas e desenha personagens com personalidades e diálogos toscos. Uma das cenas cômicas ocorre em um café, em que o atendente, o barman Paullllll (como ele se autointitula) oferece charadas e troca palavras com um bêbado e Paula. A troca de olhares entre Paula e um dos atendentes que aparecerá mais na narrativa também é forçosamente proposital. É de se questionar o treinamento, o pedido e a formulação para os atores, ao invés de parecerem mais reais, como costuma ser, terem de parecer mais artificiais e zombeteiros para com a situação.

Anna Karina consegue manter o nível de suas atuações, como quando desempenhou a srta. Von Braun em Alphaville, filme lançado no ano anterior. Entre cenas mais marcantes do filme, nesses encontros em cafés ou com investigadores e a importância destinada a seus carros, destacam-se mais mortes forçadas, inclusive na brilhante ideia da encenação demorada e dramática até finalmente cair morto, e na ação de criminosos se escondendo entre arbustos e à vista de janelas.

Como apontado no início dessa resenha, a crítica ao cinema comercial e repetitivo de Hollywood é a grande arte e inovação no filme. Uma acidez, uma ousadia, uma elegância para infâmia, para o deboche, para ironia. Essa forma de paródia poderia ter despertado o cinema contra os padrões impostos e enfadonho; bem verdade, se a mesma paródia não fosse podada e totalmente encoberta pelos próprios investidores do que é criticado no filme de Godard. O remédio contra a crítica manifesta é re-elaborar mais antídotos que se sobreponham e silenciem a crítica. Produzir mais, manter a onda que encubra a mancha na indústria. Tanto funciona que a manutenção dos estúdios norte-americanos da produção industrial é soberana sobre as obras feitas pelo crítico diretor politizado.

Godard muitas vezes é um eco solitário contra a selvageria das ações impositoras, imperialistas que cegam linguagens, manifestos e doutrinam pessoas ao silenciamento, ao amanso, ao conhecimento só de uma cota limitada, ao permitido, impedindo a crítica, o questionamento, proibindo-os. 

Na parte final do filme, Godard mantém sua preocupação sobre escaladas fascistas, sombras do que centenariamente nunca deixa a Europa, o mundo. Desde antes do bigode austríaco, até... até enquanto o mundo for mundo. A barbárie, a imposição, as restrições sobre, o controle sobre, a dominância de uma classe sobre outras será sempre o estigma da realidade. Fazem-se adaptações, forja-se um pontilhado ou frágil progresso para aprisionar as classes sociais sob novas arestas, atrás de novas grades. Na parte final do filme, o assombro do fascismo sempre à mostra, ampliado, amplificado ou mesmo velado sobre as práticas do cinema convencional, às vezes brevemente questionado sob a figura de vilões, mas geralmente combatido por indivíduos dotados, especiais, neoliberais no combate. Esperar pela figura heroica, masculina e branca, preferencialmente, combater com suas próprias armas, com o uso e a resposta da violência como providenciais soluções. Vencer a disputa contra "o mal" e dirigir rumo ao pôr do sol ou céu azul com um final decididamente feliz. Sob essa custódia, não criticar os líderes globais, suas empresas e muito menos aos patrocinadores, financiadores comerciais do cinema comercial. Apresentar as marcas e as mensagens subliminares para o público. No final, o produto deve ser a venda sobrepondo-se à arte, ao argumento, à filosofia, às intenções humanas.




Como palhinha sobre a época, estive pensando sobre o ápice da Nouvelle Vague questionadora do cinema de vanguarda europeu enquanto vivia-se a Beatlemania, do rock n roll revolucionário, de pedidos de paz e boas mensagens transmitidas até o esvaziamento cultural do enchimento e preenchimento de estádios para ouvirem-se gritos. Nos Estados Unidos da América, sobretudo. Turnês esvaziadas de significado que passaram a frustrar e ameaçar os próprios Beatles. Tanto é que fecharam-se nos estúdios para produzir música e pararam de se apresentar ao vivo. Vi por aí (ótima fonte essa) que Godard havia criticado a beatlemania enquanto vedetes sem questionamentos maiores. Os Beatles não se pronunciaram politicamente, ou muito menos do que poderiam. Também aponta-se que uma recusa causou o filme de Godard envolvendo os Rolling Stones ainda nos anos 1960, com o especial Sympathy for the Devil. Em rebate, Godard teria questionado os Beatles sobre o sumiço das apresentações e apontado que fazer um show em um telhado era uma inovação e tanto, antes proposta por outra banda.

Se a ideia da crítica de Made in USA é apontar as limitações e sujeições de uma indústria de cinema, sobre os Beatles a crítica de Godard também poderia pairar sobre apolitização, sociedade corrompida a partir da máxima do dinheiro e a idolatria acrítica e descontrolada das pessoas acerca dessa estrondosa mania. Apenas um parênteses sobre dois fenômenos dos mais importantes mundialmente a respeito da década de 1960: as canções dos Beatles (e do rock inglês em geral) e os filmes de Godard (com outras exibições do cinema francês em geral). É possível aprofundar o tema, por exemplo, expressando ano a ano as nuances, contribuições, a forma disruptiva, antagônica ou convencional do papel desses artistas, na aplicação da arte e seu valor: a transformação social. A transformação social vista sob duas óticas: a atingida e a almejada. Um tema e tanto.





29/10/2020

Supermarcado

Minhas ideias na ponta da caneta
Nem tirei as remela e tá de novo na placenta
Não te assenta!
Que eles sentam o cacete no povo
And again and again
E de novo e de novo
Sentam em ti, sentam em mim e neles também
And again and again
Runnin' down a dream
Pra dormir o dramin
E acorda dia sim e no outro também
Única saída é sair desde as seis a trabalhar
Sustento pro lar - ônibus lotado, tráfego pesado
Em pé, mal acomodado - sem migué a dar
A escolha é a mesma porque não tem
É a mesma a cada página, a cada folha
É a mesma escolha!
É a que existe no ponto de vista de quem olha
E não estoura saca-rolha com champanhe
São os que na rua estão, pro que der e que apanhe
Apanha, apanha
Ônibus pesado, tráfego lotado
Em pé, acomodado mal e sem dar migué
Apanha, apanha
Às vezes reclama
Mas vai na manha
Pensa e sonha quando deita a cabeça na cama
E busca a ceia pra ter o que jantar
E banana com aveia pra tarde passar

A rotina é essa que cola na retina
Em meio às casta, baixando e levantando fumaça
Cada um a cada dia atrás de suas caça
A rotina é essa que cola e adesiva
Se apresenta sempre com pouca alternativa
Cada um a cada dia a mantendo viva

A rotina é essa que cola, sacola de super
Marcado o horário pra bater o ponto
Tem que estar pronto. Sem pegar leve
Sem um breve intervalo e sem desconto
O que cair da prateleira é desconto no salário
Se persistirem os sintomas, demissão
Assim já foram vários
Do estoque pra reposição no armário
Nas caixas de sucrilho e quadro de funcionários
Drama, runnin' down a dream
Diário

Supermarcado no supermercado
Nas prateleiras dos macro-atacados
Atacados por todos os lados
Na rotina que cola na retina
No que não se atina
E no que já tá atolado
Ou nem atina mais
Já tá anestesiado
Aqui é caixa-rápido
Seu carrinho tá lotado
Aqui é preferencial
Você não tá grávido
Ó meu cidadão, colosso, impávido
Seu ticket alimentação tá inválido
O gerente não sei, tá ocupado
E me respeita, trabalho aos sábados
Supermarcado no supermercado

29/03/2020

sábados pela manhã

Acelero meu processo de envelhecimento. Sinto que posso percorrer em voo baixo a infância que já se desenha há duas décadas passadas. Nos confinamentos dessas páginas de cimento recordo os sábados em que eu almoçava fora. E isso ficou bem marcante como uma divisória, como se uma régua posicionada sobre a folha induzisse a mão jeitosa a rasgar o papel em duas partes. Almoçar fora, em restaurante propriamente, era um exercício civilizatório resguardado a esse período da minha vida. Conforme minha adolescência e início da fase adulta, meu pai trazia a comida de restaurante e mantínhamos o hábito de almoçar em casa, com a salva diferença de que, aos sábados, minha mãe não se atarefava no preparo da refeição.

Mediante essa linha cronológica traçada, voltamos ao sol sobre o calçadão envolto de comércio nas matinês de sábado. Era o período que minha mãe, já aposentada, saía de casa. Pelo menos uns dois traumas, pensando durante a oração, talvez três, surgiram em decorrência dessa repetição de episódios. O primeiro que me acercou a memória era encostar nas monótonas vitrines de lojas, com os seres inanimados a exibir artigos de luxo e acessórios que os seres animados (demais para meu gosto) ansiavam adquirir. Definição dicionária de vitrine, com os vidros impecavelmente limpos e bonecos intactos em poses estilosas. Até que era interessante notar em lojas de menor recurso como os próprios manequins perdiam seus estados incriticáveis no desgastar do tempo. Deviam eles aguardar sofregamente pela aposentadoria dessa função semi-desnuda em exibição para desconhecidos (e sem adicionais salariais).

Passado o trauma das inquietantes vitrines, que, quando parávamos, faziam com que eu olhasse tudo ao meu redor, com exceção das próprias vitrines, o segundo trauma seria o de palhaços. Creio que mais do que desgostar dos palhaços, a perturbação era virtude da forçada interação social. Aquele ser pintado das mais diversas cores já programadas em paletas e que, avidamente com sorriso fixo, estimulava as crianças para elas contraírem a concavidade da boca em mesmo ângulo, mostrarem seus dentes (ou a ausência deles, dependendo a troca na formação de porteiras). Doravante que muitas vezes o efeito desejado era simplesmente o oposto, com muitos cedendo ao choro do desespero. Eu, pelo contrário, apenas aguentava, como também aguentava as vitrines, em sofrimento interno e não repassado para minha mãe ou demais familiares.

O momento de cruzar pelos palhaços parece ficar estagnado na infância. Se repararmos, apesar da mudança dos tempos, os palhaços ainda estão por lá, a entreter - ou tentar - nas calçadas envoltas de comércios. Passam despercebidos, como os tatus-bola (ou seja lá qual for o plural de tatu-bola) nos jardins olvidados. Contornadas as vitrines que não mais sou obrigado a parar e os palhaços que procuram novas vítimas (e vítimas novas, mediante o critério da idade do público-alvo), o terceiro trauma pode ser considerado o da quantidade de pessoas ou mesmo do consumismo.

Essas organizações comerciais centrais nas cidades foram gradualmente ou até bruscamente substituídas pelos shopping centers, assunto o qual já abordei muitas vezes em meus textos críticos ao consumismo exacerbado, locomotiva desfreada. Posicionaria esse terceiro trauma nas lembranças desses sábados matinais exatamente na larga presença de pessoas e seus barulhos típicos, conversas cruzadas desprovidas de significado, passos, vendedores anunciando obrigatoriamente ofertas em que 95% não está interessado, posteriormente cambiados pelos de mesma função em empresas de telefonia celular (vale sempre ressaltar que recordistas de reclamações!) e até mesmo artistas de rua que, separadamente, podem trazer um benefício cultural interessante, mas naquelas organizações desorganizadas dos centros comerciais, disputam espaço aos solavancos e confunde-se o som de um com o de outro, as apresentações teatrais e dançantes sem um palco se tornam bizarras e mesmo a poluição sonora das lojas aos microfones ou com outras músicas completam um cenário horripilante.

Orgulho de Allan Poe, Alfredo Hitchcock ou H.P. Lovecraft, que, por sorte, jamais presenciaram meus sábados matinais ou terminariam de sepultarem-se no horror compilado de suas mentes. Brincadeira de bom ou mau gosto, a ideia inicial era transcorrer pelos restaurantes de minha infância. Ou o restaurante, visto que frequentávamos sempre o mesmo, um de nome alemão e tradução Tudo Azul (nada mal, embora o prédio sequer fosse azul). Contudo, as lembranças acumuladas, como aquelas cenas errôneas de desenhos animados na prática do futebol americano, em que um jogador pegava a bola oval ao chão e os outros amontoavam-se como uma cordilheira sobre falhas tectônicas, as lembranças desvirtuaram o plano e me convidaram, como se me apontassem uma faca, para que eu descrevesse alguns dos traumas passados pelas voltas desferidas aos sábados de, naquela hora, contrafeita infância. Mas o restaurante depois valia pena. Valia muito.

01/01/2020

falsas roupas brancas

Fortaleza. Virada da década, ao menos em movimentos culturais, porque cronologicamente os historiadores apontam as viradas para o ano 1 de cada década ou século, já que não se iniciou a contagem em ano 0. O hotel era consideravelmente luxuoso e a poucas quadras da orla, de onde o espetáculo, para Debord nenhum colocar defeito, seria de muitos fogos de artifício, este ano com redução no som, em consciência coletiva. Bom indicativo.

Mas o próprio hotel, através de sua área, de seu pátio, até da beirada de uma piscina, exibiria seu próprio evento chique. A música embalaria a trilha sonora do especial momento. Pessoas vestidas de branco, muitas delas, o que ela nunca gostou, mas aceitava e poderia bebericar alguma bebida doce que satisfizesse o paladar e o desejo alcoólico ao mesmo tempo. Além do mais, contava com parte da família e nem sempre era fácil reuni-los. Em uma praia, nos moldes atrativos ao paradisíaco, então, nada mal. Nada mal.

No alto de seus 20 e poucos anos e uma faculdade concluída, seu gosto musical era eclético. Variava dos populares brasileiros da mpb mais erudita ao que se ouvia aos pés e cristas de morros, das favelas elevadas geograficamente no Rio de Janeiro às mais planas de São Paulo e outras capitais. Gostava de desfrutar esse choque cultural, absorver o máximo possível de sotaques e até olhar aos lados em busca de alguém. Sem muita esperança de pesadas buscas, mas desde que a satisfaça no contar de alguns causos passados, delírios presentes e planos futuros, tudo em pequenas doses. Bebe, apenas beberica, na verdade, vai ficar tudo bem. Brindar taças e trocar o número de telefone para envios de algumas mensagens, ainda bem que a internet substitui os sms e torpedos, mas mesmo com esse elemento facilitador não vai entrar em contato contigo mais do que quatro vezes no próximo ano, vai fingir saudades, vai sentir saudades reais, mas nada demais, depois passa e encontrarem-se, salvo alinhamento coincidente dos astros, ano que vem talvez, tal qual uma canção dos paulistas do CPM 22.

Mas nem esse alguém estava lá. E além dele não estar, cavaleiro andante, prometido, príncipe do cavalo, sapo transformado, barba aparada vestido de branco, havia mais coisas erradas em seus sonhos. Quando já achava a festa lotada demais, mas seus pensamentos e a ansiedade futura do ano porvir a fechavam em um engavetamento, havia outros a se desenharem. Procurou despertando do sonho acordado e só encontrou o irmão muito distante. Paladino mais velho, que muitas vezes, antes de se mudar de cidade, por idade, por emprego, mostrava a ela o caminho, agora tentava irromper as pesadas portas cruelmente cerradas. Os consumidores da festa haviam sido trancafiados, sem saídas de segurança, pois os organizadores, com o aval dos donos do hotel, como soube-se depois, só permitiriam a retirada das pessoas pós duas horas, quando já houvessem agastado o considerado suficiente por suas estadias. Tamanho absurdo que nem os hospedados estavam autorizados a ir, que fossem, buscar uma bolsa, algo esquecido em seus quartos prédio acima. Ultrajante.

A revolta se sobressaiu ao clima natalino, cada vez mais naftalino em cheiro e este transformando-se mesmo em pólvora. Multidão em polvorosa que tentava convencer os estaqueados seguranças. Começava em com licença, veja bem e avançava para galopes de uma cavalaria sedenta de romper com as regras pastelonas se não viessem a se tornar trágicas. Com o diz que diz sobre a situação e as pessoas querendo explorar outros banheiros, além das limitadas estruturas da lotada festa, com os convivas sequiosos por tomar um ar fresco rua adiante, mas nada tirava os brutamontes das entradas cadeadas.

Empurra-empurra, portas de vidro, a liberdade logo além, o dj ignorado, uma versão do Dennis ou de algum outro desses, ou seria o injustiçado Rennan da Penha, enfim, qual era a senha para sair dali, para ao menos os primeiros chegados, os apoquentados à beira das portas, estes poderem sair e liberar as passagens, mas eu paguei, faça o favor, maldito, desgraçado, tu vais me agredir, você não sabe com quem está se metendo, meu tio é advogado, sou filho do vereador da cidade a 130 km daqui e

Finalmente o primeiro spray de pimenta quando, antes das portas de vidro em centenas ou talvez milhares de cacos, rasgou-se em pedaços a paciência dos seguranças, que partiram para, após a obediência insensata ao pé da letra das severas ordens, uma violência de cunho fascista. Abuso de autoridade. Abusos dos mais diversos.

Ela viu o irmão sangrar e quando deu por si também sangrava pois arrebentou-se o portão envidraçado como a um dique de uma barragem, mas ao invés da água, a água que até aliviaria os sintomas do gás de pimenta, o que veio foi uma saraivada de vidro, espalhando-se como os resquícios de balas de borracha. Ela sentiu a dor, o ano novo, a vida nova que mal vinha e travestia-se assim esfarrapada em frangalhos. A busca dos atalhos pela manada que atropelava os semelhantes. Todo mundo praticamente vestido de branco, lembrava-se ela depois que até exigência era para acessar o que antes parecia um longo e largo pátio para eventos. E agora aquela gente toda ali, no efeito das bebidas, na neurose crescente, na paranoia coletiva. Alguns mais ou menos sensatos, se é que sensatez era substantivo em questão, celulares em riste, foto aqui e gravação ali enquanto o cartão de memória permitia de haver provas para o tribunal nem tão próximo futuro quanto a meia-noite que bateria ignota nos relógios de pulso e nos telemóveis. Mas haveria de acontecer, certamente que haveria, pois, não lembra? O tio daquele era advogado e, mesmo assim, advogados já estavam por ali e mesmo aquela estudante de direito e aquele calouro.

E aquele calor todo, humano, irracional, dantesco, aos diabos, o inferno em portas abertas para onde tudo aquilo iria dar? Os libertos olhando de fora do tumulto o saldo, famílias separadas, seguranças e convivas feridos, com a certeza de que com a vinda da polícia alguns detidos, bodes expiatórios, laranjas, como estava em moda naquele período. Ela com o ferimento nas costas, o irmão com a dúvida de mexer todos os dedos, a mão que sangrava, o desespero. As sirenes, policiais ou ambulatórios que abriam caminho e prioridade a mulheres, crianças não haviam pela classificação indicativa, mas idosos alguns e que passaram mal, o coração, o ciático, o pandemônio. Foi horrível, foi. Foi intenso, sim.

Repercussão direta, entradas ao vivo pela madrugada nos telejornais. Os impressos lamentando não haver edição no feriado para mostrar as mais diversas chagas de uma sociedade desmedida em regramentos e consequências. A poucos metros dali, os fogos de artifício seguiram a programação pré-estabelecida. Os organizadores da queima maior tampouco sabiam do que se passava. Aquela ficou conhecida como a noite em que as roupas brancas tingiram-se do mais vermelho dos sangues. A poucos metros dali, as ondas seguiram seu curso natural, mas ninguém do hotel pulou sete delas.

02/11/2019

entre milhões de views e milhões de ninguém viu

Passeando pelo Google Street View e descobrindo algumas das cidades mais famosas do mundo nos Estados Unidos. Entre as impressões que me chegam está a de que lá tudo é muito distante para desenvolver caminhadas. São cidades planejadas para os carros. Ruas largas e impecavelmente asfaltadas, mesmo os becos ou desvios para lugar nenhum: há por lá o asfalto, o tapete ao desfile das quatro rodas de cada um.

Os cenários urbanos se desenvolvem nesse sentido. A horizontalidade de cidades segue esse guia de vias que no Brasil incentivariam os mais perigosos rachas. Não à toa roda-se e desperta-se o desejo de sagas como Velozes e Furiosos. Cada cidade por lá apresenta características adequadas para o exibicionismo da alta velocidade e tecnologia automotora.

No meu cenário muito mais pedestre e transeunte, imagino o forte calor dessa quantidade asfáltica. Noto a presença das calçadas e de terrenos baldios ou desocupados de imóveis também repletos de concreto. Há árvores nessas cidades mais sulistas, mas são vegetações mais baixas e características dos desertos, ou seja, a sombra não é convidativa. Chega a causar inveja aos sertões do Nordeste de brasilis, descritos pelo carioca Euclides da Cunha.

Lá nos EUA pode-se iniciar a vida de condutor mais cedo do que no Brasil, em licença para dirigir logo aos 16 anos. Um carro para cima e para baixo em direção aos fast foods, lojas, hotéis, festas e diferentes paisagens. O país que, antes colônia da Inglaterra e pós esse processo colonizou quase que o mundo todo, exporta esse meio de sonhos de consumo e de formas de administrar cidades. Com o calor dos asfaltos, com o incentivo de vendas mais baratas de carros e combustíveis, a carta para dirigir retirada na adolescência, a publicidade e outros estabelecimentos como as vendas de comida em lanches fazem os Estados Unidos brigarem contra a balança. Se o braço forte do capitalismo vence e coloca qualquer braço oponente direto na lona nas quedas, a balança mostra panorama da luta do país contra o sobrepeso de sua população. Perspectiva preocupante.

Outro ponto que me chamou atenção foi da situação da rica Califórnia, sozinha maior do que o PIB de quase todos os países do mundo e maior do que o PIB de uns quantos somados juntos, aglutinados; essa Califórnia que é fronteiriça com o México, ainda sem a oficialização de um muro trumpeano, mas que revela problemas que nos passam despercebidos sobre as crueldades das garras capitalistas. Ali em fronteira com essa Califórnia está a deepweb, está a obscuridade, o poder do tráfico. A cidade de Tijuana lidera ranking de 2018 sobre o atlas da violência mundial, atualizando homicídios. O México vive maus dias no combate ao teor violento de suas gangues e domínios de pontos. Uma rápida passada pelas ruas de Tijuana deixa claro como o sistema funciona por lá. Pichações que indicam a quem pertence a área e costumeiras casas como as que aparecem nos filmes dos lugares mais desérticos e áridos dos EUA, ou da própria fronteira ou lado mexicano. Possíveis bocas ou pontos de traficar, lugares suspeitos, casas apertadas, ruas hostis. Mesmo assim se distribui novamente o foco inicial que trouxe aqui, o asfalto como meio de escape. Bom para transportar droga ou fugir em perseguições, como a vida imita a arte; a ficção na realidade. Seja de Tijuana ou de outra cidade de comum geografia, espanta a proximidade com os estilos de vida badalados das conhecidas San Diego, Los Angeles, San Francisco e outras potências turísticas e atrativas da milionária Califórnia. Subúrbios a eles; trevas ao lado da ostentação. A própria megalomaníaca gigantesca cidade de Los Angeles convive com isso, os infortúnios da presença de gangues, migrantes, comércios ilegais, violência e crime, trabalhos a IML na calada da noite, vizinhos que nada sabem e nada viram.

Entre milhões de views e milhões de ninguém viu.

25/10/2019

correndo por correr

Demorei a aceitar a ideia de que as pessoas não são obrigadas a gostar de mim. Ou ao menos gostar de mim de uma maneira destacante, como prioridade em relação a outras. Portas estreitas em um mundo concorrido. Concorrido de apertados horários. Hoje pouco me sobra de tempo no cotidiano, além dos estudos e trabalho. Termino noites entre leituras e cinema caseiro. Algumas conversas virtuais e a preparação para o dia seguinte; cíclico.

Entendo melhor o estreitamento na existência das chamadas horas de lazer. Dias de lazer mais raros ainda. Conversava em outro momento sobre trabalhar 200 e aproveitar uns 7 em alguma viagem; tendência.

Compromissos. Tive poucos em infância e juventude de uma vida retilínea de poder estudar e até em boa escola para seguir ao mundo universitário. Cursar o que sempre quis, uma estrada tão reta quanto o sul de Porto Alegre apresenta em direção ao Uruguai. Poucos deslizes, poucas curvas, poucos desvios. Poucas atividades extras. Pouca coisa para ter afinidade ou interesse. E isso segue, também, vá lá, com as pessoas. Pouca afinidade ou interesse. Poucos mergulhos, águas mais turvas do que o Laranjal, onde por vezes são descobertos jacarés e outros animais exoticamente perigosos a banhistas, além dos conteúdos duvidosos, propriedades ao banho de laguna e etc.

Compromissos eram o tópico. Não me atenho muito a eles. São minha versão de rejeitar os verdes no prato de quando se é criança. Não tive problema com os verdes no prato. Tenho com os compromissos. Fico na minha em stand by o máximo possível. Faca de dois gumes entre mirar a paz e o sossego e sentir-se pouco prestativo e presenciando pouco, aquém da vida. Balança e gangorra entre vida e sobrevivência. Demoro mais horas para carregar em casa do que a maioria dos celulares. Reservo-me à introspecção o máximo possível; preciso dela.

Saio porta afora e logo retorno. O celular de vocês hiberna ou clama bateria para evitar esse sono profundo. Eu também preciso de uma parede para me recarregar. Sentado ao canto, preso paralelamente solitário. E é preciso entender que tudo bem, que é o que se pode fazer, é o que se pode ser feito. Mediante toda essa desistência de tempo em reclusão sobra-me menos para o fôlego das horas em sociedade. Difícil conciliá-las: quando podes e quando queres? Desgaste.

Há muitas pessoas semelhantes no dia a dia. De repente te elogiam por ter uma formação nisso ou naquilo, mas a concorrência também tem; ou tem outra formação interessante. Currículos e lattes. Você pode ser bom em malabarismo, sinuca ou tocar guitarra. E usar essas habilidades como um primata se exibindo, o que não me atrai muito. Mas é assim por aí, em busca de diferenciais e ranking e valer a pena; e valer o tempo. A internet amplia o leque de opções e pode-se resolver ou ao menos encaminhar as coisas por ela. Redes sociais e sites de relacionamento. Pessoas expostas em vitrines. Sou muito detalhista e reprovo muitos comportamentos. Reprovo mais do que aprovo, é um problema grave. Onde e como se encaixar nisso tudo e será que tenho interesse em fazer parte? Devo ter, pois estou tecendo linhas sobre isso, enquanto poderia estar assistindo ao documentário Edifício Master, que acredito estar disponível no Youtube. Se estiver, assistam, é um dos melhores nacionais da história.

Mas como se encaixar nisso tudo negando equipamentos, performances e regras gerais socialmente estabelecidas? É como se um piloto de automobilismo quisesse concorrer com seu carro ultrapassado por não se enquadrar nas novas legislações. Ele não terá condições. Enquadre-se ou seja eliminado. Eu poderia fechar o braço de tatuagens só por fechar, porque achariam bonito, mas não seria eu. Que caminhos e escolhas valem a pena se são quase irreversíveis dessa maneira? Mas a morte, a própria morte, nesse contexto, é irreversível.

Trilhas de andarilho fazem-me bem. Descobri recentemente uma música do Wander Wildner e encerrarei por aqui mesmo sabendo que eu não disse tudo, mas que disse alguma coisa. Não preencheremos nossas vidas vazias no mesmo espaço de tempo e lugar em que esvaziaremos garrafas. Eu não disse tudo, mas ele, nesse vídeo que corre aqui abaixo, disse algo. Até a próxima.