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29/08/2025

Meu Pé de Laranja Lima (1970)

Meu Pé de Laranja Lima causou grande impressão e pode ser considerado um dos melhores filmes nacionais. Acostumado a filmes iranianos que retratam a infância, observar essa obra autobiográfica que vem do livro de José Mauro de Vasconcelos é contemplar a identificação com milhões de jovens brasileiros.

Zezé só revela o nome completo no filme ao recitar para preencher a ficha escolar. José Mauro de Vasconcelos. O menino tem seis anos, é miúdo, mas destemido. Tem um irmão menor chamado Luis (ou Luiz), com o qual é muito atencioso. Seu irmão mais velho aparece em algumas cenas e procura instruir o imaginativo e aventureiro Zezé. A infância neste filme não é retratada como a maior das nostalgias, do fantasioso e do maravilhoso enquanto não se cresce. Zezé, pelo contrário, vive à margem de uma sociedade abastada. Seu pai desempregou e não tem previsão de receber um novo emprego. A substituição dos postos por operários mais jovens é realidade. José mesmo muito criança já sai atrás de suas rendas, sempre pensando nos próximos. Sonha dar um presente de Natal ao maninho menor. Quando questionado por roubar uma flor para professora, confessa não ter dinheiro para comprar, não ter jardim em sua casa com flores e que não tolerava assistir ao copo na mesa da professora vazio. Roubou-lhe uma flor. Em seguida fala que a professora não deveria destinar brindes de comida só a ele, que era excelente aluno. Uma negrinha na escola era ainda mais pobre e ele dividiria a comida sempre com ela, que era excluída por outras crianças. A professora poderia dar brindes direto à menina. Zezé cometia erros, xingava, se metia em brigas, mas tinha bom coração. Passados anos da vida adulta é fácil enxergar. O envolvimento de todo contexto e o perdão para os erros infantis do aprendizado.

Nessa vida com percalços, descalço pelas ruas, Zezé não romantiza a infância. Sonha viajar, fala até em suicídio, conversa que pesa clima ao fazer amizade com um confessor português, o senhor Manuel Valadares. Como o pai estava desempregado e ocorriam algumas brigas em sua casa, com a irmã adolescente e os pais, Zezé chega a projetar que o português o adote. Manuel, que não tinha filhos, não descarta a ideia, mas não tiraria o menino do seio familiar.

Claro, o personagem principal das confissões de Zezé seria o que dá nome ao filme, o tal do Pé de Laranja Lima. Zezé o descobre no terreno avulso à casa e lá parte para brincadeiras e imaginações. A árvore além de ouvinte também dava dicas maravilhosas ao menino. Um realismo fantástico. Zezé gostava de brincar de imaginar um zoológico e animais ferozes para impressionar o mano Luis. Além da árvore do protagonista, os irmãos também tinham entre mangueiras e outras árvores, uma da tamarindo.

O efeito do filme com acontecimentos tristes, emocionantes, crus, remendadores de nossas e outras infâncias torna as lembranças como um clássico. Se comparam as épocas, se pensa no raio do capitalismo que faz crianças trabalharem e adultos sucumbirem. Faz com que desejem fugir ou morrer, que sejam discriminadas, que percebam ou não as diferentes classes sociais e financeiras. O dinheiro como base de tudo, para comer, para presentes, para determinar as crianças que tenham ou não tenham Natal, que tenham ou não tenham figurinhas de chiclete e outros brinquedos, que possam ter a bicicleta ou não, conforme o filme recém avaliado neste canal, o Este Mundo é Meu (1964).

Meu Pé de Laranja Lima supera sensores para cortar/contar essa época da arte brasileira com amostras de pobreza, mas de esperança. Retratos crus, a mistura do rural e do urbano, da sociedade ainda muito religiosa, do crescimento das cidades, da passagem do bastão das gerações. Dos portugueses incorporados à sociedade brasileira: amigos? Confessores? Por que não?

Zezé encanta por seu senso aventureiro, por não se intimidar, briga e busca melhoras pelos irmãos, chega a brigar com menino maior do que ele. Luta contra as desigualdades, sonha planos para si e pelos outros, roga contra Jesus que o teria abandonado. Não é fácil ser criança. Toda a romantização da infância esquece de muitos exemplos. O escritor José Mauro de Vasconcelos não nos deixou esquecer das agruras de um Brasil profundo e relativamente recente. Talvez da nossa janela para fora ainda hoje.

10/07/2025

Beautiful City (2004)

Beautiful City é um filme do diretor iraniano Asghar Farhadi. Mais uma obra-prima do cinema do Irã, pejorativamente conhecido por ritmos lentos, mas apreciadamente elogiado por temas humanitários, levados na presente película ao extremo. Considero este, ao ponto de terminar de assistir, como o filme com questões humanas, de escolha, de concessões, como o mais difícil nesse aspecto. Qual o limite do sacrifício para salvar outra pessoa? Quais são os limites da memória e o quão saudável pode ser - entre aspas - o esquecimento?

A'la é amigo de Akbar. Ambos foram presos no centro de detenção juvenil. Akbar está condenado à morte, por ter assassinado a filha de um homem, com a qual namorava e pretendiam casar. Akbar cometeria o suicídio e mataria a menina junto, para que ela nunca mais pudesse conviver com outro. Interceptado, Akbar matou somente a companheira, não tendo conseguido efetuar sua própria morte. Ao longo de dois anos no centro de detenção, até completar 18, tentou o suicídio algumas vezes, monitorado, impedido e sem sucesso. Então, ao chegar à maioridade, é levado embora, onde, pelo julgamento das leis, seria executado na forca. Aplicações ainda existentes do milenar Código de Hamurabi, que ouvimos na escola.

A'la se torna o personagem principal do filme. Condenado para o centro de detenção por roubos, ele está prestes a sair. Faltavam 28 dias. Ele combina com o diretor do Centro que sairá por uns dias para convencer o pai da jovem assassinada por Akbar, a desistir da pena de morte para o assassino. O perdão do velho pai de família serviria na Justiça para descondenar Akbar, que aguarda trancafiado e sem esperanças.

A'la, para obter todas as informações que precisa em busca do perdão para Akbar, acaba se envolvendo com a irmã do amigo. Se envolver leia-se da forma romântica que poderia ocorrer entre dois jovens com objetivo único: a libertação de Akbar. Alerta-se que o filme não é romântico, é sobre os extremos que as decisões podem custar. Será que A'la pode abrir mão de escolhas, como a mão da jovem em casamento, para salvar a vida do amigo? Será que a irmã de Akbar concordaria em casar A'la com outro e continuar seu martírio com um homem que ela não ama?

Quanto ao perdão, qual o limite de sanidade, do religioso, do vingativo e da concessão que um pai pode fazer pela filha morta? É possível perdoar o assassino? Este senhor que já havia perdido a esposa do primeiro casamento, vivia com a segunda e, com esta, possuía uma segunda filha, com deficiências físicas. Uma vida tão sofrida justificaria o sentimento de Justiça pela morte do assassínio?

A segunda esposa do pai sofrido também estava infeliz. Ele sendo tão infeliz impedia a continuidade da vida familiar, amargava ainda mais um ambiente já naturalmente afetado pelas deficiências da segunda filha. Para adiantar a condenação de Akbar para forca, um dote financeiro poderia ser depositado para acelerar a tarefa da Justiça. O homem iria preferir reunir a grande quantia para arriscar uma cirurgia de salvação para sua segunda filha ou para condenar de vez o assassino da primeira? Como apontado logo ao início desta resenha, é uma trama muito bem costurada e que testa a empatia e os cenários de atuação que porventura poderiam ocorrer na vida real.

Ao longo destes anos, observando histórias reais e fictícias, desenvolve-se a apreciação das questões sem a faca erguida para o julgamento rasteiro e precipitado. Ao longo do filme de Asghar Farhadi, em nenhum momento me senti confortável para bater martelo sobre as decisões que estavam ou não sendo tomadas. Não há santos. Todos possuíam suas razões. Mesmo a bondade de A'la ao arriscar tudo pelo amigo era contraditória ao ser um ladrão condenado por roubos e também deixar-se envolver romanticamente com a irmã do amigo. O sentimento dele também era o de tentar salvá-la de um casamento arranjado, problemático e triste. E o sentimento de tentar ajudar a família do pobre homem condenado, com a lembrança da esposa e da filha falecidas e tendo que cuidar de uma terceira com limitações. As limitações eram como a rua que cortava a frente da casa da irmã de Akbar: com um trilho. Um trilho que pode levar aonde? Quantas e quais fugas são possíveis? Quantos cadafalsos devem ser encarados de frente e sem escolhas? Quais os limites da religião, da Justiça e das palavras do Corão?

Discussões políticas, jurídicas, religiosas, financeiras e familiares postas em 1h40min de filme, agonizantes pelo drama e suspense suscitados. O desfecho em aberto segue a torturar o espectador sobre como teria agido e como será que termina o destino dos personagens?

Nota final ficaria em 4,5, mas a permanência do que envolve e nos afeta sugere 5.

🌟🌟🌟🌟🌟




08/07/2025

Primavera Cambodiana

Filme de Chris Kelly, que demorou seis anos para ficar pronto. Isto porque o acompanhamento foi completo durante um período belicoso entre os cambodianos e o primeiro ministro Hun Sen. O tema do documentário é um projeto audacioso de prédios ao redor de um lago, parcialmente até aterrado, enquanto os moradores, originários ribeirinhos, eram obrigados a deixar suas casas, que subitamente seriam destruídas enquanto eles seriam mal alocados ou até não indenizados. Um ultraje das ocupações por projetos de construção civil desordenada, tema comum para países ditos em desenvolvimento  quando áreas propensas à ocupação são invadidas pelas multinacionais e/ou projetos mirabolantes, geralmente em busca do lucro acima de quaisquer preocupação com o meio ambiente. Assim, a capital do Camboja vivia essa situação que afetava dezenas, até centenas de famílias.

O Camboja é um país asiático pouco abordado nos noticiários, mas todos os tristes relatos foram gravados, aliás, uma modernidade a serviço da prestação de provas por parte dos interessados em demonstrar as ações truculentas da polícia e dos subordinados ao tiranismo governamental, enquanto pequenas veias de ira rebelde pulsam para tentar evitar o colapso de comunidades, como a ribeirinha demonstrada. A presença de celulares nas mãos da humilde comunidade, e até do monge protagonista na trama, chama a atenção, pois também se imagina como eram as injustiças cometidas em protestos antigos em que apenas a palavra de ordem oficial era válida, sem provas a refutar.

"Nós monges dependemos das pessoas. Se elas não têm o que comer, nós também não temos", afirma o monge Luon Sovath, espécie de protagonista no documentário cambodiano.

Quanta diferença dessa visão humilde do monge para o chamado evangelistão que se tornou o Brasil, com os pastores a extorquir a população mais carente com dízimos e contribuições abusivas sobre o salário dos mais pobres, necessitados de auxílio e com suas parcelas mínimas surrupiadas.

"Eles não querem que os monges se envolvam em questões sociais. Mas, para mim, as questões dos aldeões são minhas questões."

"Existem 40 mil monges no país e o comportamento deste pode comprometer a reputação de todos. A religião agora pertence ao governo."

Quando um julgamento era armado para condenar os considerados baderneiros - que apenas defendiam seus direitos de moradia e terra - um dos oficiais apresenta uma lei escrita que afirma que os monges não podem participar de protestos, manifestações políticas, greves ou quaisquer movimentos que causem desordem ou conflitos. "Você acha que esse é um comportamento correto para um monge?"

"Como defensor dos direitos humanos, amo a todos igualmente. Quero viver em um país onde todos sejam respeitados. Minha missão é proteger vidas como o Buda tem a missão. Eu prático o budismo mais puritano" - insistia Sovath, que começou a ser perseguido, ameaçado de excomunhão e prisão, retaliado até com ameaça e morte, até finalmente passar um tempo fora do país, em asilo político nos Estados Unidos, onde seu celularzinho servia de câmera agora para os prédios da grande Nova York e suas orações e palavras de fé e solidariedade serviram a discursos para público político, jantares e alguns noticiários internacionais. A situação do Camboja e a injustiça não poderia passar totalmente impune. Ou poderia, vide a desgraça da ocupação e destruição das terras palestinas, envolvendo milhares, até milhão de pessoas?

Segundo estimativas, cerca de 95% dos cambodianos professam a religião budista. Ou seja, seguem preceitos e respeitam as colocações dos monges. Sovath era uma voz de liderança muito respeitada pela comunidade afetada. A simples presença dele encorajava os locais a lutar pelo que consideravam certo e justo.

"Logo não existirão mais pobres aqui. Eles não querem gente como a gente vivendo em sua bela cidade."

Para parte final do documentário, cenas fortes são registradas quando algumas da moradoras, sendo mães de crianças, haviam sido presas. Passaram meses fora, encarceradas e as crianças tomaram voz ativa, com uso de alto falantes e participações em protestos: além de defender as casas, defender suas matriarcas.

Isso lembra um filme nacional que falava que deveriam derrubar as pátrias pelas mátrias, trocando de forma inteligente a origem e o sifnificado geral da palavra. Interessante. As crianças, cada vez mais novas, lutavam por seus direitos, pelo direito à moradia e de voltarem a conviver com suas mães. Imaginem a agonia mútua entre essas diferentes gerações das mesmas famílias afetadas.

Outro ponto peculiar do filme sobre o Camboja é quando um representante do primeiro ministro do país, ou da prefeitura da capital, algo assim, reserva um discurso, um suposto acordo com os moradores, mas, quando convoca alguém para falar em nome da comunidade presente, escolhe uma pessoal com quase nenhuma relevância ou liderança para as moradoras. Essa pessoa leria uma carta de agradecimento ao governo. Ela é calada pela plateia que protesta sua eleição como representante popular. Isso ainda serve de pretexto para o político acusar os moradores de serem desunidos. Sendo que foi o governo que elegeu aquela representante, provavelmente com alguma espécie de propina, com a compra de sua opinião mediante alguma vantagem presente ou futura. As demais moradoras alertam para as câmeras: "bem que ela andava sumida. Deve ter se vendido ao governo". Quantas pessoas passam por situações semelhantes no Brasil e em outros países? Quando o dinheiro compra opiniões, votos e decisões políticas, seja de pessoas atingidas na moral, na qualidade de vida, ou até ou principalmente nos congressos entre os magistrados. Nas decisões de juízes subornados. Subordinados a patrões visíveis ou invisíveis.

O filme cambojano ajuda a explicar porque o Camboja, de quase 20 milhões de habitantes, aparece entre os Estados mais pobres, desiguais e pouco democráticos, corruptíveis na Ásia. Uma oposição direta aos bons resultados, por exemplo, da promixidade de Singapura, conhecida por altos padrões de tecnologia e redes de internet. Quando se observa de longe, se costuma arrematar países e populações com preconceito, estereótipos e unicidade, como se as pessoas também fossem diretamente responsáveis por seus governos e decisões. Porém, de perto, caso a caso, se percebe a imensa desigualdade, a falta de transparência, critérios e complacência com o povo. São milhões de injustiçados pelo mundo. Sejam trabalhadores em regime análogo ao escravismo, pessoas impedidas de voltar a suas terras e casas, de professar suas crenças e hábitos. Com olhos semicerrados, a ONU e outras organizações monitoram tristes episódios. Nós, sempre que possível, aqui abordaremos.

A nota final para o Doc Primavera Cambodiana, que inclusive ocorre em época muito semelhante, adjunta aos protestos iniciais brasileiros de 2013, ou da mais famoso Primavera árabe na Líbia, a nota final fica em:

🌟🌟🌟🌟🌟

Visto em Julho, 2025.

Disponível no MUBI

12/01/2025

O Profanador de Azeitona

Ele achou que não seria pego. Desconfiava de um vizinho que não revirava o seu lixo, mas só faltava aparecer de binóculos na janela, atento a cada movimento. Aconteceu algumas vezes, ele não poderia negar caso a pergunta fosse feita no tribunal. Isto se ele tivesse direito a um tribunal, porque a sociedade o condenaria, na opinião pública, como um crime inafiançável.

Em casa, elas eram bem separadas. Eram pedaços pequenos, que passariam facilmente despercebidos, envoltos nos sacos plásticos descartáveis. Em casa, pelo visto, através dos meses, ele conseguia passar impune. Depois tudo ia para o caminhão do lixo e nunca saberiam quem era o responsável por aquele crime.

Mas um dia ele foi pego na saída da porta do apartamento. Achou que o vizinho, bisbilhoteiro mas alcoólatra, estava por dormir, mas surpreendeu-o parado, preenchendo o perímetro do espaço da porta como um goleiro à espera da chegada adversária. O profanador de azeitona se assustou. Deixou cair a sacola e as bolitas escuras se esparramaram pelo chão. O vizinho pinguço não podia acreditar no que via com seus próprios olhos - auxiliados por lentes de grau 3. As azeitonas preencheram o chão dos apartamentos do segundo andar como se fossem as bolinhas de borracha após uma partida de futebol sete em campo sintético. A prova do crime gritava urgência. O vizinho até gostava dele, mas tal chamado à justiça não poderia tardar. A denúncia precisava ser feita. Primeiro manifestou um grito, não dos mais altos, mas o suficiente para a outra porta daquele andar abrir-se e averiguar a bagunça, a cena imperdoável. As azeitonas deitadas, espalhadas por tudo. 

- Eu posso explicar - disse trêmulo diante das testemunhas.

- Vá tentando - encorajou a vizinha do apartamento diante do dele. O alcoólatra era vizinho lateralmente.

- São... São... um amigo jantou aqui. Ele não come. É coisa dele. 

- Eu bem que desconfiava - disse o bafo de cachaça. - Você tem hábitos muito estranhos. Parece sempre se esgueirar por esse prédio. É u gatuno - e deu uma risadinha, mas ninguém acompanhou nos sorrisos.

- De qualquer forma entendo que... que sou cúmplice. E na verdade a culpa parece recair só a mim. Mas é dele, eu juro!

- E você não tem vergonha? Encobrir uma porcalhada dessas? Azeitonas fora? - A vizinha estava incrédula.

- Eu... eu... Eu não sei o que dizer. - Roçava a testa com a chave da porta, único item que lhe sobrava nas mãos, que haviam perdido sacola e azeitonas para evidência criminosa.

- É nosso dever não só informar o síndico, mas autoridades competentes - disse o engenheiro aposentado. 

- Logo tu! - Manifestou no gauchês mais rude e intimidador que conseguiu. - Um velho alcoólatra com ficha criminosa violenta de atos passados. Até coisa hedionda, velho burguês!

- Tive sim, acusações. Acusações, veja bem. E fui inocentado. Agora isso que estamos vendo. Eu por trás dessas gafas velhas. Isso não se pode tolerar. Eu mesmo saco o celular. - Se prontificava com a língua no canto da boca e os dedos ágeis mas embaralhados a discar o número policial.

- O Vieri tem razão. Uma cena dessas em pleno nosso prédio, diante de nossas portas, de nossos apartamentos, é intolerável. Disque, senhor Vieri. 

Nisso, o síndico chegava também grogue, atônito, ao mesmo tempo curioso por aquela movimentação na calada da noite. De sacolas de supermercado na mão, inclusive preciosas azeitonas, ele assistia àquela profanação em tempo real. Bolotas por todo o corredor, talvez algumas mergulhando degraus de escada.

- O qué passa? - Invocava algo fronteiriço em sua pronúncia dos tempos vividos no Rio Grande. 

- Estamos diante de um profanador de azeitonas  - continuava furiosa a mulher.

- Um profanador de azeitonas?

- Um incontestável. Assistimos em flagrante, não é, senhor Vieri? - E deixava escapar uma lágrima de fúria no canto do olho.

- Evidentemente. -  Terminava de discar o velho. - Alô, policial? Sim. Sim. Sim, no bairro da praia. Uma denúncia estapafúrdia, policial. Um profanador de azeitonas! Sim! Não ouviu errado. Sim, estou tentando ficar calmo. Já passei por um infarto, mas boletim igual a esse não é todo dia, não é mesmo?

O profanador de azeitonas parecia aceitar a denúncia, não obtinha mais reação. O síndico o encarava como criminoso que se mostrava ser. Parecia surpreso, curioso, mas o olhar já inquisidor diante da perversão presenciada.

 - Gostaria de denunciar seu amigo, caro cúmplice? - Provocava o velho. A boca entre conversar com os presentes da cena do crime e para o policial ouvir do outro lado da "linha".

- Vou assumir a responsabilidade dessa sacola, mas mais nada! - Exclamava entre conformado e agressivo.

- De evidência só temos essa sacola mesmo... até o momento - dizia a mulher.

- A senhora não se meta! - Disse o profanador.

- Não me levante o tom de voz. O acusado aqui é você. Mais do que acusado, praticamente um setenciado.  Espero que joguem a chave fora.

- Se for coisa de chave...  - Arriscava um manifesto o síndico, senhor Nilton, para não ficar de todo calado. Havia certa reputação e valores a zelar. Também, embora conhecesse bem e até frequentasse o apartamento do réu, não queria que os demais pensassem que ele compactuasse com a prática criminosa. Isso abalaria inclusive sua posição sindical. 

Enquanto o papo se estendia na espera pela polícia, o acusado calculava uma possível rota de fuga. O joelho que o atrapalhava para jogar bola fazia década agora era um problema maior, pois não teria como fugir no lento elevador, em que um cotovelo de Ana do 202 poderia impedi-lo inclusive de entrar na nave. E para descer as escadas, bom, eis o joelho canhoto problemático.

- A polícia vem em cinco minutos, meus caros. - Alertava o tratante da ligação. - Tinham mais duas ocorrências locais, mas esta, naturalmente, discorre em prioridade. - Falava muito polido e tentando transparecer a elegância que suas noitadas de bebedeira faziam desaparecer.

- Já tive um primo detido por questões assim. - Arriscava baixar-se a crista Ana do 202. Ficou com o rosto fora do alcance dos demais enquanto meditava. E acrescentou: - Nunca mais soubemos dele.

- Lembro do conflito pelos tomates. - Deixou marejar os olhos o velho Vieri, já de telefone novamente disposto ao repouso do bolso. - Coisas que nem queremos lembrar. - E ameaçou retirar da carteira a foto da falecida mulher por quem, passadas algumas latas de cerveja ou goles destilados, ele rememorava inutilmente, sem sequer obter o apoio moral dos demais inquilinos.

- O conflito dos tomates, sim... - Acrescentou Nilton, querendo demonstrar experiência com o assunto, voz ativa de síndico, ao mesmo tempo que percebia transparecer demais a idade, algo que ele tentava ocultar ao pentear os poucos fios de cabelo para o lado, na tentativa de disfarçar a crescente calvície. 

Vieri, que, apesar de notoriamente mais velho, tinha mais cabelo, se encorajou a prosseguir. - Foram dias angustiantes. Nunca se perdoou aquele desperdício de safra. Muitos agricultores foram enforcados, outros tantos foram depostos de suas terras e o rigor das leis chegou a esse ponto sobre o desperdício de azeitonas. Vocês sabem, se comprou com azeitona, há de comer a azeitona. 

- Há de comer - recitaram os vizinhos em coro, com exceção, é claro, do acusado.

Calculando seu tempo de fuga eram menos de dois minutos e meio, se houvesse precisão na previsão de Vieri, até os policiais, armados até os dentes, adentrarem o prédio e, amparados pelas testemunhas, como se precisassem delas para agir com violência, encarassem a situação do acusado, o botando para o chão com revólveres apontados para sua nuca, enquanto o rosto mergulharia no piso, profanando, esmagando, cheirando aquelas azeitonas esparramadas. 

Pensou nas consequências de seus inegáveis atos e resolveu agir. Ignoraria a presença do Nilton e passaria por cima de todas as dificuldades, incluso do joelho que o ameaçaria tornar-se manco. Valia o risco em busca da frágil liberdade condicional - ou seja, como fugitivo.

Surpreendeu as testemunhas e saltou em desabalada carreira para vencer o pequeno corredor, deixando para trás as portas dos vizinhos em questão (menos Nilton, que morava no andar de cima), vencendo as evidentes azeitonas e ganhando rapidamente a estreiteza dos degraus, que mal cabiam seus pés, que quase não os tocavam, esvoaçante, cintilante fugitivo. A demora das reações demais se confundia entre o apavoro diante da petulância e mesmo a falta de reflexos para agir, pois se tratavam de um homem de meia, quase idoso, um idoso alcoólatra (que passara por infartos, como seguidamente recordava) e a Ana bisbilhoteira e nada atlética, que para serviços mais dinâmicos mesmo de limpeza necessitava do marido.

Os três ficaram atônitos até começarem a se mexer, quando o suspeito (na melhor das hipóteses para ele à essa altura) ganhava a primeira condicionalidade de sua liberdade, a porta do prédio, que abria tranquilamente para quem quisesse sair, mas necessitava de chave a quem quisesse voltar/entrar. Mais sorte ainda ele teve quando outra vizinha, dona Maria de Fátima, entrava também alvoroçada pelas sacolas que trazia fora de horário da farmácia. A corrida desabalada do suspeito fez com que ela tomasse também tamanho susto, jogasse parte dos conteúdos com sacola e tudo para cima e quase emulasse o senhor Vieri com seus micro infartos.

O profanador de azeitonas ganhou a rua. Ele pela primeira vez, já imaginado diante do júri (se houvesse júri), agradeceu à administração municipal pela iluminação pública deficitária, que agora lhe conferia abrigo contra os inquisidores. Enquanto corria pela rua, nem tão rápido que fosse impossível caçá-lo, nem tão lento que o joelho tenebroso estivesse em conforto, notou mais pessoas dispostas a prender o agressor da tolerância, o violador dos bons costumes. O boato, o fato se espalhava rapidamente pelos grupos virtuais. O que era fato logo era acrescido de boatos. O que era boato logo recebia colheradas do fato. A história ia e vinha, misteriosa, aguçadora da curiosidade, chamativa para que os indignados saíssem de suas casas e buscassem a justiça, nem que fosse com as próprias mãos. A polícia estava a par do caso. Duas viaturas já não eram suficiente. Melhor chama reforço para além da praia. O profanador poderia estar saindo do bairro. Situação lamentável para a pacata região, rodeada de coqueiros, palmeiras, acolhedores bancos de praça que os vizinhos utilizavam no cair das tardes para compartilhar conversas, chimarrão nos costumes do Rio Grande depositados ali, além de calçadas largas e geralmente limpas, pois na cidade se honravam as azeitonas e também o hábito de recolher o que os cuscos encerravam por digestão.

Ele foi zigazagueando muros e árvores e bancos de praça. Fugindo da luz. O gatuno fugitivo - e lembrou da risada infame do velho Vieri. O velho maldito importunara seus planos. Ele era o culpado. Ele quem jogava as azeitonas fora. Não teriam provas antigas, mas aquela evidência bastava. Testemunhas. Confissão de crime. Enquanto fugia na carreira que todavia era desabalada, o profanador pensou que poderiam pedir opinião de lixeiros e outros vizinhos e os malditos testemunhariam contra ele. Que havia algo de estranho naquela lixeira comunitária sim e só poderia ser do inquilino do 203. Que era um vizinho esquisito, de hábitos noturnos, insone, que fazia barulhos no apartamento em alguns horários inoportunos. Inoportuna era aquela situação como um todo. Não haveria necessidade de acrescer paranoia. Era concentrar-se nos planos de esconderijo. Lembrou do clássico Homem Nu de Fernando Sabino. Ele não estava fugindo nu, mas, se no conto premiado do escritor mineiro, o protagonista lutava mais contra a vergonha mor do que a condenação da Justiça, ali ele estava, não ficcionalmente, lutando pela liberdade do seu ir e vir, se a polícia repressora não desse um jeito de sumir com ele, profanador das ditas azeitonas.

Enquanto infiltrava-se astuto no mundo das severas sombras, ouvia os ruídos apetitosos dos sedentos por justiça com as próprias mãos. Deveria ser apenas delírio e paranoia que até tocha de fogo, como nos clássicos antigos filmes em preto e branco ele viu moradores carregarem. Porém o breu das ruas em que se metia era tão pesado, que ele mal enxergava 10 metros adiante e as tochas ou as mais modernas lanternas de led ou celulares viriam bem a calhar na busca, na caçada dos cidadãos.

O blasfêmio tentou um golpe de mestre após praticamente sair dos limítrofes do bairro. Fazendo um caminho inverso, mas por outras ruas, seu destino era voltar para casa, onde os cidadãos estariam ou dispersos ou já tomando remédios para dormir após tamanho infortúnio. No caso de Vieri, a pinga daria conta de romper com a disposição do vizinho de porta. O profanador perdeu a noção do tempo em que esteve fora do apartamento. A madrugada conforme se estendeu também dava traços de entrega. Os primeiros raios da manhã apareceriam tímidos.

Sem exagero, já apareciam em poste que outro, em muro que outro sua foto estampada com direito a código para acessar maiores informações do caso. A polícia, mesmo em cidade pequena, estava a toda em prontidão. O próprio acusado não recordava a última vez que algo hediondo como profanar azeitonas havia ocorrido não só naquela comunidade, mas no estado, tido como dos mais seguros do Brasil. Um crime como esse poderia, inclusive, tentar ser abafado, sumindo com o indivíduo, ocultando o corpo. A internet, nesse caso, poderia jogar a favor dele, pois o caso em poucas horas já estava registrado, porém, tão rápido como eram divulgadas, as informações também poderiam sumir e dele não se saberia mais. Pensou em familiares distantes. Será que lembrariam dele? Exigiriam investigações que não ocorreriam? Além do mais, a opinião pública pouco ligaria para um criminoso desse calibre. A maioria setenciaria que o que tivesse ocorrido foi justo e que o inferno, ou o que o valha, lhe aguardava.

Se aproximando dos fundos do prédio, faltando apenas mais um muro, tentaria ele se esconder pelos fundos da garagem até que pudesse, de repente, arrancar com o próprio carro, na distração dos que ainda rondavam por ali. Não era o melhor dos planos, ele admitia, mas o labirinto de ruas o levava para casa de volta. À chave do carro tateada no bolso, era possível, sim, interceptar o carro e tentar uma fuga motorizada. Claro que ele tentou arrombar um ou outro carro no caminho, obviamente sem sucesso pela falta de prática. Mas profanar azeitonas, blasfêmia dessa forma era bem pior.

Pulou o último dos muros que o separavam daquela aparente breve segurança. Um vão atrás da garagem, suficiente para escutar e até cuidar visualmente movimentos da garagem do prédio, que, apesar do escândalo, precisaria aparentar alguma normalidade na rotina. Se o quisessem eliminar, como poderia ser o plano, ele imaginava, não totalmente desconexo da realidade, a vizinhança teria que persegui-lo, mas sem um total de alarde - além dos nada discreto cartazes que o próprio fugitivo já havia visto. Estaria ele procurado em rodoviárias?

Enfim, saltando de volta para propriedade que englobava aquele microcosmos de condomínio, tomou um susto tão grande ou até maior do que os condôminos haviam tomado na noite anterior. Diante daquele espaço, daquele recôncavo, daquela câmara, daquele vão que talvez muitos nem sabiam existir atrás da garagem/estacionamento, ele viu o que os olhos demoraram a crer: eram sacas e mais sacas de azeitonas. Azeitonas profanadas por quem? Por seus vizinhos.

02/01/2025

Sapphire (1959)

Sapphire é um filme inglês de 1959, que decorre das investigações sobre a morte da jovem homônima (Sapphire, né), em que a polícia local deve percorrer as pistas entre uma família burguesa tradicional, a do então namorado de Sapphire, clubes de dança, pensionatos e demais lugares que levem a desvendar o mistério.

O tema racial é a grande cartada do filme inglês, mostrando o preconceito da sociedade britânica com os negros, cada vez mais frequentes na Londres e na Inglaterra como um todo. Esse filme pouco visto no Brasil chama a atenção para o tempo percorrido entre a sociedade inglesa do final dos anos 1950 para o período em que estamos, mais de 70 anos depois. E o que muda? Como são tratados os jovens hindus, negros, muçulmanos e demais minorias dentro da Inglaterra?

Durante a investigação, os próprios protagonistas da polícia assumem opiniões e percepções divergentes, sendo um dos investigadores mais liberal (ou ao menos imparcial na busca pela resolução do mistério), enquanto o outro vez por outra tece julgamentos, sugerindo inclusive que os negros voltassem de onde vieram. O companheiro, calmamente, pergunta: quando há um crime contra uma velha senhora deve-se eliminar os maníacos causadores ou eliminar as velhas senhoras? É o caso da morte da polêmica Sapphire, uma jovem filha de mãe negra e pai branco, julgada por ambos os lados em sua condição mestiça. Um de seus parceiros de dança, em depoimento, chega a afirmar que não gostaria de um envolvimento mais sério com a jovem, por conta de sua origem em família meio branca. O pai do rapaz não aceitaria.

Mas evidentemente os preconceitos que Sapphire sofre são de origem dos brancos, que não aceitam a presença dela em seu convívio. Pelo âmbulo da narrativa, outros personagens, como o capturado Johnnie, também passam pelas garras do preconceito, sendo rejeitadas ajudas enquanto é fugitivo, expulso de um bar e sofrendo depoimentos severamente agressivos por parte da própria polícia, que não está, apesar da maneira mais sutil, isenta das críticas na obra.

Um filme que prende de certa forma o espectador na espera pela resolução da resposta de quem matou Sapphire. As contradições, as mentiras, as percepções e os depoimentos conduzem a narrativa por caminhos sinuosos de uma Londres cosmopolita e desigual, recheada de preconceitos, de convívios complicados e de questões raciais, como propõe a sinopse do filme, que mais tarde causarão ainda mais polêmica e tensões na Inglaterra.

Em meio a tantos filmes rasos de crimes pelos crimes, de investigações policiais focadas apenas em métodos e para iludir jovens espectadores com expectativas de cumprimento de leis e ordens, Sapphire demonstra novas perspetivas sobre casos raciais que também suscitariam tendências fortes para recriminações, processos e protestos nas décadas seguintes nos Estados Unidos, por exemplo. E que, bem sabemos, pelo mundo, mas pelo próprio Brasil, ainda há muita desigualdade em formas de tratamento: policial, social e repercussão midiática - esta última que até não é o foco da narrativa Sapphire, mas poderia ser mais abordada.

19/12/2024

Minuano sopra

Será possível clonar espírito?

Precisaria de um amigo

Evitaria muitos ritos

Minha confiança é meu cupido 


Não existe justiça

Meu castiçal 

Não não não - disse pra nau 

O inferno também é tropical


A brisa judicial

Uma premissa antes do final

A baliza da justiça 

Derrubaram os pau

A justiça nos estaciona muito mal

Vamos continuar 

Em movimento afinal


Afinação, a fina ação 

De viver 

Minuano sopra 

Só pra mais um ano

O bem querer


Minuano sopra 

Só pra contrariar 

A franja, os planos 

Os frangalhos

De ano pra juntar 

31/07/2024

A cadeia

Temo mais a cadeia do que a morte. Tenho isso comigo há muitos anos, talvez desde a infância. Repito, mas não sei se da boca para fora, porque não passei pela cadeia nem pela morte. Por enquanto, mantenho minha opinião.

Assisti a dois filmes em sequência sobre a temática. Não sabia que eram relacionados. Ou possivelmente relacionados. Assisti a Os Miseráveis (1935), de inspiração do livro francês de Victor Hugo. O autor designa que enquanto houver pessoas condenadas a pagar mesmo após suas condenações, condenadas a serem eternas presidiárias, a história se manterá atual e justificada. Por isso é um clássico.

Jean Valjean de Os Miseráveis roubou um pão para alimentar sua miserável família e foi condenado à pior prisão possível. Sem fiança. Sem novas chances. Após fugir e ter nova chance concedida por um sacerdote, ele prospera e adota a filha de uma empregada que era explorada em seu trabalho. Mas o passado do lorde acaba vindo à tona e ele se torna procurado pela dita justiça. A perseguição nunca termina. As lutas grevistas por direitos atravessam o filme em uma nova geração, capitaneada pela filha adotiva de Jean e o affair por um protestante. A temática gira em torno do julgamento severo e rotulatório sobre um apenado por um crime de básica necessidade: o direito à alimentação.

Em Whispering Pages ou Páginas Ocultas do diretor russo Alexander Sokurov, o jovem andarilho errante admite ter assassinado a velha de uma das ruas pela qual circula. O filme de 1994 dialoga com o clássico russo Crime e Castigo de Fiodor Dostoievski - perdoem a grafia que nunca sei como o cito nessas páginas.

O filme mais recente trafega a contagotas por paisagens urbanas inóspitas, com o cinza, a miséria e a pobreza em abundância. Confidente, o jovem tem num dita irmã a anunciação de ser o autor da morte da idosa. A conversa entre eles circula por temas como religião, culpa, o crime e o castigo do título da obra em prosa. A irmã, religiosa, pede que ele se ajoelhe e se confesse perante a sociedade. Ele debate com a mulher: "você reza a Deus, mas o que ele faz em troca por você?".

O sentido vaga pela desorientação e desesperança do jovem desclassificado, pobre, de andar errante, porém inerte. Não há a mostra do crime em si, apenas a confissão e as incertezas de como sobreviver, independente do assumir de um óbito ou não.

Os cometimentos criminais são distintos nas histórias, nos livros e filmes. Livros que ambientam filmes. A justificativa de Jean Valjean é mais fácil de assimilar, de defender, de revoltar por seu destino implacável em perseguição trágica que lhe impõe a dita justiça francesa. O crime que Raskolnikov comete no original dostoievskiano também pode contar com a justificativa imputada, atribuída, mas a aceitação é conversão mais duvidosa perante os conhecedores da trama.

Independente do cometimento, como nossa sociedade lida com essas forças, com esses tabus? Que respostas damos e são aplicadas? Como julgamos a todo curso os delitos passados? Que tipos de sombras nos percorrem e muitas vezes nos nocauteiam com o passar dos anos? Quais pães roubamos e velhas assassinamos e de que formas pagamos no cotidiano? Como se comporta a Justiça que a uns ladrões de galinha (ou pão) deveras condena enquanto magistrados, desviadores, latifundiários, corruptos, ocultos por laranjas, sonegadores permanecem imunes? Quantos Jean Valjeans ficam em cárcere por pequenos julgados delitos, quantas senhoras burguesas permanecem recebendo aposentadorias diante da fome marginal? Quantas justificativas podemos atribuir a cada um deles? E a nós mesmos.

20/01/2022

Samba triste ou MPB?

A propaganda nos invade 

Como o lixo invade os mares

Como o lixo invade os mares

A propaganda nos invade

Invasivo

Ministério de Damares

Ministério de Damares


A multa da imobiliária

É quase o valor

Dos meses que faltam

O capitalismo

Jogando de presa em alta

Jogando de presa em alta

O primeiro drible é feito

Nos desarmam e não tem falta

Desarmam e não tem falta

O juiz é companheiro

Dessa turma falcatrua

Roubam tanto quanto é dia

Quanto sob a luz da lua

15/12/2021

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Este filme me coçou os dedos para escrever sobre ele na primeira vista. Mas na segunda aparição dele na minha tela vocês não conseguiram fugir. 'Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre' - começo destacando a peculiaridade, a sensibilidade da escolha do título para esta obra que já nasce clássica. Nasce em demonstração, em acolhimento a todas as meninas, a todas as mulheres que precisam passar pelo que a personagem principal precisa: o aborto. É preciso dizer que este filme norte-americano supera várias barreiras que o cinema característico do país acaba deixando a desejar, por exemplo, a sensibilidade na direção. Nada de efeitos especiais ou cenas forçadas com trilha sonora e cortes rápidos. O filme é propositalmente deixado a correr, para sentirmo-nos mais e mais na pele de Autumm (Sidney Flanigan), a menina que conduz o filme com brilhantismo em sua atuação.

Não por acaso o nome dela é Outono, na tradução. Autumm passa o filme inteiro com a cara amarrada, o semblante fechado, e não é por menos. Desde a primeira cena, o ritmo do filme está ditado. Autumm se apresenta em uma espécie de show de talentos da escola, canta e toca violão, mas não é bem recebida pelo público. Logo saberemos que a bronca que os meninos têm com ela, ou o que poderia ser encarado como bronca de Autumm com os meninos, não é por acaso. Ela está de relacionamento finalizado, está em processo do começo de gravidez e tem pouquíssimas pessoas com quem contar nessa missão de evitar um nascimento nada desejado. Autumm logo percebe que não pode contar com o apoio familiar, como tantas e tantas meninas também não podem pelo mundo inteiro, seja por costumes, seja por legislação, crenças, religiões, ou conduções sociais que minimizam a opinião e a escolha da mulher sobre seu próprio corpo. Assim, em plenos Estados Unidos, Autumm, uma adolescente da Pensilvânia, recorre a outro ponto muito em comum e que talvez tenha aguçado minha atenção em relação ao filme como um todo: a viagem do interior do país para uma capital, para uma cidade de porte onde poderia realizar o procedimento, o aborto. 

Esta também é uma situação comum a muitas jovens, a muitos jovens, pessoas aí independente da idade que necessitam de consultas médicas com especialistas mais renomados ou experientes, e a partir disso se deslocam em viagens às vezes longas, com dificuldades financeiras para enfrentar ônibus ou aviões. Para Autumm, havia o agravante de que não queria ficar marcada, identificada em sua pequena localidade como a menina do aborto. Para além do preconceito que poderia sofrer comunitariamente, os próprios médicos às vezes não autorizam o tipo de procedimento, polêmico como é um aborto. São situações que às vezes fogem da alçada dos clínicos, profissionais, cirurgiões, e passam pelo crivo severo da lei que proíbe o aborto. Enfim, Autumm passa por dificuldades a nível social e legislativo, podendo sofrer as sanções do julgamento pelas demais pessoas ou perante mesmo um júri. Complicada a missão da moça, que precisa recorrer então para essa ideia em uma clínica da grande Nova York, uma das maiores cidades do mundo.

O filme se desdobra recheado de cenas de agonia ou angústia, ao menos. Gosto de imaginar esse tipo de filme, conforme um de meus diretores favoritos Alfonso Cuarón - ou mesmo o polonês Krzystof Kieslowski, trabalha com a consecutividade das angústias, parto de uma metáfora de que são como as sucessivas ondas do mar em movimento. Ao vencermos uma, logo nos deparemos com a próxima que pode nos sucumbir, nos afogar. Precisamos vencer todas, sairmos invictos ou de nada adianta, nada feito. E Autumm é uma guerreira durante todos os rolos de filme. Com sua postura reservada, de quem não tem muito em quem confiar, ela permanece calculista, introspectiva, guiando suas sensações através de uma atuação que - volto a dizer - beira o impecável em suas reações. Conseguimos senti-la, identificar-nos em suas atitudes mais retraídas e misteriosas. Como não pensar o que se passa na mente de uma jovem nessa situação delicadíssima?

A amiga de Autumm a acompanha até Nova York. No ônibus a caminho da cidade grande, um rapaz se interessa pela amiga e, insistindo, puxando assunto, consegue o número do telefone dela. Eles voltariam a se encontrar mais tarde. É interessante observar o desenvolver desse relacionamento paralelo ao drama de Autumm. A amiga vai cedendo aos movimentos aos poucos, também ambientada pela natural desconfiança em relação ao rapaz desconhecido. Sobre o rapaz, a gente consegue até dar uma chance para possíveis boas intenções, mas a impressão que sempre nos percorre é de um interesseiro, um autoconfiante, um aproveitador das meninas que vêm do interior, um suposto especialista em cidade grande que oferece ajuda e alguma diversão. Fato é que estamos tomados pela atmosfera introspectiva de Autumm e até o 'simples' (?) desenrolar de um romance paralelo àquela altura tensa nos soa como um desrespeito ao real objetivo da jornada, pois a tensão é constante enquanto Autumm não consegue resolver a situação. Terá saúde para aguentar o procedimento? Terá dinheiro e modos de sobreviver na cidade grande, entre hospedagem e alimentação? A viagem, a ida e a volta, darão certo? A preocupação da família enquanto ela está ausente? São muitas perguntas e muitas angústias que trilham esse caminho acidentado da vida da jovem.

O filme é um convite ao desconforto, à angústia, à realidade de milhares de jovens anualmente, não só pelos Estados Unidos ou para nossa realidade brasileira, mas pelo mundo todo. Umas com maior liberdade para resolver o conflito, outras com menos. Todas com algum nível de tensão que uma gravidez, uma mudança brusca no organismo pode causar. A incerteza de "com quem contar?", a incerteza de "o que virá depois?". A incerteza na mente de que "o que estou fazendo é correto?" e "mas e quanto ao que fizeram comigo?", finalmente para o ponto crucial: "sou eu a errada? ou as circunstâncias permitem?". A atuação impera nesse conjunto da obra, das dúvidas, da aflição, das hesitações de uma jovem em apuros.

Dividimos em um filme bastante cru - para os padrões estadunidenses ou nova-iorquinos - as aflições da jovem Autumm. Sua necessidade de ir superando uma gama de acontecimentos em que nenhuma mente está preparada para enfrentar, independente da idade. Recapitulando: o fim de um relacionamento, a descoberta da gravidez, a inaceitação da sociedade, a não-possibilidade de contar com a família, com a medicina de sua localidade, os riscos de uma viagem distante, os riscos de enfrentar Nova York, a companhia da única amiga, mais fiel do que sensata, a aparição de um jovem totalmente desncecessário para seu contexto de angústias, as perguntas feitas para realizar o procedimento invasivo do aborto. A necessidade de confiar em estranhos, entre a pessoalidade e a impessoalidade do procedimento em uma clínica especializada em receber jovens de diferentes partes dos Estados Unidos.

Por conta disso tudo, a recomendação de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", um filme que já nasce clássico, na alusão da luta de tantas jovens que não querem, não estão prontas, fazem a escolha por não serem mães, no ainda ou no jamais, por dignidade, por decisão financeira, por planejamento familiar, por qualquer motivo que não deveria ser levado em consideração por mim, por nós, quando a decisão é na verdade dela. Um filme de suspense, de sobretudo drama, angustiante como tantas vezes convoca o uso dessa palavra - angústia - aqui na resenha sobre. Nunca. Raramente. Às vezes. Sempre. Inesquecível a voz da interrogadora nessa cena: as pausas, o drama, o vazio tentando ser povoado, tentando ser preenchido, pelas névoas da angústia.

Atuação da estreante Sidney Flanigan está à altura da grande proposta do filme

Amizade entre as protagonistas nessa jornada que exigia muitas forças
Imagens: Reprodução do filme Never Rarely Sometimes Always (2020)

22/09/2021

O sétimo dia

A velha estava morta - disso, pelo apalpar do pulso, não se havia dúvida. Mas o que fazer agora? Aquela palestrante, aquela discursadora enérgica havia se resignado, estava morta. O corpo jazia caído. Não haveria como esconder, ela teria sido vista pela vizinhança àquela hora do dia. Precisavam de um álibi, uma causa mortis.

A discussão havia sido tremenda. Foi acalorando, foi acelerando as partículas todas até o choque final. Havia marcas das mãos deles contra o corpo da velha? Àquela altura já havia, sim. Contato físico. Constatariam alguma briga de mãos contra essa senhora de idade avançada? Ou achariam somente o que houve, o cérebro dando tilt, o acidente vascular?

Ele olhava para sua mãe. Estava atônito, petrificado, obviamente. Ele que tanto evitou discussões não conseguiu conter o bate-boca acalentado entre as duas senhoras, a mãe dele evidentemente mais jovem que a recém-falecida. A verdade, eles sabiam, é que haviam matado a senhora. Vítima da briga, da sucessão de argumentos, da falta de bom senso de ambas as partes. A senhorinha não resistiu, estava morta.

Dias após estavam os dois novamente, mãe e filho, na entrada da penitenciária. Nunca haviam estado em uma, cada cena era inédita àquela família de classe média. Observavam os detalhes nas paredes, não conseguiam desver o armamento pesado com que lidavam os carcereiros. Os equipamentos de segurança, os coletes, os rituais. Os telefones tocando. O secretário apenas aparentemente tranquilo, com o sangue a gelar por dentro. Chegaram ambos em procissão para a cabine da inspeção se poderiam adentrar aos presídio. Os oficiais pediram para esvaziar os bolsos. Mesmo telefones celulares não seriam permitidos, houve a retirada das baterias e foram postos em saquinhos plásticos. Não sabia o porquê, mas ele tinha pilhas também nos bolsos. Os oficiais não pareciam dar muita bola, pareciam confiar naquele jovem, filho do que levou a culpa, do pai infrator. Terminou de se apalpar e descobriu sua carteira fina, que servia apenas para o mínimo de documentos de identificação e alguma nota que houvesse sacado em banco. O carcereiro disse novamente para que não se preocupasse. Lacrou o saco plástico e o juntou a outros em uma gaveta. A mãe havia completado semelhante processo, ela que, pela idade idosa também estava recém aprendendo os trâmites da tecnologia através de telefone celular novo. Se separaram dona e aparelho e eles puderam adentrar à prisão das grades de ferro.

Olhavam para o corredor úmido de celas pela esquerda e pela direita. As paredes enganavam serem amareladas, mas o mofo e o gotejar das infiltrações escurecia o ambiente cada vez mais trevoso. Mãe e filho sabiam que adentravam um território hostil e considerado inimigo. Como dito, tudo era novidade. Era dia de visita, os prisioneiros, inspecionados, estavam "livres" pelos pátios. As famílias compareciam. Ele estranhou ver bandeiras e mais camisas do clube azul e amarelo da cidade. Imaginava uma legião muito maior do clube rival, por números absolutos que se observavam na sociedade, mas também pelo que imaginava no interior de uma prisão. Parecia mesmo um dia de jogo, uma torcida organizada com todos os seus apetrechos. Parecia um churrasco dominical, como costumavam organizar nos arredores do estádio, na praça central da avenida mais famosa da cidade.

Contornaram aquele grupo e observaram algumas rodinhas de conversa pelos corredores que levavam ao pátio, à luz do sol. Famílias conversavam, foram eles próprios se familiarizando àquelas cenas antes tão temerosas, tão incertas, tão restritas ao campo do imaginativo deles. No pátio, perceberam que haveria apresentação. Show de talentos, algo musical, alguma banda. Algo haveria. Se formava, de cadeira em cadeira, iam se organizando, uma verdadeira plateia. Enquanto nenhum número era apresentado, as pessoas naturalmente conversavam. Ele percebia como a mãe estava para desabar em prantos. Os olhos cada vez mais nublados, mais úmidos de sua ascendente prestavam essa informação indubitável. Ele apoiou a palma de suas mãos sobre os ombros da cansada mãe, pessoa que certamente não dormia em paz nas últimas noites - e talvez não mais alcançasse tamanho benefício para sua saúde, a boa noite de sono.

Tentava com as mãos sobre os ombros transferir algum gesto de sustentação, alguma energia para sua cansada matriarca. Sentaram-se em cadeiras de madeira no canto daquele pátio de paredes altas e gramado ao solo. Tudo ainda em tons amarelados, porém com menos mofo pela luz do sol que se fazia presente. Apesar disso, o acinzentar de suas mentes era inevitável. Tudo parecia mais nublado, era o filtro permanente sobre suas vistas. Esperavam por algo. Foram conversar entre eles mesmos, enquanto nenhuma alma lhes interrompia o diálogo, ninguém os oferecia suporte, aqueles desconhecidos do sistema prisional, os recém-chegados, os debutantes.

- Ele assumir a culpa mostrou que te ama mesmo. - Ela permaneceu calada. - Acho que foi melhor assim. - Apertou mais as mãos sobre os ombros da mãe.

Ele sabia que o casamento não vinha bem. Eles poderiam ter se divorciado. Seu par poderia estar distante, de volta para o estado de onde veio. Qual não foi a surpresa quando voltou para casa naquele dia? o corpo da velha estendido sobre o chão gelado da cozinha. A velha unindo-se ao plano como um gelo só. A mãe já sabendo das consequências que enfrentariam. Ele largando as compras no chão, com muito menos cuidado do que qualquer outra vez, mas sem também arrefecer e atirá-las para danificar ovos ou tomates, ou quaisquer embalagem que poderia amassar. Ele que foi até a pia da cozinha, lavou as mãos, depositou o detergente, enxaguou, secou na toalhinha pendurada na maçaneta da porta. Ele que mal perguntou quem, como e por quê e decretou ao final da breve conversa: - Eu assumo.

E assumiu. E foi julgado tendo assumido. E agora mãe e filho estavam armando planos, pensando advogados, o da família não bastaria, buscando soluções para tirá-lo daquele cárcere maldito. Daquela culpa que não lhe pertencia. Esperavam achá-lo ali pelos corredores, em qualquer uma daquelas celas, uns poucos permanecendo ali sentados sobre os colchões duros das camas, mirando imagens de mulheres seminuas ou tentando sintonizar algo nos precários e antigos aparelhos de televisão de tubo. Aqueles que não deveriam ter mais família ou membros familiares ou amigos próximos que se importassem, diferentemente dos organizados da torcida, dos envoltos, reunidos do pátio. O seu tinha família. Eles haviam combinado aquele primeiro dia de visita por ele. Alguns dias haviam se passado. Como ele estaria? Já era magro, já estava também envelhecido. Ele tomava remédios para controlar algumas taxas preocupantes. Estaria os tomando? Todas essas perguntas só poderiam ser respondidas com a sua presença, com a sua careca de formato capilar que sobrava inconfundível, teriam o reconhecido desde seu tamanho, desde sua silhueta, desde sua cabeça há metros e metros, centena deles de distância. Mas ele não estava lá. Onde será que estava? Por que havia sumido? Por que não os havia encontrado. Teve vontade de circular o mesmo caminho até a base dos carcereiros que lhes permitiram entrada, perguntar por ele, fazer ecoar sua voz por aquelas celas, mas seria um escândalo desnecessário e até inútil. Mas onde ele estaria?

A pergunta não queria calar em sua mente. A mãe permanecia olhando para o vazio, para o infinito. Para as lembranças. Para um casamento de três décadas - quase a quarta. A quarta por vir, mas seria na cadeia. Seria num desses domingos de reencontro. De dissolução novamente ao fim do expediente. De angústia insuperável. A separação entre aqueles que não descobriam que se amavam, que deixaram passar os anos sem se dar por conta disso. Ela permanecia em silêncio. Se uma banda, pela melhor que fosse, pela canção mais conhecida, pela mais insuportável ou mais extraordinária que fosse, subisse no improvisado palquinho de madeira, melhoraria ou pioraria a situação embalando um som de fundo para aqueles retumbantes pensamentos?

Ele nunca havia visto a mãe desabar daquela maneira. Se ao menos ela tivesse cedido antes da discussão derradeira que culminou com a morte da velha. Se.

- Se quiser, vamos embora - Disse.

- Não, nós temos que encontrá-lo - ela finalmente voltou a falar com ele.

- Podemos voltar outras vezes. Talvez com boas notícias.

- Tenho procurado os advogados - falou em tom de confissão, não sabia quem estava ao lado. Se poderia ou gostaria de escutá-la. Muita gente ainda ia pela companhia, sem esperança da soltura, seja por bom comportamento ou pelo que fosse.

Isso tudo da busca pela advocacia ele sabia. Estava procurando tanto quanto ela. Nem entendeu porque ela havia dito isso. Talvez para ganhar algo de confiança que no momento a angústia lhe carcomia. 

Uma criança veio sentar-se ali próxima. Percebeu que havia crianças por ali. Mães agora solteiras para criação daqueles pequenos, pais encarcerados. O que teria sido dele se fosse criado daquela maneira? Em que mundo teria entrado, em que mundo estaria? Tentou se intrometer na brincadeira daquela criança mais próxima, que se divertia, tentava se distrair com um cordão, brinquedo semelhante ao que ele tinha destinado para sua gata em casa.

Escutava-os também ao seu lado uma dessas mães de olhares distante. Um olho fiscalizava o filho pequeno, outro ia para o além. Ela também ainda desacompanhada do seu par. Talvez visitasse por ali muitos domingos. Talvez a própria rotina prisional já os separava aos poucos. Voltou o olhar para a sua própria mãe, desamparada, confusa, agoniada. Viu que pela primeira vez a corroía uma palavra que não a tinha visto sentir naqueles mais de 35 anos de casamento: o remorso. Jamais a tinha visto com remorso por ter casado, por ter brigado com ele tantas vezes, pela criação dos filhos, a irmã dele já distante, na Irlanda, sem os ver fazia anos. O remorso era uma palavra de extrema novidade para fazer visualizar no olhar de sua mãe. O remorso por ter sido a causa da morte daquela senhora. O remorso pelo marido dela ter aceitado se fingir de causador daquela morte, para protegê-la, por ele ter feito cálculos e constatado que era mais importante ela fora das grades do que ele. Tudo bem se ele fosse preso.

Mas agora mãe e filho pensavam. Ele que gostava de sair para a rua, de apanhar sol de verdade, horas por dia. Ele de pele eternamente bronzeada por isso, não somente de verão, como eles. Ele que mantinha a pele mais escura mesmo no inverno. Ele que praticava muito exercício físico, de dieta até bem saudável, pratos cheios e fundos, com comida de qualidade, com amigos do lado de fora. Ele acusado, ele chocando o bairro, ele sentenciado. Ela sem conseguir chorar direito diante daquela situação, mas que agora ela começava a assimilar. O remorso. O remorso que a corroía. O entendimento de que seria assim para um para sempre de longos anos, de extremamente longos dias e longas noites sem dormir. Ela que talvez não conseguisse mais dormir, como era seu passatempo favorito, seu recarregar de energias para tarefas domésticas e discussões como aquela que vitimou a velha palestrante, que ia de casa em casa. Erro que cometeram tê-la deixado entrar naquela tarde. Ela que desde que a velha havia desabado, batido a cabeça e perdido o pulso, sua voz sumira, saíam apenas resquícios, miados, palavras mal pronunciadas entredentes, quase inaudíveis. Ele que para voltar a escutar e a entender a mãe precisava quase de um tradutor, mas precisava acima de tudo de ler seus olhos. E nos olhos dela lia exatamente o remorso.

A mãe que em seguida tentou desviar o assunto, apresentar alguma resiliência, conversar com sua vizinha de cadeira.

- E este é meu filho. - Finalmente apresentou. - Ele parece chocado ainda pela prisão do pai, mas o que o deixou brabo mesmo, pude ler em seus olhos, foi que aquela menina que ele estava de olho agora está cercada por outros três a conversar com ela.

Ele olhou para a morena de cabelos pelos ombros novamente. Estava como ele a havia abandonado a vista, cercada por outros três, a conversarem e a rirem. Ele se envergonhou por essa conexão que tinha, por essa percepção incontornável de sua mãe. E ficou confuso entre perceber pela primeira vez naquela tarde um poder de reação dela quanto àquilo tudo, e também se espantar em como ela poderia fingir, ser dissimulada, cínica e gélida. Ao pensar em gélida sentiu novamente o pulso sem vida da velha senhora já enterrada, que deveria estar, naquele mesmo momento, recebendo as breves aclamações e pesares de sua missa de sétimo dia.

15/02/2021

Blindagens

Estava inquieto para escrever. Meu cérebro geralmente está assim. Mas não sabia exatamente o que colocar no papel. Cronologicamente estamos no feriado de carnaval durante a pandemia. O primeiro carnaval evidentemente pandêmico, embora muitas pessoas ignorem esses sinais, alertas e riscos. Tentam uma normalidade inexistente. Pouco mais de 2% da população foi vacinada, uma para cada 50 pessoas. Mesmo assim, festas clandestinas em diferentes locais, sobretudo ao litoral.

Creio que minha mãe perdeu parte do gosto pelas praias ao ver imagens na televisão. Ela quer se mudar para perto do oceano, mas acaba balançando suas estimativas a partir desses contratempos. Meu pai recebe SMS da irmã dele, geralmente com agradecimentos por depósitos feitos ou informando sobre a saúde dos demais irmãos. Não é boa a situação dos tios. Receio que a continuidade dos fatos estremeça a relação positivista com que meu pai sempre encarou a vida e eu discordava. Mas é complicado discordarmos sem entendermos o que move e dá forças aos demais continuarem. Enquanto me blindo em pleno pessimismo e tentando assimilar os assustadores realismos que nos cercam, meu pai talvez se feche em pensamentos otimistas que o mantenham íntegro, com força para comprar algo na padaria, abastecer o carro e fazer serviços manuais, sejam mais ou sejam menos urgentes.

Eu estava refletindo sobre minha necessidade de estar sempre refletindo. Sou assaltado constantemente por pensamentos insólitos, transfigurados, adjacentes, entrecruzantes, enviesados. Mudo de assunto com rapidez. Crio uma ilusão de que minhas reflexões são mais importantes do que outras coisas. Passo-as ao papel no ritmo voraz da urgência. Na verdade, desabafo com menos funcionalidade e interferência ao mundo externo do que qualquer mascote ou palhaço fantasiado em frente a farmácias econômicas, anunciando descontos e tentando convergir clientes ao local. Qualquer vendedor de vale-transporte ou de equipamentos para bolhas de sabão, na luta diária pela sobrevivência, está mais interagido com o mundo.

Mas talvez esse seja o meu modo de lidar com as situações. Muito mais introspectivo e criativo textual do que os demais habitantes. Compartilhei uma campanha para ajudar um cão atropelado. Chamada vaquinha virtual. Para além de auxiliar esse pobre indivíduo, pensamos nos todos recolhidos e amparados pelas mais diversas ONGs, em parceria ou não com os poderes executivos municipais ou estaduais. Cães, gatos e outros animais, os outros que podemos comer à mesa. Socialmente aceito.

Outro dia eu caminhava pela avenida mais badalada da cidade, com os melhores imóveis, modernidades, novidades, gente se exercitando, carros à mostra, exibicionismos, restaurantes mais caros, inclusive um constatado que filava energia elétrica. Roubo. Bom, por ali eu me deslocava e reconheci um senhor de meia-idade que, na dificuldade do alto índice de desemprego, empunha um cartaz em busca encarecidamente de moedas, dinheiro para se alimentar e cruzar o facho de mais um dia. Parei diante dele, me atrapalhando com as palavras para informar que já o conhecia de ali passar outras vezes e que dessa vez iria ajudá-lo. Remexi meus bolsos, enrolado junto com minha língua que não pronunciava as melhores palavras para ocasião, acrescentado o efeito de estar por trás da máscara de tecido pela prevenção do vírus pandêmico. Ele também estava assim. Consegui sacar os dois reais que pretendia contribuir com o dia daquele cidadão. Não ganho para estar distribuindo mais do que isso. Tenho receio de meu próprio futuro. Tenho total desacostume com a rotina laboriosa. Fui criado dessa forma, infelizmente. Em uma aparente tranquilidade que de modo nenhum combina com a sociedade brasileira. A luta é diária. O lutar é exaustivo. É preciso seguir de algum jeito.

Me blindar com o pessimismo nem sempre vai resolver, é necessário interagir com as batalhas. Com os demais humanos e, nisso tudo, agraciar aos bichinhos. Os que não comemos. É duro tentar fugir da hipocrisia. Ela nos persegue. Pensei nessa frase anteriormente: enquanto buscamos o elixir máximo e inalcançável da justiça, nos persegue o bafejar constante e irrequieto da hipocrisia. Somos todos hipócritas. É muito difícil, senão impossível, escapar do aprisionamento da contradição.

Meu pai, ao contrário, se blinda em um otimismo que também nada combina com a sociedade brasileira. A cada SMS que recebe, informes de piora da saúde familiar, a televisão desde suas manchetes e complementos reportagens de que as coisas pioram. Desemprego, saúde, aumento da miséria, violência urbana, racismo combatido, racismo que combate, fascistas e antifascistas e antifascistas facistas. Tudo isso nos cerca.

No caos total, provavelmente meus julgamentos são muito duros. Às vezes com os outros e constantemente comigo mesmo. Já esperávamos pouco, mas permanece seguidamente a sensação de que podíamos mais. Correndo atrás da desabalada carreira da justiça, tentando vencer, ficar à frente da hipocrisia, mas lado a lado com ela.

04/12/2020

Verbas

Verbas aos "Vermes"

É o que o governo

A cada inverno serve

Entre parapeitos e soleiras

Longe das estufas e lareiras

E os juízes e seus auxílios

Em seus corruptíveis exílios

Champanhe aos chefes

Tribunais e seus blefes

Siglas terminadas em Efes

Federais

Ai Ai Ai

Ai Ai

Os bingos clandestinos

E os destinos oficiais

O que segue funcionando

E o que se esconde pelas capitais

Ai Ai Ai

Ai Ai

18/11/2020

Política em diferentes locais

Busco nessas linhas somente o esboço, sem cientificidade, por mais que ela seja luz nesses tempos sombrios. É o que chamam de ensaio? É colocar no papel para literalmente não perder de vista. Estive conversando com a companheira Lara Crochi de Arroio Grande. Debatíamos e discutíamos questões sobre o domingo de eleições no nefasto ano de 2020 (por várias causas, como imaginam). Entre derrotas, mais derrotas e uma ou outra vitória, abordávamos os panoramas políticos locais e nacionais, em um domingo em que a ênfase tinha passado pela chegada de Guilherme Boulos ao segundo turno em São Paulo, com o PSOL, de apenas quatro prefeituras ganhas pelo país inteiro, mesmo assim chegar "na final" da maior cidade da América Latina, um campo de visibilidade vasto, um extenso tapete para propor ideias, debates e consciência política na população paulista e brasileira e, por que não? latino-americana.

Mas para além do Boulos dessa comemoração (fique aí, mesmo que não tenha mais Boulos ao convidado), para além do candidato do PSOL, concorrente no segundo turno, nossas reflexões, minhas e de Lara, passaram sobre as diferenças entre a política nos grandes centros (como em São Paulo) para os pequenos centros (como em Arroio Grande).

Muitas vezes tracei conversas sobre política com pessoas de outras grandes cidades brasileiras e elas buscam trazer um panorama da situação. Seja em Recife, em Belém do Pará ou no Rio de Janeiro. Um bom panorama poderia vir com o amigo Lucas Andrade, de Minas Gerais. Fica para uma próxima. Mas Lara conversou rapidamente sobre a esfera política de Arroio Grande, cidade próxima a Pelotas e mais próxima ainda da fronteira uruguaia, tendo somente a limítrofe Jaguarão mais além, antes das terras consideradas charruas. A cidade de AG, considerada pequena em sua constituinte, apresentou três candidaturas para prefeitura. Lara me explicou alguns prós e contras específicos da cidade.

Durante o domingo eleitoral, pesquisei diferentes municípios gaúchos e, se mais tempo me houvesse, pesquisaria as demais situações brasileiras, ao norte do nosso RS. Pesquisei motivado, confesso, em busca de emoções, que viriam através de corridas eleitorais parelhas, disputadíssimas, com diferenças de voto a voto, em um sistema em que cada aperto do botão "confirma" na urna traria grandes consequências.

Consequências. Essa talvez seja uma das palavras-chave neste texto. Em cidades menores, como é o caso da referida Arroio Grande, as consequências dos atos políticos são muito mais palpáveis para a população. Meu pai costumava mencionar que a cidade (de Pelotas) é muito grande e não havia como agradar a todos os lados. Era uma forma conformista dele mencionar que ninguém governaria para todos os setores da cidade, aqui pensados no caso geográfico. Ou seja, um prefeito ou uma prefeita poderiam, por exemplo, investir mais no bairro das Três Vendas do que no Areal. Ou mais no Centro do que na praia do Laranjal. Hipóteses para a afirmação de meu pai. Embora a discussão possa ser ampliada para investimentos em diferentes classes sociais, funcionalismo público, etc. Mas aqui, nesse parágrafo, o intuito foi a afirmação geográfica de espaço urbano (ou rural, se fosse o caso do exemplo).

Pensar nas consequências implica saber que, em uma cidade menor, cada ato de tentativa de virar votos, de tentar conquistar eleitores pelas menores causas que sejam, pode trazer consequências significativas. Observamos casos de cidades que tiveram suas eleições decididas por 200 votos, 100 votos, 30 votos! Uma rápida busca no TSE pode confirmar essas projeções. É assustador como o futuro, o destino de uma cidade, seja qual for sua relevância para quem observe de fora, pode ser decidido por detalhes. Pode ser decidido porque dona Maria não compareceu à urna, porque seu Antônio, nesse caso de 2020, teve sintomas de covid-19 e preferiu ficar em casa, conforme era recomendado que ficasse. Ou porque Moisés, que estava prestes a decidir o seu voto, acabou ficando em cima do muro. Não escolheu quem o representaria, quem lidaria com as contas, com os gastos, com os orçamentos públicos pelos próximos quatro anos. Terá que esperar, mais consciente se quer acreditar, mais quatro anos para decidir o seguinte voto municipal.

Se pensarmos na corrida para vereadores, a coisa fica ainda mais acirrada. As cadeiras são preenchidas por detalhes dos detalhes, porque Matheus fez campanha ou porque Ângela não fez. Porque o senhor Wilson foi convencido, enquanto dona Carmen preferiu ajeitar as coisas da sua vendinha naquele final de semana, da "festa da democracia". Pois é, nem todos participam e as consequências podem ser grandes. Quanto menor as cidades, mais chances a escolha pessoal tem efeito nesses casos. Apesar de, olhando o todo de nosso Brasil, essas cidades menores pareçam pouco relevantes aos olhos dos capitais. Mas, é importante lembrar, essas cidades são o berço, são tudo que algumas pessoas têm. Elas precisam abastecer e desabastecer seus comércios, buscarem a sobrevivência, colocarem suas forças trabalhistas a serviço da população em troca do suado dinheiro, o cash, o que será trocado por outros serviços e assim sucessivamente.

Ainda no campo das consequências (falei que aqui seria palavra-chave, não falei?) podemos pensar na relevância de cada obra feita. Aquela rua que ganhou um calçamento de 300 metros, mas que assim contemplou lá dona Maria e seu Antônio, essas pessoas, agraciadas pela deslumbrante civilização, poderão comparecer à espécie de caixa eletrônico e ali depositar seu agradecimento em voto, rumo à reeleição. Ora, por que vocês acham que tantos prefeitos e hoje tantas prefeitas são reeleitos? São a partir desses desarrollos.

Mas ainda no campo das consequências, pensamos no lado das mobilizações políticas por meio da transparência, da cobrança e da investigação. Em cidades menores, qualquer ato ilícito dessa parte vindo dos governantes, quando há o poder de fiscalizar e do impostor cair na malha fina da prestação de contas, quando isso é possível, o escândalo é certeiro. Não será reeleito. Mas, porém, todavia, entretanto, não é tão simples como, me desculpem, fiz parecer. Em templos coronelistas, muitas vezes é difícil mobilizar uma oposição que conclua essa árdua missão. É preciso coragem, é necessário saber com quem se está lidando. Há nomes poderosos nessas pequenas cidades e que jamais são derrubadas. Como esquecer da eterna Sucupira de Dias Gomes, do coronel Odorico Paraguaçu? Rendeu tantos contos e linhas porque não era facilmente derrubado, ninguém o tombava, apesar dos pesares.

Em cidades pequenas, é preciso quase sempre da interferência externa, por mais que isso consterne parte do policiado ou da população local. Intervenções federais, nesses casos, muito podem ser bem-vindas. Há escândalos que transpassam as resoluções locais. Entre essas consequências de investigações, de imprensa atuante, de portal para transparências, outro ponto é como o denunciante, o pivô das intrigas pode ser protegido. Não é fácil lidar com o faroeste brasileiro, mais atual do que nunca. Se as bolas de feno ou cascalhos não saem rodando pelo areal da via única em cidade formada por estabelecimentos com portas de vai-vem, ao menos os princípios do bang bang e do silenciamento, da lei do gatilho mais rápido podem ser observados em diversas cidades brasileiras. Torço por proteções, sejam divinas ou da tal da Justiça (haha) nas cidades que imaginei nesse pequeno bloco de texto.

É difícil mobilizar pessoas a fazerem uma oposição ferrenha, ativa, participativa, quando as consequências por seus atos, denúncias ou mesmo durante as investigações podem ser interrompidas de formas catastróficas, violentas, fatais. A lei do gatilho mais rápido, como referi, acaba silenciando e sepultando o trabalho de jornalistas, advogados, juízes, políticos opositores, funcionários públicos, quaisquer denunciantes que façam questão de meter a cara em televisão, jornais impressos, panfletos ou mesmo os anônimos que correm severo risco, priiiincipalmente em cidades pequenas, de serem descobertos. Quem pode saber disso? Fulano deve saber disso. Fulano trabalhou naquele departamento irregular, naquela obra, naquela licitação, naquele licenciamento criminoso, naquela fraudulação, naquele consequente escândalo. Denunciar muitas vezes é fácil, o problema é lidar com a diaba da consequência.

Quem tem guarda-costas? Quem tem as costas-quentes? Quem pode executar, de fato, o seu trabalho? Sejam postos aí cargos como jornalistas, advogados, juízes proferidores de sentença, todos possíveis corruptos, aceitadores de subornos, de acordos amigáveis para receberem parte do bolo de dinheiro irregular (e não é que teve bolo ainda no texto?). As pessoas podem aceitar simples acordos para manterem o bico calado, ou podem levar até o fim as denúncias e arcarem com pesadas, severas, não previstas em lei, consequências.

Aí está uma diferença capital entre a política realizada nas capitais e nos pequenos centros, nas menores cidades. Parecem resoluções simples, mas há muito do jogo de parentesco, de históricos coronelistas, de lavagem de dinheiro, de promessas infundadas, de voto de cabresto, de cargos de confiança, de funcionalismo público contratado, de corrupção sob o sol, nada de novo neste fronte, de conversas a salas fechadas, de acordos, de mãos que lavam outras, de mãos que se apertam e apertam de rivais e de esquecidas borrachinhas de dinheiro ou multiplicações de zero em contas correntes. Às vezes é tão evidente como a cena gravada do vice-prefeito de Joaquim Nabuco, cidade no interior de Pernambuco, em que o magnata arremessa notas de dinheiro como se fosse o próprio idoso portador de microfone gigante de lapela do Sistema Brasileiro de Televisão.

Às vezes as cidades pequenas são muito mais complexas do que imaginamos.

28/08/2020

O Cãomício de Wolf

Era uma época de simulacros. Estavam por toda parte. Desde a dissimulação necessária nos meios políticos, entre os doutores, deputados, juízes, desembargadores, promotores, oficiais dos mais diversos cargos, até os astros esportivos, simuladores de falta de ataque no basquete, de pênaltis no futebol, de bloqueadores no vôlei que nunca encostavam na bola que ia direto pra fora. Alguns desses casos esclarecidos pelo salvo conduto garantido pelas imagens da arbitragem de vídeo. Nos casos políticos, vocês sabem, a dificuldade era maior de conseguir flagrantes e respectivos aprisionamentos previstos nas legislações.

Havia também os simuladores conjugais, maridos e esposas dissimulados para suas fugidias galanteadoras. Rompedores do fastio diário que acometia dois a cada três casais, sendo eu bastante bondoso ao inventar tal estatística. Tudo para facilitar a compreensiva esperança que vocês querem alimentar. Mas esse caso a seguir desafia a lógica do pensamento humano, uma intervenção divina da natureza em uma época em que tanto objetificamos pessoas. O caso referido é da personificação animalesca, que também não é o maior absurdo que vocês já ouviram sobre. Provavelmente conhecem ou até são os donos (pais) de pet que humanizam ao máximo seus queridos mascotes.

Parece que a dona tinha a grafia para as idas ao veterinário como Wolf, o legítimo lobo alemão. Mas aqui escreveremos Rolf, que era como a dita cuja mãe de pet pronunciava. O Rolf era um cão sabujo criado em um quintal meio triste, de concreto, mas a Alessandra garantia que assim era mais fácil de limpar suas fezes. Começando a descrição me vem à mente o filme Roma, do nosso querido mexicano Alfonso Cuarón. Parece que ele quis ilustrar da forma mais direta possível que é pra pensarmos na merda que é a vida. Enfim, a do Rolf não era tão ruim assim, porque ele dispunha do seu espaço, embora concretado em suma. Havia para ele umas proibidas hortinhas nos cantos do pátio. O cão era esperto e subia ao canteirinho de tijolos quando Alessandra ou seu marido Vinicius não estavam de olho.

Ademais do espaço, o sabujo contava com brinquedos de borracha e tempo para curtir a companhia humana, agitando seu rabinho como comprovação de lhe apetecer esse período. As refeições eram o principal caso em questão. O Rolf se alimentava, sim, pelo menos duas vezes ao dia garantidamente, mas mesmo assim não parecia contente com os horários e se fazia de louco.

O almoço de Alessandra era pontual, ao meio-dia. Vinicius nem sempre voltava em casa para almoçar, atarefado que era. Mas afirmamos o compromisso com a inocência do Vini quanto ao matrimônio, sendo o caso discutido do simulacro o do cão do casal. À essa altura, na descoberta protestante de Rolf, os dois humanos já haviam procriado, um pequeno cabeçudo com a alcunha de Francisco, o Chico. O Chico era uma verdadeira comemoração virtuosa de Alessandra e Vinicius porque era muito comportado, nada manhoso, respeitador dentro do possível para uma criança de três anos.

Eis que surgiu o problema em quatro patas. O Rolf almoçava cinco minutos antes da Alessandra servir o que ela e Chiquinho (e/ou mais Vini) iriam comer a cada metade de dia de cada dia. Mas o aventureiro sabujo percebia que o estômago lhe advertia antes das 11h55, então por que esperar? Rolf emitia um latido enjoado, manhoso, ardiloso em busca de atenção. No primeiro dia foi às 11h50.

Rolf manteve sua postura austera nos dois almoços seguintes, mas tornou a latir, já em curtas ondas sonoras de formato uivante, isso às 11h45. O prognóstico foi piorando para a cada vez mais escabelada Alessandra. Dali uns dias, às 11 e trinta já estava composto o solo canino do sabujo. Um espetáculo apreciado por exatamente ninguém da vizinhança. Vinicius esteve presente nesse almoço embrulhado após a irrupção ousada do quatro patas.

- Mas que diabos esse cachorro tá querendo?! - perguntava o inocente mediante a primeira vez que presenciava tal fastigante cena.

Como afirmado, era um espetáculo apreciado por ninguém da vizinhança. Ninguém humano, porque o complô canino prestava atenção na atuação simulacra de Rolf, que já nem mais tinha fome naquele horário matinal, mas gostava de gozar seus adiantamentos. Os cachorros vizinhos, inclusive, estes almoçavam era mais tarde, só a sobra dos adultos donos. Mesmo que implorassem à volta da mesa, eram convidados a se retirarem, esperavam de estômagos roncos até alguma sobrinha, um osso bastante desgastado em seu conteúdo em volta, uma sobrinha de arroz no carreteiro e coisas do tipo. O Rolf era o espertalhão daquela turma separada por grades.

Certa noite, eles foram até a divisa máxima, cabeça para o lado de fora, posição favorita para tentar morder o homem de azul e amarelo, o carteiro.

- Rolf, seu arruaceiro. - Liderava o grupo do bairro um esquisito bull terrier.

- Fui criado em casa desde nascença.

- Você é um fingido. Tem dado certo seu plano?

- Indubitavelmente. Eles me servem porque os chateio o bastante. E Alessandra sempre foi querida.

- Raios que os nossos nos fazem esperar a cada pecador dia.

- E por que não tentam como eu faço? Comecem um pouco mais cedo que o horário habitual. Nem perceberão.

No dia seguinte mandaram brasa e arrebataram um bife mais cedo do que sonhavam. A eficácia era comprovada de forma ligeira. O recado era passado de grade em grade, percorrendo como corrente elétrica o bairro adiante. O alarido no horário de almoço, ou melhor, pelas manhãs, estava acabando com qualquer concentração filial para dever de casa, adulta para home office e até dizem para a concentração dos próprios cozinheiros e cozinheiras para as requeridas refeições. A cachorrada ficou ensandecida.

Um vizinho, disposto a dar um basta na estonteante situação, chamou Alessandra e Vinicius de lado para conversar. Falaram na calçada, em direção ao centro da pouca movimentada rua, porque não queriam que os cachorros ouvissem.

- Sei que o seu, o tal Rolf começou a rebelião.

- A rebelião?

- Não se façam de bobos. Ele era quieto, nem dávamos por sua presença e de mês para cá começou a invocar esses satânicos rituais que embriagam nossos descontados ouvidos. Estou fazendo projetos para o filho do prefeito e mais dois vereadores e não posso me concentrar com essa balbúrdia diariamente.

- O Rolf até que anda quieto. Não tem nos incomodado... não tão cedo.

- O problema é que esse sabujo de uma figa plantou a semente nas cabeças terroristas. Agora o bairro inteiro reivindica o direito a almoço e antes mesmo da gente! Vou denunciá-los por perturbações à ordem, percebam que para mim, arquiteto renomado, é fácil que colha assinaturas dos mais diversos para encurralar vocês. Queridos, vocês não têm escolhas, ouviram?!

- O que quer que façamos?

- Livrem-se do líder do bando. Isso vai acalmar a revolta dos demais.

Alessandra ficou sem chão enquanto Vinicius era a própria expressão reflexiva. Com o dedo indicador ainda em riste, o vizinho arquiteto renomado, amigo de prefeito e vereadores e juízes, desembargadores, com e sem vergonhas retirou-se. De costas para o casal, ele ainda falava sozinho mas isto porque era meio amalucado das ideias.

À noite, os cães se reuniram, até onde poderiam se reunir, lembrando episódios de passagens históricas em que presidiários se comunicavam com outras celas em códigos, principalmente os presos políticos em suas acomodações denominadas solitárias. Mas no caso o código dos cães eram os latidos que os donos entendiam nada, embora eles sim entendiam o legítimo português (brasileiro) praticado em oratória por seus donos.

- Ouvimos que você será removido, Rolf. É um ultimato.

- Como sabem? Estive dormindo boa parte do dia.

- Eles ignoram nossos ouvidos hipersensíveis - gabava-se o mesmo bull terrier da outra vez. Por ser o futuro assumidor da chapa, será idenficado aqui. Chamava-se Sam.

- Iremos dar uma trégua? - Perguntava uma poodle aqui não identificada, porque tanto faz a raça, naquela lei canina eram todos iguais.

- Não daremos. Mesmo que me custe a remoção dessa casa, senhoras e senhores, vocês devem continuar lutando por seus direitos. Peço somente que não percam a razão em atos descambados em violência, mas usem-a a seus favores se forem ameaçados, como provavelmente serei, conforme me dizem. Estarei preparado para o que der e vier.

- Nunca o esqueceremos, capitão.

- Você nos ensinou lições incríveis - reforçavam outras vozes caninas de casas adiante.

A verdade é que aquele coro, o falatório que avançava madrugada foi o estopim para que o arquiteto, com a cabeça pressionada pelo travesseiro, tentando ouvir seus próprios pensamentos, agir. No dia seguinte começou a protocolar o ato contrário ao sabujo Rolf, pela perturbação da ordem alheia. Nem três dias depois, foi de casa em casa, para o desconhecimento de Alessandra e Vinicius, e colheu assinaturas contrárias ao líder da gangue. Apenas a senhora dona da poodle não assinou, mas dizem que ela é meio surda mesmo. Os pais de pet na categoria gato assinaram todos. Eterna rivalidade.

Com um mandato em mãos, a famosa carrocinha dos desenhos apareceu naquela pacata rua e para os que presenciaram, foi a maior batalha campal de todo ano, em que, ao final dele, pelas épocas natalinas, os vizinhos comemoravam o fato de não haver roubos, assaltos e coisa pior naquela temporada. Mas a remoção de Rolf foi uma trabalheira poucas vezes vista para aqueles fiscais da prefeitura, que perderam quase hora inteira naquela humilde casa de chão concretado. Com muita relutância, Rolf subiu na carroceria do veículo e com um aceno de pata e longos uivos periclitantes, despediu-se de seus saudosos companheiros.

Os dias seguintes foram de tranquilidade, mas não demorou para Sam e seus capangas recomeçarem a exigência de comida o quanto mais cedo fosse possível. Entre as assinaturas caninas em um documento passado de boca em boca, de grade em grade, com a marca da pata carimbada de cada um, queriam o almoço antes dos humanos, mínimo de duas refeições diárias a todos os companheiros, água trocada diariamente e limpeza diária dos resíduos, que eles, coitados não tinham culpa ou opção melhor, diferente dos gatos e suas caixinhas de areia (que também precisam ser sempre higienizadas).

Sobre este último fato, Alessandra, em entrevista, garante que até dessas coletas escatológicas sente falta e tenta reaver na Justiça a guarda de seu querido Rolf, hoje já se encaminhando para uma idade respectivamente idosa entre os cães. Os colegas o aguardam de patas abertas para uma saraivada de uivos. A prática na luta pelos seus direitos passou de grade em grade e percorreu do bairro para o sentido centro da cidade. Vinicius já nem consegue se concentrar direito no trabalho, porque os cães centrais do município já lhe perturbam em função do processo iniciado, mal sabe ele, na sua própria casa.

- Mas que diabos esses cachorros estão querendo?! - Brada o Vinicius, repetitivo e infortunado enquanto produz bolinhas de papel que são sempre arremessadas contra sua lixeira no canto do escritório (ele nem sempre acerta).

As reuniões caninas, que são combinadas entre meia-noite e 1h30 da manhã, que também não é para abusar do sono dos seus donos, que ainda os alimentam apesar das represálias, as reuniões agora são para debater o futuro dos cães de rua, circundantes das casas em busca da sobra dos almoços dos gradeados. Sam é contrário a fornecer comida para esses ditos por ele vagabundos, mas Diva, uma jovem sem raça identificada, acolhida por um outro casal e que dá muito valor a seu novo lar, sabendo das dificuldades de ser órfã nas ruas, está disposta a aplicar um golpe no bull terrier. Ela quer se candidatar no próximo pleito. Os debates caninos, esses ainda vão longe. Enquanto isso, os "pais de pet" da cidade entendem cada vez menos o que está acontecendo.

31/07/2020

A Corrupção de Ideias

Parou com as mãos na cintura, na velha posição conhecida como açucareiro, esperando que a criminosa se apresentasse perante o júri. Ele estava indignado, tendendo para o grau furioso, mas procurando conter-se. Jamais tinha visto tamanha afronta, petulância direcionada contra si. E achavam que ele, logo ele, investigador, meticuloso, vidrado, não iria descobrir. Ah, mas ele iria, sim. E descobriu.

Ela saiu do banheiro para tomar o corredor e seguir para o quarto, mas foi paralisada pela voz certeira, que estava à espera do exato momento, para proferir: "Achou que eu não descobriria. Mas eu achei isto."

Ele tinha na mão esquerda um papelzinho todo amarrotado, em uma bolinha de formato imperfeito. Isto talvez tenha aumentado a sua indignação, porque nem ao menos sua irmã se deu o trabalho de formular uma esfera concisa com aquele referido papel. "Achou que eu não descobriria", repetiu, inquisidor que estava.

- O que é isso? - Ela tentou ganhar tempo. Se fez de boba.
- Isto?! Isto você sabe muito bem o que é.

Um ruído na fronte da casa indicava que a mãe de ambos havia chegado. Os adolescentes ganhavam nova testemunha da discussão. Mais do que isso, possivelmente chegava a pessoa que bateria o martelo, juíza da sentença derradeira. Ao girar a chave e flexionar a alça da maçaneta, já estava em território hostil para tomar partido pela filha ou pelo filho.

- Mamãe, olha o que...
- Não ouça, mãe, ele está louco e...
- Silêncio! Silêncio! Mas será que a gente pode nem chegar em casa?!

Ambos desculparam-se, mas ainda ofegantes e dispostos a resolver o alarido o quanto antes.
- O que aconteceu aqui? - Ela disse, retirando o casaco, depositado gentil e calmamente sobre o encosto da sua habitual poltrona para assistir à televisão.
- Veja, mãe. - Ele entregou o papel.
- O que é isso? - A mãe perguntou um pouco temerosa, ao pegar com a ponta dos dedos, em formato de pinça, àquela indecifrável prova de crime.
- Isto... ora, isto é uma ideia minha.
- Ideia. Que tipo de ideia?
- Era uma piada. Ela jogou fora. - Apontou para a irmã.
- É verdade o que Rafael me conta?
- É... Mas...
- Viu! Viu só! Ela iria negar se você não aparecesse, mamãe. Ela sempre faz isso. Aposto que não é a primeira vez que joga uma ideia minha fora. Vou começar a vasculhar melhor as latas de lixo.
- Foi a primeira sim!
- Como vamos saber? - Inquiriu o irmão.
A irmã deu de ombros.

A mãe estava desapontada com a briga, mas começou a providenciar um discurso sobre o mundo das ideias. Como diariamente muitas ideias eram desperdiçadas, indo parar nas latas de lixo, recolhidas sem ao menos serem averiguadas, sem serem lidas, sem serem testadas. Iam parar nos aterros sanitários e aí não haveria volta. As ideias inundavam oceanos, iam parar em estômagos de animais desatentos, que passavam mal com aquelas ideias, quando ingeridas em grandes quantidades. De acordo com a mãe, as ideias deveriam ser bem trabalhadas. O ato de talhar as ideias começava na própria mente, antes de elaborar uma, era preciso pensar a respeito do assunto, da gravidade, do objetivo, do que estava disposto a ser feito. Era como tricotar, saber qual o resultado final, quais cores, qual malha, qual intensidade, se primavera-verão, se outono-inverno, para quem, para quais ocasiões. Tudo deveria ser pensado.

O descarte irregular de ideias era de fato um problema que os governos deveriam tomar providências a respeito. O mundo estava saturado de más ideias aproveitadas, mas também de boas ideias rapidamente descartadas. Dependendo o fornecedor, nem olhavam, era lixo diretamente. Mas quem julgava isso? Com que autoridade? Com que outorga? Os pobres estavam destinados a produzirem muitos descartes, viviam atulhados. Eram rejeitados precocemente. Logo, pelo hábito de serem rejeitados, deixam de formular ideias e apenas seguiam as ideias capitalizadas e obritatórias, muitas vezes embasadas pelos projetos de leis, que nada mais eram do que outras ideias votadas por poucos para obediência de todo o resto da população.

Os pobres viviam soterrados de sobras, alimentos que restavam, materiais descartados e ideias. Muitas ideias rudes, ideias gastas, ideias velhacas, ideias das piores índoles. Eram entorpecidos pelo peso sufocante dessas ideias. O puro enxofre inalado. Essas ideias desencadeavam violência, brigas entre irmãos, confusões entre vizinhos, desgostos no bairro. Na periferia, se roubava de tudo: alimentação básica, para subnutrirem-se famílias inteiras, roupas usadas, sobras de materiais, como madeiras, ferros, peças e ferramentas velhas, mas sobretudo ideias. Alguma ideia que poderia interessar era facilmente surrupiada. Não se podia deixar uma ideia secando no varal à vista da vizinhança que a ideia poderia ser, a qualquer instante, em manobra raposa, raptada com apenas os pregadores deixados para trás.

As ONGs denunciavam que algumas das melhores ideias estavam sendo roubadas incluso desses mais pobres, impossibilitando que as pessoas ascendessem de vida. Havia várias formas de traficar ideias, o mercado ilícito avançava com cada vez mais denúncias, mas cada vez menos ações a respeito. Vistas grossas das forças policiais, muito envolvidas nas próprias transações. Da Justiça nem se fala, faz que não vê o absurdo do cotidiano. Ideias transportadas em malas, em porta-malas, em roupas íntimas, às vezes à luz do dia, nas esquinas suspeitas, nos becos insuspeitos. 

O governador transmitia sua live semanal com o recado: "Nós temos que combater esse problema grave do tráfico de ideias. É uma campanha que deve ser aderida por todos nós. A responsabilidade é igual de cada cidadão. Quem notar qualquer movimentação suspeita de ideias, precisa comunicar ao telefone 190."

Ele era aplaudido. Era uma grande ideia. Mas a oposição estava cansada do lenga-lenga. Protestos eram organizados, grandes cartazes tomavam conta das ruas. "Chega do roubo de ideias", pedia a classe média. "Queremos nossas ideias ouvidas", pediam os mais pobres. "Parem de entorpecer nossos filhos com suas ideias", implorava uma das mães da periferia.

O governador garantia que todas as vozes, todas as ideias seriam ouvidas. Solicitava que a população não se preocupasse, que ele estava atento, se reunindo, procurando soluções, com articulações com os outros partidos para tecerem ideias sobre o tráfico e o descarte irregular de ideias.

Uma das formas solucionáveis posta em votação foi aumentar a pena para quem fosse pego com ideias que não fossem suas, ao passo que também elevariam os anos de detenção ou as multas de quem fosse pego com descarte irregular de ideias. Nada de colocar ideias em terrenos baldios. Nada de inundar a periferia, os bairros pobres com mais ideias que desgraçavam a cabeça dos mais jovens e podiam servir de estopim para o fim da vida dos mais velhos.

A confusão estava formada naquela sociedade. Os livros começaram a ser queimados indistintamente. Ao contrário de se ouvir os mais pobres, o que ocorria era que as ideias dos que buscavam conhecimento estavam cada vez mais silenciadas. A preocupação em combater às más ideias servia de pressuposto para que ninguém mais pensasse e elaborasse por si só. A censura tomou conta das ruas.

Primeiro houve o toque de recolher. Ninguém poderia ser apanhado com ideia suspeita - e abre-se grande parêntese subjetivo para o que poderia ser uma ideia suspeita - depois das 20 horas. Os bares começaram a se esvaziar. As noites perdiam o brilho. Os donos decretavam a falência. Os bares, cada vez mais silenciados, com menos clientes, exibiam cartazes da proibição de ideias suspeitas entre aquelas 4 paredes. A música passava a ser censurada. Eram poucas as canções liberadas pelo governo, com uma ênfase muito grande em onomatopeias. Iê Iê Iê - LeLêOlaLá - TchereTcheTche.

As ideias circulavam então de forma ilegal. Ao invés dos mercados ilícitos serem combatidos, acabaram ampliados, porque muito do que era considerado legalizado foi apontado como indigno, merecedor de reprimendas policiais e da Justiça.

Havia muita hipocrisia, obviamente. Os próprios órgãos legisladores, os censores, estes usufruíam do poder de contar com suas ideias mais à vontade. Eram festas regadas a más ideias, a más índoles. A polícia apreendia ideias e ela própria revendia. Ou descartava nas favelas, ameaçando qualquer jovem ou velho que pudesse denunciar a prática corriqueira. Os juízes eram subornados. Recebiam ideias, roupas de grife, doces, mulheres, descontos em restaurantes e quartos, tudo liberado, sem intervenções. Sem a quem recorrer.

Foi nessa sociedade cada vez mais opressora que a mãe alicerçava seu discurso, já cansativo. Cansativo para ela, para a própria garganta, para suas emoções que subiam pela garganta até o tom embargado de sua voz, a glote e a epiglote trabalhando sucessivamente, o ar ameaçando faltar-lhe à certa altura da distribuição coerente de palavras. Os filhos atentos, paralisados, petrificados por tamanha corrente desenrolada pelos conhecimentos da experiência trazidos através da mãe, que era muito cautelar em distribuir suas ideias.

A mãe era uma pessoa muito culta. Trabalhava fora desde nova, mas trazia consigo a consciência de proteger bem as suas ideias. Não dava bandeira pelas ruas, voltava cedo para casa, especialmente depois do decreto pelo toque de recolher. Antes, até aproveitou companhias hoje vistas como más pelos moralizadores, pelos intocáveis. Aprendeu o que vinha constituindo sua alta gama de conhecimento. Mas guardava tudo consigo. Uma ou outra carta enviadas pelo correio ilegalizado. Trocas de correspondência. As que recebia eram devidamente guardadas em peça secreta nas entranhas de seu misterioso quarto. As crianças, obviamente, não tinham acesso. Mas vez ou outra suspeitavam da própria mãe, entendendo seu lado, favoráveis à matriarca.

Com aquele discurso acerca da sociedade em que viviam, a mãe conquistou a máxima atenção de seus descendentes, envoltos ali por uma bruma espessa com camadas extras de vergonhoso sentimento. Brigar por uma piada. A ambos, a reflexão após o discurso é de que se encontravam no modo errôneo.

A filha, que se chamava Cláudia, pediu desculpas ao irmão por descartar uma ideia que a ele parecia boa. Deveria apoiar seu companheiro de residência, porque a piada nada possuía de preconceitos, nem se direcionava a qualquer mal contra os costumeiramente oprimidos.

O filho, Rafael, pediu desculpas à irmã por ter se enervado tanto. Era apenas uma piada, nada grave, mas ele havia se sentido ofendido. Admitiu que estava especulando uma vingança contra Cláudia, mas que, se eles se cumprimentassem e ela prometesse tratar suas ideias melhor, ambos estariam em acordo. Tomaram-se pelos braços em um abraço plenamente fraterno e verdadeiro. A situação estava consertada, ao menos no laço daquela residência comum em bairro classe econômica média baixa.

A mãe sentiu o alívio do reparo feito dentro de suas peças, mas sabia que muito havia a fazer pelo lado de fora. Disposta a politizar-se pelos partidos cada vez mais suprimidos, naquela noite ela sentou-se para escrever uma carta. Precisava ser breve, necessitava atirar com precisão, para caber tudo no menor volume possível e, principalmente, mantê-la em sigilo, entregá-la nas mãos certas. Talvez a piada de seu filho Rafael, descartada para o lixo pela irmã, tenha criado impulso para uma revolução. Por enquanto, ao menos, uma revolução dentro dela. A mãe, Isabela, estava cansada de lamentar o presente e reverenciar ao passado, quando havia a maior e melhor circulação das ideias. Mas nem era bom contarmos seu nome nessas linhas.