28 de dezembro de 2017

Um dia depois

Um dia depois, depois do Natal. É 26 de dezembro. Fui trabalhar normalmente como nas outras terças-feiras de rádio. Aproveitei a descida da chefe para tomarmos o elevador juntos. Elevadores fechados que talvez um dia tragam-me claustrofobia. Trabalho com possibilidades.

Ao sair do prédio, onde ocupamos recentemente o 12º andar, um acima do alcance do elevador, caminhamos pelo calor devastador da rua em pleno meio da tarde. O asfalto que reflete tudo o que há de ruim nesse horário e época do ano. Converso e concordo com a chefe sobre trânsito, o desrespeito dos veículos aos pedestres. Fico contente pelo posicionamento dela em relação a isso. É de se esperar que muitos em sua posição de empregadora discordem ou deem razão aos escondidos por trás do insufilm, do emplacamento e das rodas que podem atropelar.

É apenas o fato de falarmos sobre isso que presenciamos um carro escuro que não respeita os pedestres no que poderia ser uma travessia tranquila enquanto vem outros veículos pela rua perpendicular. É apenas o fato de continuarmos a falar sobre isso que um ciclista chega contornando pedestres sobre a calçada, sendo que havia mais espaço ao canto da rua ou da própria calçada para efetuar suas manobras.

O maior chamado de minha atenção nesta caminhada foi observar as pessoas, a grande multidão. Uma multidão menor do que em datas anteriores ao Natal. A maioria da classe média econômica comprou e serviu presentes e ceia entre a véspera e a data considerada o aniversário de Jesus Cristo. A maioria desgastou, usou e abusou do mau humor para encontrar os presentes obrigatórios nos dias anteriores. Presenciou a correria, a comparação de preços, a alta dos preços, os preços elevados dos brinquedos, a gritaria, o show de ofertas, o show de mentiras, as luzes brilhantes, o comércio estendido até mais tarde, para dar tempo do funcionário do turno mais cedo comprar na barulhenta noite, para dar tempo ao funcionário do turno mais tarde ter comprado mais cedo, para haver empregos temporários nessa época e para endossar a tese econômica de que o país vai se recuperando.

Enquanto isso, dias de tiroteio pela cidade, o centésimo homicídio chocando mais por ser o centésimo do que os motivos e execuções dos números 17, 58 ou o 92, por exemplo. Mas a economia teve uma crescente (será?), isso é importante. A televisão divulgava no início do mês a observação de que as pessoas pretendiam gastar tantos porcento a mais em presentes neste final de ano. Quem consulta, pesquisa ou fornece esses dados? E se forem somente uma pressão social para te fazer gastar um pouco mais do que havia planejado? E se o presente de Natal muitas vezes for somente uma obrigação de troca, quando não há ideia do que comprar? Quando não há dinheiro, naquele momento, para ser investido? E o 13º salário justamente nessa época, no ocupacional e ocupante Natal do simbólico décimo terceiro mês do ano?

Mas o semblante das pessoas, um dia após o apavorante Natal, era muito mais tranquilo. Havia menos disputa por espaço nas calçadas a céu aberto. A maior disputa era por caminhar o máximo possível de tempo no caminho da sombra. Não havia a concorrência por olhar roupas, por ter a atenção dos vendedores ou por entrar na fila do caixa eletrônico o quanto antes. Não havia mais essa luta que antecedia ao espírito natalino das redes sociais das ceias. Ceias do prato cheio da falsidade dessa época. Espírito natalino que dura menos do que a bateria das luzinhas das noites de dezembro [que são feitas para estragar, como bem sabemos]. Espírito que dura menos do que a iluminação da principal praça, feita somente para o objetivo de agradar às famílias na época. Esquecida em constante insegurança nos demais meses.

A grande observação foi a inversão de datas. A época do ano que antecede o Natal é seguidamente apontada como a de união, de refazer laços, de unir pessoas entre familiares e amigos. Mas o panorama capitalista do mundo das compras mostrou-me o contrário. Antes da entrega dos presentes, na luta incessante por adquiri-los, do estresse da escolha, do enfrentamento e da concorrência nas compras, na discussão da tabela de preços até o ato final de embrulhá-los, cabia o semblante mais fechado e tenso. Após a entrega desses compromissos, ao dia seguinte, o mencionado dia 26, o alívio nas pessoas era evidente. Menos sacolas que cansavam ombros e braços. Menos disputa de espaço nas lojas abarrotadas e no calor do cão que era multiplicado pela multiplicação de presenças de objetivos semelhantes. O dia 26 foi mais ameno, apesar do calor prosseguidor. Alguns pequenos estresses mais facilmente conduzidos no sentido de trocar aquela roupa que não caiu muito bem ou ficou grande ou ficou pequena, por culpa do ano todo e não somente da ceia.

É isso. Um Feliz pós-Natal a todos e todas.

19 de dezembro de 2017

Capital-Ismo

Me sinto culpado pelo que tenho
E pelo que não tenho
Me sinto culpado pelo que quero ter
E pelo que os outros querem
E eu tenho
O capital
É o maior ismo
Professado
Processado
Jamais cessado

17 de dezembro de 2017

Marcação Cerrada

Fui comer um torrone e fiquei com fome. Comi dois torrones e fiquei cheio, enjoado. As sutilidades das fronteiras do equilíbrio.

Fui fechar a porta do carro alheio e só encostei. Fui tentar novamente e bati forte demais para o dono não gostar.

Procurei informações suas e fui chamado de maníaco. Não procurei informações suas e fui chamado de desinteressado.


Fiz um roteiro para o programa e fui chamado de muito técnico, muito quadrado, pouco descontraído. Não fiz um roteiro para o programa e me chamaram de pouco comprometido, descompromissado.

Dei aula até o horário estabelecido e os alunos acharam careta. Liberei os alunos mais cedo e a direção não gostou.

Arrumei um emprego horrível e disseram que estou me vendendo ao sistema. Sonho com aplicações utópicas e dizem que preciso de um emprego de verdade.

Estudo uma área que gosto, mas querem que eu arrume algo que dá sustento. Estudo uma área que não gosto e dá sustento, mas dizem que preciso procurar o bem estar ao trabalho.
Leio muito, mas dizem que preciso de experiências reais. Leio pouco e dizem que preciso de mais cultura.


Chego cedo e dizem que sou muito rígido com horários. Chego um pouco tarde e acham um absurdo se atrasar nesses compromissos.

Chego cedo e não sei matar tempo ou agir com a naturalidade que esperam. Chego tarde e cobram pela minha falta de comprometimento.

Tenho apreço por você, mas você não gosta de mim. Você tem apreço por mim, mas não gosto de você.

Torço moderadamente por um time, se gabam por serem mais fanáticos do que eu. Torço fanaticamente por um time. Dizem que preciso ser mais contido e moderado.

Não faço. Reclamam que não fiz. Faço. Reclamam que não era assim.

Escreva agora. Ah, mas te falta experiência. Não escreva agora. Ah, mas estás perdendo tempo.

Exigem experiência, mas não tenho o emprego que dá experiência. Exigem o emprego, mas não tenho a experiência do emprego.

A mais clássica: tenho saúde, tenho tempo, não tenho dinheiro.
tenho saúde, tenho dinheiro, não tenho tempo.
tenho dinheiro, tenho tempo e não tenho mais saúde.


Futebol com os amigos. Chuta a gol fraco. “Mas tu não quer ganhar o jogo assim?!”. Chuta a gol forte. “Mas pra quê essa força, é só um jogo!”.

Se exibe com o objeto, produto, eletroeletrônico que tem. “Bem coisa de rico.” Não tem, não se exibe com o objeto, produto, eletroeletrônico que não tem. “Bem coisa de pobre.”

É eclético. “Ouve essas coisas que nem são música.” Não é eclético. “Devia ouvir coisas diferentes.”

Te chamo todos os dias. “Muito meloso, grudento.” Não te chamo todos os dias. “Desinteressado, não gosta de mim.”

10 de dezembro de 2017

A caneta bic e rosa

Era uma caneta bic e rosa. Nada diferente de outras canetas. Canetas bic e rosas. Mas era uma caneta especial. E uma moça especial para tornar a caneta especial. Além de ser bic e rosa.

São raros os seres que conseguem terminar um lápis. Escrever com ele até a última apontada, até o último desapontamento. Até que o espaço para manuseio seja tão estreito que a caligrafia se torna uma missão praticamente impossível e, no mínimo, indelicada, dispendiosa, incômoda. Assim, o lápis se despede, aposentado de sua única, ou ao menos principal função. Geralmente, muito antes disso, muitas pontas refeitas a menos, os lápis desaparecem. Frutos da perdição. Perdidos entre vãos e chão. E vãos do chão.

Lá virão os invocadores do francês Guy Debord e a substituição malévola das mercadorias. Lá virão os invocadores do polonês Zygmunt Bauman e os apontamentos dos tempos líquidos que eram vividos e observados por ele antes de seu recente falecimento. A substituição dos lápis. A substituição das canetas. São tantos os lápis que talvez merecessem um plural. Os lápises. Mortos sem lápides. Ou talvez não mereçam mesmo um plural, pois são todos tão iguais, uns mais iguais que os outros.

Mas e a caneta rosa? Bic e rosa. A caneta era especial. Não somente pelas mãos especiais que a tocavam ou as palavras especiais que dessas ações saíam. Ou quem sabe exatamente por isso. A caneta percebia a magia em mãos, literalmente, e aceitou-se como enviada especial. Como enviada divina. A caneta anunciada pelos anjos. A caneta - bic e rosa - de fidelidade e confiança.

A caneta que não aceitava novos donos. A caneta que ameaçava tornar-se indigente. Perdida. Procurada e ainda perdida. Mas que voltava, fiel como um cão que sai de casa e reencontra os donos. Como um gato que vai e regressa; e vai e regressa. Domesticada a caneta. Precisa a caneta. Precisa seja pela precisão de sua missão ou pela necessidade que nela era depositada.

A caneta bic e rosa pulava de bolsos e bolsas. Escondia-se. Era brincalhona ou teimosa. Ou somente era introspectiva. Tanto tempo dedicado às palavras de sua dona. Queria ela, a caneta, um tempo para pensar em suas próprias palavras. Essas que não saem do papel. Essas palavras que somente as canetas pensam. Seja lá o que pensam.

E a caneta dava um jeito de fugir. E dava um jeito de voltar. Entre os vãos e o chão. E os vãos do chão. Mesmo quando a esperança de reencontrá-la fugia, a caneta dava um jeito e reaparecia. Mágica como elucidado antes.

Energias recarregadas. Funcional como antes. Talvez a caneta tirasse suas folgas sem avisar apenas para restabelecer as energias, para não trabalhar preguiçosa, não travar a tinta. A tinta rosa da caneta bic.

E teve uma longa vida a caneta. Bastante viajou. Entre bolsos, bolsas, estojos e cidades. Experimentou diferentes papeis e superfícies para espalhar sua conduzida tinta rosa. Humilde e minúsculas letras. Grandiosas mensagens. E escreveu provas, notas e cartas.

E só não escreveu só porque, desde o início, aceitou sua missão. Com devoção, apreço, estima e consideração. A rebeldia domada servia apenas para dar um tempo, descansar como todos os trabalhadores e trabalhadoras devem, após suas jornadas. Ciente de que bem realizou seu trabalho.

E realizou até o último afago. Quando melancolicamente a tinta tossiu, tossiu e engasgou. As últimas letras fraquejadas, legíveis a quem escreveu e talvez impotentes demais aos demais leitores. Assim se despedia a caneta rosa. Bic e rosa.

Diferente dos lápis sem plural e sem lápides, esta merecia todo um cerimonial. Receberia os rituais respeitosos das mais distintas religiosidades antes da condução celestial das primeiras mãos diferentes que a tocavam, as mãos angelicais que a conduziam ao paraíso ou para onde quer que seja.

O seu coração, a sua carga tivera a parada e o cessar definitivos. Porém o tubo ainda estava intacto e poderia ser adaptado, reaproveitado, reciclado, reutilizado, em renascença. Nessa espécie de doação de órgãos autorizada por sua dona, a caneta bic e rosa permanecia a contar histórias. Readaptada, recarregada, reabastecida. Ainda fugidia e rebelde, mas reaparecida como sugeria a lenda. A lenda da caneta bic e rosa.

4 de dezembro de 2017

"A morte não é o oposto da vida, mas um acontecimento complementar que a define. O homem, como vida, é um ser para a morte. Refletir sobre esta é lançar luz sobre o viver e a natureza íntima das coisas, do mundo em geral como reflexo especular da Vontade, mero ímpeto cego para a existência. Daí poder-se dizer: a morte é a "musa" da filosofia. "dificilmente se teria filosofado" sem ela. Se o animal frui imediatamente toda a imortalidade da espécie, sem qualquer angústia diante do futuro, no homem nasceu, com a faculdade racional que o animal não possui, a certeza amedrontadora da mortalidade."
Jair Barboza (1997) sobre Metafísica do Amor, Metafísica da Morte de Arthur Schopenhauer
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam
cantemos a canção das chamas!
(Mario Quintana)
"Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto."
(Caio Fernando Abreu)

ouro

o tempo corrido
atrás do ouro
o ouro louro
sua tez ouro
o tempo corroído
o ouro derretido
sua alteza
da tez ouro