31 de dezembro de 2019

última nota da última música

o astro-rei brilha sempre
sol, só e solteiro
brilha o dia inteiro
se não aqui, do outro lado
de janeiro a janeiro
o astro-rei que é lei
sempre trouxe a vida
mas agora abrevia
mais perto da morte
rompendo a camada
que era suporte
um sol para cada
quem é que dá conta?
da antártida até
a outra ponta
aquecimento global
sobe o litoral
pescador, malabarismo
fauna e floral
camada de ozônio
alívio do outono
após o verão
outorga outra lei
tu que sabe na tua sala
com ar condicionado
enquanto as queimadas
cortam de fumaça
outra madrugada
cortinas de mata extintas
cortinas de fumaça
nas façanhas do governo
entranhas do medo
natural é o preconceito
científico não aceito
vai no achômetro
que a Terra é plana
porque é um planeta
que a vida é insana
com tantas bestas
à solta
antas, vidas santas e mitos
cantam a esperança
na boca do conflito
evitam maior atrito
que faz sair mais fogo
é fácil negar o preconceito
sem olhar o outro
vários e vários preceitos
em nome do sufoco
direitos trabalhistas
se vão numa lista
sabemos em nome de quem
deixam muitas pistas
aroma de morte
o capital borrifa
ajoelham às cortes
tentando vender rifa
bala de goma e malabares
na beira das pistas
praia corcunda empurrando carrinho
rinha de galo de quem vende o milho
os ricos nem nas praias
saem de jatinho
saem de fininho sem sair nos jornais
dias e dias que não aguento mais
mas um dia veremos alguns de seus
finais
finados nos confins
por outras classes sociais
enfim a paz
em nossos avais
e anais de evento
e um astro-rei no seio
de cada um guerreiro no meio
e além de uma chama por dentro
o cetro destruído
o povo unido, digno, aquecido
pelo único rei que é astro
lá de cima fiscaliza
os aqui de baixo
na baliza da vida
no facho da luz
o fascismo seduz
mas vai virar medusa 
um a um contra o espelho
de meia em meia dúzia
até a última nota
da última música

26 de dezembro de 2019

cinzas de rima

na produção da rima
na formatação espaço
de forma exímia
pus cada acento acima
pus cada cedilha abaixo
pensei sua gargantilha
cada um de seus pedaços
da criação que é filha
sua do nu dos braços
das pernas também nuas
tento trazer seus traços
empréstimo de suas ilhas
arquipélago em seu formato

toda a canção etílica
vozes são seu retrato
detalhes que aqui se empilha
recall até os metatarsos
assim a rima é um corpo
ou somente extremidades
epiderme coberta
colheita de minha meta

assim a rima é um sopro
põe o barco em movimento
impõe-se do cais afora
e conserva sim um lamento
sem ser revelado agora
úlcera que vem por dentro
consome, corpo não chora
cora sem esquecimento
na hora que a conta cobra
o juro é o maior fermento
o juri é teu e torra
condena ao abatimento

assim a rima é teu corpo
inesquecível vinho tinto
só piora a distância
a lembrança com o tempo
consome toda a relevância
primeiro plano
lente de aumento
ocupa toda a mente
stand by, resto dormente
resta a fresta do esquecimento
migalhas enganam
e logo falha
cai de novo nas malhas
tralhas de vão passado
train in vain
vai aonde?
onde não possa ser encontrado

a rima te encontra
a rima é teu corpo
acampamento monta
apronta a fogueira
sendo consumida com o tempo

lírio ao lado do lixo

lírio cresce ao lado do lixo
desenvolto no capricho
e um picho ao seu redor

lírico cresce ao lado do lixo
dez em volta nesse nicho
e prefere estar só

25 de dezembro de 2019

rupturas e cordas bambas

Obviamente a psicologia não se desenvolve caso a caso de forma isolada. Da movimentação de casos para a observação de ocorrências, repetições, aproximações e padrões, se encurtam os caminhos para sanar o estado dos pacientes. É a busca de se entender e o porquê de agir de determinada forma.

Frisado isso, há textos que procuram entender as formas e os tipos de comportamentos, mapeando as tendências e facilitando a monitoria. Ainda se estudam os casos, as pessoas não se tornaram números, mas o que não impede classificações, que, abalizadas, podem ajudar e muito.

Não trabalho com isso, mas a observação de textos e métodos, inclusive repassados para pacientes, me possibilita aplicar isso em breve autoanálise. Se procura um tratamento completo, a indicação é da procura de um profissional da área. Aqui apenas esboço onde me situo.

No que se considera uma personalidade não-assertiva, preencho cartelas de bingo e me identifico em vários pontos. O perfil conciliador, que evita brigas, prefere refugiar-se do que a assistir as exibições monótonas e desinteressantes da espécie, convivendo seguidamente com o tédio não nas atividades solitárias, mas em grupo. A insegurança sobre o próprio ser, que pode até se considerar altivo e atrativo em determinados pontos e práticas, mas que passa a notar e relatar o desinteresse alheio e evitar contato.

Desenvolver-se em atividades solitárias requer outras pautas como gostos extravagantes ou distintos ou mesmo o desinteresse pelo que as demais pessoas têm se interessado. Uma faca de dois gumes que mantém a inércia a meu lado e o dinamismo na face oposta do quintal.

O estado solitário apresenta essa via cruzada, no estar bem consigo mesmo estando só pelo desempenho de atividades como esta, da escrita, além de leitura e assistir a programações televisivas, como filmes, os quais gosto. Ao mesmo tempo existe um incômodo próprio de sentir-se exclusivo, no sentido excludente, das atividades de interação humana. Meu relato ao passar o dia no quarto em 25 de dezembro leva a crer que esse ponto está em seu ápice para a ebulição.

E para além da fincada da agulha, dessa ponta solta que nos entristece por si sós (e a sós), sem a interferência direta de terceiros, estes terceiros surgem no intrometimento para que sejas carregado ao zelo da interação e atuações. Todavia, é uma relação em ruptura. O seu isolamento causa a ruptura no andamento harmônico das relações sociais. Ao menos harmônico para quem não nota as incongruências e hipocrisias hora após hora no cotidiano. E se o seu isolamento causa essa fenda por onde se esvai o bem estar social, por sua vez a sua volta à condição de interacionista causa uma ruptura na zona de conforto do isolamento. Essa via, em resumo, é de rupturas e o perfil não-assertivo, o nosso em questão, tende a satisfazer o gosto de terceiros desempenhando atividades, saídas, escolhas que não lhe condizem com o gosto, mas, para evitar maiores conflitos e desgostos em terceiros, aceita-os.

Mas essa condição não-assertiva, como o armazenamento de um aspirador de pó, o filtro de um ar condicionado ou outros filtros, acaba tendo um limite. Aguentar muito essas programações forçadas e desgostosas para a pessoa acumula um mal estar interno. Não por acaso o texto do "Manual de Avaliações e Treinamento das Habilidades Sociais" cita que pessoas do perfil não-assertiva apresentam tendência a desenvolver chagas como úlceras e descontroladas irritabilidades quando finalmente alcançam a zona limite pós-acumulações.

Exercícios de ir aos poucos, como algumas pessoas gostam para se acostumar à água das piscinas, podem ser apaziguadores no caso. Aceitar e controlar a proposta de dizer "não". Porque é de conhecimento que caso tu cedas sempre por não dizer "não", as pessoas arrancam-lhe não somente a mão como o braço e até onde for possível. São zumbis devoradores. É preciso equilibrar-se nessa corda bamba entre topar sua zona de conforto, restauradora de energia, absolutamente necessária a nossos perfis que não aguentam, não suportam, detestam a interação consecutiva, e também não arrebentar completamente o elo social necessário por interesses de sobrevivência, desde alimentação e estendidos a demais serviços terceirizados, como saúde, limpeza e trabalhos manuais.

O diabo do respeito, essa figura difícil de ser atingir e fazer com que os outros atinjam, é um ponto crucial. Entender que o seu corpo e sua mente precisam de resguardo das atividades que custam paciência, requerem esforço e interações demasiado desgastantes, ao passo que não se deve, não se pode obter êxito em total recolhimento antissocial, na perda de contatos e na ruptura definitiva com as demais pessoas que, inconscientemente, sem perceber, talvez queiram o bem, mas sejam praticantes dessas queimaduras de diferentes graus e chagas mais profundas. Estejamos alertas na procura pelo relaxamento. E às vezes relaxados na zona de estar sempre alerta.

morro dos lobos uivantes

Em meio aos fogos de artifício e demais explosões, latidos de cachorros confusos e assustados, carros em trânsito irresponsável, sons altos, música que adentra madrugada, o silêncio. O silêncio dos suicidas. Acompanham e transpassam e esvoaçam espiritualmente até meu recinto. Sinto-lhes e ouço-lhes e, para quem os sente e os ouve, são mais ensurdecedores do que tudo o que foi mencionado acima.

Evitam que eu me largue ou me abandone uma meia dúzia como se dessem as mãos e envolvessem o tronco de uma árvore centenária que seria (ou será) cortada pelo inestimável progresso, segundo alguma construtora ou mesmo a administração pública local. Eles a cercam e prometem grandes greves e protestos para mantê-la ali intacta como sempre esteve centenariamente, de forma ininterrupta. Mas até as aparentes grossas raízes tombam.

A depressão era, há alguns anos, um lobo solitário à beira de algum penhasco distante. Uivava e eu ouvia. Uivava e eu ouvia. E não dava bola. Era apenas um uivo em qualquer lua cheia ou minguante ou crescente surgia. Mosquito insociável que vinha tentar a sorte sozinho e era facilmente esmagado quando identificado após interromper meu sono e fazer-me acender a luz da lâmpada de cabeceira. Fácil derrotá-lo.

Pois o lobo esquivo mostrou-se fiel oponente e insistente a emitir seu brado contra o céu noturno; ele sempre me alcançava. Com o passar do tempo, esse lobo, através de seu inconfundível gemido, ganhou companhia e hoje sinto como se formassem um agrupado de quadrúpedes insaciados, matilha que me cerca e a qualquer momento pode me devorar.

Seus caninos estão à mostra, as bocas espumam e me quedo paralisado. Estão à minha frente, esquerda e direita e às costas tenho somente como que uma montanha íngreme demais para ser escalada. A vida começa a demonstrar desafios e imponências demais a troco de pouca recompensa. A única saída é atirar-se de escassas e sangradas unhas e ponta de sapato para firmar-se nessa escalada. Sem outra alternativa, sem maiores equipamentos de segurança, nem emocional nem financeira, na conduta que segue e povoa a complexa arquitetura do palácio das incertezas.

19 de dezembro de 2019

marionetas

às vezes escrevo sem significado
apenas para não ficar entravado
na garganta
outra banca de palavras, um bocado

deve ser a maldita da metapoesia
que se mete e na minha mente
monta eucaristia
nos refúgios de meus subúrbios me habita
me visita e picha nos meus muros

desenha pelas ruas do passado
ordena pelas ruas do futuro
faz-se do meu lar inalterado
altera móveis, pedras e entulhos

metapoesia neta de outro poema
face da minha filosofia
crase somada, tese cravada
entre cravos, gerânios e orquídeas

metapoesia que se meta
para eu ver
até onde vão as marionetas
com vidas próprias
em meus dedos a escorrer

dissolvente

sois inclemente com minha mente
impura
impávida e de difícil acesso criatura
que percorre as agruras de minha alma
me censura o sentimento que é minh'aura
faz com que me sinta indecente
e que me sente
a pensar o meu ser dissolvente 

18 de dezembro de 2019

centaura

fiz um poema a ti
alço-te assim porque mereces
seguirei sim a menos que peça
para que a minha cabeça cesse

secar a torneira das palavras
irrigado terreno que lava
a alma de quem se reconhece

fiz um poema aqui
a contornar sua áurea alma
que te toque se não com a palma
muito mais fundo é o que sorri

escolhi a ti, criatura
entre tantas outras dessa fauna
elevei-te a altura sarau em sauna
para imortalizar-te: literatura

12 de dezembro de 2019

death poem

desculpa poema tão curto
desculpa poema tão porco
desculpa por esse insulto
desculpa ser tão absorto
desculpa a uns ser culto
desculpa por estar morto
desculpa a outros ser inculto
mas da forma que me sepulto
todavia (todavida) continuo morto

pelos

meus pelos nas coxas me irritam
alguns pelos de colchas me irritam
saudade dos seus pelos meus
me excitam

bubblegum

gira a chave fecha a casa
gira a chave liga o motor
o que iluminará o astro maior
se eu não sair, se eu não for?

dezembro de 2019

dezembro de 2019
o que te move
ao fim da década
é o mesmo do começo?
amada
claro que não
a gente nem se conhece
a gente até se merecia
a gente nem se conhecia
a gente não conhecia
alguém para ser
o verbo que seria
o sintagma mais importante
o magma mais envolvente
o sabor mais quente
de infinito instante
ah, como era bom antes
quanto melhor durante
sem nós dois
que me sobra?
cobra que rasteja
e se desdobra
nesse vazio dos depois

astro maior (a carolina maria de jesus)

um nascer e se por
lá no canto do condor
lá no canto do cordel
figura fiel
vai voltar se for
lá no céu a fitar
astro maior

nome de poema

tem que dar nome ao poema
ah tá
isabela
franciele
invente alguma maria helena
tem que dar nome
ao poema
o cachorro existe
kika ou zibi
quadrúpede e sem vestes
logo vistes
sem nome e menos problemas
contra a fome
o pobre luta ao que lhe some
salário menos que o mínimo
a ver se consome
e ainda tem que pensar
em nome de poema
e o governo pensa
em são paulo a merenda
bolsa cortada
fonte de renda
nos jornais nada
veja e entenda
praticidade, televenda
alô, é da casa do...
caiu a ligação na vivenda
demoro pouco mais que repentista
decepciono a telefonista
que viu meu nome na lista
e eu desligo, desabrigo
um zero onze, um zero vinte e um
outro algum
algum outro passando sufoco
pra cumprir meta de venda
governo pensa nome
de projeto e de emenda
e não cumpre
eu cumpro
e não penso em nome
de poema

patrono

sono, patrono máximo
de meu humor
bono, o que é bono?
por acaso ácido
meu rumor
trono
reis e rainhas
eu e você
meu amor

tylenol gotas

poesia sem melancolia
noite sem dia
dia sem sol
caixas, cápsulas, válvulas
coristina
rivotril
dipirona
tylenol
onde chegou a vida
viu o que te deu
ou a vida te tirou

8 de dezembro de 2019

venceslau

eu tenho uma namorada em novo hamburgo
ela deve estar com os namorados dela
eu tenho uma janela de frente pro tumulto
ali eu sepulto uma ou outra ideia

eu tenho pensado na minha família lá nos burgos
por fora e tão pobres camponeses
na américa a imaginar um outro futuro
com o nome mais vagabundo dos poloneses

venceslau
venceslau
venceslau

eu tenho uma paixão por rock gaúcho
escrevo umas letras qualquer
e ponho no fluxo
se ficar um pouco melhor
já serve pra forrar o bucho
não precisa grandes coisa
pro rock gaúcho

eu tenho uma madrugada em outro fluxo
a cardia acelerada e o comprometer
de outros músculos
eu tenho uma janela pra outro mundo
lá estamos eu e ela em
königsberg

minha tia-avó acreditava numa herança
na alemanha
talvez fosse a maior esperança dela
dos meus sonhos de criança
não sei quais estou à espera
eu queria ainda acreditar
na primavera

venceslau
venceslau
venceslau

1 de dezembro de 2019

outras bastilhas

dedilha e dedilha este violão
que vamos derrubar outras bastilhas
aceite a pastilha da minha mão
que tirei de dentro da vasilha

minha mãe fez cirurgia em outro verão
e retirou a sua vesícula
em nome das rimas pela perfeição
improviso rimas ridículas

me acostumei que a polícia faz o que quiser
reclamar para quem e para quê?
dedilha e dedilha este violão
que vamos derrubar outro batalhão

quem policia a polícia?
que se disfarça travestida de milícia
quem policia a Melissa?
minha gata sai de trás das hortaliças

quem policia a missa?
ou o que ocorre atrás dela
longe do alcance de qualquer janela
atos e chances de qualquer premissa