28 de dezembro de 2022

Reinado

Há vários tipos de escritores. Os que relatam dramas. Os que rebuscam prosas. Os que abrem caminhos pela poesia. Os que relatam cientificamente, biologicamente, astronomicamente e outros termos acompanhados do mente. Os que constroem ficção bem ficcional. Os que constroem ficção bem apoiada no mundo existente. Os que panfletam politicamente. Os que se inserem. Os que se autodiagnosticam. Os que observam as lamúrias e chagas nos outros. Escritores por uma causa. Escritores por uma valsa. Por um sonho de. Escritores que descrevem seus sonhos, acordados ou dormidos. Escritores que inventam mundos por ação. Escritores eróticos. Escritores debochados. Escritores paisagistas. Escritores de criações estritamente psicológicas.

E quem sou eu no meio de tantos tipos? Espero me apresentar com um pouco de cada. Não bato na porta com apenas uma proposta. Recuse meu verso e tento uma prosa. Um outro verso. Um inverso. Uma contradição. Um contrargumento. Contra ti ou contra mim mesmo. Com o perdão do trocadilho, um novo universo. Une versos. Verídicos desconexos. Vereditos anexos. Créditos e débitos no cartão da vida. Curativos e feridas. Chegadas e despedidas.

Espero ser um pouco de cada. Cercado pelas paredes e pelo nada. Pelas batidas extasiadas que meu coração por vezes abdica. Espero ser um pouco de cada e seguir as dicas. As pistas e iscas de meus professores antecedentes, antepassados, diante do ausente e do presente, militante combatente, guerrilheiro entorpecente, pássaro e serpente, ente dos mais queridos, por vezes na cova dos inimigos. Sou e estou contigo. Meu bravo ou mesmo breve amigo. Te, ti, contigo. Não sei se consigo, mas tento. Atento aos mais breves movimentos, brisas e ventos, verões laranjas e invernos cinzentos, cinzeiro das pontas que se apagam, do mar das águas que alagam, das páginas que alargam meus sentimentos.

Espero ser mais do que parecer. Posso parecer ser de cimento. Mas sou o mais frágil pré-sentimento que em flor se abre e às vezes não cabe, ou às vezes só se vê em lente de aumento. Aumento o rebento de meus rebentos, minha rebentação mar a dentro de ondas, de sondas espaciais e especiais, zonas urbanas e rurais de meu testamento.

Espero. Mas enquanto espero ergo. Ermo. Com o cedro na mão de meu triste reinado. De minhas terras e pedaços arrasados, de sentimentos irados, pensamentos pirados e trabalhos a serem arados. Gado. Não peço que sejam, nem sereias nem aqueles que rastejam, talvez com que eu beba uma cerveja, talvez nem isso seja o combinado. O comboio armado, o combo formado pelo que fui e pelo que serei. Se rei for, ser rei do quê? Do quê serei? Espero por algo que ainda não sei.

19 de dezembro de 2022

Chuva na janela do fim de ano

É noite e a chuva dedilha a copa das árvores no bairro da Cidade Baixa em Porto Alegre. Entre os milhares de cenários possíveis, imagino este, na reflexiva noite descrita. Se pensam nos acertos e nos erros da vida. Mais nos erros do que nos acertos. Quem acompanharia minha mãe na moradia em Santa Catarina dá volta. Minha tia e minha vó retornam para o extremo sul, para cidade onde nasceram e devem vir a morrer um dia, provavelmente minha vó antes cronologicamente, gritariam as estatísticas se convocadas fossem.

Na viagem que descrevo para os rumos de acá, noto um caminhão de lixo vazio a trafegar na estrada, longe de cumprir suas principais atribuições naquele momento. Vazio, mas enfeitado para o Natal. Dois pequenos bonecos de Papai Noel na traseira do caminhão, com suas roupas avermelhadas e suas barbas proporcionalmente longas. Com olhares singelos a esperar o depósito de lixo mais tarde. O motorista não demonstrava grande sentimento quando ultrapassado por nosso carro. Um olhar distante e a boca, a dizer a verdade, levemente voltada para cima, uma raridade, mesmo nesses tempos de final de ano.

Em um posto de gasolina na região metropolitana da capital, uma ambulância pertencente ao município de Eldorado do Sul ganhava um banho de mangueira. Dois sorridentes homens a banhavam e falavam sobre futebol. Ouço apenas o nome do camisa 10 brasileiro da última Copa do Mundo. Um camisa 10 que passou longe do desempenho de pelo menos outros três 10 no Mundial: Messi, Mbappe e Modric, os Mm's. 

A ambulância recebe a água e mais tarde também vai receber o que justifica suas principais atribuições. Pessoas em maior ou em menor desespero, a depender do problema físico e do estado emocional pelo qual passam. As pessoas são diferentes e reagem de formas variadas. Os motoristas devem tentar estar com os olhares tranquilos dos bonecos ou até o leve sorriso de indicação para cima, como estava o motorista do outro veículo oficial, o caminhão de lixo. Os que lavavam a ambulância pareciam deveras descontraídos para exercerem essa função. São situações que nos surpreendem, mas meu julgamento é bastante inusitado e creio até desnecessário.

Na chuva que me goteja e lava a janela, a trilha sonora que me põe atenção. Estamos nessa época reflexiva dos acertos e erros, da troca de ano. Digo para ela que vamos para o terceiro ano juntos, imitando o jornal impresso que permanece em circulação diária em nossa cidade. Ele começou no século 19, atravessou o 20 e a duras custas segue no 21. Na propaganda que lançaram há uns anos, é um diário em cobertura de três séculos. Então assim convoco nosso relacionamento à ocupação de três anos, mesmo sendo inferior a um ano e meio.

Nessa época reflexiva, no momento penso nos rumos de minha família, pessoas que vão e voltam, que retornam ao extremo sul minha tia e minha vó. Meus pais em Santa Catarina ficam mais solitários. O casamento de muitos anos, a casa que acumulou móveis mas se esvazia inevitavelmente na povoação do intransponível silêncio. A comunicação em falta. A incomunicabilidade. Os filmes italianos de Michelangelo Antonioni a focar nisso. O silêncio prolongado, os pingos da chuva intercalados e resistentes à janela. O silêncio como a chuva se renova. É muita chuva nessa chamada primavera a poucos dias do verão.

Não se percebe o quanto obedecemos as escolhas quando se é mais jovem, porque quando se é mais jovem geralmente o caminho segue mais por uma linha reta. A escola avança ano após ano até o término do ensino de nome médio. E depois o terceiro grau ou a rotina do trabalho. As escolhas aumentam. O mínimo poder de compra adquirido lhe assegura escolher algumas embalagens e menos ainda conteúdos. Você vive uma viagem de hiperlinks pela cidade ou pela internet. Você traça um caminho entre a farmácia e a padaria e quer otimizar tempo. Mas chega na casa vazia e se depara com a incomunicabilidade e o silêncio. E talvez com algum filme preto e branco de Antonioni. Ou com os pingos da chuva fazendo trajetórias inesperadas enquanto deslizam até onde for possível.

15 de dezembro de 2022

O caminho de desistir sempre é curto, o de prosseguir não é tão longo

Duas horas da manhã e meu cérebro não descansa. Um vagabundo - ou mais - cruza a rua e importuna quem esteja acordado ou de sono leve. Acho que apenas suporto essa cidade. Que no fim das contas não é tão diferente de outras. E em todas elas eu seria obrigado a me encontrar comigo.

O caminho de desistir sempre é bastante curto. O de prosseguir não é tão longo. Tudo cabe em uma vida. Há vidas de vários tamanhos.

No fim das contas acredito em minha irmã e que pode haver punição à alma dos suicidas. Os espíritas afirmam isso. E também afirmaram que eu necessitava de um psiquiatra. Ou então os presentes na sessão  - em que eu estava ausente - mentiram para mim. Mas minha irmã, abilolada ou demasiado inteligente em algumas questões, afirma com segurança sobre as almas. Escolho manter a minha intacta. Às vezes com motivos terrenos o bastante. Às vezes, na falta de algo melhor, pelo depoimento de minha irmã.