Chove de leve ali fora, do outro lado da janela. São 3h30 da manhã quando inicio o texto. Provavelmente serão pelas quatro quando encerrarei. Aguardo pela minha tia, que vem a Santa Catarina. Este a sem crase. Vou a Santa Catarina. Volto de Santa Catarina. Estou lendo um livro de um Judeu chamado Pierre Goldman. Ele era filho de poloneses, mas nasceu em Lyon, na França. Por isso o livro se chama Lembranças Obacuras de um Judeu Nascido na França.
Ele aborda o preconceito racial e os conflitos armados que permearam toda sua vida. Um erro de grafia no livro é assalto à mão armada, que leva crase, mas a cada citação no livro não há o sinal gráfico. Irrelevâncias. Escrevo a partir do meu celular. Sinto fome, mas não quero correr o risco de interromper o sono de meus pais, talvez a coisa mais preciosa que eu zele em vida, porque sei o quanto meu pai é esforçado quando acordado e merece repouso. Minha mãe passa o dia seguinte muito debilitada quando dorme mal. Eles merecem dormir bem. Não saio do quarto para comer algo para não correr o risco de cortar o sono deles. Mesmo sabendo que a aproximação de minha tia na rodoviária fará com que ela emita uma mensagem e acorde minha mãe. E meu pai a busque na rodoviária. Eu de metido insone devo ir junto de acompanhante.
Escrevo a partir do meu celular com o carregador não original, que fica acusando o mau contato entre dispositivo e aparelho. Raios.
Pierre Goldman se defendeu de tribunais injustos que imputiram assassinatos, homicídios em sua ficha criminal, que, segundo a vítima do sistema, deveria constar apenas de assaltos, quando nem fazia uso das referidas armas. Goldman fez contato com homens das Antilhas, congoleses, haitianos e demais latino-americanos. O livro tem tudo a ver com o clima pós segunda guerra. Goldman era um Judeu não pertencente ao país de seus pais, uma Polônia cada vez mais antissemita, barril de pólvora entre sovietes e anti-stalinistas. Também nunca foi um francês, sofrendo o preconceito racial por ser considerado um estrangeiro judeu. Engraçado que quando foi para os Estados Unidos, em uma passagem de navio, trabalhando para um comandante noruegueses, nos EUA, Goldman era visto como "o francês". As coisas mudam.
Minha tia conviveu no mesmo apartamento comigo no fim de 2022. Me ajudou em um período difícil de minha longa doença, quando eu não conseguia evacuar direito, pelo mau funcionamento de meu intestino, que não absorve mais vitaminas como deveria (atualmente tenho reforçado vitamina B oralmente, mas já levei injeções também em outros tempos).
A vinda de minha tia, que voltou a morar em Pelotas mesmo após a insistência de meus pais que ela ficasse em Santa Catarina, a vinda dela tornou-se um evento importante de meu verão. Estou muito isolado, sem amigos por aqui. Ter a companhia de minha tia pode me fazer bem. Deixo aberta a possibilidade disso. Me faz lembrar perspectivas quando, por exemplo, o volante Jailson saiu do Grêmio e não era assim dos mais importantes. Tempos depois a qualidade de elenco recaiu e a torcida esteve em polvorosa para que ele voltasse, o que nunca ocorreu. Fez campanhas e títulos pelo Palmeiras. Além dele, lembro o caso de Rafael Carioca. Ou até Douglas Costa, que viria como salvador. Maior desperdício da história que já vi no futebol brasileiro. Perspectivas.
Pois a perspectiva de minha tia próxima a mim, pessoa da qual nunca fui tão ligado, aumenta na medida em que não tenho outras pessoas com quem contar. E assim devo me acostumar por idade ou distância, ou rotinas atarefadas dos demais, ou menos tempo ou menos grana para disporem conosco. Nos viremos.
Além do livro de Pierre Goldman, a ver com o assunto, os últimos filmes de Christian Petzold, talvez o cineasta alemão que eu mais goste, escalando posição preciosa entre todos os europeus (estou acompanhando toda filmografia dele). Petzold dedicou os últimos anos a filmes com referências de segunda guerra mundial, a exemplo de Phoenix e agora Transit, o qual estou assistindo. Parei e aqui escrevo. Em Transit, traduzido como Em Trânsito, o personagem foge pela França cada vez mais ocupada pelos nazistas, necessitando de passaportes falsos, desculpas, dinheiro e muita desenvoltura. O interessante deste filme, além da troca de identidade com o escritor que se matou no início da trama, o interessante é que Petzold não se preocupou em ocultar os novos carros e as novas ruas francesas ou alemãs. Adaptou um filme de segunda guerra em um mundo como podemos presenciar em cenários dos anos 2020. O filme ainda dispõe de cartas, luminárias, trens (?), mas também há carros modernos e ruas que não escondem o avanço tecnológico pelo qual passamos.
Por fim, gostaria de afirmar que gosto muito dos heróis das tramas de Petzold, pessoas comuns e muitas vezes entricheiradas entre escolhas, além do bem e do mal. Diferença sagaz, preciosa em relação aos mais vistos de Hollywood, em personagens que despertam apenas admiração ou raiva, ufanismo demasiado, leitura rasa. Nos filmes de Petzold somos convidados a pensar em situações cotidianas e ao mesmo tempo extremas: o que eu faria naquela situação? Preciso roubar? Preciso fugir? Preciso amar? Preciso abandonar? Preciso aplicar um golpe? Preciso fugir das autoridades? Quem tem a razão, tão mutável e movediça, tão escamoteada e fugidia? Assim acompanharmos os últimos minutos do filme Transit, para descobrir se nosso protagonista ficará ao lado da família que encontrou pelo caminho ou fugirá com o passaporte que está encaminhado, concedido para iniciar uma nova vida não nos Estados Unidos, mas no México.
O que será que Pierre Goldman escolheria se fosse ele no papel principal não do livro biográfico de sua vida, mas nesta interessante trama do filme de Petzold? Goldman que, ao largo do livro parece querer se livrar da morte - que o perseguia em pensamentos e ações desde a infância-, justamente por um amor distante, de uma antilhana distante, no tropical caribenho, encontra uma desculpa para manter-se vigilante no sonho de libertar-se da prisão e continuar combatendo, talvez ao lado das diversas organizações comunistas estudantis das quais fez parte, ou deseja apenas uma vida em calmaria, mais justa e menos ambiciosa. O que escolher para salvação e continuação quando os caminhos se entrecruzam e as soluções não são tremendamente iluminadas e dispostas como a facilidade de escolher um ingrediente nas gôndolas do supermercado ou um livro de uma estante?
Assim vivemos entre liberdades e aprisionamentos e eu, enquanto ainda chove, e passam das prometidas quatro da manhã, espero minha tia chegar na rodoviária.