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18/02/2023

Triste Realeza

Tristeza é minha realeza

Surge a cada manhã firme e tesa 


Tristeza de mim é indissociável

Surge a cada manhã assim palpável


Tristeza é minha enquanto eu existir

E quando eu me for não fique triste

Pense não ser mais triste

O ser que agora não mais existe


Tristeza também tem sua beleza

Lágrimas brilham

Enquanto os dias nos humilham


Comida na mesa

Combate uma tristeza

Mas não a outra

Por dentro da roupa

Por dentro das ideias

Prende como selas 

Fecha as janelas


24/05/2022

Processos da loucura

Como não ficar louco em uma sociedade em que uma consulta médica custa 500 reais? Com desconto do plano de saúde 400. Nem a consulta o plano de saúde capta, absorve, abrange integral. Só um mero desconto. 500 reais, quase meio salário mínimo. Mais de meio salário para muita gente abaixo do mínimo.

Vai gastar meio mês para uma consulta em que o médico apenas olha para sua cara? Os médicos estão cansados da exaustiva pandemia. Concordo, muito eu penso neles. Mas muito penso em nossos abatidos pacientes. Atendidos com demora e muitas vezes atendidos de qualquer jeito. Chateados com os sintomas e com a forma como são tratados. Ou destratados. 

A pessoa muitas vezes volta para casa sem a resolução de seu problema. E ainda cansa mais o psicológico. E hoje em dia o que não cansa o psicológico? Na era de tanta informação. De tanta tecnologia que nos bombardeia assuntos. Imagina não ter assuntos, algo vai pousar para falarmos. De piadas às piores crueldades, mas algo vai. E aqui mesmo no texto de uma origem fujo pela tangente em outras raízes. Mas o psicológico. O psicológico cansado dessas notícias, dessa necessidade de interagir, da era do pós-trabalho para quem trabalha, de casa ou não, mas sempre sobrando para casa. Antes levava do restaurante um pouco de comida para o cachorro, hoje leva mais algum cliente insatisfeito que poderia ter sido tratado mais cedo. Consultorias e atendimentos. Preocupação e ansiedade.

A era do pós-trabalho para quem trabalha e quer garantir um sustento que lhe permita 500 reais em uma consulta particular,  ou 400 reais se você bancar a continuidade mensal do plano de saúde que não cobre todos os gastos, sinto-lhe muito. Como estiquei o ouvido para o caso da senhora que consultou as secretarias para tentar um atendimento o quanto antes porque depois que ela foi no dentista passou a sentir-se tonta. Será que é neurológico ou o que é? Ela, à beira de seus 90 anos, nascida em 1933, irá descobrir e minha fofoca ficará incompleta porque ela agendou retorno só para o dia seguinte, às 18 horas.

Não gostei das secretarias. Quando falaram do tempo, de casa ou apartamento frio e sujeito à umidade, ok, mas também falaram de outros pacientes, que uma mulher no exame dela nada apontava então não haveria necessidade de pressa na marcação de sua consulta. O desaforo. E eu ouvindo me sentindo tapeado porque eu mesmo havia sido remarcado já duas vezes, passando da suspeita de um ciclone que ao fim nem veio, e depois pelas prioridades médicas de atender um necessitado de cirurgia, sua especialidade, corta e corta. E lá se foi outro turno. E eu reagendado olhando ali cabisbaixo para meus próprios tênis que já foram mais brancos, sujam e já não limpo e minha roupa amassada e já não me importo se assim fica porque tenho prioridade é de resolver a minha saúde.

E cabisbaixo como eu aguardava, cabisbaixo eu saio porque sou eu reagendado, sem solução, não é com esse médico muito menos com as secretarias fofoqueiras que vou me resolver. Adio meus problemas e preocupações. Gasto tempo e dinheiro. E linhas que obviamente esse texto é sobre muita gente dependente de SUS ou apalermada mesmo na sorte de um plano de saúde, talvez incompleto. O texto é sobre mim  cabisbaixo, abatido e um pouco mais pobre, sim. Também mais pobre de espírito. Ah, o psicológico... Ainda não sou totalmente louco porque redijo essas linhas todas. Mas só por isso será?

31/01/2022

Mosca na Lâmpada

Uma mosca se debate contra minha lâmpada 

Nessa lâmpada habitavam antes cupins

Talvez seja essa uma prova cabal

De que as coisas são mesmo assim


Moscas muitas vezes bateram contra minha janela

Independente da casa eu tinha de abrir para elas 

Ou continuariam a se debater o dia todo

E conhecendo as moscas, a vida toda delas


Mosquitos muitas vezes me provocaram 

Queriam meu sangue, me deixavam aflito

Mais do que o hábito hematófogo

Me agoniavam mesmo eram seus zumbidos


Baratas muitas vezes ganharam a batalha 

Se eu pudesse, não entrava, eram minha falha

Se fossem voadoras, tanto pior o horror da hora

Que somente uma chinelada amenizava 

Pancada com a sola


Enquanto escrevo isto a mosca se debate

Gostaria de deportá-la - talvez à Marte

Mas nem precisa tão longe, para qualquer parte

Deixá-la livre e com vida

Antes das derrotas cruciais o amistoso empate


Ó mosca que não habita sopa

Faz da lâmpada e seu entorno o baluarte

29/11/2021

Análise do Amanhã Nunca Mais (2011)

'Amanhã Nunca Mais' é um filme que me agradou muito mesmo. O desenvolvimento das situações pelas quais Walter passa são uma sucessão de constrangimentos e indelicadezas das quais não estamos livres no cotidiano, sobretudo na profissão dele, que é um médico-anestesista.

Praticamente todo o filme se desenvolve com cenas constrangedoras e Walter torna-se um personagem aprisionado pelo caos dos grandes centros. São situações específicas para o público morador das cidades grandes, mas também problemas que qualquer pessoa pode passar por. Pensei em elencar algumas dessas situações.

O constrangimento de Walter na praia, quando precisa passar protetor solar nas costas de sua sogra. Em seguida, ele também presencia sua esposa em uma foto com o pai de outra criança, quando os pequenos brincavam na areia. Essa situação já dimensiona que o casamento do anestesista não vai bem. O pai de família ainda tem interrompido o seu descanso quando precisa levar a pequena Juju até onde possa fazer cocô. Antes disso, é importante lembrar que Walter não conseguia descansar a mente direito, olhava para o topo de seu guarda-sol, mas enxergava mesmo eram as figuras de seus pacientes sendo sedados, entubados, sangrados, medicados. Por fim, recebe uma ligação de caso de urgência em seu serviço e a família precisa sair da praia mais cedo.

O filme perpassa situações cotidianas do caótico trânsito paulista. Na saída da praia, Walter e família estão na estrada tumultuada com a volta da praia, vários e vários carros cinza em lentidão. Na rodovia de sentido oposto, o trânsito fluía sem problemas, com liberdade para dirigirem. O médico fica preso entre os demais carros em grande parte do desenvolvimento da trama. Outra situação que caracteriza Walter é ser negro em um cargo de anestesista, de médico. Ele precisa seguidamente estar provando a sua competência, ao que pessoas desconhecidas estranham como um negro conseguiu chegar a tal cargo. Isto é provado nas encrencas em que ele acaba se metendo no casamento de uma conhecida, um dos momentos de coincidência exagerada do filme. Ao ficar sem gasolina para buscar o bolo do aniversário da filha, Walter acaba parando o carro em frente à casa dessa conhecida, que nutre uma paixão que estava adormecida pelo personagem principal. Ele acaba se metendo nessa enrascada, pois a mulher o convida para entrar, fugir da repentina chuva que aguça seu azar e, nessa troca de favores, Walter consegue reabastecer seu carro para retomar sua missão de entregar o bolo a tempo da festinha de Juju. Porém, a conhecida não se dá por vencida: ela se embebeda, trazendo a temática do alcoolismo à tona, o constrangimento pela atuação da moça em busca de ser correspondida pelo nosso Walter. Ela acaba armando cenas e mais cenas, sendo uma delas atender o telefone de Walter enquanto ele estava no banheiro, se trocando após ter se sujado na missão de transferir a gasolina entre os carros deles. A mulher atende Solange, a esposa de Walter e é claro que o casamento vai se arruinando mais e mais, afinal de contas, uma desconhecida atende o celular do marido enquanto ele está ausente "no banheiro se trocando", conforme as palavras da doida apaixonada pelo protagonista.

Pois bem, o foco são as pequenas situações que criam o todo, a bola de neve onde está submergido nosso querido Walter, um personagem sobretudo caracterizado por não conseguir dizer não - conforme toca a música de Seu Jorge logo na abertura da película. Todos fazem pouco caso das vontades do pobre Walter. Com a dificuldade de se impor desde casa até o trabalho e mesmo frente a desconhecidos. Para se livrar do bloco-cirúrgico, ele tem uma imensa dificuldade de convencer seu amigo médico durante a prometida "rápida saída" no período, o que, como vimos, acaba se tornando uma tremenda confusão. Walter queria apenas sair por cerca de 1h30 para buscar o bolo e entregar na festinha, cumprimentando à filha e aos convidados, mas nada acontece conforme o planejado. Dentro do hospital Walter também estava predisposto a mais constrangimentos. Esse seu amigo médico é um tremendo fanfarrão, pois é egocêntrico (crítica social aos médicos?) e fica passando cantadas e exageros em pacientes e enfermeiras. Fala de mulheres objetificando-as e constrange Walter com suas frases disparadas sem o menor pudor. Em uma das cenas logo no início, o médico esse pede para que Walter assine um abaixo-assinado requerendo melhorias para o bloco dos médicos, onde eles deixam seus pertences naqueles conhecidos armarinhos. O anestesista estranha que a lista para assinarem ainda está vazia e o médico brinca "não tem problema, eu posso assinar primeiro então", ao que Walter nota que o médico folgado assina na segunda linha, deixando o espaço principal, a cabeça da folha para o protagonista que não sabe dizer não. Constrangido, Walter assina, mesmo em dúvida se aquela apelação por melhorias poderia comprometer a situação empregatícia de ambos - principalmente dele, afinal, fora o primeiro a assinar o texto exigindo as obras.

Outros recortes são bem sutis na proposta do diretor, como uma caminhada na praia entre diferentes pés, diferentes pernas e garrafas e sobras de cascas de frutas na beira do mar, a conhecida crítica social ao bicho homem e suas sujeiras. A cena se repetiria entre o caótico trânsito da capital paulista e também por entre as pernas e macas dos corredores hospitalares. A diferenciação de ritmos, entre a caminhada tranquila com os pés na água e a pressa de Walter em contornar colegas e pacientes dentro do hospital, sempre com pressa. A pressa, o aprisionamento da rotina, os afazares, tudo corroem um Walter que perde a calma em pouquíssimos momentos, fato que faz com que alguns críticos do cinema diminuam a atuação do presente Lázaro Ramos. Pois bem, quando consegue se libertar das amarras dos hospital, não sem antes ouvir poucas e boas dos colegas de serviço, Walter se atrasa no trânsito, no enrosco das ruas e viadutos e avenidas e até na hora de simplesmente pegar o maldito bolo, prato principal do filme, sendo que este já estava inclusive pago pela esposa. Na casa onde a doceira produzia o bolo havia muitos gatos, fazendo-nos duvidar da higiene adequada do local. São filhotes salvos ou adotados, gatos adultos, bichos que não acabam mais. Com seu olhar sempre benevolento, o personagem interpretado por Lázaro Ramos também acaba servindo de alvo das velhas senhoras que o tiram para confessionário, já outras, como as senhoras no casamento onde ele acaba levando a amiga que o ajudou a abastecer a droga do carro ao faltar gasolina, situação em que algumas, ao descobrirem que estavam defronte um médico, começam a pedi-lo para examinar caroços surgidos e dissertar opiniões conceituadas.

Enfim, Walter se mete nas mais diferentes enrascadas. Antes do casamento e desse encontro casual e exagerado com a antiga vizinha, ele já havia atropelado um motoqueiro que furou sinal e - mesmo com sua pressa e não sendo dele o erro, prestou o socorro de chamar-lhe uma ambulância e embutiu uma velha vizinha fofoqueira para que cuidasse do caído enquanto o resgate não chegava para acudi-lo. Walter então dispara, volta ao trânsito caótico e doentio da maior cidade brasileira, mas se perde nos endereços e precisa pedir ajuda num posto de gasolina, onde conhece uma suposta estudante da faculdade de Comunicação, que a pagava da forma como muitas jovens precisam pagar no país: com a prostituição. Ela gosta de Walter, talvez por sabê-lo agora como um médico (sem imaginar que um anestesista?) e propõe brincadeiras que obviamente Walter custa muito para se livrar, afinal de contas, era casado e estava na missão de simplesmente levar um bolo para a festa de aniversário da filha Juju. Mas as pessoas, em seus universos egocêntricos sempre têm dificuldade para entenderem o pobre Walter, que não consegue se impor a cada encontro e a cada cena.

Mais um enfim para a coleção deste texto, mas enfim, com uma leitura nada linear e repleta de spoilers, podemos encaminhar o fim dessa análise novamente salientando que a narrativa de Walter pode ser comum a muitos paulistanos e brasileiros perdidos por esse país. O adulto classe média, o negro que precisa provar que é merecedor de estar onde está, o pai de família atrapalhado na rotina, o casamento em destroços, as pessoas que cruzam seu caminho e tentam desvirtuá-lo e tentam tirar vantagem e tentam enlouquecê-lo das mais diversas formas. Os personagens que fazem parte do cotidiano dos grandes centros, os malucos que convivemos em nossos serviços, o médico abusador, que constrange as colegas de serviço e as pacientes, o outro estressado e que trata os demais com submissão, xingando o pobre Walter por cada pequena falha, em cada pequeno atraso. A família desconfiada - talvez racista - desconfiada da capacidade de Walter conseguir cumprir com os acordos. O próprio cidadão tentando lidar com esse mar de gente, com esse caldeirão confuso de alta periculosidade. O estresse do trabalho, a correria do trânsito, o aprisionamento da rotina como gumes centrais dessa bem construída trama. Uma espécie de road movie, de aventura e trapalhadas para humores mais ou humores menos pastelões, mas com toques refinados de crítica social ao bom gosto. Uma transposição de coisas já vistas por outros países mas com uma pegada totalmente brasileira, seja pelo ambiental paulista ou pelas espécies que cruzam o caminho do aturdido anestesista.

Um grande filme, a mim avaliado como um clássico, pois a rotina das grandes cidades não dá trégua aos mais diferentes Walters, negros, brancos, jovens, velhos, motoristas, trabalhadores da área da saúde, pais de família, secretários, negociantes, comerciantes, doceiros, costureiros, officeboys. Pessoas alcoolizadas, judeus do casamento da antiga vizinha de Walter, doceiras fãs de criar gatos, universitárias que precisam se prostituir, entregadores que furam o sinal vermelho, socorristas, vizinhas fofoqueiras, idosas que precisam com quem conversar, uma salada totalmente brasileira em um filme que apresenta lá seus muito valores e precisa de seu revestido reconhecimento embora a nota nos sites especializados não assim se demonstre. Pausa para o fôlego e para a mera indignação: mas que coisa!

Walter preso no elevador na festa de casamento da amiga de sua antiga vizinha, que o convence a levá-la em nome da troca de favores (por ter abastecido o carro dele) e em prol de uma antiga paixão adormecida - ela ainda se serve de uma chantagem, pois roubou o celular de Walter, colocando-o na bolsa

Walter preso no trânsito com a estudante de Comunicação que pagava a faculdade através de serviços de prostituição - era para ser somente uma carona em outra troca de favores, pois o azarado anestesista havia recebido dela a informação sobre onde deveria dobrar


19/09/2021

implacável sono após almoço

O implacável sono após o almoço documentava seu corpo e o mantinha no mais absoluto estado de inércia, em posição curiosa sobre o sofá. Os raios de sol entravam azulados naquele interior de sala, levemente modificados pela fina cortina de tecido que deixava uma fresta para a confirmação do céu aberto para fora da janela. Para dentro do parco espaço do apartamento as simulações de azul. Pelo lado de fora, a cor em definitivo, em seu estado mais completo. Alguns gatos miavam por telhados vizinhos em uma sinfonia desafinada e despropositada na cabeça dele, mas que, para os executores, algum sentido havia de ter.

A sonolência após o almoço desenha imagens estranhas, turvas, dessincronizadas na mente. Chega a embaçar-se de planos tão confusos, chega a embaraçar-se de ideias tão distintas. Possui uma tremenda dificuldade de discernir o que é real. Separar o chamado mundo real e o seu campo de criação inerente a ele. Estava absorvido completamente pela sonolência após o almoço, ao mesmo tempo que nem sequer recordava o que havia comido nessa última refeição. Flutuava como um corpo vago, assumia uma posição acima do chão, acima dos móveis de seu apartamento. Era ele uma figura de contornos amarelados - os mais otimistas diriam brilhante e dourado - e passava por sobre os móveis facilmente desmontáveis, por sobre os eletrodomésticos facilmente inutilizáveis na futura crise hídrica e de eletricidade. Flutuava ao mesmo tempo para dentro de sua própria mente, na tentativa da interpretação de tudo aquilo.

Saiu pela janela, defenestrado, pensou, palavra que nunca foi de lhe apetecer. Achava que defenestrado era algo muito específico e utilizado com uma frequência que requisitava tons, coquetéis de erudição. Mas o que ele estava sendo se não defenestrado de seu próprio apartamento? Flutuava agora sobre os prédios, naquela mistura de fascinação e medo, e receio, e vertigem. A altura lhe causava isso. Talvez já a sentisse, a vertigem, de dentro do apartamento ao sobrevoar os móveis, mas, ao seu corpo transpor para o lado de fora, agora nada o seguraria em uma provável queda livre. Provável, ele julgava, porque era impossível manter-se suspenso no ar sem ajuda de equipamentos, de asas, deltas, sigmas, betas, qual letra grega fosse. E enxergava tudo muito turvo, procurava registrar aquelas visões, mas sabia-se ocultado de total nitidez pela sonolência que lhe acometia após o almoço.

Nem o despertar do medo, da insegurança, da adrenalina disparada mudaria sua incapacidade de arrancar daquilo a melhor experiência. Mas e qual seria essa melhor experiência? Antenado de vez talvez morresse de medo em pleno voo. Ou julgaria tê-lo morrido ali mesmo deitado e estava sendo arrancado desse mundo, em um plano de aviação desgovernado, que o afastaria, afastaria da superfície terrestre gradativamente até que tudo não passasse de um ponto distante e indivisível perante o espaço sideral?

Ele percebeu os prédios muito altos, o arranhadores de céu, um espaço aéreo que não pertencia à sua cidade. Estava em São Paulo. Ou algo que o valha. Mas o que valeria em correspondência a São Paulo? O espaço ele decifrava como plano, não poderia ser um Rio de Janeiro e, se não fosse o Rio de Janeiro, nem a esverdeante Belo Horizonte, nem a confusa Salvador, nem a litorânea Fortaleza, nenhuma outra cidade poderia ser aquela. Campinas ele não conhecia, mas julgava, pelo crescimento acelerado de últimos anos, que ela não poderia dispor daquelas estruturas. Era São Paulo, então. Maior cidade da América Latina em que ele aceitava perder um possível amor, ao menos em sua própria cabeça. Não estava lúcido demais àquela altura? Não, porque esse possível era tão provável quanto as imaginações que somente a sonolência após o almoço poderiam conferir-lhe.

E seguiu sobrevoando o espaço aéreo paulista sem o mínimo aparato que lhe ajudasse, apenas a mente concentrada, ou perdão, desconcentrada e permitindo essa falta de critérios técnicos. Nenhuma infração estava cometendo, porque as viaturas policiais não voavam. Estava estudando a história mais do que secular de sua cidade no Rio Grande do Sul e percebia como o passado próspero, ao menos para as mãos de poucos, ruiu até para essa classe burguesa. Talvez assim as ditas "elites" se nivelavam mais ao desnível em que ocupavam os pobres, os familiares de ex-escravos, porque essa era a formação populacional do extremo Sul, ao menos em suas fundações. O trabalho escravo, a mão de obra escrava, as construções advindas de escravos. Tudo isso, no fundo, ou por vezes em erupção até o que considerariam raso, tudo isso lhe incomodava. Fazia-lhe subir o sangue, encontrava nele chagas de perguntas e vergonhas pela posição em que ocupava. Se oprimia pelo contexto histórico. E tanto melhor seria se mais gente tivesse essa mesma mão que atuasse sobre a consciência, esse mesmo conhecimento e dele extraísse mais, se mais pessoas praticassem o dia a dia com o objetivo da transformação social.

Sabia que as construções mais antigas, de antes da abolição da escravatura, tudo aquilo possuía mão de obra escrava e, mesmo se porventura não houvesse esse tipo de mão de obra, as construções eram em prol daqueles que possuíam as riquezas, que poderiam usufruir dos mais valorados espaços, que patrocinavam direta ou indiretamente as bárbaries da época. Tudo isso lhe incomodava, em especial a criação polêmica e complexa de sua cidade. Mas agora ele estava por São Paulo, capital paulista que era guinada a um crescimento desenfreado a partir do século anterior. Tentava esquecer os sombrios passados históricos e focar naquele voo, naquele planar de consideração ímpar, naquela oportunidade única em sobrevoar a maior cidade latino-americana.

Pensou em como eram pequenas as pessoas lá abaixo e seus metros quadrados conquistados com um esforço esplendoroso, com a luta, o suor e o sangue do dia a dia, para aqueles sob o conforto do ar condicionado doando horas de trabalho semanal em troca desses eletrodomésticos ou eletrônicos, assinaturas de serviços streaming para relaxar e ver um filme ao final de semana. Ou mesmo para aquelas ocupações de prédios condenados, cujas pessoas estendiam suas roupas e tapetes de improviso, amontoavam-se, procuravam fugir do perigo dos choques de fiações improvisadas ou soltas, das goteiras, do choque entre água e eletricidade, das más fundições, dos perigos até de desabamentos. Essas pessoas cujo um dia de faltar à labuta diária ao nível do solo levaria com que a própria barriga pagasse com a moeda mais cara: a da fome. Todas essas pessoas pareciam para ele distantes lá de cima, mas mantinha uma esperança, um afeto, um martírio, uma complacência, uma piedade em que gostaria de estar ao lado ou massageando o coração ou as chagas de cada um. Uma verdadeira ou falsa benevolência? ele sempre se botara em dúvida. Botara no mais que perfeito e botará em um futuro cada vez mais próximo. Porque esse questionamento em como lidar com toda aquela adversidade, com toda aquela desigualdade social era um ciclo que o corroía por dentro. Lamentava demais, agia de menos, pensava sobre. E se entregasse marmitas? E se rezasse por alguém, e se o conforto da boa palavra? E se negligenciasse a tudo isso, apenas em busca da amada perdida, ou encontrada pelas ruas de São Paulo (por outro)? E se?

O sonho acabou porque houve seu despertador no horário das 13h. Houve ou ouve. Ouve. Almoçava cedo, no curto período de tempo em que ele se embrenhava e ainda conseguia voltar ao apartamento. Estava terminada sua sonolência de almoço. Estava sim, cada vez mais lúcido, mais desperto, mas sabia que necessitava voltar ao trabalho e realizar as tarefas. Deitou de camisa social mesmo, estava com o nó pronto da gravata para não perder tempo. Enxugou o suor da testa, ajeitou o colarinho. Estava suado pelas axilas, mas o complemento do terno ocultaria esse evidente descuido. Não havia tempo para desamassar as vestes castigadas contras as marcas das almofadas do sofá. Havia sempre questões mais graves para resolver. Esqueceu de destravar o despertador do celular e precisou desacionar o dispositivo novamente às 13h15. Estava atrasado. E não só para o expediente daquele dia.

07/03/2021

A Última Dança

Após a última dança, o corpo se desconecta aos poucos do transe em que se encontrava. Como uma carroça que frea, como um ventilador que se desliga e segue girando em rotações cada vez mais lentas. Como um sonho que termina, mas permanece em fragmentos que se esfumaçam à medida que acordamos.

A última dança vem na última música. Quando o silêncio vem crescendo, interrompendo a canção final. Os músicos terminam seu trabalho, sem soar, mas com os instrumentos ainda em mãos ou próximos do soprar da boca. O microfone ainda plugado. Se for eletrônica a música, o eco parte em desmanche até abandonar nosso interior auricular. Ressoa sobre a mente ainda o findar. Propagam-se as ondas que se reduzem.

A última dança tem o sabor nela mesma, em busca da lembrança, da memória, da eternidade. Mas nada se garante. Ela deve apenas ser dançada. Dá-se o máximo naquele gozo de minutos, talvez últimos segundos. Pois é a última dança.

Após a última dança, os pensamentos pertencentes à dança se diluem, pois não há mais dança, foi a última. O que se pensava, ou deixava-se de se pensar, fica para trás. A realidade é um silêncio em espiral crescente, encobridor, uma pressão sobre os ouvidos, um par de luzes ligadas para sinalizar que, sim, acabou a música, acabou-se a última dança. As luzes que mexem, diferem o tamanho das pupilas, o antes e o depois, o clima ajustado para a última das danças e o posterior fim de festa, o término maltrapilho, a maquiagem que foi maquiada, sobrepujada pelo instinto, pelo suor, pelo desembaraço, pelo colidir de corpos e rostos, pelo resfolegar zombeteiro. Os pés cansados das danças até a última delas, os sapatos deixados para trás, os brilhos gastos, os pés descalços, o perigo de serem pisoteados, dos corpos, das massas ocuparem o mesmo espaço, não respeitando ao dito científico da física; o chão do salão e seus restos e as bebidas jogadas fora, e os copos descartáveis, e papéis e serpetinas e confetes e demais adereços a depender da festividade em questão - até a última dança.

A última dança reserva vestimentas que eram muito aguardadas por utilizar. Aquele terno, peça mais cara, ou ao menos de maior destaque no guarda roupa. Ele termina amarrotado, manchado, talvez de bebida, talvez agredido pelas glândulas sudoríparas contra o dorso, com manchas nas axilas, com um lenço para fora, com a companheira gravata solta pela festa. Um smoking, um colete perdido pelo encosto de alguma cadeira, a ser retomado ao final da última dança, pois na rua estará frio. Alguns ficam esquecidos pelos encostos ou nos trocados das chapelarias. É possível errar de paletó quando mal identificado. Os vestidos das mulheres, alugados, escolhidos a dedo, moldados, pré-moldados, cosidos, descosidos, apertados, soltos, desbaratados ou de missões cumpridas. Terminam suas passagens pelos salões para ir de encontro às bolsas, largadas às mesas, cuidadas ou descuidadas enquanto tentavam aproveitar a última dança.

Na última dança reside o alívio de quem não dançava nem iria dançar, só queria ir embora. Esperava carona. Esperava um aviso, um sobreaviso, um sinal... um final. E houve, pois foi a última dança. As luzes se acendem, os rostos se procuram ou se escondem. Se descobrem pessoas, posturas, casais feitos ou desfeitos, virtudes ou defeitos, penteados arrumados ou bagunçados, gel e coques que abandonaram seus donos. Brilhantina não mais brilhante, instante que desenha outra realidade, mais ou menos alternativa. A última música devora a festa, é o gran finale, é o c'est fini, a rodada derradeira, a tomada de cena decisiva, o epílogo de cada um. Na última dança, pode-se congelar as pupilas de uma maneira depois apenas imaginária, uma repetição das contracenas, apenas para dentro da mente. Se só existe o presente, não existe mais a última dança, apenas sua lembrança, no cárcere da memória, no imaterial, na invalidez, no campo quimérico.

Na última dança, cada movimento é decisivo, cada balé é bem traçado, ou mesmo desajeitado, já do cansaço redigido ao longo de atmosférica noite, ambiental contemplante, ambiental contemplado. Ambiental que desaparece para o valsar da última dança, mais tardiamente, mais derradeira caso seja a última noite. Às vezes é a última e jamais saberemos antes da última esperança - esperança de que não seja a última noite.

Na última dança, quando acende-se as luzes sobre o baile, sobre a festa, quando apagam-se as luzes sobre o palco, outras serestas, tudo indica o final dos tempos - ao menos daqueles ali depositados em um cheque sem fundos, chamado última dança. Aquela que prometia, aquela que surpreende, caso se espera mais alguma para fechar a noite. Mas a aragem, o aspecto, o tempo suspenso no ar indicavam que era a última - a última dança. O teatro das marionetes a fechar as cortinas, as máscaras a debruçarem-se, encuralarem-se, saltarem para fora dos rostos. Nada mais poderia ser feito, pois era o último gingado, os últimos passos, requebrados, swings, para quem gosta assim chamar, dos sultões, das baronesas, dos escalados, das preferidas, dos guerreiros e guerreiras, lutadores contra a própria sorte e sorte alheia, em um canavial, ritmo carnaval de última dança.

Como uma vela soprada, com um passista solitário, como um artista de rua, como um volante que atua sem a bola, como um jogador em findar de carreira, um capitão temido e representante de sua esquadra, um capitão de navio no púlpito diante de seus serviçais, operários e seus chefes, mordomos, mordomias e seus amos, cargos de equidade, tudo ali, junto e misturado, na última dança. O artista, a artista, seja quem for, se abaixam, apanham o chapéu, dos trocados que o preencheram e vão para guaiaca antes do adereço da cabeça voltar ou não para cobrir o couro cabeludo ou então a careca. O número de circo encerrado, a praça desconjuntada, os pedestres a dispersarem, os músicos a se aliviarem, dos instrumentos de sopro, dos dedos calejados contra os instrumentos de cordas, a garganta que ora respira, os pés que reconhecem que tiveram trabalho e agora descansam, doem, sentem, contraem-se, espicham-se e sabem que a última dança foi tarefa executada, ato de ata assinada. Quem sabe em uma próxima voltem todos para mais um capítulo da última dança, mesmo que, para tantos, esta tenha sido a última. Até a próxima.

Casar contigo

Eu pensei que ia casar contigo

Assistindo a um filme de Godard

Mas você terminou comigo

Antes da gente chegar lá


Eu pensei em casar contigo

Assistindo aos casais de lá

Mas você terminou comigo

Antes da gente ter nosso lar


Impostos, taxas de condomínio

A mobília da sala de estar

A TV, nitidez e brilho

E os domingos a passear


Eu pensei em casar contigo

Sem saber os riscos de casar

Escovas de dente, figos de cera

Maçãs e peras

As chaves onde vou pendurar?


Pensei completar a cartela do bingo

Quando a gente se casar

Eu pensei em casar contigo

Mas sozinho eu vou ficar


Eu pensei e pensei comigo

Que contigo posso me casar

Mas casar pode ser um perigo

E sozinho e eu vou ficar

19/12/2020

Crônica insaciada

Acabo de ler Dostoievski apresentar sua argumentação em Notas do Subsolo sobre a vontade humana se sobrepor aos padrões racionais. A vontade, o desejo daquilo que ainda não se tem, daquilo que se quer, isso supera as leis racionais da busca pelo bem-estar, pela aparente tranquilidade. Há sempre algo em nós que nos coloca em movimento, caso contrário é a morte. Não há dúvida. Ele compara a conta de dois+dois serem quatro como uma matemática, aritmética racional, mas que independe de nossas vontades. A lógica, as leis de sustentação, o cálculo de uma viga de 10 metros (obrigado, Vitória Moraes) podem estar corretos, mas independem do nosso desejo para estarem ou não. São coisas que podem ser tabeladas, podem ser definidas por fórmulas e cálculos repetitivos. De uma vez que se atinjam os resultados nas tabelas de senos, cossenos e tangentes, nada mais pode ser extraído dali.

Não venha ao caso a beleza que a arquitetura pode proporcionar e amplificar a gama de significados. Não é isso. É apenas a superação do modelo matemático para as questões vigentes do homem. Muitas vezes podem ser desenvolvidas associações entre um campo e outro, do subjetivo para o matemático, mas a lógica não responderá tudo, porque o homem quer se esquivar das questões certeiras e esgueirar-se pelo parapeito das incertezas. O ser humano procura os caminhos sinuosos para tentar quitar as dívidas com seu espírito aventureiro, descobridor dos sete mares.

Iria apenas salientar a questão que o escritor russo Dostoievski aponta que as formigas são operárias, são utilitárias, mas saem do ponto de partida de construir e sustentar um formigueiro e, séculos se passem, ainda estarão lutando pelo mesmo formigueiro. É a fórmula, é a matemática desses seres, cujos indivíduos podem ser atingidos por predadores, sucumbir pela chuva, pelos raios, por inseticidas da ação humana, mas a prole continuará de pé dia após dia lutando pelo formigueiro, por esse todo que ele representa. Já o ser humano, através de sua consciência, estará na luta por questões subjetivas, por vontades que muitas vezes independem do senso racional, se dissipam da ideia de bem-estar, questões que se tornam contrárias às vantagens que ele obteria ficando quieto, não indo à luta. Em resumo, a humanidade está fadada a seus indivíduos buscarem o algo a mais.

Esses dias estive pensando em uma metáfora de filosofia africana (de localização imprecisa no continente, me perdoem) que apareceu em filme sul-coreano. As duas fomes, a básica, por alimentação, pelas necessidades fisiológicas e a grande fome, a busca incessante do conhecimento, das descobertas, das experiências próprias, daquilo que não podemos absorver também pura e simplesmente nos livros, nos catálogos de viagem, nos atlas, nas telas do cinema ou do celular. A busca pelo prazer das incertezas, pelo prazer das conquistas e - apoiando-se novamente em Dostoievski - conquistas que nem sempre significam pelo que são, mas significam pelo fato de as atingirmos, pelo senso de conquistador, pelo sentimento de dever cumprido. Tão logo estaremos com a posse em mãos e nosso âmago sentirá novamente a grande fome, nos pondo novamente em alto mar para novas descobertas. São desejos intrínsecos à humanidade, em cada indivíduo. É bem verdade que o sistema, a sociedade oprimem à população para lançarem-se 24 horas, ou o maior tempo possível diário, para saciar somente a pequena fome, mas que grande fome proporcionalmente pode surgir conforme avançamos em outros terrenos. A grande fome, esta que é insaciável.

E penso em minha gata, a Melissa, deitada em sua cadeira, dorme várias horas por dia, sabe-se lá com o que e se é que sonha, mas vive pela alimentação e um pouco de entretenimento, que ela busca através da caça ou de passeios noturnos pelo jardim, ou como fazia em nossa outra casa pelos fundos do bairro. Esta é a Melissa, essas anteriormente apresentadas eram, são e serão as formigas, serão assim as outras Melissas e os gatinhos do terreno baldio aqui logo adiante, mas eu, mas meu amigo Alan Matheus, mas meus outros camaradas, que há de sermos? De querermos? De lutarmos além das questões racionais mais atadas e obedientes. Seremos insaciados por gerações.

23/07/2020

Jogo de Alternativas

Às vezes pelas situações conflituosas a que nos deparamos no cotidiano, parece que temos apenas três opções. São elas:
- mentir ou ocultar a verdade em saídas dissimuladas; falsas.
- falar a verdade e lidar com as duras, severas consequências disso.
- falar nada, manter a posição de silêncio, de afastamento, panos em cobertura, se fazer de sonso ou de louco até a poeira baixar.

Como podem perceber, nenhuma das escolhas é devidamente satisfatória. Então, qual escolher? A primeira parece a mais corriqueira. As pessoas fazem muito isso. Isso as mantém em convívio social, dá salvaguardo para poderem encobrir seus erros, seus pecados, seus atos falhos, seus equívocos, suas más intenções e suas más ações. Basta que carregue no coldre a artilharia da dissimulação e mantenha-se firme na mesa de apostas dos interesseiros. Negociações são feitas assim. Imóveis, vendas, cartéis, relacionamentos. E as pessoas sobrevivem dessa maneira. É a boia no alto mar dos carteadores.

Caso opte pela opção do meio, falar a verdade e lidar com as pesadas consequências, o jogador precisa antever as jogadas seguintes. Ou vai optar por seguir uma linha dura de respostas cruas e verdadeiras, sinceras a seu gosto, ou, vez ou outra, vai acabar cedendo para a dissimulação para não "piorar as coisas". Mas uma vez utilizada a verdade nua e crua, a sinceridade desmedida, o processo todo está para ruir. É ou não é assim que acontece? Após o tiro fatal de início, um tiro pela culatra, tudo que o jogador vai querer é: ir até o fim ou consertar a sinceridade, do sincero como não se pode ser. Ah, e esse erro assim tão vulgar persegue a noite inteira e quando acaba a bebedeira o erro esse, ele consegue nos achar. Num bar, num vinho barato, um cigarro no cinzeiro ou uma cara embriagada no espelho do banheiro. Perfeita descrição em Refrão de Boleiro, Engenheiros do Hawaii.

Quanto mais o jogador avança na opção B, de falar a verdade nua e crua, ele fecha-se em um labirinto. Talvez muito lamente não ter mentido, dissimulado desde o início. Ou ele aferroa-se com as verdades enquanto durar o cartucho dos disparos, ou tenta retroceder, voltar para a simulação, para o lado dissimulado, mas sempre correndo o risco de ser tarde demais. A pessoa atingida pelo disparo da verdade pode estar na ambulância, a caminho da UTI. É grave. Talvez não se recupere. Salvo o caso de uma lobotomia, a pessoa atingida vai carregar com rancor essa verdade disparada, essa verdade que ofendeu a si, suas roupas, seu produto à venda, seu hálito, seus movimentos sexuais, sua família fofoqueira, seus amigos debilóides, qualquer coisa do gênero.

Tenha muito cuidado com o disparo das verdades. Parece estar fazendo a coisa certa, mas o receptor vai encarar de uma maneira bastante distinta ao seu bom caráter objetivo. A intenção e o efeito tomam rumos diferentes nos viadutos da vida. Além do mais, dependendo o teor, o rigor da verdade disparada, você vai ser interpretado como louco por tê-la dito, por tê-la feito. Sim, é mais fácil para as pessoas encaminharem, calcularem diariamente o saldo bancário das invenções, das dissimulações. Elas preferem lidar com isso no extrato do banco do que com o peso endividatório das verdades.

As pessoas acabam excluindo aquela disparadora de verdades. Não é conveniente ter no grupo uma disparadora de verdades, não faz bem essa sinceridade objetiva. No que ela ajuda? Ela é ofensiva, ela traz ressentimentos. Ela arma sobre si a sombra eternizada do rancor. As pessoas olharão com desconfiança para aquele ente verdadeiro, o personagem Super Sincero, armado em série humorística da Rede Globo. Não pode lidar com o fato de ser o Super Sincero. A menos que todas as suas relações sejam episódicas de cinco minutos. Por exemplo, confrontar um vendedor em loja de calças jeans.

Enfim, as pessoas preferem o dissimulador, o das mentiras convenientes, parece que faz parte da fantasia de tentar adivinhar onde estão as verdades e onde estão as dissimulações. É intrigante. É com intriguinhas que os assuntos percorrem, como fios condutores. "O que será que ele quis dizer?" "O que será que está escondendo?" "E qual será a dele com Fulana?" "E qual será a dela com Belgrano?"

Para além disso, como parece ter ficado claro e cristalino, as mentiras convenientes mantém o clima agradável, o ambiente suportável em meio à essa sociedade insuportável. Pequenas bolhas, pequenos nichos, não sejam tão verdadeiros, ora pois. As pessoas fingem que suportam, mas não suportam. É como um halterofilista tentando erguer uma quantia de massa naqueles halteres mais pesados do que ele consegue. É uma corredora despreparado para enfrentar a maratona. É o suicida com medo do momento derradeiro, do corredor da morte, da sentença do enforcamento. Ninguém está pronto.

As mentiras por conveniência permitem que os jantares ruins -muito agradecido, estava maravilhoso, por suposto, precisamos repetir - deem lugar para os jantares verdadeiramente bons, apreciáveis, conciliatórios, os que fazem a vida valer cada pena. Assim são os erros dos amigos e como os reparamos. Deixamos que errem um pouco, mas isso pode fugir do controle. O rapper Black Alien gosta de postular a metáfora de abrir os portões da casa e a cachorrada não quer mais voltar. É realmente difícil controlar que voltem, que regressem em tranquilidade. Não mais, não mais.

Mas é importante conter equívocos, atitudes desbaratadas dos amigos, uma hora precisa ser feito. Alguém tem de fazê-lo, percebem? Do contrário esse amigo, essa amiga, ele ou ela vai acabar na pior. E aí também será muito difícil consertar. É preciso se atravessar com verdades, interferir para o bem dessa pessoa, quer ela ali entenda ou não. Do contrário, esse amigo ou essa amiga irá longe, longe demais e o regresso da tranquilidade... ah, como é esse caminho mesmo?

Enfim, o que foi tentado provar é que as verdades ditas a todo momento desgastam muito, você não vai conseguir levar o relacionamento social por muito tempo. Será julgado como chato e inconveniente dizendo sempre que achar as coisas chatas ou inconvenientes. Mas se esquivar de dizer as verdades nas horas certas, quando a coleira precisa ser afivelada e não há outra saída, se esquivar das verdades aí é uma omissão tremenda. O preço pode ser muito alto.

Por fim, a opção C é justamente sobre omissões. Recorro muito a elas. É não conseguir dissimular nem dizer a verdade, é fugir de A e de B. É esperar a poeira baixar. É esperar a maré estar mais favorável. É esperar bonança após uma grandiosa tempestade. Mas será que não tomar escolhas nos salva no período enquanto não tomarmos? Realmente, nem sempre temos essa possibilidade de aguardo. O olho do furacão não perdoa. É preciso fazer algo. A bola de segurança, como bem treinada e que as pessoas conseguem naturalmente é a Letra A. Alternativa B é naquele ritmo insaciável de consequências, avalanche sucedendo.

Sim, queria muito poder participar mais efusivamente das eventualidades sociais a partir da alternativa A. É muito difícil não conseguir, é ser como um alien. O alien da omissão se sai melhor do que o alien descarado da opção B, que é uma opção sem dúvida alguma de muita coragem.

Se soubesse como escolarizar as dissimulações de A, eu mesmo abriria a escola para ajudar quem mais precisasse delas. Acredito que, mesmo que não seja a normalidade, somos muitos. A humanidade, as pessoas dependem umas das outras. O difícil é suportá-las nesse jogo de constantes necessidades a serem cumpridas, a serem saciadas. E para suportar uma vida, um ano, um mês, um dia que seja, quantas opções A temos que marcar a contragosto?

09/07/2020

Alfonso Cuarón em 'Roma' (e a Pandemia)

Acabo de assistir ao filme Roma, de um dos diretores que mais considero em toda a história e espero que continue a fazer histórias. O mexicano Alfonso Cuarón. Escrito e dirigido por ele, Roma é uma sucessão de cenas impactantes de uma vida cotidiana, em uma realidade pesada, como é retratado o México de Cuarón na década de 1970. Nos filmes de Cuarón, como tenho observado, não são permitidas respirações muito longas. Como se estivéssemos sozinhos em um mar tormento e a luta contras as ondas torna-se incessante. Escapa-se de uma uma e vem outra diretamente. Como trata de temas do dia a dia, é interessante como sabemos de onde podem vir os problemas, mas ao mesmo tempo eles nos surpreendem. Não sabemos a ordem, não sabemos exatamente quando e onde nos encontrarão. Podemos ser atacados de frente ou pelas costas. Mar violento.

Cuarón mexe muito com a questão dos nascimentos. Em Filhos da Esperança já havia experimentado a temática com força, em um futuro apocalíptico em que os seres humanos não conseguiam mais ser férteis. A esperança depositada em uma imigrante na Inglaterra. A necessidade das crianças para o futuro geracional da espécie humana.

Tenho percebido em tempos pandêmicos como estamos em 2020 que as crianças não são somente a esperança por elas próprias, vida renovada, uma vida inteira pela frente daquelas que nascem e vão escrevendo suas páginas por ora em branco. As crianças servem para modificar a nós mesmos, jovens adultos, velhos adultos, idosos. Nos revivem tempos remotos há muito esquecidos. Nos fertilizam o elixir da esperança de novos tempos. Nos dão motivos para novas lutas, por elas, mais do que por nós, a depender dos casos. Sim, é assim que funciona.

Em 2020, ao passo que as mortes no Brasil são milhares e a pandemia do novo coronavírus leva brasileiros e brasileiras diariamente, em tempos de pouco espaço ao luto e à despedida, as crianças têm vindo repovoar ao menos a minha história. Explico. Minha amiga de jornalismo, a amiga que morava com ela, ambas mães no mesmo ano. Meu primo em Santa Catarina, um de meus preferidos em contatos, este tornando-se pai. Sinto-me renovado ao ver as fotos de Lorena, minha nova prima catarinense. Meu professor e apoiador na carreira do rádio também será pai mais uma vez. Ele me conta isso muito contente. Fico contente por ele e falo sobre esse necessário processo de renovação. Ele assimila e concorda. Estamos felicitados a respeito.

O mundo é muito ruim, é péssimo, é danoso, é hostil. Alfonso Cuarón demonstra isso a cada filme, nos dramas pessoais de seus personagens, seja no espaço sideral com Sandra Bullock tendo que retornar à Terra, ou numa Terra apocalíptica e desmembrada em guerra em Filhos da Esperança. Ou nos dramas familiares dessa última versão que me causa erupção, no filme mexicano Roma, justamente vencedor de prêmios Oscar.

Ao passo que o mundo é ruim e prega peças e persegue a imigrantes, e persegue aos pobres, e persegue às mulheres, Cuarón elucida tudo isso em suas filmagens, deixa transparente para quem quer e necessita ver. Mas deposita esperanças jubilares nas crianças, mostra novas possibilidades a partir delas. Não nos permite a completa ilusão, porque coloca nelas marcas presentes nos adultos. Talvez os garotos com armas de brinquedo no último filme mexicano. Imitação de maus hábitos adultos. Os adultos atirando no interior, na colônia rural. As crianças com pistolas de brinquedo nas cidades.

O contraste das cenas entre o que é permitido aos homens e restrito às mulheres, o que é de permissão aos ricos e proibição aos pobres. Cuarón oscila essas imagens entre cenas mais sutis ou mais grotescas. A ida para comprar um berço e os protestos estudantis duramente reprimidos pela polícia, inclusive com mortes, com muitos feridos. O quase anonimato da paciente pobre que tenta um parto, sem plano de saúde. A forma como as empregadas são tratadas, isso observado em outros sucessos de bilheteria, como o brasileiro Que Horas Ela Volta? e o sul-coreano Parasita, duas outras grandíssimas produções vencedoras em festivais.

Cuarón aposta no orgânico das cenas. Paisagens bem definidas, cidades retratadas com o máximo de verossimilhança. Trânsito intenso de pessoas, demonstrando sempre que o mundo não pára à nossa volta, não cessa diante o nosso drama, o nosso luto. É assim para conceber uma nova criança, uma nova esperança em hospitais cheios, com atendimentos limitados, feridos, acidentados, acompanhantes e pacientes em suas lutas particulares na saúde pública. O marido que sai de casa e não volta, enquanto uma banda marcial corta a rua com seus instrumentos barulhentos. O mundo ao nosso entorno não enxerga os pequenos enxertos de dramas em cada casa, menores ou maiores.

Com posicionamentos escatológicos, o diretor mexicano pontua as cenas do cachorro da família, literalmente cagando e andando para o que acontece em volta. Não contente, Cuarón ainda posiciona diversos cachorros de rua durante os outros cenários. Contraste entre o cachorro com casa e os sem? Pode ser também.

O contraste entre homens e mulheres é um dos mais fáceis de enxergar, pela liberdade com que desfecham suas histórias, abandonando filhos, com o uso das ameaças ou da violência ou sem. As tarefas caseiras, o cuidado das crianças sobra para o colo feminino. Duras realidades em tantas famílias, estruturadas ou não, pelo México, pelo Brasil, pelo restante da América Latina, na outra América ou em outros continentes. Histórias que se repetem.

É super recomendado que se assista ao filme para observar esses e mais detalhes, mas desde já salienta-se que Cuarón cumpre o que se espera de suas grandes obras, quando aresta e fecha os pontos, trabalha o dinamismo social nesses contrastes todos: homens x mulheres; ricos x pobres; cultura opressora x cultura oprimida, levando em consideração a origem indígena das empregadas, em contraste com a família dos patrões.

Também está no filme o contraste da cena no povoado para fora. Os ricos consomem o Ano Novo com músicas estrangeiras, tradições vindas de fora, a presença do idioma inglês. Os pobres, os empregados estão no subterrâneo, no limitado espaço com as músicas nativas mexicanas. O ambiente apertado e tumultuado que que faz com que Cleo derrube a sua bebida na hora de um brinde, ao tomar um encontrão. Quantos cutucões o filme impulsiona! quando seria mais sutil ser acometido por um coice.

Por fim, no que pensei durante a exibição do filme, não posso deixar de salientar a questão da mulher com a gestação. O processo inteiro de gestação, não restritamente ao parto ou ao pós-parto, o cuidado com as crianças. Agora escrevendo percebo como esse "início, meio e fim" se prolonga na vida de uma mãe. O homem insere a semente para o filho e larga fora, abandona sua família. A mulher passa os nove meses com o crescimento do feto até a hora do parto do bebê. Depois disso, como salientado no filme, também está sozinha para cuidar daquele novo indivíduo, sem a recomendada divisão das responsabilidades. Aquele pequeno ser necessita constante cuidado, precisa se alimentar do leite, precisa ser acalmado para dormir, precisa trocar as fraldas, precisa estar o tempo inteiro vigiado para não se afogar no mar da vida.

Penso em tudo que minha mãe passou para me conceber. Essa história veio à tona há pouco tempo e não me preocupo em dividi-la. Meus pais tiveram minha irmã já tarde, passados os 30 anos de cada um. A médica, ou os médicos, não sei, disse para minha mãe que ela não teria mais filhos. Foram pelo menos cinco anos de sexo entre eles sem resultado fértil. Fernanda seria filha única, mas então vim ao mundo. Foi uma surpresa para todos, mas minha irmã ganhou um irmão. Penso na gestação que já seria de risco pela idade avançada de minha mãe, o chamado parto de risco, mas incrivelmente deu tudo certo, dentro do possível. Por conta dessa "espera", dessa "demora", hoje aos meus 20 e poucos anos, tenho meus pais como grupo de risco do novo coronavírus, pois já ultrapassaram os 60.

Vale lembrar que minha mãe havia perdido o primeiro filho durante sua primeira gestação. Isso quando era mais jovem. Eram péssimos indícios, mas as outras duas gravidezes acabaram gerando bebês em partos saudáveis, para mãe e crianças. E aqui estou.

Relembrar de onde viemos de certa forma me encoraja a tentar um pouco mais nessa sofrida vida que tantas vezes penso abandonar. Ser um pouco mais saudável, por ela que saudável me carregou contra todos os riscos, por todos esses meses, por todos esses anos, antes de eu ser concebido e depois. São os nove meses e outros tantos anos. É relembrar para eu ser mais saudável e afastar meus pensamentos das drogas e de outras mortes. Sou grato e me restrinjo e me protejo mais por ela do que por qualquer outro ser, inclusive eu próprio.

A cena final do filme Roma talvez seja a mais famosa da película. A família unida na praia, após um entre tantos salvamentos. A gratidão pelo que se tem, a luta com as ferramentas ao alcance. As diferentes concepções possíveis de família. A importância da empregada Cleo para cada uma daquelas crianças. A importância de cada uma daquelas crianças para a sofrida empregada Cleo. Coisas que mudam ou não mudam naquela família de patroa e empregada. Feminismo não é feminismo sem luta de classes, não é mesmo? Ouço muito por aí e concordo. Luta de classes.

Dessa forma, encerro com reverências novamente ao mexicano Alfonso Cuarón, ícone de produções sentimentais, de entendimento social, de transposição da realidade para seus filmes. Provocador de reflexões e retratador de angústias. E que mais seria a vida, e que mais seria o cinema sem esses elementos?

Gracias a mi mamá

Cena final do filme 'Roma', de Alfonso Cuarón (Divulgação)

03/07/2020

Por onde anda Patti Smith?

Meu pai começou a mexer com as madeiras em uma minúscula área de poucos metros quadrados, menor e mais baixa do que qualquer quarto aceitável, tanto é que não caberia uma cama ali. Mas maior do que uma casa de cachorro. A não ser que sejam vários os cachorros inquilinos. Todavia, era menor do que uma baia para um cavalo também, para entenderem o tamanho do empreendimento. Acontece que ele arrumava ou supunha arrumar o que fazer por ali. E tirava pedaços distorcidos de madeira, diferentes tamanhos, os cortava, serrava, lixava, pregava e sempre havia algo para emparelhar e ajeitar na construçãozinha. Assim ele passava uma tarde de arrancada de julho de 2020. Sua maneira hiperativa me despertou a escrever algo. Ouço-o trabalhando ao fundo. Juro que queria uma destreza maior com ferramentas, mas ainda almejo mais os dotes culinários.

O cenário de leve perturbação da paz é acompanhado pelo limpador de piscinas da casa vizinha. Os bem abastados moradores ao lado contam com esse serviço de uma maneira que ainda não calculei. Talvez quinzenalmente. Acontece que o trabalhador aparece e tomo conhecimento de todos os assuntos que ele adentra-se a discursar. Fala da formação em escola técnica, trunfos do PT ignorados por quem ignora o PT, fala de exército, fala de carros, fala sobre peças eletrônicas e motorizadas, fala sobre oportunidades de emprego em Santa Catarina. Deve estar fomentado a falar sobre mulheres com o vizinho, mas a esposa do proprietário está na casa e eles poupam essa oratória memorativa e imaginativa que tanto preenche vazios em bares. Lembranças e tristezas que fariam algum se jogar na piscina a método de afogamento, certamente.

Ademais, estou lendo e com alguma inquietação a respeito de Patti Smith, até o momento a maior descoberta do cenário punk das Nova York e Los Angeles estadunidenses. Patti é complexa, idolatra pessoas de diferentes segmentos e, ao que parece, tentou de tudo um pouco em sua vida. Seria professora, mãe, empregada fabril, passou para as artes encantada pela poesia do francês Rimbaud, encontrou as pinturas, a escrita em verso e em prosa e finalmente o complemento de ser uma das mais famosas rockstar da história. Produções independentes, versatilidade, encantamentos. Ela tinha quês a mais do que aquelas esdrúxulas figuras todas, regadas a drogas e sexo, pessoas desprovidas de ideais e consequências. Longe de querer intrometer-me em moralidades, reconhecendo inclusive a importância exageradora em contradição às morais lineares dos bons cortejados costumes. Mas carrego uma decepção a partir do entendimento de que a maioria das ações e integrações do movimento punk era desprovida de qualquer ato conscientemente político. Conscientemente coletivo. Conscientemente social. Eram uns babacas que abasteciam seus próprios umbigos e mandavam as mais diversas drogas para dentro. Mas nesse cenário de preenchimento freak, Patti Smith me interessou.

Preparo algum refrão sobre a rasidade daqueles norte-americanos:

Eu queria ser admirado por Patti Smith
Acho que não há nada mais chique
Fodam-se os outros beatniks
Eu queria ser admirado por Patti Smith

Caberia em um rock gaúcho. Em uma tarde de inverno, a temperatura preguiçosa a não ultrapassar a barreira dos 12 graus, passam-se muitas coisas. O sol colide em meu corpo e ilumina metade de minha face enquanto escrevo essas linhas. Deixo uma fresta da janela do quarto aberta, porque, apesar do frio, estou arejando contra a formação dos fungos: o mofo nas paredes. Observo a lista de filmes de Alfred Hitchcok ao meu lado. Cumpri menos da metade, mas pretendo avançar nos próximos dias. Me incomoda seu machismo, me encanta sua percepção de composição das cenas e cumprimento elaborado dos roteiros.

Meu celular está com completa distorção do funcionamento da bateria. Se apaga fácil. Viciada. Como um junkie que injeta heroína. O futebol não sabe se volta em meio à pandemia. Ganancioso. Minha gata dorme em sua caixinha de papelão forrada na lavanderia. Desconhece a presença enaltecedora do sol neste horário, que lhe faria bem ao pelo e para meus olhos ao vê-la, ressaltando os tons de laranja. Preguiçosa. Em seguida, escrevo mais uma página esportiva para o segundo jornal da cidade e da região. Repetição.

Será que o barulho da furadeira me lembra o dentista ou o dentista me lembra o barulho da furadeira? Entre nuvens de gafanhotos e ciclone pela região Sul do Brasil, transitamos de junho para julho. Os gafanhotos vieram do Paraguai, contornaram a Argentina, mas nem eles quiseram entrar em nosso país. Corretos que estão. Ultrapassamos as 60 mil mortes por covid-19 nesse ano de abstenção da felicidade para o povo brasileiro. Quem ignora é tão maldito quanto o vírus. Descubro que Patti Smith ainda está viva, aos 73 anos.
Arquivos PATTI SMITH - LC

11/06/2020

esquece

O chamado pai de família estava lavando a louça após desfrutar da refeição preparada por sua esposa, casados eles há 30 anos. Naquele horário posterior ao almoço, a filha mais velha já costumava se retirar do recinto, porque o assunto declinava em nível. Segundo ela, era possível perder neurônios só de absorver o conteúdo inútil da conversa. Após falarem um pouco sobre a sogra do homem, a mãe da esposa, o lavador da louça então iniciava uma de suas histórias dos tempos de operário:

- Teve uma vez em que o Camobi lá em Rio Grande...
Mas foi o bastante para arrancar risos, em função do apelido do colega, referência a bairro santa-mariense. A mãe e o filho se entreolhavam e riam. Ele, de costas, de frente para a cuba de louças no aguardo, apenas ouvia os ruídos indesejáveis, que interrompiam o bom prosseguimento do conto.

- Enfim, o Camobi veio de conversa com o Dirso e...
Novamente os risos que lhe custavam o pingo da paciência, assomados com a pouca água em período de escassez de chuvas.

- Assim não conto mais nada. Não precisa saber. Esquece...
- Não, não, agora queremos ouvir o que houve. - Disse a esposa.
- Esquece. - Ele apenas concluiu e seguiu as batidas de leve com a louça que saía das cubas para o escorredor.

A mulher, entretanto, não era fácil de ser vencida. Quando queria saber alguma coisa, por mais irrelevante que fosse, ia atrás da resposta. Ainda por duas vezes ela insistiu naquele instante pós-almoço.

- Não, não, vocês não me deixam contar. Esquece.

Ela percebeu que tratavam antes de assuntos delicados, antes de recair para o ciclo de bobagens intermináveis. Intermitentes até que cessasse a louça no escorregador, isto quando não persistiam enquanto os pratos e xícaras e copos e talheres eram secos com o pano. Mas essa percepção aguçava a curiosidade da esposa, que agora estava interessada no que diabos os operários estavam tramando em Rio Grande.

Horas depois, foi no momento de ouvirem a televisão, após o jornal da tarde e antes do zapear por programas que variavam de carros antigos a casas nas árvores, quando não terminavam em gente pelada no matagal.

- Mas o que o Camobi tinha a ver com o Dirso? E com a minha mãe?
- Nada. Esquece. - Ele respondeu secamente e seguiu trocando os canais, à procura da melhor opção em HD.

Mas a dona era osso duro na queda e não se daria por vencida facilmente. Com uma memória impressionante, não deixaria a questão morrer sem um desfecho. O ataque seguinte foi após a janta, rechaçado com outro solitário e trissilábico "Es-que-ce".

Antes de dormir. Antes de cair no mundo dos sonhos ele cederia à vontade da companheira de três décadas e diria o que tinha a ver o Camobi com o Dirso - seja lá quem fossem - e isso resultaria com que ela dormisse tranquilamente, satisfeita com o desenrolar de obstante assunto. "Esquece", ele virou para o lado, enquanto ela permaneceu rija com o livro de cabeceira em mãos. Depois, não conseguiu se concentrar na leitura, nem pegar no sono. Precisava saber da história.

Nos dias seguintes, a cena se repetia. Era o marido mexendo no motor de carro e levando um susto com sua chegada repentina em momento de distração com tantos cabos, ligações e checagem dos elementos.

- O Camobi... - disse ela afinando a voz para um tom suave e despreocupado. - Ele e o Dirso, o que...
- Esquece. - Ele falou enquanto mudava de tarefa para verificar o óleo.

Ouviu ainda uma sequência de esqueces entre o jantar seguinte, um cruzamento entre os dois quando iam dar comida aos cachorros e finalmente em uma cena em que o marido achou bizarra a presença dela. A esposa o surpreendeu no box, no chuveiro, orgulhando Alfred Hitchcock pela influência direta na intervenção. O homem arremessou o sabonete para longe, abriu os braços, pensou que era assalto, seria homicídio, latrocínio ou qual fosse o nome que mencionariam no jornal, Antônio Vieira Santos da Cunha em letras garrafais, assassinado no banheiro da própria casa. Mas era somente sua esposa querendo saber da história do Camobi e...

E nada de arrancar resposta. Ela esperou os filhos saírem para tomar a maior das providências. A filha na casa do namorado, o garoto em um congresso da área dele na faculdade, fim de semana inteiro fora pela viagem. Aproveitou-se do sono pesado do marido, que nem precisava deitar para cochilar. Com a mão leve, tratou de amarrá-lo quando estava torto como uma vírgula sobre a poltrona da sala. Imobilizou pulsos e calcanhares, nós apertados e agora ia requerer a história dos tempos operários do já aposentado homem.

Ela, diabólica, atormentada, destroçada nos últimos dias sem dormir querendo saber daquela bobagem rotineira que seria incrementada ao cardápio do dia após mais um almoço, ela ofegante, olhos fixos, nem piscava, quase babava de sabor pela eminente descoberta e pela raiva que sentia do companheiro de mais de 30 anos juntos, somados os oito meses de namoro antes do casório. Ela com uma tesoura em mãos e as palavras pronunciadas em ameaça ao pênis do marido, que havia semanas que ele não utilizava senão para urinar. Ela com as antigas revistas Placar, ele colecionador, sentindo esse ameaço extra-corpório, aquelas revistas com Romário, Dunga, Alex Cabeção, Danrlei, Edmundo, Pantera e o favorito Túlio Maravilha podendo serem picoteados pelas pontas afiadas do instrumento cortante.

- Vai me contar agora, sem mais delongas, o que o Camobi havia falado com o Dirso e o que isso tem a ver com o assunto da sua sogra.
Pendurado de cabeça para baixo, ele com o suor que escorria na direção contrária ao que se costuma ocorrer em posições normais, o corpo fechado e retraído pelas severidade da situação, apenas conseguiu soluçar, em voz fina e trêmula.
- Agora eu que esqueci.

30/05/2020

Histórias da dona Eloá

Era uma tarde de calor apesar do fim de maio. Cristiane tentava se entreter no passatempo para época: colher e degustar vergamotas. Antes do aroma das frutas entranhar-se na sua pele, a sua mente já estava divagando pela decepção que havia conhecido. O nome da menina era Laís. Ambas compartilhavam muitas situações em comum, com taxas de compatibilidade consideradas altas para as músicas que ouviam e os filmes que assistiam. Quando faltava assunto, sobravam aspectos da arte para entreterem-se em demoradas conversas.

Tudo fluiu tão fácil que nem precisavam do desgaste de encontrar as palavras certas para estender essa amizade para algo a mais. Após se conhecerem na faculdade, a forma como o olhar se desenvolvia falava mais do que as obras cinematográficas de Kubrick ou os livros de Margaret Atwood. Expremiam confiança para seguirem envolvidas como bem entendessem. E elas se entendiam.

Tinham opiniões semelhantes sobre a preservação ecológica. Em testes de internet, a distribuição entre optar pela prioridade para produção ou natureza, para as duas era quase a mesma porcentagem. Laís havia tirado sarro disso porque, para elas, naquele momento, o importante mesmo era a solidão daquelas árvores, onde podiam estreitar a relação. No bosque, descobriam mais do que a cor dos sutiãs e os ignoravam. Decoraram, mentalizaram as tatuagens uma da outra. Soltaram e prenderam cabelos, ao gosto e ao ritmo. E tantas mais coisas que eram assuntos restritos delas.

Em cidade menor, a fama é complicada. Apesar do campus da faculdade estar mudando aos poucos essa realidade, elas ainda preferiam tomar cuidado. Não queriam que a desconfiança dos mais enxeridos fosse confirmada. Seria uma afronta muito grande, Cristiane formada em igreja, com esse nome não por acaso, Laís vinda de fora, se importando menos com ela, mas tanto mais se importando com a companheira que não queria complicações maiores com a família.

Cristiane estava em período triste. A avó começava a regredir as ideias por conta do alzheimer descoberto. A mãe de Cristiane trabalhava durante a infância da filha, faltava pouco agora para se aposentar, mas de modo que a menina passou boa parte dos primeiros anos sob cuidados da avó, dona Eloá. Eram muito apegadas nas companhias uma da outra. A velhinha com pouco estudo, mas com refinado gosto para leitura, havia provocado esse hábito em Cristiane, o tanto feliz porque havia fracassado nessa missão com a própria filha. Era uma realização que a completava.

Mas com essa cronicidade no desandar das faculdades cognitivas, dona Eloá é quem precisava de Cristiane cada vez mais. A moça pegava algum exemplar da estante da avó e lia para confortar a solidão de sua criadora. Fisicamente Eloá também piorava drasticamente, com uma limitação de movimentos que a todos causava comoção.

Dona Eloá e seu Jeremias não viviam mais juntos havia 10 anos. A teimosia de um e a irritabilidade da outra fizeram com que o casamento se esgotasse antes que um deles partisse dessa para viajar ao desconhecido. Jeremias, apesar de teimoso, nunca havia recusado morar em um lar de idosos. Errado. Nunca havia recusado morar naquele específico lar de idosos das paredes verdes, supostamente porque era apaixonado por uma das enfermeiras. Nem os ciúmes por ela dar banho e trocar outros incomodava o ancião. Um boato era o de que Jeremias, em seus gloriosos anos de juventude, nutria caloroso apreço pela avó daquela senhorita de uniformes brancos. Mas falta confirmação autenticada desta tese, que de fato não está em letras garrafais na biblioteca ou nos registros escolares do interiorano município.

Mas onde encaixamos o senhor Jeremias na história toda? Simples, ou nem tão simples, complexo. O vasto coração de humilde senhoria possuía diversos quartos, como um hotel de dois andares. O espaço reservado para a família era reaberto em dias de visita ao lar de idosos. Havia uma suíte a níveis presidenciais para a enfermeira e quiçá sua falecida avó. Mas apesar do término com dona Eloá, seu Jeremias ainda parecia reservá-la ótimas chaves ou até mesmo o quarto principal. Essa é uma hipótese bem endereçada porque, ao saber da notícia da piora repentina de Eloá, o ex-marido sentiu forte impacto.

Visitou Eloá mais três vezes, todas com pouca conversa, fatalmente menos do que ele imaginava nos ensaios aos últimos encontros com sua ex-esposa. Eloá era bastante ríspida e severa. O hotel-coração de seu Jeremias se aproximava da falência. Ficou derretido pelo gelo da então companheira. Tentava consolar-se que a doença do alzheimer estava tratando de liquidá-la. Dessa maneira é que a desatenção com que ele pairava. A culpa não era dela, talvez fosse dele? Sabia que a amava, mas sentia que ela não correspondia. Vagueou por corredores fundos, até as profundezas de onde não saberia mais sair. Labirinto. Investiu seu casamento em Eloá, evento respeitado na época. Anos que pareciam felizes, mas logo não foram. Apenas se aturaram por quantos, como uma estrada tortuosa de anos de trabalho para uma aposentadoria mal paga e curta. Se ao menos tivesse avançado para outras possibilidades (talvez a avó da enfermeira?).

Sentiu-se depreciado como nunca havia ficado, mesmo nos tempos conseguintes à separação de Eloá. Percebeu não ter sido amado da forma como gostaria, nem mais seria. Os cuidados da enfermeira não seriam o bastante para evitar sua derrocada. Durou dois meses e o coração-hotel fechou-se por definitivo. Um duro golpe para a moça Cristiane. A avó naquela condição de piora gradativamente, o avô levado a sepulcro.

O coração de Cristiane estava em pesarosas derrotas acumuladas. Ela sentia-se para baixo. A avó que demasiado havia participado de sua criação naquele estado, o avô acertando a conta com outros portões, julgava ela que os celestiais. Da mãe Cristiane não era tão próxima a ponto de grandes confidências, toda aquela religião obrigatoriamente imputada sobre ela cobrara um preço na relação entre as duas. O pai era caminhoneiro, vivia pelas viagens e também não era a figura mais presente para ter com ela. Sua idosa e fiel confessora com alguma hora não muito distante marcada para partir. O peso iria para os ombros de Laís.

04/05/2020

o estranho caso do crocs

Esta aconteceu no bairro. Um relato que a vizinha pode muito bem utilizar no salão ou na parada do ônibus sobre a crescente da violência no antes seguro agora inseguro ninho em que ela habita. Este pode ser tomado como procedente do Oiapoque ao Chuí, como dizem. Creio que mais para o Chuí, porque na região comercial fronteiriça, é bem possível que algum brasileiro ou algum uruguaio se estresse por um par de crocs e gatilhos sejam puxados ou facas ganhem novos fins que não cortar peixes. Tendo o leitor preparado o terreno envolto de sua própria morada como cenário ou não, reafirmo que esta aconteceu no bairro.

A avenida serpenteava aquele aglomerado de casas pelos dois lados, o que torna o faroeste ainda mais improvável. Ao invés de rodas de feno e poeiras ao vento, circulavam por ali muitos carros, principalmente nos horários das 13 e das 18, na ida ou na volta. Entrecortada estava a avenida por um canelete de gramados verdes ao redor e vegetações rasteiras plantadas pela prefeitura há oito anos, mas que muitos viventes juravam que tornariam-se árvores "e frutíferas", acentuavam os injuriados pelo ato de lúgubre intenção.

Não crescendo os caules e as ramagens esverdeadas, toda a cena ficou exposta aos olhares de senhores e senhoras remendadores de fofocas, no parapeito de suas janelinhas de tão medíocres vidas. Não havia anoitecido faz muito e calor ainda fazia, portanto iremos induzidos que os últimos contistas desse drama estavam corretos e aquela aberração aconteceu por abril. Filando um cigarro do companheiro ao lado, um calvo senhor me revela que não passava das 20 horas, portanto havia baixado o vai e vem dos movidos à gasolina, álcool e diesel. Uma ou outra moto ainda esganava sua sinfonia para desesperar quem não queria perder uma mísera frase da novela do horário.

A câmera para o pátio frontal de algum vizinho capturara a cena e o calvo, já a meio cigarro, resmunga com o canto da boca que o morador do avanço tecnológico só cedeu as imagens para polícia. Nem a mídia pescou essa referência nas coletivas de imprensa, o que mantém a bruma da imprecisão sobre a hora exata. Mas sigamos. Um transeunte, alto pelos seus dois ou quase metros do dedão ao cabelo carapinha, passa apressado, passadas largas, diria o narrador Paulo Brito, e larga um par de crocs sob o curto sombreado de uma moita - talvez uma daquelas que prometeram crescimento paisagístico e não cumpriram.

Os sapatos eram verde-limão e tão resplandecentes que nem a rendição do dia em noite, nem o arbusto acima ocultaram a vista. Percorridos minutos, um morador da rua visualizou os abandonados e, interrogativo, girando nos calcanhares para saber se estava espionado, resolveu apanhar o par de crocs. O transeunte do cabelo crespo era tamanho que seu par de sapatos se assemelhava ao longe com um jacaré imóvel, facilmente receberiam o apelido de lanchas ou barcas pela vizinhança da velha guarda e, se fossem de serventia como um porta-cds, bem ali caberiam uns volumes no espaço para calçar.

O passista já se retirava do local com o novo presente para os pés, para andarilhar agora botinado em crocs, quando retornou de arma em mão o antigo dono, requirindo ainda o ser. "Larga isso aí, passa pra cá!", o cabeludo e barbudo e de gorro apesar de não estar frio entrou em polvorosa. Não conseguia assimilar naquele instante a violência de levantar uma pistola por um par de crocs. Tudo parou. Mesmo sendo morador de rua, só havia sido acusado de roubo duas vezes, as duas por total preconceito de mal intencionados a prejudicá-lo, fosse pela sua condição de sem-teto ou pelo estilo de seus capilares e vestimentas.

O nome do rapaz com a arma apontada para si era Jorge. O nome de quem apontava não sabemos. Jorge ficou em choque depois de tudo isso e foi respeitosa e religiosamente dormir em albergues da experiência aos anos que sucedem, hábito que ele nunca tivera antes. Naquele momento, é claro, começava o choque que o traumatizara. Nervoso também estava o trêmulo dono da arma, com os pés 44 descalços e reivindicando o par de crocs.

Jorge não conseguia reagir e nem devolvia os crocs nem corria com eles. Não saía do lugar, não emitia palavra. Seu algoz, entretanto, repetia as ordens perdendo a paciência, a sanidade, se é que possuía, e o que fosse. A arma era a lei no bairro mais uma vez. No terceiro grito, em tom de ultimato, com a mão a aprontar o que seria o disparo contra o peito ou cabeça, querendo nem saber do desfecho, foi a presença do velho Almiro que revirou o jogo.

Almiro era aposentado da polícia militar e podia ser facilmente reconhecido como ancião metido na quadra. Implicava por muito menos, podia-se dizer. Não tolerava as bicicletas elétricas, os skates e os gatos de rua. Não os diferenciava muito e, com a autoridade que ele se outorgava, podia muito bem resolver tacar pedras nos jovens bípedes que tiravam onda em horário inverso à escola ou nos quadrúpedes insolentes, que ele preferia era os cães e até comemorava quando algum dos felinos era encurralado por predador de rua.

Saindo da porta de casa, Almiro cuspiu no chão, rebolando autoritariamente a cintura, como se ainda fosse o manda-chuva da delegacia do distrito do outro bairro. Jorge pela primeira vez tirava o olhar da prateada pistola, desde que a conhecera, espécie tragicômica de amor à primeira vista. O outro não tirou o cano da reta do peito de Jorge, mas desviou brevemente os olhos para o novo personagem do enredo. Seu Almiro era baixo, atarraxado, um cabeça de prego que tomou umas marteladas para reduzir sua altura na casa dos 1,60, ainda menos com a idade. Quando servira na polícia, podia se orgulhar de alguma medição honrosa que lhe desse 1,65 para empatar com o Sol do Girassol da banda paulista Ira.

Almiro estava imóvel, confiante, pensando que lidava com algum filme western de Clint Eastwood, Kevin Costner, John Wayne ou Henry Fonda, cujas obras ele havia acompanhado desde a juventude e matava a saudade diante da televisão pela antena-gato da rede Telecine. Almiro tornou a cuspir no próprio gramado, na cena que era agora toda dele, iluminado pelo poste que oras vivia aceso, oras apagado naquela avenida importante, mas mal cuidada, como grande parte do bairro ou da cidade. O músico Dado Villa-Lobos ensaiaria tocar o tal João de Santo Cristo naquele interiorzão à espera de alguma ação, talvez heróica, talvez anti-heróica e sobretudo sem unanimidade pelas confusas versões que narrariam o fato. Sobretudo pelas diferentes opiniões sobre cada um dos polêmicos atores. O andarilho maltrapilho tantas vezes alcunhado mulambo Jorge, o vizinho rabugento, policial aposentado Almiro, e o sedento pelos crocs, homem alto dos cabelos carapinha de quem pouco o ex-policial ou os atuais policiais conhecem.

O bigode de seu Almiro, que o mantinha no melhor formato escovinha de barbeiro, tremeu sobre a boca que exigia uma desistência do arma em punho. Mas foi começar a frase que o disparo partiu, em repentina mudança de endereço. O estampido cortou o parcial silêncio da noite, interrompendo com um uivo doloroso a sentença a ser pronunciada. Almiro tentou se apalpar no local atingido, mas cambeleou dois passos bêbedos para curvar-se, ajoelhar-se e tombar-se na calçada que orgulhosamente construíra. Ficava irado cada vez que um cachorro a utilizava de banheiro, mas agora sangrava compulsivamente sobre a bem assentada obra.

Jorge provou parte de seu caráter indo em direção ao socorro daquele que provavelmente lhe salvara a vida, custando idosamente seu término na estatística dos jornais e rádios nos próximos dias. Quanto ao duradouro momento, inesquecível para esposa do seu Almiro, a filha adulta em outra cidade e tantas outros envolvidos, eis que o par de crocs ficou a salvo das mãos do atormentado Jorge, que ao menos conseguiu descongelar-se para o socorro de seu Almiro.

O verdadeiro vilão catou o par de sapatos verde-limão e arrancou para o trajeto de onde viera buscá-los, emaranhando-se no bairro de ruelas escuras e curvas, muitas de terra seca pela falta de chuva, chão batido de levantar poeira. Era veloz o homenzarrão dos dois metros, crocs 44, passadas largadas, saudoso Paulo Brito dos gritos de "feito". Quem ouviu o disparo e arriscou meter a fuça contra o vidro das janelas - nenhuma blindada, mas a curiosidade corre mesmo esses riscos - só viu o injustiçado Jorge ser acusado pela quarta vez, a segunda em raio de dois minutos.

Populares, por assim dizer, foram avançando cautelosamente, mas, ao depararem-se com os olhos arregalados de Jorge, que recuava para longe do estatelado Almiro, constataram que o homicida estava encurralado. Jorge tentava explicar e nada saía. Mesmo que saísse, não acreditariam nele, andarilho maltrapilho, mulambo que se arrastava. Esvaziou os bolsos do casaco que trajava mesmo não fazendo frio, porque conservava-o junto dele, para evitar que outros o deixassem até sem isso. Provou que não tinha arma, como poderia ter disparado um tiro?

Não se importaram, começaram a cercá-lo. A esposa de Almiro somente choros, a filha viria a saber da notícia só três horas depois, porque ninguém se animou a uma ligação antes. O velho já estava morto e quem corria riscos agora era Jorge. Jorge cerceado, que poderia fazer? Que moral lhe dariam para explicar-se? Crocs verdes e ainda iluminadamente em tons limão, que besteira! Era uma desculpa tão obsoleta que deveriam ter acreditado no desvalorizado morador das ruas. Quem saiu de casa depois disso, no vozerio, no coro crescendo e prometendo comer, via pelas ruas perpendiculares à avenida apenas as pegadas do par 44 do crocs e a poeira que subia como se fosse fumaça de fornalha.

Jorge foi hostilizado, mas a sorte jogou para seu lado em busca do gol de empate em 2 a 2 naquela fatídica noite de reviravoltas. A primeira sorte foi ter sobrevivido aos populares que lhe agrediam a chutos e pontapés, nome de banda portuguesa de apreço de meu amigo porto-alegrense Diego. A segunda onda de bem-aventurança no bafejo da sorte foi a câmera do vizinho ter captado a ação que acusaria o homem dos dois ou quase metros de altura. O do cabelo carapinha.

A luta pelo crocs ganhou os noticiários da televisão estadual e os produtores de notícia deixaram passar pelo gatekeeping rumo ao jornalismo nacional. Jorge era notícia no país inteiro. Quando conversei com ele, não muita bola para a fama em totalizados similares 15 minutos em rede brasileira. De cabelos curtos e barba de apenas três dias por fazer, Jorge conta que foi reconhecido por algumas pessoas nas calçadas que ainda frequenta. Recebeu uma alimentação melhor por cerca de 15 a 25 dias, até cumprimentos da Prefeitura em ação solidária, quando a prefeita sorria e ele ainda se recuperava de um roxo no olho esquerdo e uma botinada que levou no maxilar. "Tudo isso por causa do maldito par de crocs."

O dono dos crocs verdes não foi localizado. Os crocs, sim. Correspondiam à cor e tamanho 44 descrito. Também são daquele par o registro do recorde de maior velocidade atingida correndo de crocs. Pelas ruas de mal iluminado bairro. O criminoso foi um total debochado de ainda calçá-los para correr aquela curta maratona, tamanha sua certeza de êxito. Descalço iria mais longe muito mais rápido, bem se sabe. À procura pelo bandido do crocs verde seguiu por 30 a 40 dias, até ser esquecida pelo papel do periódico que circulava na região. As rádios escassearam de ouvintes interessados na bizarra história. A televisão nacional, como foi dito, dedicou apenas os singelos 15 minutos iniciais ao assunto. Nunca mais quis saber de Jorge ou de nossa cidadezinha, rompendo o silêncio sobre ela somente por alguma epidemia de crack ou aumento no roubo de gado nos distritos rurais do município.

Jorge parou de almoçar e jantar como inocentado após aquele mês de reverências a seu caráter e boa índole. Dos populares que o agrediram sem conhecer a história, apesar das imagens da câmera e saber-se que moravam todos perto, em raio de duas quadras do local, ninguém indiciado, muito menos preso. Almiro realmente bateu as botas naquela noite, ou seriam os crocs? A viúva se mudou para Santos, litoral de São Paulo. A filha mora a poucos quilômetros da cidade praiana e elas agora se encontram mais seguido. Logo procurarão um pretendente para a velha Sônia, que sente falta de uma companhia e já nem muito suportava o velho marido, bancado como herói por uns, estes mais saudosos da ditadura, e como velho besta por outros. Ah, se os gatos de rua falassem...

Quanto ao articulador do plano dos crocs, pontas soltas de perguntas que não querem calar. As teorias são as mais variadas. Uns rezam a lenda que os crocs verde limão 44 tinham alguma especiaria que o faziam supersticiosos, valiosos como se banhados em ouro. Muito refutável, mas dizem que os encontrados no lixo dias depois eram falsos, ou somente outras barcas resplandecentes que coincidem com o famoso par da história. Teorias que mais fedem para o lado do falecido Almiro dão conta que ele possuía muitas desavenças desde os tempos de polícia. Portanto, o plano seria muito bem articulado, o par esquecido propositalmente diante de sua casa, o andarilho Jorge, que passava pela rota daquele bairro seguidamente e por aquele horário, veria o par, acharia uma boa usá-los (mediu-se que seus pés eram 42). O assassino voltaria à cena incriminando Jorge, aproveitaria que o metido do Almiro trocaria nada por um bang bang daqueles e o fuzilaria ali mesmo, na calçada de que ele tanto gostava.

Uma bela versão, não é mesmo? A contestação viria pela bobagem de se tratar de um par de crocs o motivo daquilo tudo. Poderia ser um relógio brilhoso, uma joia, mesmo um casaco ou uma jaqueta de maior beleza, algo que interessasse a Jorge ou a outro transeunte desocupado para servir de laranja. Mas crocs verdes e não obstante verde-limão. Os insistentes da teoria relatada com maior aceitação pelos concidadãos creem que o uso do crocs verde limão se deu por chamar a atenção, enquanto peças menores poderiam passar despercebidas por horas ou mesmo dias, ou pelo menos até amanhecer novamente. Outra que Jorge era tido como bisbilhoteiro e tinha como lema que o lixo de uns é o luxo de outros. Caiu nessa cilada que quase lhe custou a vida.

Ficam ainda as pulgas por detrás das orelhas se o assunto com Almiro é velho caso de milícia, tráfico de drogas, problemas profissionais, rixa com facções, estranhamentos conjugais (dona Sônia deu no pé) ou o que poderia ser... Sobre o último dos deboches do assassino de seu Almiro, percebeu-se parte da ação premeditada quando a filha do velho estava se desfazendo dos pertences do pai, muitos doados para instituições de caridade, parentes distantes ou mesmo deixados na calçada onde tudo ocorreu, para que fossem civilizadamente (?) carregados por quem precisasse.

Além de muitas peças de roupa encabidadas em formato de bazar de garagem, havia várias caixas emparelhadas junto ao meio fio. Qual não foi a surpresa de um amigo de Jorge, aos olhares de curiosos vizinhos à luz do dia, quando abertas as estruturas retangulares de papelão notaram uma coleção de crocs: de todas as cores, das mais diversas... menos verde-limão.

29/04/2020

visão dos muros sob minha ótica

Os muros, construções soerguidas ademais pela paranoia da timidez. Estamos sempre levantando novas estruturas que nos reprimem e afastam. Nesse exercício ensaiado a seguir, algumas relações das paredes muradas em quintais e a relação paranoica a elas atribuídas.

Antes de mais nada, recordo das memórias infantis em que, por uma determinada época, como muitas vezes minha mente pregou-me peças, eu desenvolvi uma sensorialidade para com as paredes pichadas e grafitadas, na época ainda não atribuindo a diferenciação entre piche e grafite. Tinha um verdadeiro pavor de ver as paredes assim. Quem diria que anos depois eu teria regulada paixão por fotografar e decifrar códigos nas mesmas? Mas, até então limitado de várias maneiras quanto a essas interpretações possíveis, o medo cobria-me como os traços e riscos cobriam aquelas superfícies urbanas. Algo na escola também transmitia isso, envolto com o fundo das salas repletos de manuscritos, o tampo das classes que terminavam o dia assim para trabalho extra às funcionárias e aos funcionários da limpeza. Isso muito me desagradava, sem dúvida.

Ainda em estágio de superação ao trauma mencionado, passei eu mesmo a desenvolver desenhos abstratos, geralmente monstros, sobre os criticados tampos das classes escolares. Desenhava em aulas tediosas ou ao terminar os testes, as provas, sendo impedido de sair para o pátio, para não perturbar outras salas ou discutir as respostas. Eram tempos para desenhos que muitas vezes apareciam no verso das avaliações. De qualquer forma, seguiria a discordar sobre deixar como vestígios essas representações que logo seriam apagadas. Mais serviriam castelos de areia à espera das marés do que aquele verdadeiro desperdício de meus materiais escolares e de produtos de limpeza da escola. Arte tão brevemente existente e logo censurada pela arrumação.

Pela cidade, as pichações e os grafites se multiplicavam. Certa noite na infância, sonhei que haviam invadido nossa casa e pichado as paredes dos fundos, todas brancas. Um pesadelo. Isto se deve a uma verdadeira situação em que algum jovem mal intencionado desenhou alguma besteira em vermelho na coluna que sustentava nossas grades da frente. Minha mãe obviamente enrijeceu com aquilo e tratou de limpar a panos o mais depressa possível. Ela raramente saía de casa, de modo que quando voltamos de alguma visita, a tinta ainda devia estar fresca e o responsável pelo tormento não muito distante. Mas não chegamos ao ponto de procurar com o carro no encalço de algum suspeito com lata de spray, canetas especializadas ou mochila com a qual pudesse esconder algum desses equipamentos. A limpeza foi feita e permanece intacta, com exceção de novas mãos de tinta propositais, provenientes de nossa manutenção. Em resumo, não houve outro incidente do tipo.

E, mesmo em sonho, eu não recordo de novo acontecimento a respeito, o que me agrada, pois há tantos problemas no mundo mais severos do que esse trauma que considero superado, caso me levantem a questão de perguntarem sobre. Porém, ademais das pichações ou grafites, os primeiros às vezes criminosos, às vezes heróicos das calles, os segundos muito mais caracterizadamente artísticos, ademais dessa situação, o assunto em pauta são a presença dos muros.

Também para o saldo de minha infância, esse cofre em que empilhamos tantas moedas e, ao rebentarmos anos depois, percebemos a inutilidade de tanta coisa que foi acumulada sem nexo. Ao menos assim muitas vezes me parece. Desbravado ao conhecimento o cofre da infância, analisado pormenorizadamente agora, de lupa, de lente de aumento, sob uma nova luz de lâmpada precisamente posicionada, vemos o enfileiramento de muitos muros que nos fizeram parte, como uma corrente de dominós, toda conectada. Os muros de minha casa tinham um papel protetor fundamental. Quantas vezes ouvi minha mãe contar da vez em que, logo aprendendo a correr, após caminhar, eu menino disparei portão para fora em direção ao meio da rua, correndo imenso risco de ser atropelado? Quantas vezes ouvi? Mas tudo me passou bem, dentro daquele possível, me aperceberam naquela situação fragilizada e recolheram-me o mais depressa para casa, sob duras palavras, que jamais lembrarei, e safanões e promessas daquilo não se repetir. De minha recordação, não se repetiu. Não, nada de tamanha ruptura aos portões guardiões de minha intacta segurança residencial.

Certa vez lembro de ter aberto a porta à noite sem verificar o chamado olho mágico, que provavelmente eu nem alcançara com minha altura à la pigmeu. Tomei outra série de duras e safanões nas palavras de minha mãe, que voltava de um de seus passeios, este na companhia de minha vó, tia e outras pessoas de convívio familiar. Abrir a porta, antecipando a chegada de meu pai, foi o ato irresponsável da vez. De fato, era crescente a violência do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Sobre a primeira escapada, a pelo portão da garagem lateral aberto, com idade que não me recordo, somente sei da história por repetirem a narrativa do perigo daquele acontecimento impensado. Havia o risco do atropelamento na movimentada avenida que cortava o bairro e também esse risco de rapto e recompensa, logo pensava eu na época, na minha tentativa de estabelecer sentido a essas situações. Anos depois, nessa nova ótica empírica, atenciosa sobre o cofre desmembrado da infância, é que nos damos conta de perigos maiores, aqueles que muitas mulheres ainda sentem ao saírem em psicológico inseguro para rua. Aquele crime mesmo. Esse que estás pensando. O crime que talvez mais gere debate sobre a pena ou não de morte e que, eu em absoluta conduta geral contra, até me inclino a concordar com as pessoas mascaradas de tochas, em busca da condenação maior ao infrator imperdoável. Quando se trata de uma indefesa criança, então...

Dos muros de casa para os da escola. É como relembrar a primeira vez que nossa mãe nos deixa aos cuidados de terceiros, geralmente uma pedagoga, uma terceira, uma chamada "tia", que você aprende com os colegas de pré-escola que é como deve chamá-la. Eu não chorei. Lembro e contabilizo pouquíssimas vezes em que verti lágrimas publicamente no ambiente escolar. Não chorei, mas recordo que pensei que aquilo demoraria um longo, longo tempo. Tive razão e não tive. Foram tardes inacabáveis? Foram. Mas delas agora pouco me lembro ou interferem de como estou finalmente aqui. Cada uma delas, em específico? Muito pouco a acrescentar. Da Marlene que cuidava a porta e faleceu às aulas de religião que eram sempre as mais tardias do turno vespertino, em que as crianças faziam as atividades de qualquer jeito enquanto eu me dedicava talvez em empatia e complacência com a esforçada Rosângela, educadora que pouco atraía nossa descortinada atenção.

Dos muros da escola, poucas vezes ultrapassados a pé pelas ruas centrais, recordo quando aguamos as plantinhas que enfeitavam o canalete ao lado. Um de nossos colegas deixou cair o baldinho para aquela torrente água suja. A professora até hoje deve incluir em suas preces o agradecimento por não ter sido o desatento amigo a ter despencado daquela possivelmente mortal altura. Nos espremíamos pela estreita calçada e até nos comportávamos, pensando hoje, sob a ótica diferenciada no cofre da infância. Em outras vezes rompíamos aqueles muros rumo a excursões maiores, como passeios a museus biológicos ou históricos, ao exército, a passeios rurais e fazendísticos. Mas sem o perigo de cair um outro balde ou criança dentro da vala do canelete.

Para os últimos tempos dessa vida, já recolhidos os cacos do observatório empírico da infância, a lembrança dos muros após o impacto da canção "muros e grades" dos Engenheiros do Hawaii. Impactante saber que a famosa Revista Billboard incluiu a canção entre as mais inteligentes de que se há ouvido falar, o que me orgulhava e felicitava pela banda, dona de vasto pedaço de meu coração musical em apresso. Nem parece que hoje um ex-membro se dedica a defender o pior presidente democraticamente eleito da história do país; quiçá do mundo. Mas enfim. Os muros e as grades nos protegem de quase tudo, mas o quase tudo quase sempre é quase nada. E o que nos protege de uma vida sem sentido?

Paranoico na destopia famosa do 1984, quando Orwell previa o formato dos reality shows mais famosos do planeta, lotados de edições ano após ano nos mais diversos países, campeões de audiência ainda no Brasil, mesmo passados mais de 20 temporadas do começo. Esquisito nos meus hábitos e costumes, seguidamente me pego pensando como seria se eu fosse pego nos meus hábitos e costumes. O jeito como me olho ao espelho, como invento coreografias, como seco as mãos carregadas de suor, raciocino estranho, mirando para o nada, visto a camisa primeiro pela gola, depois pelos braços, tudo isso para ser julgado e, modisticamente falando, cancelado pelos plantonistas que veriam minhas imagens captadas pelas câmeras. Ruim pensar como é a rotina de um animal em zoológico. Suas limitações de habitat, de espaço, sua existência confinada somente para deleite de quem pagou ingresso e espera que mexa-se e faça truques. Pior aos de circo.

Pelo caos pandêmico do ano de 2020, encontro-me saboreando a visão dos muros de meu quintal, estes, de minha nova morada, mais baixos do que da casa que sempre habitei. Fico exercitando a paranoia mais do que meus magros braços. Com a paranoia me coloco a pensar se estou no campo de vista do casal de idosos vizinhos, como se estes não tivessem também coisa melhor para fazer. Acontece que eu, desprovido muitas vezes de coisas melhores por fazer, observo por frestas o topo de suas portas, a de saída da casa principal e a da área destinada ao lazer. Enxergo a copa das árvores, da parreira e sei de cor (com ou sem acento - HA) algumas das roupas deles, dependuradas no varal, em bambus cujo o topo estão captados pelo meu campo de visão. Não consigo evitar vê-los. Vou para o quintal e presto atenção nesses detalhes sob o céu azul ou cinza. Observo o telhado das casas e divago para o máximo que esse horizonte me permite: três ou quatro casas vizinhas, algumas árboles na paisagem e um dos prédios mais altos da cidade, onde moram muitos jogadores do principal clube local, isso bem adiante. Usufruo desse espaço para tomar sol, garantia de vitamina D para os detentos da quarentena.

Como os muros aqui são mais baixos, o alcance da voz dos vizinhos, inclusive o timbre insuportável do garoto menor, neto deles, chega aos meus ouvidos. Tímido que sou e ressalto, me esforço para minha caixa de pensamentos, mais ou menos suicidas, mais ou menos homicidas, mais ou menos distópicos, fiquem comigo e com o papel e não em voz alta. Perdi o medo das escrituras nas paredes em pichações, mas permaneço interiorano ciente de que as paredes têm ouvidos. O sábio rapper Black Alien de Niterói avisava que no confinamento as paredes são páginas de cimento. Babylon on, Baby.