29 de outubro de 2020

Supermarcado

Minhas ideias na ponta da caneta
Nem tirei as remela e tá de novo na placenta
Não te assenta!
Que eles sentam o cacete no povo
And again and again
E de novo e de novo
Sentam em ti, sentam em mim e neles também
And again and again
Runnin' down a dream
Pra dormir o dramin
E acorda dia sim e no outro também
Única saída é sair desde as seis a trabalhar
Sustento pro lar - ônibus lotado, tráfego pesado
Em pé, mal acomodado - sem migué a dar
A escolha é a mesma porque não tem
É a mesma a cada página, a cada folha
É a mesma escolha!
É a que existe no ponto de vista de quem olha
E não estoura saca-rolha com champanhe
São os que na rua estão, pro que der e que apanhe
Apanha, apanha
Ônibus pesado, tráfego lotado
Em pé, acomodado mal e sem dar migué
Apanha, apanha
Às vezes reclama
Mas vai na manha
Pensa e sonha quando deita a cabeça na cama
E busca a ceia pra ter o que jantar
E banana com aveia pra tarde passar

A rotina é essa que cola na retina
Em meio às casta, baixando e levantando fumaça
Cada um a cada dia atrás de suas caça
A rotina é essa que cola e adesiva
Se apresenta sempre com pouca alternativa
Cada um a cada dia a mantendo viva

A rotina é essa que cola, sacola de super
Marcado o horário pra bater o ponto
Tem que estar pronto. Sem pegar leve
Sem um breve intervalo e sem desconto
O que cair da prateleira é desconto no salário
Se persistirem os sintomas, demissão
Assim já foram vários
Do estoque pra reposição no armário
Nas caixas de sucrilho e quadro de funcionários
Drama, runnin' down a dream
Diário

Supermarcado no supermercado
Nas prateleiras dos macro-atacados
Atacados por todos os lados
Na rotina que cola na retina
No que não se atina
E no que já tá atolado
Ou nem atina mais
Já tá anestesiado
Aqui é caixa-rápido
Seu carrinho tá lotado
Aqui é preferencial
Você não tá grávido
Ó meu cidadão, colosso, impávido
Seu ticket alimentação tá inválido
O gerente não sei, tá ocupado
E me respeita, trabalho aos sábados
Supermarcado no supermercado

A vida me enfada

A vida me enfada
E isso é foda
E cada vez que roda
O mundo fica assim

A vida me enfada
Em cada esquina farta
E o que justamente falta
É o que me alucina

O que não está à venda
E faz senda dentro de si mesmo
Nada se troca em oferenda
Mas te enfada mais tarde ou mais cedo

A vida me enfada
Limões - Limões nada
E cada vez que roda
O mundo que eu carcumi

A vida me desenfeitiça
Atiça o meu pessimismo
Preguiça de lutar
Pelo que não preciso

A vida me enfada
Ladra dos meus desejos
E seja o que houver
Se forem meus ensejos


agosto 2020

26 de outubro de 2020

ainda sobre os fios de poste

continuação do poema MILONGADO app cativo


ainda sobre os fios de poste

eles poderiam ser subterrestres

e aí ninguém mexe nem os rouba

e dessa chuva toda

eles se protegem


há vários assuntos mais importantes

que nesse instante não são debatidos

os apagões são na memória

a justiça e a história pra baixo do tapete

e somos inerentes

a essa inglória


mas os fios de poste

assim me incomodam

os gatos de luz e os preços caros

os caras que se arriscam

a levar choque

roubando e roubando

cabos e fios de poste


não acabo aqui

aqui no meu post

um post de luz

que lhes dê choque

uma assinatura

de um pacote completo

e o veto da viatura

de polícia por perto


ainda falaremos sobre os fios de poste

e sobre os tocs e toques

e outros choques

app cativos

os fios de poste

despertam o meu toc

eles estão a toda

no centro de Pelotas


cidades

e fiações velhas

e sem elas

seria luz de velas


eu troquei

hoje de smartphone

me sugeriu o app

de fast food

fiquei com fome

no home office

de um dia chuvoso


quando chove muito

falta a luz

que nos induz

a reclamar

gritos em caixa alta


quanto chove muito

o motoboy do fast food

tem um problemão

os perigos do asfalto

na sua profissão


quanto chove muito

o meu intuito

é não pedir lanche

mas o app não quer saber

lança o seu lance

promover e promover

25 de outubro de 2020

Aos gremistas que lá do céu cantam comigo

Escrevemos sobre tantas pessoas de tantos lugares. Sobre escritos e escritores que nunca nos viram. Portanto, me senti na obrigação de relatar uma homenagem ao amigo que nos deixou na última semana, o Roger Schneid. Mesmo ele não nos sendo exatamente próximo, talvez tenha sido o amigo mais cerca, sem contar parente, a nos deixar. Fomos surpreendidos pela ida por sua pouca idade e pela fatalidade de como ocorreu o episódio, segundo constam.

Há poucos dias eu lembrava o futsal que jogamos juntos por alguns anos. Roger gostou de minhas atuações logo na primeira partida em que nos conhecemos. Não sei que tanto ele tenha gostado, mas eu ficava feliz de assim o ser. Relembrei dias antes de seu falecimento como eu pegava a bola para a reposição do goleiro de futsal com as mãos e Roger sempre encostava na área, próximo ao escanteio (a quadra era estreita) e pedia bola para ele, para começar a jogada. Ele sempre recebia pela lateral da área, trazia a bola para o meio e arriscava um lançamento, entre sucessos e insucessos. O lance muito se repetia.

Conheci Roger, na verdade, em viagens com a Geral do Grêmio em Pelotas. Ele era um membro ativo da torcida, conhecido pelos demais cupinchas, frequentador assíduo do estádio Olímpico Monumental, este que nos deixou em 2012 para 2013, na substituição pela magistral Arena, entre bairro Humaitá e vila Farrapos - quase Canoas - dizem os colorados invejosos.

Roger passou por alguns momentos ruins com as drogas, reencontrei-o em 2016, justamente nas datas finais da Copa do Brasil, quando o nosso Grêmio rompeu o jejum de títulos grandes que já perdurava os incômodos - talvez impossíveis - 15 anos. Mas a conquista daquela copa marcou o capítulo importante de nossas vidas, inclusive com registros fotográficos para a posteridade. Pensava que Roger estaria em Porto Alegre para comemorar o feito tricolor, que tanto se aproximava após a abertura dos 3x1 fora de casa, no Mineirão, contra o Atlético Mineiro. Mas encontrei-o ali, bebemos e comemoramos juntos. Acredito que mais comemoramos do que bebemos naquela ocasião, na companhia de um tal xavante, João Gastal.

Roger também recebeu a homenagem por parte da torcida do Pelotas, outro clube que ele, mais local, frequentava. Além disso, jogava seguidamente em nossos ginásios com a camisa do maior da Argentina, o Boca Juniors. Se você acha que é o River Plate ou o Independiente, está errado. É o Boca Juniors. Mesmo eu não ocultando minha preferência pelo Racing de Avellaneda.

Apesar de nossa constante falta de assunto, ele arrumava alguma coisa para falar, xingar alguém ou levantar algum tom humorístico - mesmo que muitas vezes apenas ele achasse graça. Era bem quisto no círculo de amizades do Colégio Gonzaga, tinha sua afinidade com o reggae e cantores de rap, além de gostar dos nossos Engenheiros do Hawaii. Talvez tenha sido a referência para que um dia eu escutasse um cara que hoje está muito em alta, o tal do Emicida. Os olhos pequenos de Roger de certa forma me lembravam esse rapper.

Quando me aproximei de verter as ditas lágrimas com essa homenagem, com essas palavras, Roger, foi quando parei para pensar que não estarás mais conosco em futuras conquistas que o Grêmio venha a ter - e é bom que tenha, porque já está novamente difícil, sabes. Lembro uma história que ele contou, ou o amigo nosso Rodrigo, de São Lourenço do Sul, contou sobre um jogo do Grêmio em que Roger foi descer a avalanche e quase quebrou a perna. Teve que aguardar no concreto da arquibancada ao final do jogo e a viagem de volta para casa, com a perna aos frangalhos. Momentos de um gremismo alucinante nas românticas arquibancadas da hoje esquecida zona da Azenha. Mas inesquecível, sem dúvida.

Lembro uma festa no DC Eventos em que obviamente não combinamos nos encontrarmos, mas ele estava lá. Eu estava em um degrau que daria acesso à pista propriamente referida, enquanto tocava não sei qual música e a iluminação era sintonizada em tons rubros para rosados. Alguns casais se formavam. Roger tinha determinada lábia com as moças. Mas ele preferiu ficar ali na volta incomodando. "Olha o jeito que esse cara está com a guria, é um juvenil", xingava um que não conhecíamos. Eu achava daquilo um sentimento híbrido, entre o engraçado e o trágico, porque até o dito juvenil ali com alguém e eu sobrando naquele ambiente. E o cômico de Roger não procurar coisa melhor para fazer do que xingar o cidadão desconhecido. Mas este era ele.

Sentiremos falta. Seja de alguma postagem inesperada na internet, ele que pouco usava o Twitter. Seja dos jogos do Grêmio, seja de algum reencontro pela noite na cidade, entre Bar do Zé, frente e quadras ao lado da Universidade Católica, seja alguma festa não marcada entre nós. Não estará lá, mas existirá a lembrança. Roger ressignifica para mim a música aos gremistas que lá do céu cantam comigo. Vá em paz, bruxo. Por ela lutasse e que agora atinjas.

Roger na final da Copa do Brasil 2016
Lembrança dele feliz pelo Grêmio

24 de outubro de 2020

balada do último adeus

o último adeus
era 'até logo'
e era lógico
só eu quem não entendeu

o último 'até logo'
era um adeus
e era lógico
e doeu

você estava tão bonita
a produção capricha
na maquiagem das cenas finais
assim é hollywood
não que isso mude
não que modifica
você... é sempre bonita

a paisagem... estava ali
e eu também estava
isso muda em nada
era só plano de fundo
como o resto do mundo
é tão profundo, coração fecundo
em um conto de fadas

os gárgulas nos prédios antigos
e os gandulas sempre assistindo
as mágoas interagindo
e o agora submergindo

o último adeus
era 'até logo'
e era louco
como um soco que você me deu

22 de outubro de 2020

Realidades

Lembro que havia comprado o disco com as melhores da banda Smiths para ela. Mesmo que eu não tivesse certeza se ela gostava de Smiths. Mas pensava que os Ferreiras da língua inglesa viriam bem a calhar. Um rock alternativo, suave, melancólico na medida para quem se pretende atingir. Então foi comprado. Junto havia livros que considero dos melhores, foi um conjunto muito bem trabalhado enquanto presente de formatura. Acho que muito me representava, talvez mais do que a ocasião exigia, mas era eu posto à prova através da música e da literatura.

Isso foi antes de descobrir o caráter - ou mau caráter - do líder da banda inglesa, através das opiniões que vez ou outra circulam. Polêmico e preconceituoso. Cheguei a pedir desculpas para ela meses depois por ter comprado, apenas a informando e descarregando minha consciência de que eu soube dos disparos opinativos do referido músico. Lamentava por eles e por minha anterior escolha. Infelizmente não o cancelei de todo e ainda separo a portas fechadas e quatro paredes as canções para escutá-las, porque gosto bastante delas. Enfim, ainda as escuto.

Naquela ocasião, deixei passar a ênfase, a euforia de formatura, os festivos familiares, as amigas próximas, para declarar o que eu tinha de pretensão com ela. Mais ou menos como agora espero esse par de anos para relatar por aqui um pouco dessa história, que, afinal de contas, me chamou atenção em tom de desabafo para o seu desfecho. A vida pode ser muito cruel.

E, ao declarar isso, nada tem a ver com nossa relação, que dualmente não prosseguiu. Ela com namorado em seguida arranjado e que mantém relacionamento e espero, sinceramente, que prossigam felizes. Talvez as coisas tenham ido rápido demais na minha mente. Ou tenham sido evasivas com a realidade, como muitas vezes são comigo. Mas estava contente em ter aqueles momentos e desejava mais momentos como aqueles. Mas acabaram impossibilitados, acho que mais pela repentina nova relação que ela desenvolveu do que qualquer contrariedade de nossa parte. E tudo bem.

Mas quando aqui digo que "a vida pode ser muito cruel", foi em nossa despedida na rodoviária. Sim, outra vez as rodoviárias como testemunhas de minhas crônicas. O que eu posso fazer? São elas que avistam esses acontecimentos e, se pudessem contar, estariam nem aí, porque há outros acontecimentos mais marcantes. Mas esses são os meus. Me despedi dela. Subiria para meu ônibus e fui surpreendido ainda com o último beijo. Achei a cena por demais romântica. Nem eu, com bagagem no tema, havia pensado exatamente nisso. Aqueles senhores e aquelas senhoras com suas malas observando de alguma forma e imaginando nossa história - tão curta, sem tardar em ser cortada.

Mas me senti galanteador e envolvente. Com algum desenhado orgulho foi que subi as escadas curvas até o segundo andar do ônibus que me levaria de volta para casa. Acomodei a mochila maior em cima, com todo o cuidado para não derrubá-la na cabeça de alguém durante a viagem, a bagagem bem acomodada. E me acomodei ainda com direito à janela quando comprei antecipadamente a passagem. Na poltrona ao meu lado, a senhora que fez eu cair em um choque de realidade.

Não lembro como iniciamos o assunto, mas talvez eu tenha dado a letra que participei de uma formatura. Que gostava muito da formanda, algo assim. Na verdade não recordo se afirmei o que estou aqui afirmando. Mas ela, talvez por eu ser jovem, lamentou por sua sobrinha. Ela, que estudava em Novo Hamburgo, estava próxima da conclusão de seu curso, da dita formatura, e estava internada em hospital. A situação dela era instável, era grave. A mulher havia visitado a menina em NH e, de Porto Alegre, retomaria os rumos para o extremo sul. Me mostrou a foto da moça e constatei que também era muito bonita. Pensava eu na sorte que se deparava comigo, ter uma companhia naqueles dias, ser bem tratado, ter gostado muito da família e aceitado tudo o que havia se sucedido até minha partida de regresso.

Pensei em como minha amiga formanda também estava com as coisas em dia. Uma completa relação familiar com seus pais e irmão também em bom andamento nos estudos. Recentemente constatei que ele está em estágio finalizado de crescimento, se tornou um grande rapaz. Eu que dormi em sua cama por algumas noites. Ela que tem passado bem, acredito, com o namorado nesses últimos tempos. Ele parece um excelente rapaz. Por isso meus sinceros votos de continuidade e o que for melhor, realmente.

Enquanto isso, me assaltava o pensamento aquela menina impossibilitada de prosseguir a vida como ela mais gostaria ou desejava. Talvez deixando algum embasbacado como eu para trás. Talvez ele lutando com ela lado a lado. Talvez na amargura e na angústia.

Recentemente, uma parente minha passou pelos estágios da tal covid-19. Ela recém ingressa na casa dos 30 anos. O namorado também o que poderia fazer se não esperar por sua recuperação? Ele esperou. Parece que assim prosseguem agora que ela está recuperada. Foi um susto em todos nós, porque a condição dela era completamente instável e duvidosa. Teve a visão e a voz atingidas durante esse processo enorme de devastação provocada pelo vírus e seus afluentes. Eis que ela realizou sucessivos testes para detectar a doença do novo coronavírus e eles prestavam-se sempre negativos. Até um teste bem depois que acusou ela ter contato com a maldição viral do momento, mais de 155 mil óbitos no Brasil 2020.

Situações semelhantes, agora comparo, entre a menina do sul do estado, que estudava e foi internada em Novo Hamburgo, e a situação de minha parente, quase dois meses em uma batalha incessante contra os sintomas, com o uso de sondas, tubulações, medicações das mais diversas. Espero que o desfecho da jovem de NH tenha sido positivo da mesma forma que minha prima surpreendeu em recuperação, incluso da voz, mais rápido do que se projetava. Os parentes, familiares apreensivos, zelosos nas mãos médicas e na base das rezas religiosas para quem acredita e nada mais pode fazer.

A senhora que regressava para o Sul estava sim abatida, talvez vendo em mim a imagem de um jovem saudável que ela almejava para sua sobrinha. Não conversamos mais praticamente durante as horas de trajeto. Eu de certa forma chocado com essa outra realidade, nuvens sobre meu ensolarado dia de céu azul e planos. A vida é assim, incerta. Não sabemos o dia de amanhã. Fechei-me com os fones de ouvido e o olhar pela distância atingida horizontalmente pela janela.

Assim como para todos os personagens que relatei nessa história, sei de novas probabilidades e futuro a seguir, torço pela família que estava ilhada com essa situação de saúde em Novo Hamburgo. Agradecimento por onde ainda estou e consciente que nem todos desfrutam da mesma sorte: seja pelas questões de saúde, ou pelas percepções das coisas boas, mesmo quando tudo parece perdido, como a mim às vezes parece. Mas não está. Devo repetir para mim mesmo que: não está. A você também, provavelmente nem tudo está perdido.

19 de outubro de 2020

Medo dos Vivos

Tenho dúvidas se já explorei esse tema em tempos anteriores (obviamente), mas me proponho a esmiuçar ao menos um caso e citar outro. Mania feia a minha que desgosto os compromissos e já inicio essas linhas compromissado em relatar conforme informei que farei. O título remete ao segundo caso, mais curto, praticamente apenas a ser certificado, rubricado, ao final de página. Mas tem tudo a ver com a primeira situação, bairro Fragata, o bairro-cidade, na cidade de Pelotas.

Certa feita deixei meu trabalho mais cedo, quando cobria em assessoria de imprensa o clube da Avenida Duque de Caxias, a principal daquelas bandas. Gostava muito de fingir pegar o ônibus que me levaria ao centro, porém do centro necessitaria outro ônibus para casa, na ponta oposta da área urbana, no Areal. Somente eu para topar aquele emprego ingrato a troco de quase nada. Embora tenha-me dado parte do reconhecimento que timidamente desfruto. E também porque eu podia abandoná-lo a hora que quisesse em cada turno, justificado por outros secretos afazeres à chefia, como a desculpa por estudar, que eu tinha aula à noite. E assim saí, creio que em uma manhã ensolarada.

O Farroupilha é reconhecido como o Fantasma, tendo-o como mascote, além de ser o simpático tricolor da cidade. Um time das cores rio-grandenses, verde, vermelho e amarelo, mas que utiliza muito do branco, principalmente em seu segundo uniforme. O primeiro tem predominância verde, até porque os rivais locais são, respectivamente, um vermelho e outro amarelo. Melhor destacar os tons esmeraldas. Mas eu comentava que o Grêmio Atlético Farroupilha é o Fantasma e o apelido é bastante apropriado. O Fantasma pela proximidade entre sua sede na Duque de Caxias, 847, e o cemitério municipal de maior porte, o que contempla a maioria dos corpos e talvez almas da cidade, seus anonimatos e sub-celebridades, que colecionamos sub-celebridades.

Na proximidade com o cemitério, algo daquela manhã me atraiu para, quando circulava pela avenida, no concreto escaldante onde passam transeuntes e bicicletas pela avermelhada ciclofaixa, algo me sugeriu que eu devia dobrar para esquerda e, ao não haver sinal de carros, que ali muitos veículos passam na via, atravessei para a calçada sombria pelo cemitério que agora já se ergue em quarto andar pela quadra (àquela época eram só três).

Entrei pelos elevados portões cinzentos de ferro bem conservado, tamanha sua importância que ali testemunhavam entrar célebres encontros, reencontros e, é claro, o motivo maior, as despedidas. Aquelas arrebatadoras estruturas gradeadas levavam para o interior daquela úlcera e chaga interminável, onde alguns partiam para outros planos e a maioria ficava cabisbaixa a pigarrear e refletir sobre suas próprias existências. "Rômulo era tão jovem", "Ricardo há tanto eu não via", "Selma era tão querida", "não me despedi de Olga" e assim por diante. Pais, filhos, sobrinhos, primos distantes, parentes sem compartilhamento de mesmo sobrenome, amigos afastados, acompanhantes próximos, carregadores de caixões, portadores de discursos, trechos bíblicos, incensos e bitucas de cigarro pela caminhada irreversível.

Me certifiquei que ali nenhum velório ocorria e continuei percorrendo corredores em direção à parte que mais me toca, até porque lá que estão enterrados meus bisavós e demasiadas vezes percorri nos mesmos passos, com meus pés menores acompanhados de mão com meus pais ou em tons secretos de escondida brincadeira que eu meu interior conservava, porque embora achasse o cemitério grandioso e impactante, algo de misterioso e espetacular se acendia em mim com liberação de adrenalina. E assim repetia esses passos, naquele dia bem mais incertos do que certeiros das outras vezes. Tampouco, com a passagem dos anos, me recordo onde ficam os referidos túmulos de meus bisavós e seus parentes diretos, todos muito próximos em ala afastada para um jardim cada vez menos cuidado.

Nunca gostei da ideia de ser posto em uma parede, embora ali deveriam haver sepulcros de maior destaque na cidade e região. Letreiros correspondentes e melhores restauros e conservações. Minha tia-avó recentemente foi alojada nesse novo espaço após uma vida de 80 e poucos anos em mesma casa. Mas segui pelos corredores emparedados rumo aos fundos do referido cemitério São Franscisco de Paula - incluso padroeiro de Pelotas. Nome da principal catedral e também de avenida, na qual eu morava.

Para os fundos do cemitério predominantemente católico, mas também de abrigo protestante e judaico, por exemplo, havia ainda paredes bem menores, que muito se assemelhavam às dos quatro andares somente pelo método de depositar os corpos. Ali para o rumar aos fundos daquelas meio que duas quadras de extensão, ali estavam corpos e seus restos em estruturas verticais de aspectos similares a estantes. As estantes eram revestidas de pinturas esbranquiçadas, dando um tom monótono àquele trecho percorrido a pé.

Ao derradeiro da obra mórbida de natureza humana, estavam os jardins de grama cada vez mais entoada pelo crescer do mato, a escassez de antes primaveris flores. A extensão daquelas lápides até onde minha já deficitária vista (corrigida com 0,25 de grau em cada olho somente quatro anos depois) alcançava, formava um agradável cenário, como me gosta observar as grandes multidões. Por exemplo, em passeatas, estádios de futebol, protestos e, com menos afinco pela menor religiosidade, em procissões pelas graças de alguma santíssima entidade. Mas ali não era a multidão humana viva, pulsante, propriamente viva. Estavam depositados as cravadas pedras e suas inscrições, em que lemos muitas e lembramos poucas ou quase nenhuma, nos chamando atenção algumas mortes injustamente pregadas sobre corpos tão jovens, que nem consciência direito haviam tomado de nosso mundo. Embora algumas lápides de antigos tampouco poderiámos afirmar que viveram com a tomada de consciência. Mas isso é impossível tratar observando somente os túmulos - e mesmo que os abríssemos, nada revelariam, apenas vermes, organismos carcumidos e o revolver da terra.

Naquela espetacular visão, com a câmera em mãos, que eu havia já sacado da mochila da Nike que eu portava, comecei a percorrer o corredor principal entre tantos imóveis de pretensão eternizada enquanto nossa civilização assim durar. Os padrões de construções são distintos por poder orçamentário, condições financeiras, escolhas de cores, a gosto dos falecidos ou de opinião dos organizadores dos velórios e sepultamentos. Há túmulos violados, há pedras desgastadas, há vandalismo e também efeitos naturais de decomposição, atingindo abaixo e acima da terra.

Percorri alguns metros e fui parado por um dos trabalhadores daquela manhã, um dos cortadores de grama. Me chamou a atenção. Primeiro ele sinalizava ainda ao longe, depois resolvi me aproximar para romper o ruído de seus colegas cortadores de grama. Ele que já mostrava certa apreensão com minha presença, estava aturdido enquanto disse: "menino, essa câmera em mãos, que perigo! Aqui nessa região os craqueiros (usuários de crack), os drogados, te pegam com isso e te roubam quando não coisa pior", exclamava o homem. Se não com essas, com semelhantes palavras.

Direto e preocupado que ele foi, tomei seu depoimento como experiente naquele trabalho e demonstrei meu entendimento para me retirar. Ele baixou a tala protetora para o rosto, que agora está em moda novamente em função da pandemia do novo coronavírus. Religou seu aparelho e voltou a baixar o mato que crescia e impedia visões de maior privilégio aos transeuntes. Eu contornei o cemitério em caminho oposto ao de entrada, com algumas fotos da trajetória em registro do cartão de memória. Dos jardins - onde se escondiam dia ou noite, os "craqueiros" mencionados, ou usuários de outras drogas, voltei para os labirintos brancos das estantes seladas de caixões e terminei pelos andares verdes onde residem a maioria dos já não aqui residentes. As pesadas e cadeadas à noite portas de ferro são o limite.

Alguns guardas fazem as proteções pela área da frente, mas para os rumos dos extensos jardins já não há limites para os crimes ainda praticados pelos vivos - e talvez, pelas epidemias de drogas, cada vez mais praticados. O desespero pelas substâncias, a perda da noção, o distúrbio final dos conceitos de certo e errado. A necessidade daqueles organismos em acelerar os processos de um dia morarem definitivamente pelas covas deste ou de outro cemitério. Rezam as vozes que muitos até revolvem a terra e deitam-se por ali mesmo. Experiência mais freak impossível. Comprimidos os portões a cada noite, a segurança dos mortos dos sepulcros da entrada é garantida por alguns rondas. Quanto aos fundos, contemplaremos o medo causado pelos vivos.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Na rápida passagem prometida, ela ocorreu quando eu ainda morava pela São Francisco de Paula, no Areal. Na casa imediata à nossa, nos vizinhos, a bisavó de Carolina havia morrido há anos. A jovem, já mãe de gêmeas, não queria ocupar aquele quarto, por causa da morta. A avó dela, dona Maria, que seguido usava nosso telefone fixo e nela reunia todas as características de avó (teu Deus também a tenha), disparou em frase que me ficou gravada na memória: "medo dos mortos. ora, essa. devemos ter medo é dos vivos".

15 de outubro de 2020

em Porto Alegre

paraaaaadooo

na frente do Ocidente

em Porto Alegre

a febre é uma lebre

me contagia

no ritmo dos dias


paraaaaadooo

na frente do Ocidente

em Porto Alegre

a música distante

e passa muita gente

a febre se expande

num instante tá doente


parado

na frente do Ocidente


paraaaaadooo

parado o taxista

no seu canto da pista

olhando o movimento

compara gerações

reza baixo seu lamento

em Porto Alegre


paraaaaaadooo

o uber dentro do carro

esperando no aguardo

pela próxima chamada

lá pra perto de Alvorada

nas bandas do Rubem Berta

o celular apita

motora quase levita

e sai com toda pressa

sem ligar a seta

em Porto Alegre


paraaaaadooo

pela Cidade Baixa

olhando o movimento

o ir e vir nas faixas

conferiu

o saldo no cartão da Caixa

mas levou o Banrisul

azul da cor do Grêmio

carregou

quando foi no Largo Glênio

Glênio Peres

no centro de Porto Alegre


paraaaaadooo

na principal do Moinhos

se sentindo sozinho

vendo o movimento

no Moinhos de Vento

atento

procurando por algo

que valesse a pena

ter descido o nível

ao nível do asfalto

e por alto

não encontrava

deu mais uma tragada

com nada a perder

em Porto Alegre


desceu

até o bairro da Tristeza

por uma mesa de boteco

um plano em anexo

pra tentar a sobremesa

se sentiu

descendo a tirolesa

que dessa vida ninguém sai

de forma ilesa

nem mesmo

nem mesmo ela mesma

em Porto Alegre

7 de outubro de 2020

Ensopado de Batatas

Foi em uma cidade média de Santa Catarina. Os mais antigos talvez recordem ou ao menos descubram onde se passa o inacreditável relato. Baseado em fatos reais com o imaginário atiçado para a construção da vida desses dois irmãos. Um trabalhava pela ferrovia do mesmo município, no qual pedalava no ir e vir do trabalho matinal à despedida dos companheiros de labuta nos meios para os fins de tarde, quando o sol declinava e muitas vezes a bebida lhe convidava para um aconchego de bar pelo caminho. Gastava bem uns 12 minutos, calculava, para se deslocar na bicicleta de casa para ferrovia e vice-versa. Dessa maneira, muitas vezes considerava positivo retornar ao conforto do lar para desfrutar do almoço preparado por sua mãe, que era lavadeira.

Essa havia parido há muitos anos um conjunto de quatro crianças. Adir, o mais velho, era o ferroviário. João Lucas, o mais novo, ainda vivia pela vizinhança, já iniciado no processo de pressão para arrumar também ocupação de emprego. Havia ainda Otávio, que morava na região mais frutífera de Florianópolis. E Magda, que também vivia com os irmãos na casa da mãe e trabalhava em cargo arranjado na prefeitura daquele pacato município.

Conhecidos os pormenores da família, sabe-se que a refeição é um ato sagrado. Dona Filomena era uma cozinheira de mão cheia, o que nos faz pensar que praticamente todas as Filomenas assim batizadas no mundo assim o eram. Habilidades manuais também para o corte e costura, embora a ocupação em si fosse de lavar os uniformes dos filhos e dos vizinhos imediatos. Caprichava tanto nas tarefas domésticas que até o Otávio, irmão ausente daquela moradia, resguardava seus melhores trajes aos cuidados da esmerada mãe. Reuniões, bailes ou encontros de maior importância requeriam as lavagens e armazenagens da mãe. Com Dona Filomena não havia margem para erros.

E no almoço o momento em que os irmãos poderiam agradecer por estar vivos em passagem tão segregada dos maiores feitos da humanidade ali naquela cidade parcialmente esquecida pelo mapa do Brasil e lembrada somente pelos habitantes dos arredores, hoje chamados sulistas. Eram aqueles polos de microrregiões, de acordo? Assim era o pacato município. Mas indo a pormenores dessa localização que a nós não tanto importa, vai esfriar a boia da refeição e dessa forma não queremos. "Comam enquanto está quente", encarecia a Dona Filomena, não que precisasse, porque os filhos zelosos eram por apreciar boa conduta à mesa para saborear os preparativos de nobre ocupação do dia.

Eram pela comida de Dona Filomena que Magda retornava da prefeitura, distante ali não mais do que cinco minutos a pé, enquanto o Adir fazia maior esforço, pedalava e, com o calorão que se formava principalmente no sol a pino de meio-dia, vinha com a camisa parcialmente suada, o que gerava os lamentos e lamúrias de sua estimada mãe. "Ó, mas Adir, querido..."

E Adir, reconhecendo no trabalho de nobre coração em agradar aos filhos, coração desconhecedor até de outras maiores façanhas, importunada desde jovem à criação daqueles antes fedelhos com ausência de pai, Adir deixava a camisa de manchas nas axilas e no colarinho e por vezes na dorsal para trocar por outra, o que lhe rendia piadas na firma como um filhinho de mamãe. Mas ele sabia sua realidade socioeconômica e possuía consciência de classe, não nos termos sonhados pelo alemão Carlos Marques, mas reconhecia da maneira interiorana dele.

Acontece que o almoço de Dona Filomena lhe dava energias para aguentar o sol descer daquele sol a pino e reclinar-se como em cadeira que obedece dono até esconder-se pelas encostas que tornavam aquela cidade em formato de vale superaquecido, justamente pelo pouco escoar dos vindouros ventos. A cidade, portanto, era abafada pela má circulação dos interrompidos ventos litorâneos e o esforço de Adir por pedalar aquela distância precisava sempre ser recompensado com a boa comida de preparação magnífica de dona Nena, como era conhecida pelos vizinhos mais próximos.

O ensopado de batatas era um prato de luxo naquela humilde residência. Quando, ao amanhecer, Dona Nena avisou os despertados de que aquele seria o prato principal para o encontro entre manhã e tarde, Adir de súbito teve sua melhora de humor necessária para pedalar até o Tour da França. Beijou a testa da mãe, se despediu do irmão de 18 anos e também de Magda, que estava ainda retirando a cama do corpo, como se diz, sem tanta pressa, pois, embora o batente com a prefeitura era mais rigoroso, a distância para o trabalho era menor e portanto ela poderia espreguiçar-se um pouco mais além, de esperar o café esfriar mais um pouco, calor que já se ameaçava acometer por aquele dia de outubro.

Adir esfregou com certa violência os cabelos do caçula João Lucas. "Não esqueça que venho ao almoço", confidenciou somente ao irmão em frente à casa, após já ter se despedido da mãe e da fã de café, Magda, no interior da casinha. "Temos uma tarefa das grandes nos trilhos, mas eu regresso, hein", deixou claro.

A manhã percorreu-se naquela subida gradual de temperatura e do astro maior ao alcance de todos, por cima daquelas montanhas ao fundo da paisagem e fazendo possível fritar um ovo sobre o avançado das telhas de fibrocimento e também dos chalés. O trabalho de Adir estava excepcionalmente cruel para aquela parcela de funcionalismo público em que muitas vezes assistem ao trabalho dos cupinchas. Mas Adir sabia que aquele serviço de solda era com ele mesmo. Com a máscara ampliando a temperatura contra seu rosto, pensava somente no degustar do ensopado de batatas.

O irmão mais velho era o único deles, fora o Otávio que parecia já estar noivando novamente por Florianópolis, era o único a ser casado, mas o casamento se desmanchara após três anos e voltou para casa de Dona Nena. Magda começava a encarar uma realidade de tia solteira, embora os sobrinhos ainda não haviam surgido de outras barrigas. Talvez o Otávio... porque o Adir empacou essa questão de relacionamento desde o divórcio, se tornara ele mais bruto para com as mulheres e, dizem, na ampliação das fofocas, que inclusive em casa, paciência mesmo era só com a mãe, a sagrada Dona Nena. Com os irmãos era mais seco e ríspido nos diálogos e ações, tomado ele pela conversão em sujeito pai da residência, como se era tremendamente aconselhado à época e muitas vezes se vê pelas casas de humilde embrutecido Brasil.

"Ah, as batatas... o ensopado, o sólido e o líquido nas medidas exatas..." e quando o horário de almoço já estava quase no findar é que arreglaram de vez o trilho e estavam dispensados.

- Precisam nem voltar à tarde - afirmava o engenheiro chefe do esquema ali. Ou seja, além de degustar as batatas, Adir poderia aproveitar a tarde como descanso após demasiado cansaço matinal.

Deixava para trocar a roupa suada em casa, poderia tomar um belo de um banho e se esticar numa rede, comprar algo que precisassem, seria da família naquela tarde. À essa altura, o horário de almoço de Magda, naturalmente já mais cedo, estava expirado e ela já havia comido sua porção de batatas e retornado à prefeitura. Dona Nena tinha seguido para lavar roupa também dos vizinhos, deixando o conforto do lar. O problema surgiu porque o menino João Lucas estava com fome. Comeu e não se satisfez, esperou e esperou o irmão e nada. Comeu mais um pouquinho. Esperou e viu que a panela poderia ser rapada. O irmão, que gostava, sim, bastante de batatas, deu um jeito em restaurante ali perto da ferrovia, não tinha mais dúvidas.

Mas estava errado. Ouviu a chegada da bicicleta de Adir, som inconfundível após tantas repetições rituais. Encostou a magrela ao lado da porta, limpou as solas no tapetinho de entrada como manda o complemento ritual. Subiu os degrauzinhos e vinha já se aprontando simbolicamente como se a uma majestosa refeição de reinado, faltando apenas o tapetão vermelho, o lenço ao pescoço e a bandeja com o prato principal coberto por aqueles objetos de prata que escondem o que está por baixo deles. Se fosse o caso, ele seria plenamente surpreendido não pelo que havia embaixo da proteção de prata, mas pelo que dali não havia.

Estava tirando a camisa já encharcada em suor, a excitação por seu pleno almoço favorito contribuindo para aquela formação superficial em sua pele. Enxugava a distribuição sudorípara da testa com as costas das mãos, surgia ainda sem camisa para averiguar uma última olhada antes de devorar de vez aquela porção. Foi quase de ponta de pé até a cozinha e prosseguiu até o pequeno fogão. Destampou a panela e deparou-se com: nada. Ficou zonzo, Adir subitamente estava plenamente desconcertado, sem reação. Olhou em volta, ninguém pela casa, a porta assim aberta. A Magda já na prefeitura, já com certeza. A mãe nas tarefas pelas roupas que o sol lá em cima é dia de lavar e secar, claro que é. O pirralho onde que estava? Gritou pelo nome de João Lucas que deveria ainda estar ali dentro. Ora, se avisou que voltaria para almoçar por que haveriam de comer tudo? Só poderia ser culpa do moleque.

Para azar maior de João Lucas, a casa, pequena que também era, não tinha tanto esconderijo e a cortina o denunciou. Mas Adir de certeza que ali estava o responsável pela sua fome nem confirmou com o rosto visível de João e já o arrebatou de trás do tecido com uma pancada do cinto que havia tirado. Repetiu sucessivos golpes até o garoto já estar marcando e pedindo perdão. Adir estava recuperando a consciência que lá no fundo ele ainda tinha e o João Lucas cavou seu sepulcro ao atacar-lhe pelas costas, querendo uma revanche da briga em que apanhara instantes atrás. Adir, ainda enfurecido pela fome, terminou de carregar as barrinhas vermelhas de cólera e pegou da pia uma faca para atingir o irmão.

João Lucas gelou, expressão facial impotente diante da força bem maior do irmão encorpado ainda com objeto prateado, reluzente e cortante. Ferrou para João que disparou pela rua tentando ganhar vantagem naquela disputa completamente injusta para ele que jamais havia temido pela vida como assim estava. Adir foi no encalço do rapaz e mal ele tomava o meio da rua, o atingiu com uma facada firme nas costas. O garoto não chegou a tombar, mas parou um pouco de correr, entrecortado pelo instrumento. Tomado da mais excessiva cólera de sua passagem, Adir, não satisfeito, retirou o objeto do irmão e lhe acertou mais três vezes. Pelo avaliar futuro do médico, a quarta, pelo local e incisão, teria sido a fatal. O corpo de João Lucas estava no meio da rua. O griteiro e a correria foram poucos, foram ligeiros, mas despertou alguns vizinhos da sesta naquela tarde quente. Com a faca nas costas do irmão, Adir ajoelhou para juntá-la. Passou por seus olhos a imagem do desespero que seguiria eterno para sua mãe, a irmã que fazendo contabilidades em prédio público de nada ainda saberia, o Otávio que viria de Florianópolis inconsolado pela perda do irmão caçula, sem dúvida seu favorito. Ele que estava sem para onde correr.

Pensou retornar os passos trôpegos até sua bicicleta. O casamento que dera errado, ele era agressivo com Maria Lúcia. Ela não o suportara. Ela foi-se da cidade, foi-se com encontro, disse que não toleraria mais. Adir enxergando somente lembranças, passado diante das pestanas, quando visualizou sua bicicleta, ela estava montada por outro jockey. E estava acompanhado por mais dois. Os vizinhos haviam chegado. Tentou retornar o passo então para onde estava caído para sempre o irmão João Lucas, mas o menino estava cercado por outros quatro vizinhos, duas senhoras, um marido e o filho do casal, de uns 14 anos.

Era muita gente que se acercava, mesmo com faca em mão não havia para onde fugir. Tentou correr, mas a polícia já ficou de imediato sabendo e, sem a companheira bicicleta, com Maria Lúcia só nas recordações e o irmão para sempre no relatório de sua ficha criminal, logo foi pego. Não havia testemunha direta pela janela daquele crime à luz não do meio-dia, mas de passada uma hora da tarde, quase duas. Os vizinhos que de casa viram o desfecho do macabro espetáculo, relataram para assinatura final que a morte fora às 13h41. Com a faca em mãos, o corpo do irmão estendido e ensanguentado ao solo de terra batida e nenhuma batata na panela, Adir foi sentenciado rapidamente pela corte.

A mãe quase que parou sua história por ali também, porque até desmaio sofreu. Felizmente, para ela, Otávio a levou para morar em Florianópolis, para conhecer sua nora e o neto que enfim nasceu dali oito meses - já estava grávida a noiva de Tatá. Sem Nena, a casa permanecia ali em humilde bairro, Magda quis aproveitar seu emprego na prefeitura e no fim das contas agradeceu que ao menos a morte foi na rua, não amaldiçoando para todo sempre a residência de sua vivenda. Ela continua solteira e talvez vá morar em Florianópolis também.

O Adir divide uma cela com outros seis apenados. As refeições eram servidas por baixo da porta e raramente eles poderiam ir para refeitório. A comida é tão ruim que costumam fazer misturas em que nem necessitem de talheres, muito menos uma faca. Talvez de colher se tomem os devidos cuidados. Quando, ao findar de quatro meses, finalmente um ensopado de batatas havia chegado pela portinha, um dos líderes da facção, que, naquela cela era acompanhado por outros dois, e no total da penitenciária por outros 40, disse que gostava muito de ensopado de batata e Adir iria comer não. Ele sentiu a falta de sua mãe.

6 de outubro de 2020

Desfibrilador

Às vezes penso que os conteúdos que escrevo são muito tristes. Mas repensando, não importa. Contemplo ao lado mais triste que necessita companhia. É fossa. Para os que se surpreendem, é talvez porque não desceram o suficiente ou não atingiram o patamar de conhecimento sobre essa melancolia toda. Acontece que ela está aí. É cinza no ar, é fumaça de cigarro. Está nos metrôs na volta para casa, nos carros parados, nas bicicletas e motocicletas fechadas, nos pedestres que vacilam ao atravessar e quase passam por cima deles. Está nas rádios interioranas, nas menores audiências, nos músicos que não têm como se sustentar, além de outros artistas e suas artes. Está nos códigos ambientais ignorados, rasgados, demolidos. Está nos hospitais.

Estava vendo um filme espanhol chamado 'Seu Filho', cujo personagem principal é um médico em que o filho é agredido brutalmente e agora ele quer vingança. Mas independentemente desse longa, me recorrem os ambientes hospitalares e suas peculiaridades, a morbidez, a preparação para morte em requisitado Santo Afonso de Ligório. Poderia ser um livro bem requisitado para essas horas. O cheiro hospitalar, os corredores, as conversas apressadas dos servidores, dos profissionais da saúde, os tons monocromáticos e a espera de quem não tem para onde ir. Seja o paciente ou os familiares e amigos que aguardam em cadeiras nada confortável, pois, independente do conforto, a situação de aguardo se torna muito desconfortante.

Horários de almoço em hospitais, comida de hospitais, comida em volta dos hospitais, nos restaurantes, nos botecos dos arredores. Imagino os atendentes desses locais, como costumam receber pessoas com olheiras, cansadas, esbaforidas, como as bitucas de cigarro se acumulam nos pátios, nos lances contínuos às escadas e rampas, principalmente rampas, onde estacionam às pressa e saem ainda mais às pressas ambulâncias, paramédicos, medicamentos, plantões, urgências.

Enfermidades e angústias que se misturam em comidas também monocromáticas, em sabores monocromáticos. Em paladares que já não sentem, em rotinas que se incorporam. Em realidades redesenhadas. A vida muda de um dia para outro, nos surpreende. É bem verdade que a maioria das vezes negativamente. Por isso me preparo, me precavendo. Sei de diversas possibilidades ruins que podem cercar-me, nem imagino outras. Se eu fosse negativo, saberia mais delas, mas ainda estão aí, como feras, como bestas na natureza que nos fôssemos largados e pelados.

Não há idade, não há segurança, não há sabedoria, não há preparação que dê conta muitas vezes. Acometidos jovens, acidentes, acasos, azares, catástrofes e tudo muda. A ti e a quem cuida, a quem está perto, quando há alguém por perto. Rotinas arrastadas, como carros rebaixados em ruas irregulares. Indecisões, incertezas, inexperiência para lidar. Mais quantos dias? E quando sai da UTI? E os medicamentos fazendo efeito? E o tratamento é assim mesmo? E esse sintoma é esperado? E esse colateral já aconteceu? E esse caso é comum? E esse outro é inédito? Na vida de quem acompanha quase sempre é. É inesperado. É um chão que se abre, é um rio caudaloso e há de se apoiar em algo. E há quem condene as religiões. Geralmente quem tenha tempo para isso e não tenha passado por, ou quem sucumbiria de qualquer maneira nesse mar tormento, porque nem religião há de ter. Lucidez, coragem ou despreparo?

Ah, as tristezas, vulgo aparições que deram início à série de hoje. Tantas as são, muito mais do que as estrelas, ao menos as visíveis a nós. Há tristezas invisíveis e há estrelas invisíveis. Há sofrimentos solitários, há ruínas escondidas, há tumbas preparadas para o recebimento. Não sabemos a hora, não sabemos quando. Há de estarmos cientes, mas a ciência segue em baixa por aqui. Medição de batimentos. Enfermeira, desfibrilador.

1 de outubro de 2020

Momentos de Lucidez

As pessoas costumam querer o contrário de seus pais, ou ao menos almejar querer o contrário de seus pais. No 'momentos de lucidez', o pensamento de hoje foi justamente me vendo muitas vezes como imagem e semelhança de meu pai. Eu que o considero tão contraditório à minha pessoa, mas que, no fim das contas, reagimos de forma muito semelhante em diversas situações. A biologia deve explicar de várias formas.

Percebi, nesse raciocínio, que para mim estaria bom repetir os passos galgados por ele no passado. Seria mais feliz, não tenho a mínima dúvida. Mesmo que lhe falte a tão importante consciência de classe, é minha própria consciência que me suga de canudinho a cada dia. E um dia o canudinho roncará pelo fim da linha.

Na síndrome por fazer diferente também se escondem as velhas políticas em períodos eleitorais, em que sempre se camuflam de novo. O exemplo mais óbvio por agora deve ser o tal de Partido Novo, que nas câmaras de deputados é incoerentemente o partido mais alinhado às péssimas, devastadoras e cruéis políticas bolsonaristas. Novo só pelo nome e pelo estrondoso mau gosto de alaranjar nas cores.

Na síndrome por fazer diferente, o jovem acaba muitas vezes querendo apenas modificar o que seus pais ou geração passada, em geral, faziam, sem dali colherem frutos, que, em uma visão ampla e analítica, sempre existem. Fazer tudo ao contrário também é copiar, diria algum sábio do passado.

Reitero o ponto de que estaria mais contente caso eu pudesse, de alguma forma, copiar os passos que meu pai traçou, mas tenho total ciência de que não posso ser como ele. Faço do meu jeito, no meu caminhar trôpego e seguidamente desvairado em nossas filas para lugar nenhum. Chama-se vida, eles disseram.

Se me alargar mais por essas linhas, perderei totalmente a ideia inicial, que era tão curta para registro. Mas fui ao banheiro e arrisco mais umas. Percebi o cheiro positivo dos produtos de limpeza (nem sempre assim o são, mas dessa vez fora). Percebi num raciocínio que os banheiros cheiram como banheiros em qualquer lugar, mesmo em casa, caso não cuidemos com o limpar necessário de tempos em tempos. A única diferença é a quantidade de usuários, podendo ser só você ou até uma família, quatro a doze pessoas, enfim. Se você não limpar, ele terá o cheiro de urina que os banheiros públicos têm. Os públicos apenas possuem o vai e vem, o trânsito, o anonimato, os desconhecidos que entram e saem daquelas cabines e não tratam como se fossem o de suas casas, errando o alvo e vocês sabem o quê mais.

De óculos, pensei em minha imagem estética e como eu poderia usá-los havia mais tempo, porque minha visão definha, de alguma maneira, desde os 18 anos quando frequentei as idas ao exército, no interminável processo de seleção. Cumprimentei meus amarelados dentes, da cor da toalha para enxugar as mãos. Lembrei da apresentação de rede social de grande amigo meu, que inclusive mandou mensagem nesta madrugada após longo período sem falarmos: sinais? Ele que se apresenta como "escovando os dentes de um estranho todas as manhãs". Filosófico. Experimentem o duro praticar de se olhar no espelho, apreciar ou horrorizar-se com o reflexo. No fim de tudo, procurar a aceitação dessa passagem. Eu poderia ser como meu pai em vários aspectos e assim eu preferiria. Tenho certeza que me estressaria menos.