31 de março de 2020

Pensamentos Endêmicos em Pandemia - vol. I

A pandemia é o horizonte que nos cerca neste abismante período. Por onde olhamos, ela está lá, uma predadora voraz. Se avizinha mordaz, cáustica e corrosiva. Nos torna reflexivos e evidencia a volta galanteadora do livro A Peste, do argelino-francês Albert Camus. A obra foi publicada em 1947, quando o cheiro pútrido da maior das guerras ainda era fresco na memória permanente de cada sobrevivo.

Filosóficos nos instauramos em nossas possíveis quarentenas. São para quem pode. Quem alternou a rotina de trabalho nos ritmos comerciais e demais prestações de serviço encara novas perspectivas, envoltos ao redemoinho do pânico. Crescem exponencialmente as dúvidas se os sistemas de saúde darão conta e, negativamente concebendo essa previsão, se pergunta até quando durarão as reservas.

A expansão do domínio territorial do novo coronavírus começa pelos aeroportos e entradas de maior circulação estrangeira nas grandes cidades, mas, ao se deparar com as placas mais distantes, as longe demais das capitais, o vírus sabe que suas vítimas estarão ainda mais indefesas. As menores cidades, vilas e aldeias não possuem recursos para combater a insuficiência respiratória e os capangas sintomas se proliferam sem a concorrente assistência médica.

Após o começo na China, os epicentros foram disseminados para Itália, Espanha, França e Estados Unidos. A Alemanha com o registro de muitos casos e poucas mortes, em oferecimento de uma resistência pouco vista. O Brasil vai sofrer muito nos próximos dias, em gráficos de contaminações que sobem como se fossem a trajetória suspensa e dramática dos ferros torcidos das montanhas-russas. Contabilizam-se mortos e outros fogem inclusive das estatísticas. A batalha para não contrair o vírus se torna mais pessimista ao nos depararmos que nem para os números muitas vezes se consegue entrar. O esquecimento das oficialidades é abominante.

De longe, caso fosse uma única massa uniforme, ou disforme, ou seja lá o que forme, a humanidade me agonia e posso desprezá-la. Porém, mediante esse novo caos, observando cada vez em lentes mais próximas, caso após caso, crio uma casca de sensibilidade adotada até a contragosto. Ou seria uma ponteira que rompe a grossa casca insensível que me dominava enquanto tudo isso parecia distante e somente os números me disseminavam a situação estatisticamente? Pontos de vista.

O olhar dianteiro da caótica situação é que tudo isso está próximo. No retorno proposto para a primeira oração: "A pandemia é o horizonte que nos cerca neste abismante período". Ela pode ter aparecido em um vizinho de minha tia, morto antes de chegar aos 80 anos, operado por um médico que contraiu o vírus e ficou em estado agravado de saúde, transferido do interior para uma capital. Tendência entre os mais abastados financeiramente. A pobreza observa a chegada.

A pandemia começou a percorrer trajetos capitais, como se ela se apropriasse das linhas aéreas da Sibéria à África. Os países mais periféricos sentem os efeitos depois. As populações periféricas sentem o efeito depois. A pobreza vai coagular o sistema de saúde. Na concorrida vaga para um lugar ao céu no pós-vida, veremos a concorrência por vagas em leitos equipados. Triste cenas desumanidade humana a seguir. É importante lembrar que ela sempre esteve presente, em maior ou menor grau. Interessante como doações dos mais ricos surgem somente agora, como se a epidemia tivesse fabricado pobres. Muitos caminham apenas pelo gesto de boa ação, de publicidade, de não faz mais do que obrigação mediante o caos instaurado. Outros têm o peito pressionado para reagir, atuar de alguma forma e assim se projetam. Consciência abalada e remorsos em ação.

A cena mais danificante de meu psicológico nesses dias, perfeita para apontar o dedo às chagas do capitalismo, foi no estado de Nevada, o que comporta a famosa Las Vegas, nos Estados Unidos. Lá houve a proposta de orientar o distanciamento social entre os moradores de rua. Uma iniciativa indignadora, pouco objetiva e inefetiva, baseada em pinturas de áreas no chão das ruas, para que os sem-teto não se aproximem. Uma imagem que desafia nossos sensos de crença, dificultando acreditar que aquilo possa estar mesmo acontecendo. Mas está. Orientações capengas em que a preocupação real é tão rasa que nos faz questionar se era melhor nem tocarem no assunto. "Se for para fazer assim..."

Masquei essa goma para cuspir essas linhas e o cuspe saiu à distância de meus anseios iniciais. Não percorri o trejeito, o balancete que eu imaginava, mas expus um pouco da causa e o total desassossego para as consequências vindouras. Estão por vir orações para quem é de orações, mas acendo a vela com a medalha que minha mãe me emprestou pensando na racionalidade dos que ainda a possuem e precisam utilizá-la. Tempos de somente sobrevivência.

"Sobrevivência é a questão muito mais do que opção. Para o mal triunfar basta que os bons não façam nada. Essa vida terrestre é o teste" - quem vai passar nessa parada?

29 de março de 2020

por duas quadras

Interessante o desenvolvimento da natureza. Como resplandecem suas aplicações e propriedades em seres que se adaptam ao meio ambiente em que vivem. A natureza e sua paleta de cores, suas nuances, ideias que a nós, meros humanos, passavam batidas até ser estudadas e catalogadas. Insetos com suas camuflagens e predadores de rapina com as garras torneadas de uma determinada forma.

Para exclusiva atuação dessas linhas, serve de exemplo a seriema, ave característica do cerrado brasileiro, que também pode ser encontrada em alguns vizinhos de América do Sul, mas que não existe em outros continentes. Procurem pelas imagens da seriema, ave mimosa e simpática por demais. Na catalogação brasileira também aparece a arara azul, que, caso procurada para observações de nossos curiosos leitores, é uma ave da família das psitaciformes com a cauda longa e bico curvado e, evidente, sim, são azuladas. Belíssima riqueza de tons edificantes a preencher seus contornos de elegância.

Ao passo que essas espécies citadas são tipicamente brasileiras, do outro lado do planeta, na Austrália e na Nova Zelândia, dentre outras ilhas do continente de nome Oceania, muitas espécies são específicas, restritas, somente encontradas nessas regiões. Há muitos animais australianos que desconhecem a sequência do globo, existem somente no país da atriz Marny Kennedy. Outros, neozelandeses, tampouco sabem haver uma vasta ilha como a Austrália, ou mesmo ilhas menores em outros lugares, próximos ou distantes. Além de ser o chamado paraíso dos marsupiais, a Austrália também concentra espécies curiosas como o demônio da Tasmânia ou o famoso cisne negro. Especula-se que porcentagens tremendas da fauna australiana seja endêmica, ou seja, exclusiva desse país. Emus e cangurus vermelhos, equidnas, que são semelhantes aos porcos-espinho, e os de aparência carinhosa dingos estão entre os nomeáveis nessa categoria de exclusividade australiana.

O planeta Terra está repleto dessas maravilhosas espécies e procurar por elas, para aprendizado repassado em prosa, seria um exercício de completude para este curto período da alma. A junção das amigáveis sensações de aprender e, de bate-pronto, sem deixar a bola cair, estar ensinando. Entretanto, curiosa foi a atuação de como pude perceber que mesmo a um curtíssimo espaço, a fauna e a flora estão à disposição em ordens variadas. Explico.

De prontidão, minha percepção modificada foi em relação a nossos predadores quando mudei de casa para duas quadras de distância de onde sempre vivi. As moscas apresentaram-se mais perdidas, sobretudo nas noites, como é de praxe. Esses animalescos detestáveis em suas rotas pouco objetivas, senão o alvo atingido de cessar minha quietude através de um pseudo ataque de nervos. Entretanto, ao menos as moscas mais toscas de quadras ao lado mostraram-se com uma disposição para a morte, desfecho muitas vezes proferido com as próprias mãos, para passageiro gozo da mortificação dessas abominações e uma consequente e enojante necessidade de lavar as extremidades dos membros assassinos.

Além das moscas, os mosquitos também se dispuseram mutantes. Os da casa anterior eram uma fase anterior da evolução. Os da moradia nova foram mais insolentes, desagradáveis, cruéis e adversários de duradouros combates. Notei não bastar um arremate para que desistissem em suas vontades de vida. Vagavam pelo cômodo ainda trôpegos, em planos de voo estranhos, mas insistentes. Resolutos, obstinados a me provocarem, a me encarregarem de suas respectivas eliminações. Não eram fáceis. Após verdadeiros duelos travados, o saldo dos cadáveres a esperar um balde de lixo ou uma privada sanitária.

Para além dos insetos aqui mencionados, o encerramento dessa passagem é justamente ao que ela deu origem. Contraditória alimentação da cobra textual, não é mesmo? Minha mãe ao pátio da frente (único pátio que aqui dispomos), arremata uma pérola certeira para o gatilho crônico. Ela, na despreocupação de quem estende roupas com o único objetivo de estender as roupas, entre uma ou outra pregada no varal, cumpre a sentença prometida: "as pombas daqui são mais magrinhas, as da casa anterior eram abastecidas pelos grãos de milho sobráveis das galinhas".

E assim, a partir de humilde frase, acende-me essa diferenciação de fauna, ¿e por que não flora?, entre duas residências, ecossistemas variantes, separados somente por duas quadras, 200 ou pouco mais, pouco menos metros de distância. Entre as moscas, entre mosquitos, entre as pombas e, consequentemente, no somatório de fatores, quais as diferenças entre nós mesmos em tão pouca mudança geográfica, segundo se pode constatar no Google Maps?

sábados pela manhã

Acelero meu processo de envelhecimento. Sinto que posso percorrer em voo baixo a infância que já se desenha há duas décadas passadas. Nos confinamentos dessas páginas de cimento recordo os sábados em que eu almoçava fora. E isso ficou bem marcante como uma divisória, como se uma régua posicionada sobre a folha induzisse a mão jeitosa a rasgar o papel em duas partes. Almoçar fora, em restaurante propriamente, era um exercício civilizatório resguardado a esse período da minha vida. Conforme minha adolescência e início da fase adulta, meu pai trazia a comida de restaurante e mantínhamos o hábito de almoçar em casa, com a salva diferença de que, aos sábados, minha mãe não se atarefava no preparo da refeição.

Mediante essa linha cronológica traçada, voltamos ao sol sobre o calçadão envolto de comércio nas matinês de sábado. Era o período que minha mãe, já aposentada, saía de casa. Pelo menos uns dois traumas, pensando durante a oração, talvez três, surgiram em decorrência dessa repetição de episódios. O primeiro que me acercou a memória era encostar nas monótonas vitrines de lojas, com os seres inanimados a exibir artigos de luxo e acessórios que os seres animados (demais para meu gosto) ansiavam adquirir. Definição dicionária de vitrine, com os vidros impecavelmente limpos e bonecos intactos em poses estilosas. Até que era interessante notar em lojas de menor recurso como os próprios manequins perdiam seus estados incriticáveis no desgastar do tempo. Deviam eles aguardar sofregamente pela aposentadoria dessa função semi-desnuda em exibição para desconhecidos (e sem adicionais salariais).

Passado o trauma das inquietantes vitrines, que, quando parávamos, faziam com que eu olhasse tudo ao meu redor, com exceção das próprias vitrines, o segundo trauma seria o de palhaços. Creio que mais do que desgostar dos palhaços, a perturbação era virtude da forçada interação social. Aquele ser pintado das mais diversas cores já programadas em paletas e que, avidamente com sorriso fixo, estimulava as crianças para elas contraírem a concavidade da boca em mesmo ângulo, mostrarem seus dentes (ou a ausência deles, dependendo a troca na formação de porteiras). Doravante que muitas vezes o efeito desejado era simplesmente o oposto, com muitos cedendo ao choro do desespero. Eu, pelo contrário, apenas aguentava, como também aguentava as vitrines, em sofrimento interno e não repassado para minha mãe ou demais familiares.

O momento de cruzar pelos palhaços parece ficar estagnado na infância. Se repararmos, apesar da mudança dos tempos, os palhaços ainda estão por lá, a entreter - ou tentar - nas calçadas envoltas de comércios. Passam despercebidos, como os tatus-bola (ou seja lá qual for o plural de tatu-bola) nos jardins olvidados. Contornadas as vitrines que não mais sou obrigado a parar e os palhaços que procuram novas vítimas (e vítimas novas, mediante o critério da idade do público-alvo), o terceiro trauma pode ser considerado o da quantidade de pessoas ou mesmo do consumismo.

Essas organizações comerciais centrais nas cidades foram gradualmente ou até bruscamente substituídas pelos shopping centers, assunto o qual já abordei muitas vezes em meus textos críticos ao consumismo exacerbado, locomotiva desfreada. Posicionaria esse terceiro trauma nas lembranças desses sábados matinais exatamente na larga presença de pessoas e seus barulhos típicos, conversas cruzadas desprovidas de significado, passos, vendedores anunciando obrigatoriamente ofertas em que 95% não está interessado, posteriormente cambiados pelos de mesma função em empresas de telefonia celular (vale sempre ressaltar que recordistas de reclamações!) e até mesmo artistas de rua que, separadamente, podem trazer um benefício cultural interessante, mas naquelas organizações desorganizadas dos centros comerciais, disputam espaço aos solavancos e confunde-se o som de um com o de outro, as apresentações teatrais e dançantes sem um palco se tornam bizarras e mesmo a poluição sonora das lojas aos microfones ou com outras músicas completam um cenário horripilante.

Orgulho de Allan Poe, Alfredo Hitchcock ou H.P. Lovecraft, que, por sorte, jamais presenciaram meus sábados matinais ou terminariam de sepultarem-se no horror compilado de suas mentes. Brincadeira de bom ou mau gosto, a ideia inicial era transcorrer pelos restaurantes de minha infância. Ou o restaurante, visto que frequentávamos sempre o mesmo, um de nome alemão e tradução Tudo Azul (nada mal, embora o prédio sequer fosse azul). Contudo, as lembranças acumuladas, como aquelas cenas errôneas de desenhos animados na prática do futebol americano, em que um jogador pegava a bola oval ao chão e os outros amontoavam-se como uma cordilheira sobre falhas tectônicas, as lembranças desvirtuaram o plano e me convidaram, como se me apontassem uma faca, para que eu descrevesse alguns dos traumas passados pelas voltas desferidas aos sábados de, naquela hora, contrafeita infância. Mas o restaurante depois valia pena. Valia muito.

27 de março de 2020

o socorro da porta

a porta que range abrange
a fronteira, a divisória
do que ficará por dentro
ou fora da história

a porta com seu rangido
gritante, alto-falante
incessante no vai e vem
transitória

a porta que range e incomoda
estridente e insinuante
como uma mola, uma agulha
que arranha e arranha
o mesmo trecho em uma vitrola

a porta com seu rangido
estampido ensurdecedor
insurgente, emergente
clemente em pedidos de socorro
a porta da dobradiça amaldiçoada
fazendo uníssono do chão ao forro

socorro! socorro!
pede a porta e ninguém cancela
meu maior desejo: um óleo nela
ou então sou eu quem morro

chama clara

ela é a chama acesa como vela que me faz querer olhar novamente
pela janela da humanidade
como é bonita a colaboração da sintaxe
para que eu traga essas linhas e seus encaixes
para mover maxilares que libertam
as palavras em mim contidas para outros lugares

ela de modo sem jeito sobre as pedras
flechada ao peito do sujeito em révoa
perpétua em sua altivez
não tanto, não tanto, a se pensar
pela terceira vez
mas hemorrágica, isto é, de fato
de sus colores como um colibri
que dentro de mim colore-se abstrato

é a chama clara
chamariz que agarra
quem seria iara nessa fila
se tudo que ela claramente
destila é reflexo pousado
ousado sobre a pupila
e iara que vá se misturar
ela e outras cigarras
a cantar
porque aqui
ah
aqui jaz

ecos

Talvez todo esse barulho, todo esse depoimento não passe de um grito ecoado para dentro em busca da própria razão. É querer, em um futuro próximo, olhar para trás e descobrir-se certo. Um solo, um chão para pisar em terra firme em polpa de sanidade. E nesse espaço desenrolar elegantemente um tapete vermelho sem rugas. É só isso e mais nada.

22 de março de 2020

semi-cemitério

o domingo que não levantou
eu levantei
nem era tão cedo, bem depois das seis
a grama por cortar
o café por fazer
o puro prazer a se esquivar
guardado em nenhuma gaveta, nenhuma dispensa
dispensado desse jogo amistoso que nada valia
iria para a próxima rodada a fortificar
como um café que pode ser mais forte ou mais fraco
quando o gosto do asco permanece ao final da xícara
é preocupante
teus passos soam pesados sempre consoantes
a memória é um lago que esconde monstros
se tudo mostrasse não sobraria turista
ao alcance opaco e diligente da minha vista

se paramos assim a pensar o café esfria
assoma-se o asco com o fiasco do desperdício
indício de que coisa melhor não há por vir
o momento é o souvenir que nos acompanha
como uma chave no pescoço
ou de bolso em bolso até o pijama
e quando me dispo é lanterna ao porão até as entranhas
peças estranhas se movem, outras permanecem
rasteiras, tacanhas

mas falava eu de um domingo que não levantou
eu levantei
como de lei a fazer o café e tudo bem
a grama ainda por cortar
e eu a contar os passos nesse terreno escasso
de mão de obra
o tempo que me sobra é o de cortar grama
barulho a fazer para o domingo que não se levanta
do silêncio da rua até se espanta
apostava adélia prado em uma das três
opções que estão sempre a suceder
latido de cachorro, grito de criança ou alguém a chamar
que o café está pronto, vem ou vai esfriar
como o café estava bebido e o trigo comido
comigo ninguém falou mas era a criança
que se levantou para suas andanças
no espaço sombrio de um pátio vazio
de um domingo que não se levanta

fica ele a chutar a bola contra a parede
na sede que algo suceda
eu a pensar nas sedas que não tenho
nas sagas erradas que não se desenham
domingos sem comércio e sem carteiros
como outros domingos, mas esse releio
no calabouço exótico da memória
que separa umas e outras histórias
vida afora nessa releitura
a tua é só tua, a minha é só minha
carinhos, carimbos, assinaturas
borras de café e digitais cruas
minhas pontas de dedos de unhas roídas
folheiam as páginas a transmitir vida

vida, salvo um ou outro chute do garoto
não se passava naquele domingo
poucos pingos de cada espírito
que deixavam marcas, no máximo pegadas
no chão combativo
passos arrastados, florescimento só de espinhos
de que serviriam os espinhos sem as rosas para proteger?
as cercas elétricas acopladas aos muros
em quintais sombreados seguros
em missão nesse domingo moribundo
apenas evitando que a bola suba
e caia no outro quintal adjunto
era o culto do todo oculto
cada um para dentro de sua miséria
a cabeça entre o trabalho e as férias
as quimeras revoltadas aos resmungos

o domingo que não levantou
foi o primeiro de uma série
como uma cárie devoradora contagiosa
séria sequência impetuosa
mistérios, impérios e adultérios
silenciosos
aos ociosos de um semi-cemitério

21 de março de 2020

árvore das dores

o poeta está sempre com dores
uma ou outra já nem o afeta
redundante ser poeta das dores
adiante com a cruz do profeta

o poeta está sempre com dores
carrega as suas; outras são meta
se sua árvore fosse de dores
nenhum período é o de seca

criação estranha na área deserta
mas prova
o doce das dores do poeta

19 de março de 2020

ergue um prédio
nascido e oriundo
do seu tédio

prédios e nuvens

as nuvens ainda passam sobre os prédios
ao menos aqui
aqui, onde nem havia prédios
mas sempre houve nuvens
ao menos aqui
falo daqui porque aqui me estabeleço
e daqui entendo
mas bem queria voar-me
livre e sem adendos
com e como se fosse o vento

pontas soltas

tenho dores de cabeça
durmo pouco
fazia dias que não escrevia
ainda seguro estranho a caneta
canhoto
tenho problemas de memória
e agora?
o que viria nessa outra linha
torta
tanto faz, enrolo outra
resposta
como faço quando me perguntam
e não sei
muitas vezes não sei
não que eu precise
os outros exigem
não que eu precise
mentir
mas enrolo
até a última ponta
e vejo os minutos passarem
como pontas soltas
que eu desejaria penteá-las
mas de nada adianta
em uma sucessão
de pontas soltas
como um mar tem ondas

sei que me sondas
sei que tu sofres
sei que o enxofre imunda
o mundo

e, por mais que corras,
quem, além de ouvir,
realmente socorra?

alter nuances

a vida vivida nas alternâncias
aos poucos
estar sempre em inquietude
insatisfeito
e morrerei cedo
mas paz que perdura
tampouco é a cura
tampouco viveria a vida

2 de março de 2020

vazio da existência (passagem)

Arthur Schopenhauer em O Vazio da Existência

"Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas ad interim [provisoriamente]: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida — isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!"

"Novamente, há a insaciabilidade de cada vontade individual; toda vez que é satisfeita um novo desejo é engendrado, e não há fim para seus desejos eternamente insaciáveis. Isso acontece porque a Vontade, tomada em si mesma, é a soberana de todos os mundos: como tudo lhe pertence, não se satisfaz com uma parcela de qualquer coisa, mas apenas como o todo, o qual, entretanto, é infinito. Devemos elevar nossa compaixão quando consideramos quão minúscula a Vontade — essa soberana do mundo — torna-se quando toma a forma de um indivíduo; normalmente apenas o que basta para manter o corpo. Por isso o homem é tão miserável."

zelador do sono

zelador do sono
patrono das últimas
e das primeiras horas
tempo, sei que me devoras
mas faz o seguinte
morde um pouco e cospe fora
não me queres
não agora, papo reto
nenhuma prova ou decreto
volte outra hora
o meu voto é pelo veto
alone
beijando a lona
minha mente é a trincheira
e o estouro da granada

o que na pele não aparenta

o que na pele não aparenta
por dentro faz sua senda
trabalha, remenda
paga até imposto de renda
ocupa e alimenta
faz mistério não declarado
ao ministério da fazenda
inventa na fantasia
travessura e travessia que inventa
o que na pele não aparenta
por dentro assina emendas
rasga protocolos e vence a burocracia
por dentro me devoro
por fora até sorria
o que na pele não aparenta
por dentro me corroía
motim na minha cabeça
motivo me corrompia
zumbido de marimbondo
teu ombro minha confessa
o que na pele não aparenta
senta lá que vem história
e lá fora outro dia

imprevisto

tudo o que enxergo é com os óculos
de já ter te visto
é assim que ajusto meu foco
parece inócuo
mas é um convite ao pessimismo

desisto
desisto

é isto
é isto

insisto
esperando algum imprevisto
além do que tenho visto

é isto

tous les jours

A informação é o bem mais valioso, mas circula pelos ares. Quem a pega? Quem a precisa pegar? Ela não é tateável, se ela circula das bocas aos ouvidos. Tateável no máximo das escritas aos olhos, mas armazenada novamente na cabeça. Quem a tem? Quem a rouba? Quem a influencia? Quem a transfere? Quem a reescreve? Quem a edita? Quem a reedita? A quem beneficia? A quem desagrada? A informação.

A informação circula como prioridade nos seus dias. Não é mais aquela imagem do senhor que acorda e lê o jornal no café da manhã, mas está no seu celular, no seu computador. Alguém a escreveu. Quanto vale? Alguém escreveu a sinopse para aquele filme, para aquela série, para aquele jogo. Quem escreveu? Quanto vale?

Alguém escreveu sobre o jogo de futebol que não foi visto, ou outra modalidade que aconteceu, que está acontecendo, que vai acontecer. Quem? Quanto vale? Alguém escreveu divulgar o evento, para informar do protesto, para informar o dia e o horário disponíveis no feriado, para anunciar o tipo de sangue que está em falta do hemocentro, para informar o dia e a hora do enterro, para informar onde o trânsito está bloqueado, como e o porquê de estar, alguém escreveu para informar o dia do pagamento do parcelado salário proposto pelo governo. Quem escreveu? Quanto vale?

Alguém esteve em contato com as principais autoridades, foi atrás. Alguém foi onde ninguém tinha ido, naquele momento, naquele contexto. Alguém foi atrás, foi buscar. Alguém traduziu o que diziam os técnicos, os meteorologistas, os químicos, os engenheiros, os médicos, nos laudos da ciência, nas perícias medicinais, nas avaliações dos peritos, alguém ouviu, analisou e traduziu. Quem? Quanto vale?

Alguém acordou cedo, alguém dormiu tarde, alguém correu para leres, ouvires, perceberes parado, alguém esteve lá, alguém está lá, alguém estará lá e vai enviar para leres, ouvires e perceberes parado. Para dar assunto no barbeiro, no salão de beleza, no ponto de ônibus, no consultório odontológico, na estação do trem, no restaurante, na televisão no canto, no rádio no interior sobre as janelas das construções sobre minifúndios. Alguém no verbo está. Quem? Quanto vale?

Alguém deu aula a todas essas profissões, mas alguém também informou a todas essas profissões, nas matérias, reportagens, revistas, sinopses, críticas literárias, telejornais, radiojornais, resumos, resenhas, boletins informativos diários. Fichas, designes, cadastros, programas e seus preenchimentos. Alguém. Quem? E quanto vale? Laboral, autoral, o que circula, além dos lombos dos pesos de mulas, grãos, safras e sal, pulula e não pula um dia sequer, em todos marca presença, marca novidades, nascenças, mortes, barreiras, proenças, registros e crenças opinativas. Aditiva a locomotiva da vida no dia a dia da ciência do cotidiano.

Por anos e anos. Sempre alguém. Mas quem? E quanto vale?