Comentaram intensamente sobre hoje ser uma dessas datas, um Dia do Livro. Mediante o conhecimento dessa informação, confesso um esforço a mais para terminar As Travessuras da Menina Má, mais um livro do peruano Mario Vargas Llosa, este que lhe rendeu simplesmente o prêmio Nobel de literatura. Cheguei à conclusão e não me surpreendi com o desfecho, sendo Vargas Llosa expert em preparar esses terrenos, que, se fossem comparados a terrenos, literalmente, seriam terrenos castigados pelas ações corrosivas do clima e pela ação degradadora do ser humano.
Mais uma vez encontro-me diante do cursor do mouse que pisca e me convida a transpassar minhas impressões para o espaço em branco. Imagino, nessa hora, o saltear dos demônios internos em direção à máquina, para o devido lugar em que ora tento posicioná-los, enfileirá-los, domá-los. Tarefa difícil que somente cada escritor sabe o quanto enfrenta. Nessas horas, penso também em todos aqueles que passaram por essas missões com a pena e a tinta em mãos, nos pergaminhos demorados e sagrados de antigamente.
Este livro abriu um preâmbulo sobre a vida que tenho a encarar pela frente. Missões e mais missões como essa que ora me dedico. O personagem principal, um tradutor, um peruano que lançou-se à Europa como meta e sonho, o principal deles viver em Paris. O reencontro com a menina que realmente amou. Ela nunca o tratou bem. Ele é insistente por ela, mesmo sendo usado. Me faz questionar o que temos de propósito para essa passagem, para essa existência. O trabalho dele, que circunda a narrativa, a tradução, é bastante nobre. Embora muitas pessoas reduzam o valor presente nas palavras, imagine o inalcançável tom que diariamente nossas palavras, mesmo o que aqui escrevo, não encontram na maior parte da humanidade, porque a maior parte da humanidade não dispõe dos conhecimentos necessários para decifrar o que é dito ou escrito em nosso idioma. A tradução é fundamental. Os tradutores, de encontros da Unesco, como ocorre no livro, ou em outras ocasiões, são também embaixadores pela paz. Mas esta ideia sobre a tradução apenas permeia a narrativa principal: os encontros de Ricardito com a menina má.
A transposição das ideias desse livro, que não fui atrás da informação mas deve ser de conhecimento a nível mundial, vide o prêmio Nobel, para indicarem algum rumo à minha vida é um egocentrismo desvairado. Por óbvio que é. Mas, ao mesmo tempo, me encontro contente pelo papel que a arte desempenha em atiçarmos-nos, em buscarmos inspiração, coincidências e motivações. A arte cumpriu sua missão. Foi um pouco antes de iniciar a leitura dessa narrativa, mas após já ter a ideia de comprar o livro, sem saber exatamente do que se tratava, foi aí que aprofundei, afunilei minhas conversas com a que tracei o paralelo de que ela é a minha menina má. Tal qual a personagem principal, a amante de Ricardito na história, ela também oferece um amor até inesperado pelo que se propõe entregar-se em madrugadas. Promete, estende tapetes e logo recolhe mundos e fundos. Tudo isso pelo efeito do álcool ou pelas suas ideias mais resguardadas que erupcionam verdadeiras nessa hora. Com minha maneira de gato escaldado, mantenho o pé atrás, a distância necessária, mas pronto também para um possível recuo estratégico que represente o impulso para o grande salto. É sempre um risco, mas é uma aventura, uma adrenalina, uma vertigem, um sentimento de sentir-se vivo que muitas vezes parece em falta nas gôndolas padronizadas dessa passagem. Tal qual Ricardito, sinto que saltaria por ela ou faria outras loucuras ou, como na própria linguagem do livro, faria as breguices que fossem necessárias como provas intrínsecas à essa situação.
Se preencho bem essa lacuna como o Ricardito, por sua vez, sei que ela enfrenta sentimentos suicidas e a incredulidade quanto ao amor romântico. Também me posiciono reticente quanto a isso, mas o sabor dessa vivência como um sabor de sorvete que sabemos não voltar a experimentar da mesma forma, parece-me válido. E quanto mais ela repete que no amor romântico não acredita, mais estudo aplacar nisso um reverso em que na verdade ela acredita, caso contrário não o citaria tantas vezes. Por que tanto falaria de algo que considera não existir? Ao mesmo tempo sei o quanto ela se sente confusa, talvez exatamente por esse conflito interno: existir ou não existir? Eu ou quem nessa narrativa? Como ela é muito acima da média em todos os requisitos, não me tardaria criar fantasias ilusórias e de ciúme sobre quem ocuparia meu lugar quando ela passar a acreditar no que afirma não crer. Não acredito em destino, mas considero muito bonitas as nossas coincidências.
Não acredito que meu destino seria tão belo quanto ela. Distante do positivismo, afastado dessa possibilidade afirmativa, o mais comum seria aceitar que ela realmente não crê na exploração de um amor romântico, este que seria altamente lindo enquanto durasse - quanto duraria? tu também, "Ricardito", tão efêmero sentimentalmente e enjoado e criador de fantasmas paranoicos buuuuu - ou, caso ela acredite, caso ela passe a acreditar, não seria contigo, Ricardito, por que seria contigo? Que tens de mais? Tu que, sendo tradutor ou professor ou o que for, também não terás os recursos para o conforto e a hospitalidade necessários para essa vida conjugal burguesa. Tu que, em casa, encontras apenas o exemplo pragmático de teus pais, que se confortam no desenvolver das tarefas, mas enxerga neles o auge da primavera amorosa como passado, distante do despertar de cada nova manhã e do horizonte futuro. Tu que, mesmo assim, lê, ou melhor, apenas passa os olhos, ignora as dores, os espinhos e os machucados das entrelinhas e aceitaria os termos de uso. Tu que avalia que é melhor existir o amor nessas condições efêmeras que findam logo adiante, em alguma esquina, do que conviver com a inexistência dele. O vazio de não vivê-lo. Pois é, pois é, talvez seja melhor pegar a lupa para esmiuçar a leitura das tais entrelinhas. Elas são perigosas. Alta periculosidade.
Enquanto isso, barcos que se movimentam no fluxo fluvial de algum porto. Não falando agora de amores, mas de livros, obviamente. O fluxo dos livros. Foi-se mais uma leitura e a próxima, o que poderá reservar? Tu, Ricardito (gostou do apelido, sonhador Ricardito?), tu que enfeitas tua existência no rabiscar mais ou menos ordenado das palavras, tu que és pastor delas e não te importas (não muito) que algumas te fujam o controle, porque sabes que faz parte na totalidade do rebanho. Tu que terminas mais um livro da leitura e pensa o que isso pode te ajudar num futuro teu. Num futuro, futuro mesmo, tempo a ser vivido, ou mesmo num futuro livro, quem sabe? Exatamente, Ricardito, quem é que sabe? Quem é que sabe de ti mais do que tu? Quem é que sabe da tua niña mala ou de que qualquer outra que te cruze o caminho? Assim sendo, que venham outros livros. És um influenciado. És uma esponja absorvente dessas narrativas. És um ser que vomita literatura sempre que termina alguma refeição oferecida por ela. Um anoréxico literário. Um viciado. Guardas quase nada em teu corpo, expões muito. Pões para fora. Um insaciado nesse campo difuso e eternamente exploratório, do qual nunca vencerás nem te darás por vencido. E nesse campo viverás, nas limitações e nas infinitudes previstas desse vasto campo.
Um sonhador que agradece aos livros enquanto não te encontras com as travessuras dessa ou daquela menina má.