30 de setembro de 2021

a força da narrativa e das palavras

Muitas vezes precisamos ter cuidado com aquilo que contamos ao vento, porque as pessoas vão imaginar nossa história a partir do que foi dito. Na boa intenção delas, elas servirão-se a partir do que foi dito, no seu testemunho, da sua versão. Mas também, na má intenção, a partir do que elas inventam podem sair as coisas mais escabrosas e dantescas. Quanta fofoca cabeluda não foi implantada muito antes dos modernos implantes e técnicas de crescimento capilar?

Quantas versões de histórias minhas que eu considerava seguro compartilhar tomaram rumos diferentes, distintos do que eu imaginava? A imaginação e a maldade humanas são perigosas, como bem sei e bem posso imaginar alguns dos caminhos que, paranoicamente, alguns de meus relatos tomariam nas bocas alheias. Como um chiclete que vai de boca em boca, mas ao invés de perder o gosto, as pessoas adicionam temperos e sabores para a narrativa, fazendo com que o narrador original de seus feitos perca-se em um mar de deslavadas mentiras, ou mesmo ganhe-se, porque seus feitos também podem ser ampliados. Quem nunca contou uma pequena anedota ou história particular dos tempos idos de escola e essa tomou proporções anteriormente inimagináveis? 

Isto é absolutamente perigoso quando perdem-se as rédeas em campos de atuação como a área dos ciúmes, dos sentimentos ligados ao coração, do passado que cônjuge não imagina ou não quer imaginar. Isto é absolutamente perigoso quando se trata de implicar terceiros, de prejudicar outras pessoas que inicialmente nada teriam a ver. Querem inventar, já acho ruim inventarem de mim, mas que inventem de mim e não sobre outros desprotegidos desconhecedores de sua cabulosa narrativa. Não mexam comigo, mas antes mexam comigo do que com meus amigos. Como soam generosas e altivas essas citações, não é mesmo? Enfim, era um breve relato reflexivo sobre o poder das palavras, que colocam as pessoas em saias justas demasiadamente grotescas, em apertos, em situações de contra-parede.

E ainda há quem diga erroneamente que elas, as palavras, causadoras de guerra, de cabeças cortadas rolantes, de fuzilamentos, de papéis rasgados, trancafiados, escondidos, engolidos a seco, que as palavras conciliadoras em reuniões entre os mais poderosos do mundo, palavras-ordem de lançamentos de mísseis, palavras que servem para compras simples como um salgado em padaria ou para compras bilionárias em produtos high tech estrangeiros, palavras que mandam cavar em busca de petróleo, palavras que mandam soldados atirarem, palavras que jogam pessoas contra governos, palavras de governos que jogam pessoas para dentro da cadeia, palavras formuladoras de matrimônios e divórcios, de receios, de anseios, de medos, de expectativa, palavras que amaldiçoam, palavras que passam ordens e estratégias, palavras ensinadas nas mais diversas traduções e idiomas, palavras que ocupam semestres e histórias, conteúdos descartados, reaproveitados, engavetados ou até - mesmo que raramente - diariamente usadas, alguns erroneamente se referem que as palavras não possuem poder!

seria dizer que as palavras não possuem poder um dos piores usos possíveis para as palavras?

25 de setembro de 2021

Valdir e as folhas

Para preparar aquele prato consistente de algumas folhas era necessário cozinhá-las por sete dias. Nem a mais nem a menos, diziam os descobridores do norte do país. O demorado procedimento era preciso para eliminar totalmente o veneno, as toxinas da saborosa e nutritiva iguaria. Mas como descobriram isso?

- Pessoal, cozinhamos durante sete horas, mas o Valdir provou e caiu durinho. Precisamos ampliar o tempo de cozimento para três dias. Três dias, ouviram?!

Dizia o cozinheiro organizador daquilo tudo, enquanto o corpo de Valdir ainda se estendia deitado ao lado da confusão dos que jogavam o conteúdo das panelas fora. Mais um desperdício na colheita das folhas.

- Precisaremos revezar os responsáveis pelo cozimento. Você aí, ajude a cobrir o Valdir. Pobre Valdir, provou logo a três colheradas. Eu bem que avisava dos riscos. Como resistiria o coitado? Como havia de saber? Quem se propõe a buscar mais folhas? Certo. Você aí! É, você. Você também. Vocês poderão ir. E para cuidar o fogo? A primeira noite pode ser comigo mesmo, estou bem desperto.

Os funcionários desse chefia mandão cobriam Valdir com outras folhas, essas inofensivas para o corpo inerte do Valdir. Se bem que agora tanto faria de diferença para ele, apenas interferiria nas mãos dos zelosos, que precisariam lavá-las muito bem no rio antes de levá-las ao rosto, etc.

Antes de ser levado a cabo para sete palmos abaixo da terra, Valdir ainda escutaria como testemunha a preparação das próximas vítimas do obstinado plano de aproveitar aquelas plantas. Ele logo teria companhia em sua ala improvisada no cemitério dos mortos da aparentemente inofensiva planta. A fome era a guerreira maior e eles serviriam de mártir para descobrir em quanto tempo o cozimento era necessário.

- Vão lá buscar, vão lá buscar antes do anoitecer. Andem, não percam tempo. E levem essas flechas que não sabemos quantos mais de outras tribos estarão à procura de nossas ervas. Pobre Valdir. Quem lhe viu, quem lhe vê, antes homem tão forte, cheio de vida que era. Que descanse em paz. Vocês ainda não foram, seus inúteis? Querem que percamos mais uma noite? E vocês, por que não levam logo o Valdir ao inevitável destino? Logo começará a feder por aqui e, não fosse nossa tamanha fome, fecharia nossos apetites. Ó, Valdir, que nossos deuses o tenham. Que nossa preciosa e também travessa e cabreira terra o receba respeitavelmente!

Desde então o espírito vingativo de Valdir une-se ao veneno para assombrar àqueles desavisados que também desconhecem o tempo necessário do cozimento. Dizem os sabidos que às vezes nem esperando os sete dias se está livre das toxinas. O Valdir, guardião fervoroso de segredos fatais, sempre está à espreita.

Sobre as críticas

Quando e se me perguntarem sobre o que gosto nas obras do cinema, responderei que precisam me vender sua ideia. Preciso ser comprado, fisgado ou alguma palavra mais dócil. Atraído, é possível. Preciso identificar que a história poderia ser verídica. Não na exigência de um realismo, mas na possibilidade de acreditar no que estão me mostrando. Seja numa realidade paralela, preciso identificar que aquilo é possível.

Para isso, personagens muito preto no branco, como dizem, geralmente não me servem. Preciso de conflito, preciso acreditar que eles existam. De alguma maneira precisam ser possíveis. A gama de variáveis é enorme: pessoas consideradas ruins tentando praticar o bem. Pessoas consideradas boas inclinadas a atitudes desprezíveis, talvez com seus motivos próprios. Mundos paralelos me apresentando novas formas de pensar. Novas realidades através de civilizações diferentes, organizações e sistemas parecidos ou distintos. Aproximações e distanciamentos do que estamos saturados de viver no dia a dia. A busca pela identificação nas atitudes das personagens. A busca por apontar que aquele personagem pode ser visto no cotidiano da sua cidade ou resgatado das memórias escolares mais soterradas em nossos baús.

Enfim, precisam me convencer. E apesar de chegar aqui chutando a porta, listando algumas exigências, passo longe de ser exigente. Costumo concordar com os autores e procurar entendê-los. Seja nos livros, seja nas criações cinematográficas. Até mesmo nos esforços da produção das pinturas. Procuro contextualizar e entender onde querem chegar. Acho louváveis as produções. Muita gente critica com o prazer da depreciação alheia, seres incapazes de construírem suas próprias histórias, de apontar caminhos em suas narrativas. Preferem depreciar o trabalho alheio e destruir quem equilibrou os blocos.

Os autores precisam, sim, se esforçarem muito para me desagradarem. Mas faço várias ressalvas. Percebo na pressa com que escrevo e não gostaria de apagar. Nada de subtrair trechos agora. Me dou conta de que escolho minuciosamente. E, vejam bem, isso não restrito às obras com as quais me deparo. Faço uma separação na prévia de assistir. Leio sinopses, procuro alguns resultados, levo em consideração indicações de quem realmente me conheça. E sabe? Geralmente acertam. São bons em dizerem que tal livro ou tal filme possa ser do meu bom gosto, de minha boa causa. Agradeço a cada uma dessas indicações que me formata e constitui no que me torno. Realmente grato.

Através desse parágrafo anterior fomento o ponto de vista de que, sim, infelizmente muitas obras me deprimem. Me deprimem no sentido de nada me acrescentarem, e aí me trazerem a sensação da verdadeira perda de tempo. E costumo fazer várias concessões. Se consigo aproveitar alguns pontos da totalidade de um filme ou livro, focarei no positivo. Juro. Boas cenas ou citações podem salvar uma obra. Ao menos para minha cabeça e minha crítica que aqui teço. Então, a decepção quando não consigo extrair algo de livros e filmes é muito grande. Dou-lhes todas as oportunidades de me agradarem. Alguma passagem, uma mera lauda, um dependurado de frases, um poema, uma cena marcante, uma boa ambientação, um bom roteiro mal trabalhado, um ator ou uma atriz que tenha se preparado bem para a função ou, melhor ainda, incorporado seu papel com maestria. Tudo isso pode ser salvo, excluindo uma análise mais crítica ao todo. Procuro subir as notas levando em consideração o que me agradou, o que me atraiu.

Portanto, algo na obra que alguém levou tempo e esforço para desenvolver me comprou, ou me fisgou, ou, realmente a palavra que me pareceu mais propícia a esse desabafo textual: me atraiu. Vou relevar outros pontos de meu desagrado e guardá-los. Ou melhor liberá-los para que encontrem aconchego em outras pessoas destinadas como público-alvo. E, olhem que curiosa a expressão de público-alvo. Posso ser público-alvo das tosqueiras maiores envolvendo zumbis até as filosofias mais densas a que o homem equilibrou-se na corda bamba contra a morte para desafiá-la. E está tudo bem. Afinal de contas, não estamos tão longe dos zumbis quanto imaginamos. E isso que muitas vezes me fascina neles.

É isto aí. Bom desenvolvimento a todos. Não digo que procurem me agradar porque eu mesmo posso me direcionar rumo ao proveito e ao gozo. E, no final, das contas, prefiro escrever sobre o que eu gosto e me atrai do que os pontos negativos que identifico nas obras. Mas os diabos que não me testem. Neoliberalismos e meritocracias não passarão impunes pelos meus olhos. E é por isso que os evito, caso não tenha ficado claro. Além do mais, o mundo 'real' já está repleto de coisas ruins para falarmos. Não gostaria de ater meu tempo à negatividade das obras a que me submeto.

Bom desenvolvimento a todos. Silêncio à reflexão ou aplausos? Estamos abertos a várias ofertas.

novo aluno

O novo aluno chega na classe. Apresentação igual nos filmes aqueles que vocês assistem. Ele está diante da nova sala. Todos aguardam saber quem é o desconhecido, a declarar-se em pronunciamento.

- Olá. Eu vim de outra cidade. Já pensei em me matar várias vezes. Então gostaria que fossem minimamente gentis.

Houve silêncio na classe. A própria professora não sabia como prosseguir. Mas ela prosseguiu. Ele também se encaminhou para seu lugar. Você pode imaginar cochichos, mas ninguém falava. Só que até o final do dia alguns esqueceram o que ele disse. E até o final da semana muitos outros esqueceram. E até o final do ano quase todo mundo esqueceu. Mas sempre fica a esperança que alguém se lembre até o fim dos tempos.

Seu Manuel

Seu Manuel me chamava de Guilherme. Depois talvez olhasse no fundo dos meus fundos olhos e descobrisse a verdade. Ou menos, menos. Eu o dizia que era Henrique.

Seu Manuel era o porteiro da escola. Mal era possível que fosse de verdade. Velhinho desde mais novo, barba que fundia-se ao cabelo. Mais grisalho do que negro. Óculos que ajeitavam-se bem à sua face. Ficava escorado contra a parede com a roupa repetitiva. Um moletom cinza com detalhes grenás. Transmitia um aspecto confortável como roupas de algodão.

Seu Manuel parecia vir direto de alguma regravação da novela Carrossel, destinada a acostumar as crianças aos ritmos da pré ou já iniciada escola. Parecia um personagem, um porteiro de qualquer portão da Terra ou do céu, de tão caricato.

Transmitia a nós algo de bom velhinho, de avô que a maioria não tivemos. E aí morava parte do conforto de seu aspecto.

Parecia com algum projeto de papai noel ainda pouco barrigudo e/ou não totalmente grisalho. Ou parecia um revolucionário russo. Mas nós infantis não conhecíamos o poder dos sovietes. Imaginação minha.

- Sr. Levy Ivanovich, o Sr. não pode ser porteiro da escola com este nome. Será acusado de comunismo, de ser subversivo aos jovens!

- Pois então que me chamem de Manuel.

Ghost World (Mundo Cão)

Não quero que um dia digam que eu era bom demais para esse mundo.
Por mais que o mundo seja ruim, eu também sou. Somos, no máximo, incompatíveis.

22 de setembro de 2021

O sétimo dia

A velha estava morta - disso, pelo apalpar do pulso, não se havia dúvida. Mas o que fazer agora? Aquela palestrante, aquela discursadora enérgica havia se resignado, estava morta. O corpo jazia caído. Não haveria como esconder, ela teria sido vista pela vizinhança àquela hora do dia. Precisavam de um álibi, uma causa mortis.

A discussão havia sido tremenda. Foi acalorando, foi acelerando as partículas todas até o choque final. Havia marcas das mãos deles contra o corpo da velha? Àquela altura já havia, sim. Contato físico. Constatariam alguma briga de mãos contra essa senhora de idade avançada? Ou achariam somente o que houve, o cérebro dando tilt, o acidente vascular?

Ele olhava para sua mãe. Estava atônito, petrificado, obviamente. Ele que tanto evitou discussões não conseguiu conter o bate-boca acalentado entre as duas senhoras, a mãe dele evidentemente mais jovem que a recém-falecida. A verdade, eles sabiam, é que haviam matado a senhora. Vítima da briga, da sucessão de argumentos, da falta de bom senso de ambas as partes. A senhorinha não resistiu, estava morta.

Dias após estavam os dois novamente, mãe e filho, na entrada da penitenciária. Nunca haviam estado em uma, cada cena era inédita àquela família de classe média. Observavam os detalhes nas paredes, não conseguiam desver o armamento pesado com que lidavam os carcereiros. Os equipamentos de segurança, os coletes, os rituais. Os telefones tocando. O secretário apenas aparentemente tranquilo, com o sangue a gelar por dentro. Chegaram ambos em procissão para a cabine da inspeção se poderiam adentrar aos presídio. Os oficiais pediram para esvaziar os bolsos. Mesmo telefones celulares não seriam permitidos, houve a retirada das baterias e foram postos em saquinhos plásticos. Não sabia o porquê, mas ele tinha pilhas também nos bolsos. Os oficiais não pareciam dar muita bola, pareciam confiar naquele jovem, filho do que levou a culpa, do pai infrator. Terminou de se apalpar e descobriu sua carteira fina, que servia apenas para o mínimo de documentos de identificação e alguma nota que houvesse sacado em banco. O carcereiro disse novamente para que não se preocupasse. Lacrou o saco plástico e o juntou a outros em uma gaveta. A mãe havia completado semelhante processo, ela que, pela idade idosa também estava recém aprendendo os trâmites da tecnologia através de telefone celular novo. Se separaram dona e aparelho e eles puderam adentrar à prisão das grades de ferro.

Olhavam para o corredor úmido de celas pela esquerda e pela direita. As paredes enganavam serem amareladas, mas o mofo e o gotejar das infiltrações escurecia o ambiente cada vez mais trevoso. Mãe e filho sabiam que adentravam um território hostil e considerado inimigo. Como dito, tudo era novidade. Era dia de visita, os prisioneiros, inspecionados, estavam "livres" pelos pátios. As famílias compareciam. Ele estranhou ver bandeiras e mais camisas do clube azul e amarelo da cidade. Imaginava uma legião muito maior do clube rival, por números absolutos que se observavam na sociedade, mas também pelo que imaginava no interior de uma prisão. Parecia mesmo um dia de jogo, uma torcida organizada com todos os seus apetrechos. Parecia um churrasco dominical, como costumavam organizar nos arredores do estádio, na praça central da avenida mais famosa da cidade.

Contornaram aquele grupo e observaram algumas rodinhas de conversa pelos corredores que levavam ao pátio, à luz do sol. Famílias conversavam, foram eles próprios se familiarizando àquelas cenas antes tão temerosas, tão incertas, tão restritas ao campo do imaginativo deles. No pátio, perceberam que haveria apresentação. Show de talentos, algo musical, alguma banda. Algo haveria. Se formava, de cadeira em cadeira, iam se organizando, uma verdadeira plateia. Enquanto nenhum número era apresentado, as pessoas naturalmente conversavam. Ele percebia como a mãe estava para desabar em prantos. Os olhos cada vez mais nublados, mais úmidos de sua ascendente prestavam essa informação indubitável. Ele apoiou a palma de suas mãos sobre os ombros da cansada mãe, pessoa que certamente não dormia em paz nas últimas noites - e talvez não mais alcançasse tamanho benefício para sua saúde, a boa noite de sono.

Tentava com as mãos sobre os ombros transferir algum gesto de sustentação, alguma energia para sua cansada matriarca. Sentaram-se em cadeiras de madeira no canto daquele pátio de paredes altas e gramado ao solo. Tudo ainda em tons amarelados, porém com menos mofo pela luz do sol que se fazia presente. Apesar disso, o acinzentar de suas mentes era inevitável. Tudo parecia mais nublado, era o filtro permanente sobre suas vistas. Esperavam por algo. Foram conversar entre eles mesmos, enquanto nenhuma alma lhes interrompia o diálogo, ninguém os oferecia suporte, aqueles desconhecidos do sistema prisional, os recém-chegados, os debutantes.

- Ele assumir a culpa mostrou que te ama mesmo. - Ela permaneceu calada. - Acho que foi melhor assim. - Apertou mais as mãos sobre os ombros da mãe.

Ele sabia que o casamento não vinha bem. Eles poderiam ter se divorciado. Seu par poderia estar distante, de volta para o estado de onde veio. Qual não foi a surpresa quando voltou para casa naquele dia? o corpo da velha estendido sobre o chão gelado da cozinha. A velha unindo-se ao plano como um gelo só. A mãe já sabendo das consequências que enfrentariam. Ele largando as compras no chão, com muito menos cuidado do que qualquer outra vez, mas sem também arrefecer e atirá-las para danificar ovos ou tomates, ou quaisquer embalagem que poderia amassar. Ele que foi até a pia da cozinha, lavou as mãos, depositou o detergente, enxaguou, secou na toalhinha pendurada na maçaneta da porta. Ele que mal perguntou quem, como e por quê e decretou ao final da breve conversa: - Eu assumo.

E assumiu. E foi julgado tendo assumido. E agora mãe e filho estavam armando planos, pensando advogados, o da família não bastaria, buscando soluções para tirá-lo daquele cárcere maldito. Daquela culpa que não lhe pertencia. Esperavam achá-lo ali pelos corredores, em qualquer uma daquelas celas, uns poucos permanecendo ali sentados sobre os colchões duros das camas, mirando imagens de mulheres seminuas ou tentando sintonizar algo nos precários e antigos aparelhos de televisão de tubo. Aqueles que não deveriam ter mais família ou membros familiares ou amigos próximos que se importassem, diferentemente dos organizados da torcida, dos envoltos, reunidos do pátio. O seu tinha família. Eles haviam combinado aquele primeiro dia de visita por ele. Alguns dias haviam se passado. Como ele estaria? Já era magro, já estava também envelhecido. Ele tomava remédios para controlar algumas taxas preocupantes. Estaria os tomando? Todas essas perguntas só poderiam ser respondidas com a sua presença, com a sua careca de formato capilar que sobrava inconfundível, teriam o reconhecido desde seu tamanho, desde sua silhueta, desde sua cabeça há metros e metros, centena deles de distância. Mas ele não estava lá. Onde será que estava? Por que havia sumido? Por que não os havia encontrado. Teve vontade de circular o mesmo caminho até a base dos carcereiros que lhes permitiram entrada, perguntar por ele, fazer ecoar sua voz por aquelas celas, mas seria um escândalo desnecessário e até inútil. Mas onde ele estaria?

A pergunta não queria calar em sua mente. A mãe permanecia olhando para o vazio, para o infinito. Para as lembranças. Para um casamento de três décadas - quase a quarta. A quarta por vir, mas seria na cadeia. Seria num desses domingos de reencontro. De dissolução novamente ao fim do expediente. De angústia insuperável. A separação entre aqueles que não descobriam que se amavam, que deixaram passar os anos sem se dar por conta disso. Ela permanecia em silêncio. Se uma banda, pela melhor que fosse, pela canção mais conhecida, pela mais insuportável ou mais extraordinária que fosse, subisse no improvisado palquinho de madeira, melhoraria ou pioraria a situação embalando um som de fundo para aqueles retumbantes pensamentos?

Ele nunca havia visto a mãe desabar daquela maneira. Se ao menos ela tivesse cedido antes da discussão derradeira que culminou com a morte da velha. Se.

- Se quiser, vamos embora - Disse.

- Não, nós temos que encontrá-lo - ela finalmente voltou a falar com ele.

- Podemos voltar outras vezes. Talvez com boas notícias.

- Tenho procurado os advogados - falou em tom de confissão, não sabia quem estava ao lado. Se poderia ou gostaria de escutá-la. Muita gente ainda ia pela companhia, sem esperança da soltura, seja por bom comportamento ou pelo que fosse.

Isso tudo da busca pela advocacia ele sabia. Estava procurando tanto quanto ela. Nem entendeu porque ela havia dito isso. Talvez para ganhar algo de confiança que no momento a angústia lhe carcomia. 

Uma criança veio sentar-se ali próxima. Percebeu que havia crianças por ali. Mães agora solteiras para criação daqueles pequenos, pais encarcerados. O que teria sido dele se fosse criado daquela maneira? Em que mundo teria entrado, em que mundo estaria? Tentou se intrometer na brincadeira daquela criança mais próxima, que se divertia, tentava se distrair com um cordão, brinquedo semelhante ao que ele tinha destinado para sua gata em casa.

Escutava-os também ao seu lado uma dessas mães de olhares distante. Um olho fiscalizava o filho pequeno, outro ia para o além. Ela também ainda desacompanhada do seu par. Talvez visitasse por ali muitos domingos. Talvez a própria rotina prisional já os separava aos poucos. Voltou o olhar para a sua própria mãe, desamparada, confusa, agoniada. Viu que pela primeira vez a corroía uma palavra que não a tinha visto sentir naqueles mais de 35 anos de casamento: o remorso. Jamais a tinha visto com remorso por ter casado, por ter brigado com ele tantas vezes, pela criação dos filhos, a irmã dele já distante, na Irlanda, sem os ver fazia anos. O remorso era uma palavra de extrema novidade para fazer visualizar no olhar de sua mãe. O remorso por ter sido a causa da morte daquela senhora. O remorso pelo marido dela ter aceitado se fingir de causador daquela morte, para protegê-la, por ele ter feito cálculos e constatado que era mais importante ela fora das grades do que ele. Tudo bem se ele fosse preso.

Mas agora mãe e filho pensavam. Ele que gostava de sair para a rua, de apanhar sol de verdade, horas por dia. Ele de pele eternamente bronzeada por isso, não somente de verão, como eles. Ele que mantinha a pele mais escura mesmo no inverno. Ele que praticava muito exercício físico, de dieta até bem saudável, pratos cheios e fundos, com comida de qualidade, com amigos do lado de fora. Ele acusado, ele chocando o bairro, ele sentenciado. Ela sem conseguir chorar direito diante daquela situação, mas que agora ela começava a assimilar. O remorso. O remorso que a corroía. O entendimento de que seria assim para um para sempre de longos anos, de extremamente longos dias e longas noites sem dormir. Ela que talvez não conseguisse mais dormir, como era seu passatempo favorito, seu recarregar de energias para tarefas domésticas e discussões como aquela que vitimou a velha palestrante, que ia de casa em casa. Erro que cometeram tê-la deixado entrar naquela tarde. Ela que desde que a velha havia desabado, batido a cabeça e perdido o pulso, sua voz sumira, saíam apenas resquícios, miados, palavras mal pronunciadas entredentes, quase inaudíveis. Ele que para voltar a escutar e a entender a mãe precisava quase de um tradutor, mas precisava acima de tudo de ler seus olhos. E nos olhos dela lia exatamente o remorso.

A mãe que em seguida tentou desviar o assunto, apresentar alguma resiliência, conversar com sua vizinha de cadeira.

- E este é meu filho. - Finalmente apresentou. - Ele parece chocado ainda pela prisão do pai, mas o que o deixou brabo mesmo, pude ler em seus olhos, foi que aquela menina que ele estava de olho agora está cercada por outros três a conversar com ela.

Ele olhou para a morena de cabelos pelos ombros novamente. Estava como ele a havia abandonado a vista, cercada por outros três, a conversarem e a rirem. Ele se envergonhou por essa conexão que tinha, por essa percepção incontornável de sua mãe. E ficou confuso entre perceber pela primeira vez naquela tarde um poder de reação dela quanto àquilo tudo, e também se espantar em como ela poderia fingir, ser dissimulada, cínica e gélida. Ao pensar em gélida sentiu novamente o pulso sem vida da velha senhora já enterrada, que deveria estar, naquele mesmo momento, recebendo as breves aclamações e pesares de sua missa de sétimo dia.

21 de setembro de 2021

serás

Será que devo me esforçar por uma gratidão que não sinto naturalmente?

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Talvez eu registre mais do que queiram saber, mas com certeza registro menos do que pensei.

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Às vezes sonho minha morte deitado no chão frio e úmido aos chutes dos inquisidores que me agridem até levarem-me para outro local, mesmo de corpo estendido e inerte, cortado agora por rios externos em jorros de sangue. Penso que é um final trágico proposto por meus julgadores e que é um desfecho típico desse mundo para a gravidez de risco que minha mãe teve aos passados 40 anos. Me amou, amamentou, buscou a aposentadoria cedo por mim. Dela tenho nada a reclamar e sinto que tão pouco posso entregar. Ainda mais chegada a hora, eu deitado no chão frio e úmido ganhando novos formatos corporais através do impacto da ira de meus adversários. Eles vencem, mas a eles não pertenço.


19 de setembro de 2021

hardcores de chuveiro - 19 de setembro

 hardcores de chuveiro - 19 de setembro

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te vejo é automático

te faço um elogio

me sinto um macaco

qualquer filhote de bugio 


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alguns trabalhos em vidro

eu fico vidrado

eu fico aflito

como podem tantas formas

in vitro

de ambos os lados


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é difícil lavar cabelo comprido

é difícil secar - ((apanho frio))

cabelo comprido escorre nos ombros

como não lavar? - ((ao menos as pontas))


é difícil cuidar cabelo comprido

é um exercício - ((e vários pontos))

a higiene com que me obrigo

eu preciso, preciso - ((do banho que tomo))


é difícil deixar o cabelo comprido

esperar crescer - ((até os ombros))

é difícil deixar o cabelo comprido

você se acostuma - ((depois não tem como))

é difícil mudar o visual do cabelo

ele é tão belo - ((é tão legal))

é difícil mudar, é preciso mudar

tá até os cotovelos - ((chegando na dorsal))


é difícil mudar o visual do cabelo

mas é o que eu quero - ((mas afinal))

qual é o problema com ele??

não é mais o meu elo - ((pra ser radical))


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Orelha - Karel Kachyna

O filme Orelha (1970) de Karel Kachyna é mais uma das críticas ao Partido Comunista em vigência na época na Checoslováquia. Uma daquelas obras que ficaram trancafiadas pelo período ditatorial. Na trama, um casal volta de uma das festas do Partido e percebe mudanças em sua residência. A moradia aberta como se um deles tivesse esquecido de chaveá-la, a luz elétrica desconectada, a trama aprisionante à luz de velas.

A narrativa é centrada nessa morada deles e a paranoia que os consome é a de que o Partido os está vigiando. O medo da separação, o medo de ser preso, a ideia de apontar culpados: quem os denunciou? Como obtiveram essas respostas? Estão espalhando escutas pelo apartamento? Tudo isso permeia o caso desse par que já estava com suas dificuldades conjugais, com acusações de traição no matrimônio, o que pode acentuar as dúvidas em relação a quem traiu quem e como.

O grande ponto observado por mim enquanto outsider da realidade comunista no Leste Europeu daquelas décadas é a ideia de que o Partido cometia traições internas e poderia ruir dessa forma. Veja bem, obviamente o regime tinha seus rivais, havia organizações externas a ele, tentando derrubá-lo. Havia também essa paranoia na administração política, que identificava inimigos fantasmas, inexistentes, caçava cidadãos comuns que os amendrontava. Além disso, a Europa convivia novamente com muitos espiões. Pessoas que atravessavam fronteiras para coletar informações relevantes que poderiam revelar pontos fracos dos sistemas. Do Leste para o Oeste e vice-versa.

A ideia de que membros do Partido estariam seguros nos burocráticos processos é superada. O funcionário do filme se vê em um plano de sabotagem. Ele pode ser preso, ele pode ser excluído do sistema. Ele pode ser morto. Ele pode se separar de sua amada para sempre. Ela com o mesmo sentimento. Ambos com um feeling perguntando-se onde erraram, o que vazou, o que o Partido poderia ter ouvido através das escutas? O que um poderia ter traído o outro até aquele ponto crucial, até aquela noite decisiva?

Veja bem que as traições internas em um Partido podem ocorrer pela hierarquia dos cargos. Funcionários 'invejosos' de encargos menores aspirando a vagas mais próximas do topo, em busca de prestígio, vantagens, salários, fama, banquetes: poder. A traição pode partir de um colega de departamento. A traição pode partir por uma felpa transformada em tapete. Para ser puxado o seu tapete. A traição pode ser uma prova imputada contra a sua pessoa. Pode ser justa ou injusta. E essa situação toda estaria restrita à Praga? À Checoslováquia? Ao Leste Europeu? Aos Partidos Comunistas? Ou ela poderia acontecer com qualquer um de nós dentro do regime capitalista, meio século depois? Dentro de nossas empresas? De nossas funções mais funções menos burocráticas?

Em tempos de redes sociais online, de onde pode partir A Orelha que tanto amendrontou, alvoroçou os personagens claustrofóbicos deste filme de Karel Kachyna? Seria a crítica uma mera propaganda contra o Partido Comunista no Leste Europeu ou um profetização dos novos tempos em que convivemos entre os muros de proteção e as exibições exageradas para estranhos e desconhecidos nas redes? Onde aperta o calo, onde aperta a Orelha de cada um? Onde estarão escondidas? Quem terá escondido? Com qual intuito? Com qual finalidade? Tudo isso é uma pulga que permanece a coçar mais de 50 anos depois, desde essa obra-prima de Karel. Ela parece inofensiva, parece distante, parece somente um filme arrastado, mas quantas dúvidas, quantas reflexões, quantas respostas inalcançáveis a cada fim de noite. A cada telefone: quem estará do outro lado da linha?




Crítica centrada nas traições dentro dos próprios partidos, mesmo no aparente poder dominante do comunismo. Traição interna. Traição no matrimônio. Traição.



implacável sono após almoço

O implacável sono após o almoço documentava seu corpo e o mantinha no mais absoluto estado de inércia, em posição curiosa sobre o sofá. Os raios de sol entravam azulados naquele interior de sala, levemente modificados pela fina cortina de tecido que deixava uma fresta para a confirmação do céu aberto para fora da janela. Para dentro do parco espaço do apartamento as simulações de azul. Pelo lado de fora, a cor em definitivo, em seu estado mais completo. Alguns gatos miavam por telhados vizinhos em uma sinfonia desafinada e despropositada na cabeça dele, mas que, para os executores, algum sentido havia de ter.

A sonolência após o almoço desenha imagens estranhas, turvas, dessincronizadas na mente. Chega a embaçar-se de planos tão confusos, chega a embaraçar-se de ideias tão distintas. Possui uma tremenda dificuldade de discernir o que é real. Separar o chamado mundo real e o seu campo de criação inerente a ele. Estava absorvido completamente pela sonolência após o almoço, ao mesmo tempo que nem sequer recordava o que havia comido nessa última refeição. Flutuava como um corpo vago, assumia uma posição acima do chão, acima dos móveis de seu apartamento. Era ele uma figura de contornos amarelados - os mais otimistas diriam brilhante e dourado - e passava por sobre os móveis facilmente desmontáveis, por sobre os eletrodomésticos facilmente inutilizáveis na futura crise hídrica e de eletricidade. Flutuava ao mesmo tempo para dentro de sua própria mente, na tentativa da interpretação de tudo aquilo.

Saiu pela janela, defenestrado, pensou, palavra que nunca foi de lhe apetecer. Achava que defenestrado era algo muito específico e utilizado com uma frequência que requisitava tons, coquetéis de erudição. Mas o que ele estava sendo se não defenestrado de seu próprio apartamento? Flutuava agora sobre os prédios, naquela mistura de fascinação e medo, e receio, e vertigem. A altura lhe causava isso. Talvez já a sentisse, a vertigem, de dentro do apartamento ao sobrevoar os móveis, mas, ao seu corpo transpor para o lado de fora, agora nada o seguraria em uma provável queda livre. Provável, ele julgava, porque era impossível manter-se suspenso no ar sem ajuda de equipamentos, de asas, deltas, sigmas, betas, qual letra grega fosse. E enxergava tudo muito turvo, procurava registrar aquelas visões, mas sabia-se ocultado de total nitidez pela sonolência que lhe acometia após o almoço.

Nem o despertar do medo, da insegurança, da adrenalina disparada mudaria sua incapacidade de arrancar daquilo a melhor experiência. Mas e qual seria essa melhor experiência? Antenado de vez talvez morresse de medo em pleno voo. Ou julgaria tê-lo morrido ali mesmo deitado e estava sendo arrancado desse mundo, em um plano de aviação desgovernado, que o afastaria, afastaria da superfície terrestre gradativamente até que tudo não passasse de um ponto distante e indivisível perante o espaço sideral?

Ele percebeu os prédios muito altos, o arranhadores de céu, um espaço aéreo que não pertencia à sua cidade. Estava em São Paulo. Ou algo que o valha. Mas o que valeria em correspondência a São Paulo? O espaço ele decifrava como plano, não poderia ser um Rio de Janeiro e, se não fosse o Rio de Janeiro, nem a esverdeante Belo Horizonte, nem a confusa Salvador, nem a litorânea Fortaleza, nenhuma outra cidade poderia ser aquela. Campinas ele não conhecia, mas julgava, pelo crescimento acelerado de últimos anos, que ela não poderia dispor daquelas estruturas. Era São Paulo, então. Maior cidade da América Latina em que ele aceitava perder um possível amor, ao menos em sua própria cabeça. Não estava lúcido demais àquela altura? Não, porque esse possível era tão provável quanto as imaginações que somente a sonolência após o almoço poderiam conferir-lhe.

E seguiu sobrevoando o espaço aéreo paulista sem o mínimo aparato que lhe ajudasse, apenas a mente concentrada, ou perdão, desconcentrada e permitindo essa falta de critérios técnicos. Nenhuma infração estava cometendo, porque as viaturas policiais não voavam. Estava estudando a história mais do que secular de sua cidade no Rio Grande do Sul e percebia como o passado próspero, ao menos para as mãos de poucos, ruiu até para essa classe burguesa. Talvez assim as ditas "elites" se nivelavam mais ao desnível em que ocupavam os pobres, os familiares de ex-escravos, porque essa era a formação populacional do extremo Sul, ao menos em suas fundações. O trabalho escravo, a mão de obra escrava, as construções advindas de escravos. Tudo isso, no fundo, ou por vezes em erupção até o que considerariam raso, tudo isso lhe incomodava. Fazia-lhe subir o sangue, encontrava nele chagas de perguntas e vergonhas pela posição em que ocupava. Se oprimia pelo contexto histórico. E tanto melhor seria se mais gente tivesse essa mesma mão que atuasse sobre a consciência, esse mesmo conhecimento e dele extraísse mais, se mais pessoas praticassem o dia a dia com o objetivo da transformação social.

Sabia que as construções mais antigas, de antes da abolição da escravatura, tudo aquilo possuía mão de obra escrava e, mesmo se porventura não houvesse esse tipo de mão de obra, as construções eram em prol daqueles que possuíam as riquezas, que poderiam usufruir dos mais valorados espaços, que patrocinavam direta ou indiretamente as bárbaries da época. Tudo isso lhe incomodava, em especial a criação polêmica e complexa de sua cidade. Mas agora ele estava por São Paulo, capital paulista que era guinada a um crescimento desenfreado a partir do século anterior. Tentava esquecer os sombrios passados históricos e focar naquele voo, naquele planar de consideração ímpar, naquela oportunidade única em sobrevoar a maior cidade latino-americana.

Pensou em como eram pequenas as pessoas lá abaixo e seus metros quadrados conquistados com um esforço esplendoroso, com a luta, o suor e o sangue do dia a dia, para aqueles sob o conforto do ar condicionado doando horas de trabalho semanal em troca desses eletrodomésticos ou eletrônicos, assinaturas de serviços streaming para relaxar e ver um filme ao final de semana. Ou mesmo para aquelas ocupações de prédios condenados, cujas pessoas estendiam suas roupas e tapetes de improviso, amontoavam-se, procuravam fugir do perigo dos choques de fiações improvisadas ou soltas, das goteiras, do choque entre água e eletricidade, das más fundições, dos perigos até de desabamentos. Essas pessoas cujo um dia de faltar à labuta diária ao nível do solo levaria com que a própria barriga pagasse com a moeda mais cara: a da fome. Todas essas pessoas pareciam para ele distantes lá de cima, mas mantinha uma esperança, um afeto, um martírio, uma complacência, uma piedade em que gostaria de estar ao lado ou massageando o coração ou as chagas de cada um. Uma verdadeira ou falsa benevolência? ele sempre se botara em dúvida. Botara no mais que perfeito e botará em um futuro cada vez mais próximo. Porque esse questionamento em como lidar com toda aquela adversidade, com toda aquela desigualdade social era um ciclo que o corroía por dentro. Lamentava demais, agia de menos, pensava sobre. E se entregasse marmitas? E se rezasse por alguém, e se o conforto da boa palavra? E se negligenciasse a tudo isso, apenas em busca da amada perdida, ou encontrada pelas ruas de São Paulo (por outro)? E se?

O sonho acabou porque houve seu despertador no horário das 13h. Houve ou ouve. Ouve. Almoçava cedo, no curto período de tempo em que ele se embrenhava e ainda conseguia voltar ao apartamento. Estava terminada sua sonolência de almoço. Estava sim, cada vez mais lúcido, mais desperto, mas sabia que necessitava voltar ao trabalho e realizar as tarefas. Deitou de camisa social mesmo, estava com o nó pronto da gravata para não perder tempo. Enxugou o suor da testa, ajeitou o colarinho. Estava suado pelas axilas, mas o complemento do terno ocultaria esse evidente descuido. Não havia tempo para desamassar as vestes castigadas contras as marcas das almofadas do sofá. Havia sempre questões mais graves para resolver. Esqueceu de destravar o despertador do celular e precisou desacionar o dispositivo novamente às 13h15. Estava atrasado. E não só para o expediente daquele dia.

pós dois papas

quando converso sozinho com minha mente me sinto vigiado por Deus. e talvez enlouqueceria de vez se não fosse assim.

carrego algumas culpas mas sei que ele me aceitaria. como um irmão. às vezes me ovaciona e às vezes eu o decepciono.

ninguém consegue provar o que é correto. alguns morrem em busca disso. eu gosto do quê e como acredito. me faz sentir melhor. e transforma-se por vezes em um propósito para tudo isso.

8 de setembro de 2021

Leonardo Haag e a denúncia

Leonardo Haag estava deitado, dormindo com seu pijama listrado, que consistia em um conjunto de camisola e calças. Como ele julgava correto, dormia sem meias, mas tinha uma touca também listrada para completar o conjunto em questão. Trabalhador brasileiro, ele era do ramo de entregas, ou motoboy, como não gostava de ser chamado. Só precisaria trabalhar na próxima noite, mas estava determinado a aproveitar a noite de sono naquela sexta-feira.

Ele ouviu o som repetitivo da música eletrônica e olhou para o copo d'água que deixava na mesa de cabeceira. A água vibrava conforme as batidas musicais. Leonardo levantou e esfregou os olhos diante do espelho, com um olhar interrogativo de quem ainda não se reconhecia naquele horário. Calçou suas pantufas para não apanhar frio, vestiu um casaco de tom neutro e foi para seu patiozinho para averiguar o que estava acontecendo nas redondezas.

- Devem ser esses malditos jovens baderneiros - falou consigo próprio. A verdade é que Leonardo ainda era bastante jovem também, mas, homem dedicado ao trabalho desde a adolescência, sentia-se um verdadeiro tiozão, como poderia confirmar a hipótese quando retornava à sua terra natal, Barueri, nos feriados ou fins de ano, para confraternizar com os sobrinhos, filhos de sua irmã. Em poucos dias, Leonardo era capaz de estragá-los com as piadas mais obscenas que possam ser imaginadas. - Eles sempre riem hehe - constatava.

Leonardo sabia que, no meio da pandemia de 2020, uma festa naquelas proporções não era correto. Qualquer reunião de pessoas sem máscara o deixava meio agoniado, destemperado com o sistema. - Se as pessoas não podem ir para nossa lancheria curtir uma bóia, essas festinhas aqui no meu bairro também não! - Exclamava consigo.

O paulista pegou um binóculo e foi para rua, tentar avistar algo da movimentação. Percebeu algum movimento de veículos na rua, uns estacionando, outros possivelmente já indo embora. Primeiro, com suas ideias pré-concebidas, pensou tratar-se dos jovens do lava-jato alguns terrenos adiante de sua moradia. Aqueles gostavam de beber alguma vodka e fazer uso de cigarrilhos. Mas Leonardo lembrou que eles não costumavam promover festas assim, com medo de que o terreno fosse desapossado daquela irregularidade em fachada de lavagem de veículos, como era comum no seu bairro. - Não levo minha moto nesses lugares, eles não entendem de cuidar veículo. - Protestava.

Enfim. Leonardo pensou que o correto, até para o bem de seu sono, era desmontar a movimentação que estava acontecendo. Fechou o seu casaco de tom neutro por sobre o pijama, mas, como o casaco estava curto, as listras do pijama ainda estavam para fora, aparecendo diante de sua cintura. Procurou rapidamente suas calças, tateando por sobre os móveis onde poderia tê-la depositado de qualquer jeito. Finalmente sentiu pelo tato e foi colocando por cima da calça de pijama. Manteve as pantufas, pois, em plena noite, não seriam chamativas na ocasião. Com dificuldade para enxergar diante dos fracos postes de luz do bairro, Haag foi avançando de seu portãozinho até as calçadas, na companhia de uma lanterna, notando haver veículos estacionados dos dois lados da rua. Um ou outro cachorro latia de fundo, para complementar o som musical que vinha da determinada casa vizinha.

Tentando se ocultar pelas sombras, sabe-se lá o porquê, Leonardo andava na ponta dos pés, procurando não chamar a atenção. Queria surpreender os meliantes festeiros. Depois de ter sintonizado sua visão àquela rua escura, ele depositou a lanterna no bolso interno de seu pijama, conferindo um volume difícil de ser explicado. Ele apalpou com a certeza da lanterna estar segura naquele pequeno bolso e soltou uma risadinha.

Chegando ao portão de entrada da casa derradeira, Leonardo respirou fundo, com a testa a produzir gotículas de suor. Era um momento decisivo. Ele notou que o portão estava aberto, na segurança e confiança daqueles infratores, e foi adentrando. A música estava a toda, agora com algum pagode que ele quase cantou junto, mas lembrou-se de sua importante missão. Engoliu em seco e prosseguiu. - A hora é agora, amigão - falou para si mesmo.

Ele chegou no pátio de acesso para a piscina e para a área dos fundos, onde estavam as pessoas, curtindo, a princípio sem notar a presença do intruso. Até que tropeçou em uma pedra e quase foi de nariz ao encontro da calçadinha. O tombo não passou despercebido por um primeiro meliante, que olhou coçando a cabeça, sem entender de quem se tratava. Ele avisou sua companheira, que a princípio não entendeu com o som alto da música, mas, quando cara repetiu, ela se deparou com a cena de Leonardo se levantando, sacodindo a poeira e constatou que também não o conhecia. A fofoca foi se espalhando e as pessoas começavam a olhá-lo. Leonardo manteve a frieza e a cabeça no lugar, se é que podemos falar assim. Ele permaneceu com o foco na missão, olhando um por um daqueles rostos que agora o miravam de volta. Com o dedo indicador para que não perdesse as contas, tentou contabilizar um por um dos meliantes.

19, 20, 21, 22, 23...

- Quem é você? - Ecoou o grito de repente, rompendo com o alto som do Guere Guere... Guere Guere.

- Espere um pouco - Ordenou Leonardo, com a mão espalmada, enquanto a outra terminava o serviço. - 28.

Ele continuou olhando atônito para aquela gama de olhares em volta de si. Novamente respirou fundo, engolindo em seco. Começou a recuar, tomando cuidado dessa vez para não tropeçar de volta na mesma pedra. Quem diabos colocaria uma pedra ali, no caminhozinho para estacionar algum carro? Alguns avançaram para tentar se informar sobre o estranho, querendo saber o que ele queria ali. Mas, sabendo do perigo que corria dali em diante, Leonardo desatou a correr. Um disparo com pantufa e tudo.

Sem perder seus calçados Deus sabe como, Leonardo avançou pelas calçadas da vizinhança, agora já despertando e agitando diversos cachorros prisioneiros das grades de ferro. Ele também conseguiu manobrar perfeitamente a chave em seu fiel portãozinho e foi para dentro de casa, se dando conta da ausência do volume em suas calças: havia perdido a lanterna pelo caminho. - Droga, gostava muito daquela lanterna!

Pelo basculante do banheiro, tomou uma posição de guarda e, subindo em um banquinho de madeira para enxergar melhor, ficou atento, com o binóculo diante da face, cuidando alguma movimentação suspeita, se estavam atrás dele. Só relaxou após longos cinco minutos de tocaia. Antes, ele havia rabiscado uma folha de papel com um dado muito importante: 28.

Ainda ofegante pela aventura de corrida e de esperar por uma alguma emboscada, Leonardo finalmente foi para o telefone registrar sua ocorrência.

- Brigada Militar, boa noite.

- Boa noite, policial. Policial, acabo de ver uma cena aterradora! O senhor não vai acreditar, oficial.

- Sim.

- Estou aqui no bairro ainda pertencente ao centro de Pelotas mais precisamente em direção ao bairro Areal compreende?! Gonçalves Chaves a rua. Nesta rua policial uma coisa terrível policial. Eu estava dormindo. Sou trabalhador brasileiro policial necessitando de gozar do descanso entendeu? Eu estava dormindo e fui despertado e... horrível oficial.

- Sim, diga.

- Eu primeiro ouvi para falar ao bem da verdade policial. Ouvi a música acho que era do DJ Blazy. Não que eu conheça e escute essas coisas aí oficial sou um sujeito até bem decente quando tive imposto para pagar sempre paguei entende? Eu ouvi a música o barulho retumbante o alarido jovem compreende? Entendo os fugores da idade policial. Quem é que não dá uns tiros fora entende?

- ...

- Pois então policial para ir direto ao assunto me desloquei até a casa dos meliantes e tomei todas as precauções possíveis policial. Vocês se orgulhariam do ato de bravura e coragem que desempenhei essa noite policial. Eu fui até a casa dos meliantes trajado em condições dignas para não levantar a bola da suspeita. De forma discreta adentrei o recinto e procurei contabilizar quantas pessoas havia no local policial. No local da festa. Deixe-me ver policial. - Pegou a folha de papel em que havia anotado o número. - 28. 28 é o número exato policial. Desculpe policial desculpe me contradizer. Mas é que estava escuro sabe como é? Estava escuro no local da festa e eu não consegui contar com precisão alguns se beijando podiam estar encobertos e se um estava no banheiro policial? Ou se duas pessoas estavam no banheiro ou até pior entende? Não sei se vem ao caso. E alguns eram muito feios. Não tenho preconceitos assim mas ah se pudesse evitá-los. Contei 28 pessoas policial.

- Você gostaria de denunciar uma aglomeração?

- Sim policial. Sim senhor.

- 15 de Novembro?

- Gonçalves Chaves policial em direção ao Areal policial.

- Gonçalves Chaves...

- Penúltima quadra. Agora estão ouvindo pagode. Quando cheguei lá já estavam no pagode. Ouvi algo do Mc Menor e algo talvez do Dilsinho mas acho que não vem ao caso. Não acho que sejam coisas que pessoas direitas fazem entende? Isso é complicado. Tive meus tempos policial. O pai era bom mesmo. Elas vinham atrás. Eu nem precisava enviar solicitação depois. Elas procuravam. Mas sabe como é pandemia é complicado. Eu tenho evitado. Elas ainda me chamam mas a força de vontade quem tem consegue manter certo policial?

- Certo, certo.

- Agi certo policial? Estou salvando pessoas.

- Muito bem.

- No que precisarem policial. Estou a serviço da lei. Já tive meus problemas com outras coisas. Sonegação até o momento não tive. Hoje ainda trabalho no ramo de entregas então não estou devendo o de renda. Mas tive meus tempos. O pai era bom mesmo. A grana entrava. O barulhinho da caixa registradora. Às vezes ainda sonho com isso. Entrava grana mesmo. A coisa fluía. Eram outros tempos. Mas tudo ok policial?

- Tudo sim. Agradeço, senhor.

- Leonardo policial. Pode me chamar de Leonardo. A serviço da lei. Para o que precisarem. Admiro muito sua profissão. Tentei contato com a academia de superiores mas fui logo dispensado. Uma longa história. Acontece que o Crystopher...

- Obrigado mesmo, senhor. Precisamos liberar a linha. Uma viatura está a caminho.

- Às ordens senhor policial. Se precisarem de plantão policial. Sabe como é, me acostumei a dormir tarde, trabalho no ramo das entregas. Um plantão não cairia mal posso ajudar no que for preciso.

- Tudo bem. Desculpa o incômodo, senhor. Tenha boa noite.

- Sim policial. Você também amigão. Oficial. Câmbio e desligo.

- ...

Leonardo foi para cama. Retirou o casaco de tom neutro e as calças que combinavam. Permanecia de pijama listrado em azul e branco. Sentiu falta da lanterna, mas dormiu com o sentimento de dever cumprido para o exercício da cidadania em prol de nossos compatriotas. Teve pesadelo com alguns dos rostos que viu e considerava feios. Além disso, uma música do DJ Grilo o incomodava e não permitiu um sono tranquilo como havia desejado o policial do outro lado da linha.

Na noite seguinte, o soldado que o atendeu pediu demissão do turno.

- Olá policial é daí que estamos precisando de um novo plantonista?

7 de setembro de 2021

Ascendências e descendências

Venho aqui para tentar esboçar um ensaio. Ensaiar um esboço. Pensava eu nos bichinhos domésticos, que curtem suas camas improvisadas, com tecidos e retalhos, acomodam-se, deitam e sonham. Sonham o quê? Não pensam em seus antecedentes nem em seus descendentes após certa idade. Tirando o carinho maternal que oferece o bico das tetas para escoar o leite aos filhotes. Depois creio que passa. Essa concepção de ascendência e descendência fode muito a humanidade. Tentarei explicar e driblar algumas contradições que esse pensamento possa vir a ter.

Embora os conhecimentos de História muito nos engrandecem, a nós que buscamos um mundo melhor, observando malditos erros passados e vendo-os se repetir no presente, planejando, infelizmente que eles voltarão a ocorrer no futuro. Porque, apesar dos avanços tecnológicos através dos séculos, a humanidade, por essência, erra em ciclos. Será que aprendemos com os erros? Ou será vontade das classes superiores, dominantes, donas do poderio bélico, das finanças, será vontade dela repetir os passados e garantir a estagnação, o conservadorismo, a manutenção do status-quo. Será isso, sim.

Penso em tantas guerras que formulamos em nome de antepassados. Em judeus e palestinos a degladiar-se pela terra santa. Nos séculos que persistem com os mesmos ou semelhantes ideais, apesar do cada vez mais desparelho poderio de um lado em relação ao outro. O desequilíbrio das balanças. O pesar de um dos lados da gangorra. Em nome de antepassados, sujeitos lunáticos (com perdão aos lunares pelo emprego do termo), lunáticos querem uma volta de um monarquismo, reivindicam as heranças da família Bragança - com o perdão da rima.  Uma faixa em protesto bolsonarista pelos centros do país pede para os ministros do STF se ligarem, porque, ali no asfalto, no lado plano - que acredita inclusive em Terra plana - ali não é favela. Depreciam a favela de todas as formas. Retiram seus direitos mais fundamentais, da alimentação e moradia. A cidade nega a favela. Não lhe oferece empregos ou oportunidades. Lá atrás, na vida dos que conseguem se tornar mais velhos (pelos 15, 18 ou 24 anos), lá atrás, para esses favelados não lhes foi oferecido estudo. Assim a banda toca. As feridas abertas e cada vez mais inchadas de uma sociedade desigual. Uma sociedade em que, se as desigualdades foram reduzidas por uma penca de anos, novamente se acentuaram. E chamo a atenção sempre para o agravante: nossa população é crescente. Apesar dos inúmeros fatores-morte a que estamos submetidos, são mais nascimentos do que mortes. As feridas seguem crescendo e inchando. Onde tudo isso irá parar?

O preço da cesta básica consumindo cada vez mais dos parcos salários. Os índices de desemprego no alto. Mesmo o preço dos combustíveis lá no alto, impedindo que muitos trabalhem com entregas, de mercadorias ou passageiros. Acumulam-se pessoas nas favelas e há quem tenha pedido a elas o bom senso de um distanciamento social nos mais elevados índices de Covid - situação vista hoje como passado, embora a pandemia não tenha acabado. Acabou com a vida de quase - ou mais, em números extraoficiais - de 600 mil brasileiros. Praticamente duas cidades de Pelotas. Mais do que uma Caxias do Sul, certamente. Além dos números definitivos (?) como são as mortes, uma infinidade de pessoas com sequelas da maldita doença. Uma infinidade de desamparados por uma economia que tenta controlar números e cifras, mas esquece das pessoas. Sucateia sindicatos, cargos, empregos. Obriga o cidadão a trabalhar no que lhe for possível, geralmente contrariado em serviços terceirizados ou autônomos, ou sub-empregos, com suas incertezas e sub-salários, abaixo da linha do salário mínimo. Cidadãos que convivem nas entrelinhas da pobreza e da miséria, escanteados do centro do asfalto, movidos para o alto dos morros, onde ampliam-se e implantam-se cada vez mais casas simples de um ou dois cômodos, materiais doados ou encontrados, obras que desafiam os solos e os mais complexos projetos de engenharia, mas, a exemplo do povo que as constrói, insistem de ficar em pé. A surpresa, quando caem, quando descem dos morros e barrancos é como a casa improvisada havia se sustentado? Como não havia caído antes? São as feridas cada vez mais abertas, subsequentes, conseguintes e inchadas.

E volta-se para a faixa que ameaça o STF com a promessa de que, ali embaixo, na linha do asfalto - dos crentes ou não da Terra plana e outras abilolagens - eles não são como a favela. Vociferam isso em tom orgulhoso. Se acham grandes e maiores. Peitam as instituições, não conhecem e não toleram limites para suas atrocidades. Enquanto possuem o suficiente para seus carros importados, blindados, para suas fantasias verde e amarelas da roupa para fora, enquanto desmatam terrenos, florestas, tempo e clima do país, enquanto possuem condição de subverter pessoas em seus empregados quase escravizados, para eles está de bom tamanho. Para eles funciona o país. Malditos os sejam. Enquanto escanteiam pessoas para o alto dos movediços morros, enquanto as tratam como dejeto e esgoto. Malditos os sejam.

Com suas fantasias de linhagem, de família Bragança ou não, de traços europeus ou não, de italianos ou alemães ou não, enquanto se acham superiores pela cor da pele, de forma mais ou menos generalizada, mais ou menos dita da boca para fora, enquanto se acham superiores aos demais mestiços desse país, aos indígenas povos originais dessa região continental, de matas e florestas diversas a serem devastadas. Eles se acham superiores por seus emissores de gás carbônico por meio de motores ranger estrangeiros. Se acham superiores pelo prato de comida que conseguem comer aos fins de semana, pelos restaurantes que conseguem frequentar, pelas viagens ao exterior que ainda conseguem fazer, pelos champanhes e pelas festas que consomem. Se acham superiores. Possuem empresas ou ações, possuem empregados, possuem patrimônio, possuem heranças de família Bragança ou não, vindas de outras gerações, de outro século, de outro continente, ou de outro continente investem em bolsas, ações, medidas de um complexo mercado financeiro. Possuem mansões em condomínios fechados com segurança particular, câmeras, heliportos ou simplesmente embarcaram nessa fantasia ainda mais mentirosa para aqueles classe econômica média que supõem-se ricos, como se, financeiramente, não estivessem muito mais próximos de se tornarem os próximos pobres.

Malditas linhagens e heranças e heranças segregadoras, racistas, impositoras, imperiais, histórias que se repetem e não conseguimos mais romper o laço, encontrar as raízes de tamanhos problemas em 500 e poucos anos. Violência que atinge mais a negros, que atinge os territórios indígenas, que devasta faunas e floras, coisas que me devastam desde meus mais profundos interiores da mente. Enquanto isso eles vociferam e ecoa na minha cabeça a mensagem, o vozerio, o griteiro, a imagem do cartaz prometendo medidas contra o Supremo Tribunal Federal porque ali, ali naquele asfalto, naquele mar de construções desde tempos escravistas, de heranças memoriais de um país de abortos e racismos, ali, para eles, fica o recado: ali não é favela.

Um post que vi perdido pela internet apontava que uma cliente pobre sempre admite sobrar fraldas e pergunta para quem ela poderia doá-las. Enquanto isso, uma cliente mais rica, quando sobra fraldas, pergunta para quem ela pode vender. É essa mentalidade. O senso de cada um por si, que a humanidade poderia distinta da sobrevivência dos animais, mas não tem. A humanidade feroz, umbiguista, individualista. Eles que se acostumam a vender tudo, incluso a própria alma. Eles que acostumam-se a caminhar por cima de corpos, embora estejam ao nível "baixo" do asfalto e as demais pessoas é que aglomeram-se no alto, sobre os morros. Eles que enxergam números, saldos, cadernetas, poupanças, preços e não distinguem mais valores. Porque seus antepassados escravistas também não os viam. Porque o racismo e o racismo estrutural os impede de enxergar. Ou, tanto pior, enxergam e nada mudam. E nada fazem pelo bem do outro. Porque estão intrínsecos com seus ideais materialistas, pensando na própria sorte de uma família protegida para dentro das grades de um condomínio de segurança máxima. Como ouvi no documentário A Ponte (2006), sobre a periferia de São Paulo, eles andam de carro blindado, mas uma hora terão que descer. Terão que se defrontar com seus erros e com a realidade. Ou, talvez por outro viés, talvez a favela, a favela de ferida tão inchada, em sub-espaços que já não comportam mais gente, a favela vai invadir, vai ocupar seu lugar pelo asfalto, vai reivindicar o que é dela. Vai buscar pelos espaços que a sociedade para sempre as negou de usufruir. Porque, conforme eu apontei, pode-se ter reduzido a desigualdade por um determinado tempo, mas a sociedade novamente grita em gritos de fome, reclama seu espaço para moradia, requer sua educação, sua saúde básica, sua oportunidade, recobra por um ganha-pão, por um emprego melhor do que o caminho da prostituição ou das drogas.

E tudo isso a humanidade faz sem saber como termina o dia, como termina o mês. Se vítima da fome ou da violência. Se vítima de um sistema que a encarcera de oportunidades, não somente para dentro das prisões com as chaves jogadas fora. O lado mais pobre, onde a corda arrebenta, faz o seu cotidiano com o receio do que será para seus filhos. Jovens, adolescentes que engravidam e têm o parto, que criam filhos não se sabe como é possível. Algumas vítimas de aborto antes das crianças nascerem, outras acumulam funções, sendo mãe e pai ao mesmo tempo, pelos ausentes que puxam fora. Essa sociedade se preocupa cotidianamente como vai terminar o dia, mas também gostaria de garantir algo de vida e oportunidade para seus descendentes. E essa angústia não tem sequer palavra que a traduza, tamanha é. Essa é uma diferença da humanidade em relação aos bichinhos. Ao gato ou ao cachorro que consegue, de barriga alimentada pelo dia, dormir um sono mais tranquilo. Enquanto a nossa luta é incessante e o futuro é difícil de visualizar. Para alguns, como eles próprios relatam, é impossível. Essa é a diferença.

Admiro e invejo os cães e gatos, os deitados sob o conforto de um lar. Porque, mesmo que me encontre em determinado momento dessa maneira, vivo ansioso por um futuro que a mim não pertence. Eu, que tal qual um dos principais provérbios machadianos "não quero deixar de herança para filhos a miséria dessa existência", mesmo eu sob essa condição que poderia me aferroar uma aparente tranquilidade, fico pensando um futuro que poderia ter sido. E não será.

Um futuro que não será para mim e muito menos será para outros excluídos dessa realidade maléfica e de crueldade implacável. Não será para eles e, pelo caminhar trôpego da humanidade, também não será para a ampla maioria de seus infortunados descendentes.

5 de setembro de 2021

Identidades

Acabo de assistir ao filme O Gabinete das Figuras de Cera (Das Wachfigurenkabinett) (1924), produção alemã de Paul Leni, obra do movimento conhecido por Expressionismo Alemão, que tinha, entre outros grandes diretores, a figura de Fritz Lang. Uma ideia concebida no filme fixou-se em minha mente. A história de Ivan, o Terrível, o "Czar das Rússias". Na narrativa criada, Ivan estava condenado à morte por um empregado, que o condenou como último ato, porque estava para morrer. Mas Ivan, ao descobrir seu trágico destino, engana seus "ministros" Morte e o Diabo ao trocar de lugar com o cocheiro que o conduziria para uma aldeia. Dirigindo o coche, o acometido pelo final definitivo é o funcionário que estava vestido de Ivan.

A história prossegue com Ivan novamente condenado à morte por um suposto envenenamento. Ele novamente tentaria driblar seu destino, mas não posso afirmar que com tamanho sucesso. 'Spoilers' à parte, fiquei preso nessa ideia de trocar de identidade. Em tempos remotos, sem os usufrutos da tecnologia, seria mais fácil ou mais difícil partir para mudar sua identidade? Hoje observamos os dois lados nas redes sociais. Perfis fakes se passam por mulheres tentadoras, outros por simples bisbilhoteiros de perfis alheios e ainda há o tipo mais comum das últimas eleições para cá: os comentaristas de portal. Figuras aliadas ou contra os governantes que participam de foruns com os únicos intuitos de cravar suas bandeiras e/ou tumultuar na deposição de ideias.

Também como não lembrar da crescente onda de fake news - notícias falsas (ah é!) que inundam as redes sociais, os grupos do aplicativo verdinho e por onde mais puderem navegar. Difíceis ou praticamente impossíveis de mapeamento da origem, áudios falsos, vozes nada oficiais, crises de identidade, traições, mortes precoces, assinaturas falsas de governos, sintomas, causas e consequências inventadas e forjadas, porta-vozes das mentiras mais cabeludas que se possa imaginar. O internet é como o jogo do arrojado encanador Mario Bros, mas você é apulhalado inclusive pelas costas com maior frequência.

Seria mais fácil para Ivan trocar de lugar com o funcionário por não haver assim fotos dele espalhadas, em tempos anteriores à invenção da máquina fotográfica? Os registros eram feitos em pinturas, restritas às cortes ou às poucas composições de nobreza. Para a vassalagem seria ainda mais fácil escapar das garras ao trocar de identidade. Ademais, vemos histórias desse tipo. Relembro também aqui o clássico Conde de Monte Cristo, que retorna de sua condenação direta para um cargo visado de conde, invadindo palácios e buscando vingança. Desconfianças só de quem os conheceu em momento anterior da vida. Quem vê pela primeira vez não faz ideia. Ademais, também não existiam registros gerais (RG) ou outras formas de cadastros. Era (quase) tudo da boca para fora. Outros exemplos das épocas mais medievais eram de acusados, criminosos, fugitivos em dívida, ou seja lá o motivo, que partiam de suas terras natais para outros rincões, em busca da paz e do sossego, novas identidades, literalmente novas vidas pela frente.

Ivan, o Terrível, diante da ampulheta, tentando enganar a Morte
Filme: Gabinete das Figuras de Cera (1924)

Pois vejam Ivan na noveleta relatada, conseguindo enganar não só aos homens em um primeiro momento, mas incluso os "certeiros" (?) Morte e o Diabo. Que sobrará aos meros mortais diante de tal manobra dos fugitivos? Enfim, no filme vemos que pelo menos ao último movimento é impossível driblar em definitivo a Senhora Mortindade - para os não íntimos.

Seguidamente também penso sobre a quantidade de cadastros que afetuamos. Acesso a materiais artísticos, acesso a bancos, acesso a dados, aceso a documentos nossos ou dos outros. Acessos e barreiras e restrições. Senhas que cadastro com a obrigatoriedade de ter tantos dígitos, de conter letras, de conter mais ou menos números, de conter símbolos variados propostos com o auxílio da tecla Shift (ainda se chama assim? não sei, apenas a teclamos sem a chamarmos por nome algum). Sem a senha só em sonho - impossível alcançar - dizia Humberto Gessinger em canção do duo Pouca Vogal, na companhia de Duca Leindecker. Pois é, este texto começou com a filmologia alemã do século anterior, quase completando 100 anos da obra inspiradora no Expressionismo Alemão, e termina com os gaúchos descendentes.

Um último questionamento bobo: sobrenomes mais difíceis estão mais seguros nessa indústria toda, pelo entrocamento de consoantes nos emails, senhas e assinaturas? Fica a questão.

1 de setembro de 2021

Os diferentes estágios do inferno em um sábado à tarde

Ela esperava aflita com o celular colado ao ouvido. As sobrancelhas desenhadas dançavam tanto quanto fosse possível nos movimentos ritmados da testa franzida. Após sucessivos toques na espera que ele a atendesse, desistia, levava o celular para dentro da bolsa e pisava firme contra a calçada, de vez em quando levando às mãos ao quadril. Mas a impaciência vencia aquela queda de braço e, entre uma olhadela ou outra para o relógio de pulso, ela percebia o avançado da hora e sacava novamente o celular de dentro da bolsa. Nervosa, nem a confiança de quem mesma arruma o depósito garantia que não voassem antes uma escova ou algum cosmético antes de encontrar o telefone novamente. Não precisava digitar, o número do marido, cada vez mais evidentemente ex, estava no dígito para chamadas rápidas, mas também estava naquela lista de chamadas recentes. Todas dela, nenhuma atendida.

E as crianças... As crianças! De vez em quando ela, aérea das ideias, esquecia os pequenos que deveriam estar de encontro com sua mão para não fugirem, ou ao menos muito próximos, dentro do campo de vista. Ela estava à beira da estrada para praia. O movimento era intenso. Não era o mesmo de domingo, realmente. Mas o de sábado também trazia os entrocamentos aqui e logo adiante. Será que estão parando pela lombada? Não, é porque travou o trânsito mesmo. Que droga de horário! O trânsito, o passar da hora, mais uma olhada para o pulso, o relógio, que bonito era o relógio, seu pai o havia presenteado. As crianças! Pedro ia parar quase no acostamento. Rodolfito, em homenagem ao cantor argentino, se aproximava da cerca de arame, eles que aprontavam tanto juntos, mas também gostavam de explorar cada qual para seu canto. Um quase querendo ser atropelado no movimento intenso da estrada, o outro no mínimo querendo espetar o dedo no arame farpado da propriedade vizinha. Uma fazenda por ali, ou pelo menos a extensão de terra com proprietário, pois não conseguia, ao espichar o olho, localizar algum plantio no terreno que se estendia à frente da casa, lá adiante nos fundos, quase invisível. Quem sabe plantavam algo lá atrás? E o que te importa? Não vem ao caso. O Pedro... o Rodolfito. Onde estava a Laura? A Laura então se apresentou como a mais encrencada dos três, pois havia encontrado uma cobra.

Ela dedicou os primeiros cinco minutos a manter-se longe do celular, era o que precisava ser feito. Dar uma boa bronca em Laura. Que perigo correu! Perto da cobra. Poderia perfeitamente ter sido atacada em um ligeiro bote e ela, enquanto mãe, jamais saberia. Ela tentando a ligação. Ele sem atender. Quantas tentativas já havia ligado na insistência? Mais de 20 certamente. A Laura. Olha aqui, Laura. Laura, não chore. Laura, você precisa entender. Laura... E o Pedro e o Rodolfito? Agora o mais novo, Rodolfito, subia pelos ombros de Pedro a tentar romper a cerca de arame farpado e se agalhar na árvore. As árvores. Ao menos alguma sombra naquela espera maldita que prolongava arrastados minutos, cada qual podendo reservar uma surpresa como essa de Laura ou dos meninos podendo se machucarem, perto dos arames, um corte ali. Aí a urgência da carona para os compromissos dela viraria uma desabalada carreira rumo ao hospital para estancar o sangramento do... do... de quem? do Rodolfito só podia ser. Fito desce daí! Agora, menino! Pedro, ajuda ele a descer. Se subiram é porque conseguem voltar, ora, onde já se viu? Descia Rodolfito ainda aos risos e guizos, soltando o galho da árvore e retornando os pés para a segurança do chão.

Segurança. Era isso que ela desejava e não tinha mais. O marido que sumia, o marido que não atendia. Está bem que das outras vezes não costumava passar da terceira ligação, mas ela também demorava mais a ligar, as ligações eram espaçadas, ela lhe dava o benefício da dúvida. Mas hoje não tinha como explicar em pleno sábado. A ligação da chefa. A urgência em retornar ao posto de trabalho. Aquele trabalho com salário de estágio. Ora, ela não poderia ter chamado outro? Não, bradou a chefa que os demais haviam se organizado, viajado juntos para mais longe, quase um acampamento, uma ideia idiota, é bem verdade, ainda agosto, nem bem calor fazia, mas deram sorte, ora, pegaram um rico fim de semana de sol. E ela achou que poderia curtir ao menos a praia. Mas mal chegaram, ela que pegaria algo da lojinha de conveniência, a que ela tinha cartão, tinha desconto, tinha pontos de vantagem, achava o atendente bem apresentado. Mas a ligação da chefa interrompeu tudo, nublou a tarde de descanso dela. Que descanso? Essas crianças imprevisíveis, com mais manobras nas mangas do que o próprio diabo. Laura aquietou-se, sentou-se sobre uma pedra, para longe da cobra, para longe de qualquer outra criatura viva. Ainda bem. Mas e o Rodolfito, que ainda ria e produzia guizos naquele momento em que descia de sua última travessura, o Fito onde está? O Fito sim quis contato com a natureza, aterrissava seus pequenos tênis sobre um carregado formigueiro. Novamente ela de olhar arregalado, a boca escancarada, aberta, mas mutada, sem produzir um ruído. Que chance teria esse moleque de sair ileso dessa vez? Os raios sobre o mesmo lugar, ou sobre outros lugares, tantos são os locais que uma criança pode arruinar um final de semana. E a chefa também, a chefa que vá ao inferno, pessoa desorientada das ideias. Mas só haviam loucos naquela cidade?

O Fito. Mas o que foi que eu te falei??? E de fato nem ela recordava o que havia falado, mas de prontidão estava com a mão espalmada a rebater as canelas do menino contra qualquer arruaceira que despontasse rumo a locais piores para picar o garoto. Tirou os tênis do filho, bateu-os contra a pedra em que Laura estava sentada. Laura que estava quieta já não gostou do ajuntamento sobre sua pedra, Laura que desafia frente a frente a cobrinha do mato, agora só queria descanso, mas de qual maneira? Com aqueles irmãos. O pequeno tudo bem, se ao menos o Pedro mais velho o ajudasse na criação, mas, pelo contrário, desvirtuava de vez o mais novo. Onde estava o Pedro que para longe da pedra se encontrava? O Pedro sabe-se lá como superou a barreira de arame, achou algum furo, algum buraco por onde embrenhar-se e percorria o terreno vazio à frente daquela propriedade, fazendo ou o que fosse. Cada qual pior dizia ela consigo mesma. Pedro! Pedro, pelo amor de Deus! E dos gritos dela, se antes Pedro não o havia despertado, partia um cachorro à alta velocidade. Aqui será ocultada a raça do animal para que não sejamos acusados de preconceito contra qualquer raça que você não a julgue violenta. Tudo bem, saibam que havia raça, ah, se havia naquele cão. Uma das bem conhecidas, tanto maior seria a implicância com os donos, pais de pet e simpatizantes que a defendem, enfim. O cachorro partia em direção a Pedro, ela partiu para um cálculo mental, tentou calcular a hipotenusa daquele triângulo-retângulo para a salvação de seu pequeno menos pequeno, Pedro percebeu o cachorro, claro que percebeu, só por isso tentava voltar. Pedro na dianteira, o cachorro a se aproximar. Pedro ou o cão. Pedro ou. O cão parou de repente, porque uma invisível coleira o isolava daquele intruso. O menino, vendo-se em plena segurança, achou graça do episódio. Eram o diabo. Se não cada um deles, ao menos a união fazia a força para duelar com as ocultas fortalezas subterrâneas do inferno.

Ela enxugou a testa. No movimento aproveitou para olhar o relógio de pulso. Nada do marido. Olhou para Laura, que agora ajudava o outro intruso, o do fomigueiro, tal qual aquele filme infantil, o Fito se livrava das últimas formigas e, tamanha a sorte que os acompanha - será? - nada de Rodolfito reclamar de possíveis picadas. Que assim prosseguissem na viagem para o retorno. Mas quê viagem?! Qual retorno? Se não havia carona. Nada do marido atender o celular. Tentou a 24ª vez. Não precisava contar, estava ali de pronto o registro na agenda telefônica.

Pensava ela no atraso, na bronca da chefa, mas dos outros que acampamento o quê, em pleno agosto, nem calor estava, mas aquele sábado estava, escolheram bem o dia, aquilo sim que era sorte, um fim de semana fora, um fim de semana de descanso, quiçá de aventuras e algo mais, será que Glória era a fim de Flávio, parecia para ela que sim. Que fossem para o inferno. Só não desejou isso porque era capaz de aparecerem ali, caírem de paraquedas. Era possível. Ainda pensou que eles que se meteram mato a dentro e ela, parada ali ainda menos de hora, consultou o relógio para conferir se era menos de hora e já havia episódio com cobra, formiga e cão e sabe-se lá o que mais Noé salvou para exclusivamente, passado milhares de anos, aprontar com ela naquele sábado. Com esse único objetivo a arca estava cheia quando a Terra ficou definitivamente cheia d'água. Era para alinhas as pragas todas contra o seu bem estar naquela sucessão de acontecimentos inimagináveis.

Quer saber? Assobiou o mais alto que podia, o silvo serviu de chamado para os pimpolhos que se reuniram em volta dela, estranhamente ordenados como se um chefe militar conferisse uma inspeção inesperada. Só faltou baterem continência, coisa que ela abominava. Abominava mesmo, por que casou com um que serviu ao exército? Nem ela sabia mais onde tinha se metido com sua vida. Com aquele despistado, com aquele perdido, ordinário, vagabundo e outros adjetivos impublicáveis nesta feita. As crianças ali, todas, as três juntas e prestando atenção, talvez a primeira vez em meses, porque mesmo no mesmo recinto, dentro de um carro Pedro mexia com seu joguinho estilo aqueles game boys antigos, machismo na chamada que era mais absoluto na época, a menina sempre avoada, a olhar pela janela paras as mais fronteiriças distâncias onde a vista alcançava, ela pensava que Laura sentia a separação do casal antes dela, era esperta a menina, disso ela tinha certeza, era inteligente, só não tinha medo de cobra. Se é que isso era defeito. E o menor ainda a tirar meleca das narinas, esperava ela que rompesse com esse hábito o quanto antes. Enfim, os três reunidos. Ela aparentou cautela, mas pegou e arremessou seu celular longe. Caiu passando a cerca, ricocheteou ainda em um dos galhos, não daqueles que Fito subira, mas em outro e espatifou-se na grama, talvez a batida com a grama sem o contato suficiente para destruí-lo, mas em acesso de lucidez, ela tão louca e tão lúcida, olhou para o chão úmido apesar do sol que fazia, pensou na mudança do tempo e que logo logo aquela porcaria jamais imploraria atenção novamente ao marido.

Nem o celular, nem ela. Pegou Fito pela mão por ser o menor, aproveitou a atenção dos demais e foi caminhando. Não vamos esperar a carona? Perguntou Pedro. Seu pai não vem. Voltou para a loja de conveniência do atendente interessante, mirou a plaquinha na frente que apontava a necessidade de ajudante em um turno. Aproveitou para mandar dois diabos para o inferno em sua vida, o que ela tentava ligar e a que ligava para ela, e reunir os três diabinhos em torno de si. Ao menos comida não vai faltar, pensou por último, vendo as crianças novamente se distribuírem pelas prateleiras, Fito tentando alcançar o que era alto demais para ele, Laura com noção até compras saudáveis. Só não tinha medo de cobra. O atendente sorria e ela também.