22 de março de 2022

Noite de pesadelo zumbi

Nos protegíamos minha família e eu pela casa dos avós de um antigo amigo. A casa era simplesmente a maior da praia. Ocupava o centro de uma quadra, mas o seu tamanho era de uma quadra inteira para trás. As casas costumam ter os fundos voltados para os fundos de outra. Esta não. Havia pátio na frente e pátio atrás. Enorme. A pintura dos muros era salmão e as grades altas bordô.

Começamos apenas minha vó, minha mãe, meu pai e minha irmã. Procurávamos armas com as quais nos proteger. De quarto em quarto, subindo e descendo escadas nessa missão. Havia longa sala, como um saguão na parte de baixo. Este ligava a cozinha. Mas também quartos no interior. E obviamente os quartos - e escritório - e salão de jogos no superior.

Uma família relativamente pequena a minha para aquele palacete. Mas onde estariam os donos originais? Era de se pensar. Só que não havia tempo. Os zumbis iniciaram o cerco, aglutinando-se nas grades, na parte aberta do extenso muro salmão, que se estendia sobretudo como muralha pelas laterais da casa. Estávamos armados, mas era questão de tempo para eles transporem as barreiras e, movediços e escorregadios do jeito que estavam, nos alcançarem pelo lado de dentro. 

Talvez a melhor recomendação fosse não criar mais ruídos, mas eu gritava por meus familiares. Precisaríamos de um plano de fuga conjunto. Ni una a menos. O palacete seria o sonho de vivência para outros tempos, mas não naquela noite cerrada, demorada, arrastada como se não soubéssemos se haveria dia após esta madrugada.

O cordão de zumbis invasores mostrou o caminho por entre o ornamento trabalhado em determinado espaço da grade. Eles haviam entrado. A maioria não corria, mas alguns eram capazes. Esses diminuíram a margem de nossas reações. De pronto nossas armas pareciam inúteis àquela quantidade crescente exponencialmente de invasores. O rolo de massa poderia acertar o primeiro sim. A potente vara de pesca (?) poderia decapitar outro? Claro. Mas logo para enfrentar três e a esmagadora arma de deitar a massa de pão parecia inútil. A não ser que tivéssemos sobrenaturais habilidades de kung fu, mas não era o caso.

Conseguimos não se sabe como conduzir a vó para o carro, e a família acionou o estranho furgão que daria orgulho ao Fred, não só ao Flintstone que nunca havia visto uma engenhoca tecnológica daquelas, mas principalmente ao Fred da turma do Scooby Doo. Sem direito a um cachorro falante ou maconha que nos ajudasse a enxergar saída daquele pesadelo, procuramos acionar o controle elétrico da garagem. Por obra positiva do destino a energia elétrica ainda não havia sido cortada no bairro, porque nenhum daqueles mentecaptos havia tropeçado nos cabos de energia ou tentado subir num poste, admirados pelas luzes. As luzes os chamavam atenção.

O controle da garagem abriu vagarosamente o portão da garagem. Dos fundos, é importante dizer. A parte da rua da frente estava ainda mais lotada, abarrotada de zumbis como se fosse a recepção da torcida xavante. Então saímos por esse vagaroso, relutante e teimoso portão dos fundos, aquele que respondeu ao chamado eletrônico com uma inclinação lenta e preguiçosa. Ele ia aos poucos, travava e seguia a angulação rumo aos 90 graus. A cada travadinha que ameaçava não passar a altura suficiente àquele furgão de cachorro-quente, nosso coração também parava junto. Eis que meu pai perdeu a paciência e arremessou o furgãozinho com tudo naquele portão. Foi uma má escolha, porque arrancou, ou melhor contando, abriu um certo rombo no teto do veículo. O mais sensato no momento era pensar que saímos daquele inferno. Saímos munidos de algumas armas de mão para os futuros combates corpo a corpo e com duas pistolas as quais tínhamos dificuldade de decidir quem manejaria. 

Minha irmã a bem da verdade era a especialista pelo seu conhecimento advindo de jogos de tiro. Eu muito pouco permanecia com um facão que seria mais útil para acertar um vivo do que um daqueles mortos. Junto à nossa família já se juntavam outras três pessoas. Um homem que parecia uma reprodução clássica de um guerrilheiro dos Panteras Negras. Uma mulher de idade semelhante e um terceiro esquisito que em algo me lembrava o don Ramón (seu Madruga) ou a outro mexicano de bigodes proeminentes e rosto sugado pelo passar dos anos e pelos absurdos sustos que convivíamos nessa epidemia zumbi.

Chegávamos às proximidades de um porto quando minha avó, temendo a aproximação de tantas daquelas figuras, numa reação súbita de um plano suicida, declarou que já estava muito velha e só atrasaria jornadas. Conseguiu com o que lhe restava de força nas mãos, que com destreza construíram retalhos, bordados, roupinhas, pastéis, massas, arroz, carreteiros, assados, os mais diversos almoços, com força conseguiu abrir a porta de correr daquele maldito furgão e pulou para um tombo violento para qualquer idade, tanto mais a dela. Mas a dor de impactar-se com o asfalto ou com as pedras não demorou, porque, como ela estava certa, os zumbis logo a atacaram para devorar em minutos, talvez mesmo em segundos. Cena brutal que não sei porque cargas d'água tentei direcionar meu olhar para os vidros retrovisores do furgão. Eles aproveitaram a rara iluminação dos postes dali para mostrar o aglomerado de criaturas por sobre o que há instantes era minha avó.

Chocado com a cena, precisávamos ainda ser resilientes. Logo nem todos precisariam demonstrar ganas de coragem porque nosso furgão tombaria em uma rua de calçamento bastante acidentado. Ele conseguiria se manter de pé, mas aí o motor já não funcionava. O pior é que, independente do motor, a bateria estava engasgando, indo para o saco e teríamos nada para substituí-lo. Abandonamos o furgãozinho na rua. Mas mal os metidos a mecânico haviam descido de plantão (o mexicano e o pantera negra) e o exército de zumbis também dava as caras como plantonista contra nossa missão de sobrevivência.

Meu pai ficou para trás naquele episódio, isto eu consegui visualizar. E talvez fosse melhor que não vi o paradeiro de minha mãe. Embora assim ainda me reste alguma esperança de que esteja viva. Sobravam comigo o grupo de forasteiros, os incapazes de consertar um furgão de bateria desgastada em tempo recorde. Também em nossa corrida inicial para fugir daquelas coisas, minha irmã e o pantera negra em posse das armas, não valeria gastar um tiro que fosse na direção daquelas criaturas. A necessidade de acertar na cabeça com a luz oscilante dos falhados postes dariam grande chance de desperdício. Além do mais, a velha descoberta. Mandar bala dali só serviria para atrair mais daquelas errantes criaturas. O que precisávamos de fato era de um novo carro para tomar distância em busca de uma estrada segura, algo que nem aquela praia nem o porto podiam oferecer.

18 de março de 2022

Acordo

Deixo as ideias correrem livres na madrugada e acordo preso a esse corpo e à situação sócio-financeira desse país. 

Sonho em percorrer grandes caminhos e acordo cercado por quem pede esmola.

Sonho por grandes caminhos e acordo amarrado a um destino mais breve.

Sonho repetir o passado e ele parece mais distante do que qualquer futuro.

Sonho construir um futuro e o presente me abomina.

Sonho deixar realidades para trás e elas me gotejam a camisa, escorrem da testa ao lombo. 

Sonho superar as dificuldades e elas me cercam tentaculosas. 

Sonho terminar melhor esse curto texto e ele já chegou ao fim.

Desculpe por não escrever

Desculpe por não escrever sobre nós 

Tanto quanto eu deveria

Só estou acostumado a escrever

Sobre o que seria 

E quando é 

Eu só vivia


Eu só vivia

Eu só sorria ao seu lado

Eu só sorri ao seu lado

Eu só sorria ao seu lado


Nos outros lados eu mentia

Nos outros lados eu morria

Eu só sorria ao seu lado

Eu só sorri ao seu lado

Eu só sorria ao seu lado 

17 de março de 2022

Caminhada

O fim do verão se aproxima. Os salva-vidas já não repõem as bandeiras com as condições do mar. Aprendi eu mesmo a diferenciar o estado para bandeira vermelha ou para amarela. Considero que anda bem mais para vermelha. Mas hoje o mar estava quente. Costumo caminhar com os pés e às vezes as panturrilhas para dentro d'água. E o mar subiu bastante nos últimos dias. Não ameaça as dunas, mas cobre a areia, que fica com uma cor mais morena e com aspecto mais mole a cada pegada que lhe impomos.

A praia já não era das mais cheias, agora convive com poucas pessoas. Gosto de caminhar assim, com a extensão de areia para mim, com raros guarda-sóis, raros transeuntes que se apresentam. Acho melhor dessa forma, sem a possível obrigação repentina de cumprimentar alguém que conheço ou deveria conhecer, talvez algum vizinho da mesma quadra, porque em cidades pequenas as pessoas são acolhedoras e se conhecem. Caminho com menor dúvida dessa necessidade com o rosto parcialmente exposto por detrás de meus óculos escuros.

Observo a sucessão de ondas marítimas, hoje bastante envolvedoras, uma atrás da outra, elas mal esperando a respectiva vez de desaguar a espuma esbranquiçada. Direciono o olhar para o outro lado, com as dunas ora mais altas, ora mais baixas, obstruindo a visão das casas ou dos raros prédios, ou ora os permitindo uma visão mais completa e panorâmica. Observo as manchas que a água insiste em manter sobre as areias. Lagoinhas formadas que só serão desmanchadas quando o mar novamente avançar à noite. Permanecerão ali, sem passar do líquido para o gasoso na atmosfera, sem evaporar. Pequenas reservas de água salgada nos caminhos que encontram-se entre a imensidão do mar e as dunas, naturais barreiras, retenções de sua força.

Essas poças formadas, as lagoinhas, elas proporcionaram um aspecto de abandono para a cidade que se desenhava tímida por trás das dunas. Era como se alguém não tivesse feito o trabalho de recolhimento daquela água. Besteira, ilusão criada minha porque o processo é todo comandado pela natureza. Agora pela natureza, mas sem intervenção humana onde costumava haver é o crescimento do mato na descida da guarita dos salva-vidas. A grama cresce mais sem ser pisoteada pelos banhistas que subiam e desciam a estradinha. O mato avança e cobre as dunas, sem adversário na ação humana. Isto é recém março. Como estará o trabalho de poda em maio ou junho? O aspecto sombrio da cidade mais esverdeada de mato crescendo, de água salgada parada sobre as areias, de menos fluxo de humanos. Um paraíso turbilhante entre radiante ou esquecido. Entre maravilhoso e assustador.

Caminhei a passos firmes e determinados, para avançar alguma etapa em minha recuperação de saúde, para mostrar que é possível ou para simplesmente desopilar mais um pouco. Tinha quase como promessa a chegada à próxima praia, um bairro bem mais residencial do que o meu. E notei que as pessoas para lá são mais praieiras. Aproveitaram o dia nada nublado, perfeito de sol para abrirem guarda-sóis, reunirem a família e porem as crianças a brincar.

Um menino aguarda que sua irmã chute a bola. Ela ameaça duas vezes, finge que vai chutar, mas erra de propósito e recomeça a corrida lá de trás novamente em direção à bola. O menino está ansioso, não aguenta mais a demora da irmã. Na terceira vez ela chuta, bastante fraco, é verdade, avisa para mãe que já jogou, já jogou, e corre em direção ao mar. O menino espera a bola vagarosamente descer a pequena rampa de areia e chegar para seu domínio. Ele a envolve, quica e faz embaixadinhas, demonstra bom controle. Talvez sua mãe o obrigue a brincar com a irmã mais nova. É possível. Algumas mulheres e alguns homens dominam os raios solares em suas peles expostas sobre as areias. Noto que aqui os homens também gostam de tomar banho de sol e há nenhum problema nisto. Apenas que mais para o Extremo Sul deste vasto Brasil considerava eu que essa atividade era mais feminina. Podem ser novos tempos também, porque andei ausente das praias pelos últimos anos, principalmente pela vinda da surpreendente pandemia.

Digo que as pessoas do outro bairro são mais praieiras porque demonstraram boa concentração de interessados pelo desfrutar do dia nas areias, mas é somente na baixadinha daquele pequeno conjunto de ruas. Ruas que serviam para boa prática de um outro esporte: o skate. Vi alguns meninos andarem assim em outras expedições que fiz. Me refiro a esse como o 'outro' esporte, porque o primeiro nessas condições de praia seria o surf. Noto que com o avançar da retirada do verão, as ondas parecem mais propícias aos surfistas, ou ao menos assim eu considero. A praia catarinense começa a apropriar-se melhor do apelido de capital do surf, embora acho que este rótulo no desempate pertença à Garopaba.

Nenhuma nuvem interrompeu meu contato com o sol. Tomei cuidado para não me cansar em demasiado, porque ainda me recupero das maiores fraquezas, do meu naufrágio pessoal. Levei comigo além das chaves do apartamento, no bolso oposto uma garrafa d'água, que desfrutei já no caminho de volta. A caminhada foi muito positiva para o meu bem estar. Passei sim por alguns pescadores, como de costume, mais idosos do que jovens, alguns acenares de cabeça, mas nenhum boa tarde arrancado de minhas cordas vocais. Algumas pessoas realizam também a atividade física, algumas de tênis pela altura maior das areias, eu no patamar mais baixo da suposta rampa que afirmei sobre a trajetória da bola do menino. Eu molhando os pés e retardando meus movimentos quando este me alcançava até altura maior das pernas. Os passos ficam mais vagarosos e tenho de cuidar para a água que levanto com os pés não molhar as chaves, com dispositivo eletrônico, dentro de meu próprio bolso.

Me surpreendeu a temperatura elevada da água, porque nos últimos dias até moletom eu tive de usar pelas noites. Tomaria um banho, sem dúvida alguma. Durante a caminhada, identifico alguns pontos de referência. Os prédios os quais minha mãe afirma que um apartamento deles pertence a um corretor imobiliário que os ajudou nessa mudança de moradia. Antes desses prédios, o topo do morro mais alto, com uma antena de sinal que com certeza não pertence à minha infrutífera operadora, sem sinal na praia. Antes do topo do morro, uma simples arvorezinha, onde quase sempre há algum morador que organiza seus pertences, cadeira de praia, toalha, roupas, à sombra da mesma. Antes disso tudo o hotel maior, que dispõe cadeiras e espreguiçadeiras brancas raramente ocupadas pelos seus cada vez mais escassos hóspedes. Antes disso o restaurante maior que fica encravado entre as dunas, onde não se deve poder mais construir. Antes disso um pequeno centro de eventos para apresentações musicais, alguma prática esportiva, como o vôlei de praia ou o frescobol, que eles gostam muito. E antes disso a guarita de salva-vidas, onde costumo subir e descer pela praia, ficando bem próxima ao nosso prédio esverdeado. 

Deixei que minha mente divagasse por essa caminhada, uma das últimas que farei nesse verão, seja pelo fim cronológico da estação, seja pelo fim de minha estada nessas terras, embora por enquanto. Voltarei em outro momento? Não sei quando nem por quanto tempo. Gostei bastante dessa cidade que eu consideraria uma cidade de brinquedo, nomenclatura que talvez eu melhor desenvolva em outro texto. De brinquedo por suas dimensões reduzidas, por sua organização bem plausível, por suas acomodações até eficientes e aconchegantes. Uma cidade planejada como um brinquedo ou algo muito sério... uma estrutura de maquete escolar ou universitária sobre uma planície de isopores.

Lembrei do que já passamos, do que estamos passando, mesmo longe, e do que ainda iremos passar. Conectei-me a esse fim de verão, a esse fim de tarde antes do meu exercício diário da escrita jornalística - ou algo próximo a isso - com a certeza de que o tempo passa. Se as coisas vão melhorar, é uma grande dúvida. Tive a certeza do respaldo de ter sido uma boa tarde. Torço para que mais gente consiga atingir esse objetivo. Não sei quantas vezes mais irei atingir, por minhas condições clínicas (dramático) ou simplesmente porque a vida nos surpreende em eliminações inesperadas. Quantos irão antes de mim mesmo que meu quadro clínico piore? Sem dúvida muitos, porque não cessam as guerras na Ucrânia, no Afeganistão ou na Síria, ou na Palestina, ou os surtos de Covid-19 que voltam a ameaçar a China, a Coréia do Sul, setores da Europa e jamais abandonou o Brasil, embora a revogação do uso de máscaras.

E é sem máscara (ou com alguma subjetiva?) que desfilo esses passos com no rosto nem um semblante emburrado nem um sorriso forçado, mas uma expressão até satisfatória. Satisfeito pela volta que dei à tarde, por ter cumprido a promessa feita a mim mesmo de atingir até a outra praia de distância, pela superação hoje de meus múltiplos problemas médicos, pela conclusão inconclusa de mais um verão, de estar morando na praia, embora enfrentando essas adversidades surpreendentemente advindas em meu corpo. Chego ao fim da praia e retorno, chego ao fim do verão e quero mais verões, chego ao fim de um bom dia e desejo mais alguns.


13 de março de 2022

Imortalidade

Creio que muitas vezes os escritores são apenas temerosos em perder suas lembranças ou suas histórias e portanto as registram. Mais por orgulho a eles próprios do que pela importância que as histórias possam ter. Ao invés de sepultar memórias junto com seus corpos em túmulos, dedicam ao papel a tentativa de imortalidade que a saúde indica muito menor probabilidade.

10 de março de 2022

Ao invés de reclamar do que falta, valorizar o que ainda se tem.

Repetir mil vezes para ver se funciona.

5 de março de 2022

Crítico de Praia Famosa

A começar que o acesso para essa praia me deixa tremendamente claustrofóbico. Ok, entendo que seu isolamento impossibilite outros acessos, faz parte da preservação ambiental inclusive. Porém a estrada que liga o caminho é composta por carros, carros e mais carros. A mata é cerrada por ambos os lados. São poucas casas desde o trevo de acesso. Notei o abandono de algumas. As demais mantém estilos mais simples até carregarem-se com o esnobismo quanto mais próximas das areias.

Após a hora de condução por essa estrada, na fileira de carros, uma pista de mão dupla, finalmente chega-se ao mar. Antes do mar, melhor recordando, passamos por lojas de biquínis, de vestidos, bijouterias e muitos restaurantes. Lancherias também existem aos montes. Impossível que alguém com opção financeira fique sem o que comer. A mistura de molhos e cheiros me deixa meio zonzo. Não reparem tanto, meu estômago sempre foi fraco. Cachorros quentes, prensados, restaurantes de frutos do mar, bares especializados nas misturas. Em algumas travessas para dentro do mato observo cachorros. Esses também devem ganhar boa recompensa de sobras a cada noite. São realmente muitos restaurantes. Quando certa vez há quase uma década fomos procurar o restaurante de um parente, percebemos que jamais encontraríamos sem a pista do nome. Só tínhamos o nome dele, fato quenem todos, ou mesmo poucos, deveriam saber.

Soube nessa ida descrita agora que eles nem estão mais com o restaurante. Se mudaram e se especializaram em bebidas medicinais. Uma loucura. Loucura é o que posso imaginar para vida noturna desse paraíso estranho. Paraíso a gosto de muitos, visto a lotação. Mas que, às primeiras impressões, não me apetece. Mas enquanto escrevo percebo minha curiosidade com ambiente tão diferenciado. Experiência antropológica é o mínimo que posso imaginar nesse cenário. Percebo um clima esnobe. Como se as classes mais altas quisessem não só o contato, mas o extenso domínio sobre a natureza. Como se as tatuagens tribais ganhassem novo sentido nesse espaço. Como se as camionetes de ostentação fossem pró-natureza. Como se não fossem necessárias as tantas placas de aviso para recolhimento de lixo. O ser humano quando se ajunta costuma aprontar.

Noto os muitos carros parados na incessante disputa por espaços. Cada vaga pode ser comemorada como se fosse a para Copa Libertadores. As pessoas param para observar o mar, para observar umas às outras, como costumam fazer nas praias. Alguma disputa é sonora por música. Eles escolhem o ritmo, você não, obviamente. Entre a encosta dos morros e a areia não há tamanha distribuição de espaço. É uma praia disputada como um ingresso vip, muito celebrado com selfies em stories. É o objetivo de muita gente.

Chegar até lá exige um bom tempo de deslocamento de carro. Quem quiser algo mais alternativo pode tentar a sorte de uma carona no caminho. Para encarar a trilha de subidas e descidas a pé ou de bicicleta, é preciso um esforço épico e uma pré-disposição atlética.

A ambientação sugere a conquista de lugares rústicos e alternativos. São decorações que a muitos atrai. A mim mais afugenta. Mas é possível que eu encare, embora me sinta ameaçado pela proximidade das casas de alimentação e entretenimento. Tudo isso me faz pensar em um ambiente tumultuado e badalado demais para uma calma refeição. À noite mesmo, quando o objetivo das pessoas for exclusivamente o entretenimento, talvez tenha seu valor.

Além das tantas casas nessas ousadas, ou tentativas de ousar simples, casas de espetáculos, é preciso frisar a quantidade de placas para pousadas e hostéis. Como não há disponibilidade para construção de prédios (mas bom), o predomínio são dessas modalidades de hospedagem. Nada de hotéis. Apenas pousadas e hostéis. Hostéis ou hostels? Que me perdoem a grafia correta. Neles também está a presença forte do capitalismo na disputa de fachadas e decorações. Me parece um ponto importante. É para transparecer uma conexão sagrada com a natureza, mas são lugares onde só os mais abastados com camionetes costumam chegar, onde o preço da comida não é convidativo e onde os estabelecimentos seguem a mais pura cartilha do capital, na lei da concorrência por seus clientes. Não parece muito com alguma edição do programa Largados e Pelados, tirando o predomínio da natureza em volta.

Pois no predomínio de pessoas querendo se conectar à natureza, observa-se a tentativa de variação em relação à espécie humana urbana, mas bem notamos que quase todos ali são urbanos na amplitude do ano. Em uma rápida pesquisa, a estimativa é que a população praiana dessa localidade não ultrapasse 4 mil pessoas durante o percorrer do calendário. Sendo assim, são realmente poucos os privilegiados que podem se considerar moradores fixos. Imagino a desolação do espaço no inverno, quando aí sim pode adquirir um tom mais cabível com a proposta.

Esse ambiente de boas vibrações criado durante a estação do verão, quando o dinheiro circula, é facilitado para pessoas em que as dificuldades latentes do país ainda não fazem cócegas, o que também explica um percentual de votação em certos políticos. Em resumo, é muito fácil buscar saciar a fome espiritual, quanso a barriga está tranquila. Quando alterações trabalhistas não lhes competem, quando os atrasos sem precedentes no país chegaram e não lhes aborrecem a vista marítima e o digno período de férias.

Pode ser que tudo isso se some à minha descrente apreciação, crescente depreciação e curiosidade. Isto mesmo. Conforme critiquei também me vi curioso por explorar essa fauna tão diferenciada de minhas ambientações costumeiras. Seria eu um infiltrado, um espião, um anotador a lápis de minhas voláteis ideias. Na pior experiência possível, caberia ao menos uma melhor exploração antropológica dessa situação toda. Assim sendo, posso confirmar ou depor meus pontos, ratificar ou retificar. Façam suas futuras apostas.

3 de março de 2022

Misturas

As cores da natureza

O cinza das cidades

Se misturam 

É a realidade 


As cores que já existem

As cores que o homem cria

Animais confusos 

Cruzam muros

Todos os dias


Pássaros improvisam ninhos 

E caminhos por onde voar

Voam para fugir da chuva

Nos avisam melhor que o celular


Bichos que cruzam a estrada

Testam a sorte sempre ao cruzar

Cruzam e se reproduzem

E induzem outros ao lado de lá 


Bichos humanos procuram motivos

E abrigos para descansar

Vivem a violência das ruas

Ratos, baratas e seus semelhantes

Adivinhe qual vai te atacar 


Bichos humanos procuram sentido

E motivos para levantar

A fome de comida já não basta 

Mas não passa em outro a esperar




Movendo desertos

Estar deitado contigo te vendo revirar os olhos. Por tudo ou por nada. Sentir o arrepio da pele de suas coxas. Sua vagina irrigar-se. Constatar como um estudioso elaborando um relatório. Chegar ao auge da evolução humana em um movimento ao mesmo tempo neandertal.

Gosto muito de passar o tempo deitado preguiçosamente. Contigo então é exemplo de certeza de não ver o tempo passar. Colecionamos assunto em uma coleção sem esforços. Passaria dias inteiros assim não fossem as necessidades fisiológicas e financeiras. Não fosse minha deficiência constatada em vitamina b12 e aproveitaríamos mais. Não fosse linha urgente em apontar esses problemas desnecessários e seria um texto mais bonito. Seriam só aspectos positivos, mas a vida jamais será assim. Idealizações não são a vida e a vida passa longe das idealizações.

Por isso me levanto longe de ti e sigo tarefas as quais não queria me decupar o tempo. Mas são a única alternativa para seguir, com a mente distante entre o que é lembrança e o que é expectativa. E o que é você, passado, na mente o presente e o futuro... futuro do presente ou do pretérito. Meu mais que perfeito que mais nada conjuga nos verbos, mais que perfeito que só serve em nossas pobres e pretensiosas analogias.

Me estendi demais quando só queria estar estendido ao teu lado. Mirando nossas pernas, sua ampla vantagem. Contente apenas pelo simples verbo de ligação estar. Estar contigo, estar em finito mundo e momento que nos englobam infinito. Esquecer qualquer outro resquício de tempo. Torneira fechada para qualquer outra substância mundana que não seja do nosso mundo. É como uma bolha, uma redoma. Um isolamento dos problemas e não o problema que geralmente é um isolamento. É estar contigo, seus cabelos a enredarem-se e desfiarem-se com graciosidade. É a boca em suspenso à espera do próximo gesto. É o segundo que congela como uma fotografia que logo em seguida já será lembrança. É o sorriso de canto imperceptível à distância. É a distância que inexiste quando estamos assim juntos. Sintonizados em mente e corpo. E às vezes mais corpo, às vezes mais mente.

Nós. De pernas, braços e pronome. Nós, como o ato de atar ou nós primeira pessoal do plural. Us arrancados em inglês ou Nosotros na extensão prodigiosa do espanhol. Queria estar estendido ao teu lado, atravessado desertos de sóis escaldantes para terminar assim e ter enxergado no congelamento de um segundo que tudo isso, que toda travessia valeu a pena.