Nos protegíamos minha família e eu pela casa dos avós de um antigo amigo. A casa era simplesmente a maior da praia. Ocupava o centro de uma quadra, mas o seu tamanho era de uma quadra inteira para trás. As casas costumam ter os fundos voltados para os fundos de outra. Esta não. Havia pátio na frente e pátio atrás. Enorme. A pintura dos muros era salmão e as grades altas bordô.
Começamos apenas minha vó, minha mãe, meu pai e minha irmã. Procurávamos armas com as quais nos proteger. De quarto em quarto, subindo e descendo escadas nessa missão. Havia longa sala, como um saguão na parte de baixo. Este ligava a cozinha. Mas também quartos no interior. E obviamente os quartos - e escritório - e salão de jogos no superior.
Uma família relativamente pequena a minha para aquele palacete. Mas onde estariam os donos originais? Era de se pensar. Só que não havia tempo. Os zumbis iniciaram o cerco, aglutinando-se nas grades, na parte aberta do extenso muro salmão, que se estendia sobretudo como muralha pelas laterais da casa. Estávamos armados, mas era questão de tempo para eles transporem as barreiras e, movediços e escorregadios do jeito que estavam, nos alcançarem pelo lado de dentro.
Talvez a melhor recomendação fosse não criar mais ruídos, mas eu gritava por meus familiares. Precisaríamos de um plano de fuga conjunto. Ni una a menos. O palacete seria o sonho de vivência para outros tempos, mas não naquela noite cerrada, demorada, arrastada como se não soubéssemos se haveria dia após esta madrugada.
O cordão de zumbis invasores mostrou o caminho por entre o ornamento trabalhado em determinado espaço da grade. Eles haviam entrado. A maioria não corria, mas alguns eram capazes. Esses diminuíram a margem de nossas reações. De pronto nossas armas pareciam inúteis àquela quantidade crescente exponencialmente de invasores. O rolo de massa poderia acertar o primeiro sim. A potente vara de pesca (?) poderia decapitar outro? Claro. Mas logo para enfrentar três e a esmagadora arma de deitar a massa de pão parecia inútil. A não ser que tivéssemos sobrenaturais habilidades de kung fu, mas não era o caso.
Conseguimos não se sabe como conduzir a vó para o carro, e a família acionou o estranho furgão que daria orgulho ao Fred, não só ao Flintstone que nunca havia visto uma engenhoca tecnológica daquelas, mas principalmente ao Fred da turma do Scooby Doo. Sem direito a um cachorro falante ou maconha que nos ajudasse a enxergar saída daquele pesadelo, procuramos acionar o controle elétrico da garagem. Por obra positiva do destino a energia elétrica ainda não havia sido cortada no bairro, porque nenhum daqueles mentecaptos havia tropeçado nos cabos de energia ou tentado subir num poste, admirados pelas luzes. As luzes os chamavam atenção.
O controle da garagem abriu vagarosamente o portão da garagem. Dos fundos, é importante dizer. A parte da rua da frente estava ainda mais lotada, abarrotada de zumbis como se fosse a recepção da torcida xavante. Então saímos por esse vagaroso, relutante e teimoso portão dos fundos, aquele que respondeu ao chamado eletrônico com uma inclinação lenta e preguiçosa. Ele ia aos poucos, travava e seguia a angulação rumo aos 90 graus. A cada travadinha que ameaçava não passar a altura suficiente àquele furgão de cachorro-quente, nosso coração também parava junto. Eis que meu pai perdeu a paciência e arremessou o furgãozinho com tudo naquele portão. Foi uma má escolha, porque arrancou, ou melhor contando, abriu um certo rombo no teto do veículo. O mais sensato no momento era pensar que saímos daquele inferno. Saímos munidos de algumas armas de mão para os futuros combates corpo a corpo e com duas pistolas as quais tínhamos dificuldade de decidir quem manejaria.
Minha irmã a bem da verdade era a especialista pelo seu conhecimento advindo de jogos de tiro. Eu muito pouco permanecia com um facão que seria mais útil para acertar um vivo do que um daqueles mortos. Junto à nossa família já se juntavam outras três pessoas. Um homem que parecia uma reprodução clássica de um guerrilheiro dos Panteras Negras. Uma mulher de idade semelhante e um terceiro esquisito que em algo me lembrava o don Ramón (seu Madruga) ou a outro mexicano de bigodes proeminentes e rosto sugado pelo passar dos anos e pelos absurdos sustos que convivíamos nessa epidemia zumbi.
Chegávamos às proximidades de um porto quando minha avó, temendo a aproximação de tantas daquelas figuras, numa reação súbita de um plano suicida, declarou que já estava muito velha e só atrasaria jornadas. Conseguiu com o que lhe restava de força nas mãos, que com destreza construíram retalhos, bordados, roupinhas, pastéis, massas, arroz, carreteiros, assados, os mais diversos almoços, com força conseguiu abrir a porta de correr daquele maldito furgão e pulou para um tombo violento para qualquer idade, tanto mais a dela. Mas a dor de impactar-se com o asfalto ou com as pedras não demorou, porque, como ela estava certa, os zumbis logo a atacaram para devorar em minutos, talvez mesmo em segundos. Cena brutal que não sei porque cargas d'água tentei direcionar meu olhar para os vidros retrovisores do furgão. Eles aproveitaram a rara iluminação dos postes dali para mostrar o aglomerado de criaturas por sobre o que há instantes era minha avó.
Chocado com a cena, precisávamos ainda ser resilientes. Logo nem todos precisariam demonstrar ganas de coragem porque nosso furgão tombaria em uma rua de calçamento bastante acidentado. Ele conseguiria se manter de pé, mas aí o motor já não funcionava. O pior é que, independente do motor, a bateria estava engasgando, indo para o saco e teríamos nada para substituí-lo. Abandonamos o furgãozinho na rua. Mas mal os metidos a mecânico haviam descido de plantão (o mexicano e o pantera negra) e o exército de zumbis também dava as caras como plantonista contra nossa missão de sobrevivência.
Meu pai ficou para trás naquele episódio, isto eu consegui visualizar. E talvez fosse melhor que não vi o paradeiro de minha mãe. Embora assim ainda me reste alguma esperança de que esteja viva. Sobravam comigo o grupo de forasteiros, os incapazes de consertar um furgão de bateria desgastada em tempo recorde. Também em nossa corrida inicial para fugir daquelas coisas, minha irmã e o pantera negra em posse das armas, não valeria gastar um tiro que fosse na direção daquelas criaturas. A necessidade de acertar na cabeça com a luz oscilante dos falhados postes dariam grande chance de desperdício. Além do mais, a velha descoberta. Mandar bala dali só serviria para atrair mais daquelas errantes criaturas. O que precisávamos de fato era de um novo carro para tomar distância em busca de uma estrada segura, algo que nem aquela praia nem o porto podiam oferecer.