Seus olhos eram bem verdes. Era a primeira característica, pois assim eram realmente marcantes. Inauguravam sua personalidade como a fachada de uma mente, se não meticulosa, sem dúvida inteligente escondida. Senti hoje vontade de descrevê-la após assistir a uma comédia boba, agora nem lembro qual foi o fio condutor, mas dela me lembro dos tempos de faculdade. Fomos colegas em poucas disciplinas e ela era fenomenal, bela. Assim rapidamente a descreveríamos e atrairia a atenção de quem a visse. Foi isso que pensei logo quando a via.
Tinha essa personalidade que parecia, sim, forte, tomadora de decisões, líder por instinto. Assim rápido eu a notava, como era impossível não notar. Para além de suas características de liderança, a beleza física. Pontuado que ela se fazia visível de uma maneira ou de outra. Quando pareceu tomar iniciativa de termos contato, obviamente eu não sabia como reagir. E por inexperiência perdi as chances, como fichas telefônicas mal depositadas ou moedas em uma máquina de refrigerantes sem retorno. Todos nossos diálogos foram migalhas, fora grãos de areia e em seguida o vasto oceano devorador, o que limpa e absorve na prática, mas na memória ainda me são momentos presentes.
Quando torceu por nós da arquibancada e eu ouvia meu nome, ou ao menos o nome que estava em meu uniforme, pois as vestimentas eram emprestadas de outro time. Eu gostava muito de sua voz também, era forte como todo o conjunto. Era estridente, marcante, ímpar, singular, perceptível ser dela. No alvoroço das tribunas, eu a ouvia, mesmo concentrado ao máximo no jogo, minhas marcações eram impecáveis, meu adversário direto, na individual, não jogava. Eu também pouco jogava, praticamente reduzindo o número de jogadores de cada equipe. Eu a ouvia.
Nasciam naqueles momentos oportunidades de conversarmos entre os jogos, mas repito que tínhamos apenas migalhas de conversas, mal poderiam ser batizadas de diálogos. E, caso haja esse batismo, o próprio diálogo nem chegaria a ir às primeiras missas em busca da primeira comunhão. Acabamos eliminados por pouco da competição. Na verdade, acho até que foi por muito, mas estivemos muito perto de ganhar o jogo da despedida e bobeamos. Eu com ela bobeei também. A gente percebe a enxurrada de chances depois que é passado o tempo. Antes nunca estava bom, propício, favorável, mas depois é impossível. Um amigo meu utilizava a metáfora de janelas. Como um salto que precisa ser efetivado, saltar de uma estação de trem em movimento, saltar de paraquedas para as correntes de vento o conduzirem para a melhor aterrissagem, a mais segura, ou janela de transferências nos mercados de futebol, com prazos para inscrições. Acontece que perdia a janela, seja lá qual delas fosse o caso em questão. Não saltei. Não me arrisquei a ela, mesmo sabendo que nosso futuro seria de pouca contribuição, gostaria de termos trocados açúcares e fluídos, flor e beija-flor, acasalamento.
Uma vez marcaram festa de nossas turmas perto de minha casa, exatamente a ocasião propícia em que necessitaria de ser arrojado, mas acabei não indo porque meus efetivos melhores amigos não foram, ou por serem de outras cidades ou não estarem afim de compactuar com os demais presentes. Peixe fora d'água, borboletas no aquário. E no estômago. Eu fora. Não apostou na rodada do pôquer e perdeu igual, perdeu de ganhar. Jovens, bebida, álcool, medo de ferimentos, vencer os ferimentos, arriscar, tenes que saltar, aquela canción de No Te Va Gustar, grupo de rock e reggae uruguaio. Não gosto de recordar que não saltei, mas por vezes recordo as vezes em que não saltei.
O real arrependimento do que não fiz, do que não fizemos. Mas somos cruéis conosco. Deveríamos enumerar as vezes em que ficamos em casa, em que não arriscamos e posteriormente descobrimos que seria inútil, que não valeria a pena, que seria apenas desgaste, entre físico e emocional. Mas até onde me consta, não foi o caso. Eu poderia ter tentado. Sedução juvenil, ela somente um pouco mais velha, talvez interessada. Lembrar das vezes em que encontrei aqueles olhos verdes e eles algo me diziam, embora muito pouco. Não saberia apontar até onde ou até o quê eles poderiam me dizer. Apenas sei que a comunicação visual era propositiva. E nada mais. Ocorria nada além disso.
A festa perto de minha casa talvez fosse o maior chamado dessa ocasião, mas eu ainda bem jovem e sem querer me arriscar. Houve tempo para isso depois? Houve, mas nenhum acontecimento tão propício e conciliador dessas duas separadas almas. Houve outra festa em local que nunca me dei bem. O fracasso prefere a superstição do que assumir a culpa. Ela com brilhantes chifrinhos de diaba. Parte da remota fantasia, acréscimo erótico à envolvente figura. Não era festejo em que necessitava-se a incorporação de personagens por meio das vestimentas ou acessórios, mas ela desfilava sua beleza realçada com os inesquecíveis chifrinhos de diabo. Eu seguia aquelas luzes vermelhas dentre todas as outras luzes coloridas, uma ou outra garota também conduzindo os acessórios diabólicos na cabeça. Mas ela, bem mais baixa do que eu, meus olhos eram conduzidos por aqueles brilhosos córnos rubros. Do tapete mais baixo da humildade e humilhação, desse piso solitário em degraus frios, não me importaria que tivéssemos uns momentos juntos e que ela passasse definitivamente para mim os requisitados chifrinhos, metaforicamente ou de verdade, tanto faz.
Muitas vezes o filtro do passado é um ornamento para falar sobre qualquer coisa. É mais fácil de analisar o acontecimento depois que passou. Mas enfim, eu perseguia aquele par de chifres por entre as multidões, desviando, me reconciliando ao encontro dos amigos presentes na festa, mas sem despistar de meu alvo preferido. Relembro a dificuldade de ir ao banheiro naquela ocasião, já que estava completamente lotado e tenho complicações para urinar sob tanta bagatela de pressão. Ela passava próxima do acesso ao banheiro e que também era o portão de entrada-saída, me parece que dessa vez em direção à saída, mas não definitiva. Antes que eu a pudesse alcançar, eufórico e totalmente ébrio, senti o súbito transpor dele: o vômito. Um grande amigo me acompanhava poucos passos atrás daquela missão e ajudou-me, explicamos rapidamente ao segurança e ele deixou que nos dirigíssemos ao estacionamento, onde pude despejar um pouco do vomitar sobre a grama natural. Me refiro à grama natural porque havia quadras de futebol sete logo ao lado e nelas os gramados eram artificiais. Recuperado do péssimo momento, sem ideia onde estava minha dama, passei a filosofar sobre a vida e a arremessar pequenas pedras de brita contra o gramado sintético, contente pela traquinagem altamente desnecessária e que daria trabalhos desconcertantes para alguém, maldito vadio que eu estava. Meu amigo ameaçou-me para parar com isso, mas acabou cedendo ao humorístico motivo e também lançou lá suas pedrinhas contra o futuro palco dos atletas amadores que pagam para jogar, ao contrário dos que recebem.
Também no estacionamento estava hoje importante radialista da cidade e região e gritei seu nome como se fôssemos íntimos, abanei com entusiasmo e ele, de leve, pouco à vontade com a inusitada situação, abanou-me de volta e logo em seguida saiu dali acompanhado de dois ou três amigos. Minha visão já estava duplicada ou até triplicada pelo efeito alcoólico. Depois daquela vergonha, lembro de retomarmos o rumo da festa, com aprovação do segurança da entrada que já não era o mesmo, mas nos autorizou mediante estarmos naquele ambiente fechado, vestidos de acordo com a demanda e naquele horário. Entramos e ainda a pude ver acompanhada de uma amiga e mais dois rapazes, os chifrinhos já com bateria, ou seja lá como funcionam, fraca, indicando que a noite e esse caso de não-acontecimento se aproximava do desfecho em inevitável findar.
Anos depois, no final de 2019, todos nós já formados e sei lá o que exercemos, ela de volta para sua cidadezinha ou ao encontro de uma cidade grande, nunca abrindo relacionamento nas redes sociais em que nem a sigo (talvez até possuindo alguns namorados para coleção neste período, porque, como dito, não a sigo diretamente - só quando usa acessórios diabólicos em festas ébrias), eis que puxei assunto sobre ela com um colega direto dela, visto que fui estudante ao lado dela somente em raras e escassas cadeiras. Ele elogiou meu nítido gosto e afirmou algo que me surpreendeu, mesmo bêbado que novamente eu estava: ninguém havia tentado ela, ou ao menos conseguido. Tranquilamente, sem saber da relevância daquele assunto para mim, ele disparou: "nem sei qual a dela". E senti novamente todo aquele turbilhão de oportunidades, insensatez, inexperiência, inoportunidade e tantas outras palavras de prefixo in. Eu out. Eu fora.
Vez por outra talvez eu ainda relembre aqueles velhos olhos verdes e toda sua escultura facial...