25 de setembro de 2020

Velhos Olhos Verdes

Seus olhos eram bem verdes. Era a primeira característica, pois assim eram realmente marcantes. Inauguravam sua personalidade como a fachada de uma mente, se não meticulosa, sem dúvida inteligente escondida. Senti hoje vontade de descrevê-la após assistir a uma comédia boba, agora nem lembro qual foi o fio condutor, mas dela me lembro dos tempos de faculdade. Fomos colegas em poucas disciplinas e ela era fenomenal, bela. Assim rapidamente a descreveríamos e atrairia a atenção de quem a visse. Foi isso que pensei logo quando a via.

Tinha essa personalidade que parecia, sim, forte, tomadora de decisões, líder por instinto. Assim rápido eu a notava, como era impossível não notar. Para além de suas características de liderança, a beleza física. Pontuado que ela se fazia visível de uma maneira ou de outra. Quando pareceu tomar iniciativa de termos contato, obviamente eu não sabia como reagir. E por inexperiência perdi as chances, como fichas telefônicas mal depositadas ou moedas em uma máquina de refrigerantes sem retorno. Todos nossos diálogos foram migalhas, fora grãos de areia e em seguida o vasto oceano devorador, o que limpa e absorve na prática, mas na memória ainda me são momentos presentes.

Quando torceu por nós da arquibancada e eu ouvia meu nome, ou ao menos o nome que estava em meu uniforme, pois as vestimentas eram emprestadas de outro time. Eu gostava muito de sua voz também, era forte como todo o conjunto. Era estridente, marcante, ímpar, singular, perceptível ser dela. No alvoroço das tribunas, eu a ouvia, mesmo concentrado ao máximo no jogo, minhas marcações eram impecáveis, meu adversário direto, na individual, não jogava. Eu também pouco jogava, praticamente reduzindo o número de jogadores de cada equipe. Eu a ouvia.

Nasciam naqueles momentos oportunidades de conversarmos entre os jogos, mas repito que tínhamos apenas migalhas de conversas, mal poderiam ser batizadas de diálogos. E, caso haja esse batismo, o próprio diálogo nem chegaria a ir às primeiras missas em busca da primeira comunhão. Acabamos eliminados por pouco da competição. Na verdade, acho até que foi por muito, mas estivemos muito perto de ganhar o jogo da despedida e bobeamos. Eu com ela bobeei também. A gente percebe a enxurrada de chances depois que é passado o tempo. Antes nunca estava bom, propício, favorável, mas depois é impossível. Um amigo meu utilizava a metáfora de janelas. Como um salto que precisa ser efetivado, saltar de uma estação de trem em movimento, saltar de paraquedas para as correntes de vento o conduzirem para a melhor aterrissagem, a mais segura, ou janela de transferências nos mercados de futebol, com prazos para inscrições. Acontece que perdia a janela, seja lá qual delas fosse o caso em questão. Não saltei. Não me arrisquei a ela, mesmo sabendo que nosso futuro seria de pouca contribuição, gostaria de termos trocados açúcares e fluídos, flor e beija-flor, acasalamento.

Uma vez marcaram festa de nossas turmas perto de minha casa, exatamente a ocasião propícia em que necessitaria de ser arrojado, mas acabei não indo porque meus efetivos melhores amigos não foram, ou por serem de outras cidades ou não estarem afim de compactuar com os demais presentes. Peixe fora d'água, borboletas no aquário. E no estômago. Eu fora. Não apostou na rodada do pôquer e perdeu igual, perdeu de ganhar. Jovens, bebida, álcool, medo de ferimentos, vencer os ferimentos, arriscar, tenes que saltar, aquela canción de No Te Va Gustar, grupo de rock e reggae uruguaio. Não gosto de recordar que não saltei, mas por vezes recordo as vezes em que não saltei.

O real arrependimento do que não fiz, do que não fizemos. Mas somos cruéis conosco. Deveríamos enumerar as vezes em que ficamos em casa, em que não arriscamos e posteriormente descobrimos que seria inútil, que não valeria a pena, que seria apenas desgaste, entre físico e emocional. Mas até onde me consta, não foi o caso. Eu poderia ter tentado. Sedução juvenil, ela somente um pouco mais velha, talvez interessada. Lembrar das vezes em que encontrei aqueles olhos verdes e eles algo me diziam, embora muito pouco. Não saberia apontar até onde ou até o quê eles poderiam me dizer. Apenas sei que a comunicação visual era propositiva. E nada mais. Ocorria nada além disso.

A festa perto de minha casa talvez fosse o maior chamado dessa ocasião, mas eu ainda bem jovem e sem querer me arriscar. Houve tempo para isso depois? Houve, mas nenhum acontecimento tão propício e conciliador dessas duas separadas almas. Houve outra festa em local que nunca me dei bem. O fracasso prefere a superstição do que assumir a culpa. Ela com brilhantes chifrinhos de diaba. Parte da remota fantasia, acréscimo erótico à envolvente figura. Não era festejo em que necessitava-se a incorporação de personagens por meio das vestimentas ou acessórios, mas ela desfilava sua beleza realçada com os inesquecíveis chifrinhos de diabo. Eu seguia aquelas luzes vermelhas dentre todas as outras luzes coloridas, uma ou outra garota também conduzindo os acessórios diabólicos na cabeça. Mas ela, bem mais baixa do que eu, meus olhos eram conduzidos por aqueles brilhosos córnos rubros. Do tapete mais baixo da humildade e humilhação, desse piso solitário em degraus frios, não me importaria que tivéssemos uns momentos juntos e que ela passasse definitivamente para mim os requisitados chifrinhos, metaforicamente ou de verdade, tanto faz.

Muitas vezes o filtro do passado é um ornamento para falar sobre qualquer coisa. É mais fácil de analisar o acontecimento depois que passou. Mas enfim, eu perseguia aquele par de chifres por entre as multidões, desviando, me reconciliando ao encontro dos amigos presentes na festa, mas sem despistar de meu alvo preferido. Relembro a dificuldade de ir ao banheiro naquela ocasião, já que estava completamente lotado e tenho complicações para urinar sob tanta bagatela de pressão. Ela passava próxima do acesso ao banheiro e que também era o portão de entrada-saída, me parece que dessa vez em direção à saída, mas não definitiva. Antes que eu a pudesse alcançar, eufórico e totalmente ébrio, senti o súbito transpor dele: o vômito. Um grande amigo me acompanhava poucos passos atrás daquela missão e ajudou-me, explicamos rapidamente ao segurança e ele deixou que nos dirigíssemos ao estacionamento, onde pude despejar um pouco do vomitar sobre a grama natural. Me refiro à grama natural porque havia quadras de futebol sete logo ao lado e nelas os gramados eram artificiais. Recuperado do péssimo momento, sem ideia onde estava minha dama, passei a filosofar sobre a vida e a arremessar pequenas pedras de brita contra o gramado sintético, contente pela traquinagem altamente desnecessária e que daria trabalhos desconcertantes para alguém, maldito vadio que eu estava. Meu amigo ameaçou-me para parar com isso, mas acabou cedendo ao humorístico motivo e também lançou lá suas pedrinhas contra o futuro palco dos atletas amadores que pagam para jogar, ao contrário dos que recebem.

Também no estacionamento estava hoje importante radialista da cidade e região e gritei seu nome como se fôssemos íntimos, abanei com entusiasmo e ele, de leve, pouco à vontade com a inusitada situação, abanou-me de volta e logo em seguida saiu dali acompanhado de dois ou três amigos. Minha visão já estava duplicada ou até triplicada pelo efeito alcoólico. Depois daquela vergonha, lembro de retomarmos o rumo da festa, com aprovação do segurança da entrada que já não era o mesmo, mas nos autorizou mediante estarmos naquele ambiente fechado, vestidos de acordo com a demanda e naquele horário. Entramos e ainda a pude ver acompanhada de uma amiga e mais dois rapazes, os chifrinhos já com bateria, ou seja lá como funcionam, fraca, indicando que a noite e esse caso de não-acontecimento se aproximava do desfecho em inevitável findar.

Anos depois, no final de 2019, todos nós já formados e sei lá o que exercemos, ela de volta para sua cidadezinha ou ao encontro de uma cidade grande, nunca abrindo relacionamento nas redes sociais em que nem a sigo (talvez até possuindo alguns namorados para coleção neste período, porque, como dito, não a sigo diretamente - só quando usa acessórios diabólicos em festas ébrias), eis que puxei assunto sobre ela com um colega direto dela, visto que fui estudante ao lado dela somente em raras e escassas cadeiras. Ele elogiou meu nítido gosto e afirmou algo que me surpreendeu, mesmo bêbado que novamente eu estava: ninguém havia tentado ela, ou ao menos conseguido. Tranquilamente, sem saber da relevância daquele assunto para mim, ele disparou: "nem sei qual a dela". E senti novamente todo aquele turbilhão de oportunidades, insensatez, inexperiência, inoportunidade e tantas outras palavras de prefixo in. Eu out. Eu fora.

Vez por outra talvez eu ainda relembre aqueles velhos olhos verdes e toda sua escultura facial...

21 de setembro de 2020

Visita familiar (ao passado)

Os sonhos matinais são aqueles mais fáceis de ser evocados à memória, tudo está fresco no vasto campo das ideias e daí alimentamos a prosa no dia seguinte. É o caso aqui mencionado. Sonhei que estava saindo da frente de nossa casa, na verdade, de nossa casa que está sendo exatamente vendida nesta semana, então o sonhar necessitava de um update, mas são detalhes. Eu saía pela porta da frente, em visita anunciada pelo chamado de uma buzina. E do carro saía a mãe de um antigo colega de ensino fundamental.

Era tudo muito estranho porque, ao volante, estava seu ex-marido, eles divorciados. Mas ela desceu efusivamente do banco de trás e veio a meu encontro me parabenizar por algo concretizado, agora sem eu saber se uma formatura, nova oportunidade de emprego ou o que seria. Ademais, no banco imediatamente ao lado do motorista estava um dos filhos do casal, no caso, irmão de meu colega de ensino fundamental. Minha visão turva para dentro dos limítrofes delimitados pelo insufilm do carro me fazia identificar a dupla, o pai e filho nos bancos dianteiros. Não desceram durante a ligeira visita. Veloz, mas emocionada por parte da senhora, que continuava gordinha e aparentemente nova como era na época em que fomos colegas, eu e aquele justamente ausente da visita, mas ponto comum para que eu conhecesse aquela família estacionada ao meio fim imediato à nossa garagem.

A dona veio em prantos, quase vertendo as lágrimas e abraçou-me em tamanho envolvimento de braços e corpo. Fiquei quase constrangido, como se espera que eu reaja diante essa situação. Observava sua extravagância em lidar com o que estava acontecendo enquanto os demais sorriam amarelados de dentro do veículo. Lembrei de meu ex-colega do fundamental. Ele era o mais gordinho entre nós todos, caso que chamava a atenção naquele começo de novo século e milênio, a obesidade infantil só aumentou de lá para cá, mas ainda era raridade na época. Ele, ao longo do desenvolvimento daqueles fecundos anos, permanecia na condição do mais gordinho da classe e porventura sofreria bullying em relação a isso. Acredito até que sofreu pouco, pois era camarada da maioria, tinha esse determinado prestígio e uma boa concentração de força física para se defender de ofensas. Lembro uma vez que empurrou e minha canela sangrou ao chocar-me com um degrau, uma parelha de altura em tijolos que cercavam a caixa de areia da pré-escola. Só para ficar em exemplo.

Ele, ao mesmo tempo, naquele ano de pré-escola que cursei, foi o primeiro a se oferecer a visitar minha casa. Eu nem sabia como lidava com isso, porque não estava acostumado ao recebimento de visitas dessa forma. E, pelo recordar da sonhadora e inesperada visita do restante de sua família, ainda não evoluí o suficiente nesse quesito. Nesse quesito esquisito. Mas aceitamos essa ida combinada às pressas após um dia, uma tarde normal de aula pré-escolar. Lembro que esparramamos meu máximo de brinquedos pelo quarto e deu uma senhora trabalheira juntá-los ao término da visita. Isso eu recordo. Eu não era de demasiados recursos, nada eletrônico ou muito extravagante, eram brinquedos de camelódromo, entre dinossauros e animais de fazenda em plástico, algumas pecinhas para construir humildes cidades, não maiores que Turuçu ou Canguçu. E um baralho de cartas que ainda temos guardada aquela caixa que rachou a fronte plastificada, no material transparente que antecede o manusear das cartas ali depositadas.

Lembro disso tudo esparramado sobre meu tapete e o trabalho que dá receber pessoas, limpar tudo ali depois. Hoje em dia recorreríamos a essa sensação ao lavar a louça de jantares, ou mesmo o recolhimento dos reservatórios de bebida alcoólica vazios, além dos possíveis estragos vindouros, como louças, principalmente copos ou taças despedaçados por descuidadas ações ébrias. Faz parte.

Do menino ausente na visita familiar inesperada em sonho, hoje afirmo que está por formatura de engenheiro civil e tem uma das namoradas mais belas entre nossos amigos de alguma forma próximos. Um dos últimos encontros com ele foi quando voltava a pé para casa pela rua onde hoje moro, ele que mora por ali em prédio, na descida para avenida Juscelino Kubitschek. Trocamos uma ideia sobre a ida que teve por um período passando pelo leste europeu, o que achei bem diferente das cordiais visitas que pessoas com recursos financeiros fazem pelo lado ocidental da Europa. Recordo fotos dele pela Bulgária por exemplo. E não deixamos de nos ater a condição socioeconômica de nosso desestruturado município e prontamente ele recordou a vez em que acabou assaltado exatamente no local, na calçada em que nos postávamos a conversar sobre. Estremeci ligeiramente, chequei meus humildes pertences em dinheiro para no máximo duas refeições, como segurança, porque geralmente gastaria com nenhuma àquele horário da tarde, e também meu celular, na época ainda sem estar com a tela trincada, enfim. Conversamos em resolutas e desemaranhadas lembranças e seguimos nossos rumos, que eram opostos, o que nos impedia de prosseguir a conversação. Se bem associo, justamente ele mantinha hábitos de seguidas idas à academia, para manter a forma física que ele havia combatido, agora distante da obesidade que lhe caracterizava nos primeiros anos de vida. Fico feliz por ele.

Creio nele um exemplo de superação desses paradigmas, porque, nunca indaguei-o de frente, mas imagino que somente ele possa responder sobre como se sentia, naqueles preconceitos ora mais abertos, ora velados e sobretudo psicológicos que volveavam por sua mente. Hoje ele supera isso no que demonstra fisicamente e com aparente melhor qualidade de vida e alimentação. Creio que cada um deve cuidar de seu corpo da forma que lhe convém, mas fiquei matutado com essa história ao encerramento de matutino sonho. Abracei somente sua mãe, sorri e acenei para os rapazes, seu pai e seu irmão, no carro. Fiquei agradecido com tamanha lembrança a que recorreram à visita neste corriqueiro mundo, então válida a sensação de importância para encerrar aquele momento dormente e iniciar o dia. Boa semana a quem está lendo, lhe desejo, desde o fundo do peito até a época em que estão a colher essas rabiscadas linhas. Até a próxima.

20 de setembro de 2020

Pelos becos

NOS REFLEXOS das janelas dos ônibus EU ME ENXERGO e enxergo os outros

NOS COMPLEXOS casos imaginados O NEXO em anexos guardados

PLANOS ÉTICOS
diante de demônios nem sempre funcionam nem sempre funcionam PELOS BECOS de onde saem ônibus moram moradores que não têm garagens nem para si mesmos

14 de setembro de 2020

Esquemas

Estava solitário bebendo em um bar. Primeiro apenas bebia, depois me percebi em solilóquio com minhas ideias e o copo de líquido espumado defronte. Olhei em volta para a agitação natural desses happy hours combinados, camisas de serviço, mangas arregaçadas, sorrisos esculpidos pela distração que mais a cerveja do que a companhia proporcionam. Eu estava só. Bebia a goles interrompidos, até que um cardápio diferente sobre o balcãozinho de canto, nem bem uma mesa, apenas uma prateleira de madeira onde apoiávamos os copos, quando muito alguma improvisada refeição, mas deparei-me com aquele folheto revestido de plástico que me chamou a atenção.

Não era um cardápio, olhei para os lados se mais alguém me percebia, mas seguiam todos no ritmar festivo e descontraído. Do topo da página, desci os olhos percorrendo sinuosamente o caminho antes digitado. Fiquei contente com o que vi. Era um anúncio promocional de um site que eu já havia escrito, a BABEL Brasil (solicitavam chamá-la em letras garrafais mesmo e sempre no feminino, não O site Babel; tinha inspiração na torre maluca aquela). Na promoção, em troca de algum préstimo ao site, você concorria a uma viagem para congresso de jornalismo e afins onde quer que fosse em todo o mundo. Fiquei pensativo quem bancaria os custos, já que o comum era não remunerarem seus colaboradores, uma escola para o aprendizado, mas longe de qualquer sustento no mundo real. Enfim, o espanhol de Madrid ou alguém aqui do Brasil arcaria com as vantagens de quem vencesse a referida promoção. Eu entornei meu copo, pousei-o com certa força em atitude de súbito raio de confiança e resolvi que iria participar.

Participei. E venci. Formado na área e sem maiores interesses em contínuo estudo em jornalismo, após longo período enclausurado em função da pandemia de coronavírus, queria aproveitar a maneira turística. Pensava em países distantes, mas sabia da dificuldade para driblar as barreiras dos idiomas, então, ao que me parece, optei mesmo pela Espanha. Transportado para as terras ibéricas, percebia que só me ressarciam pelo tempo de congresso, geralmente curtos em três ou, com otimismo, cinco dias. Mas igual fui, com o pensamento totalmente voltado para o turismo, sem ao menos saber a programação exata do congresso. Será que levei a vaga de outro mais interessado? Me perdoava que merecia, após o sofrimento da monotonia de anos vindouros em desfazimento.

Mal largava minhas tralhas no hotel e tentava caminhar o máximo possível pelas ruas ao redor, encontrando-me com um dia nublado com nuvens grosseiras e aparentemente aproximadas com a superfície terrestre, além de árvores altas, mas com pouca folhagem. Um bálsamo em ar pesado envolvia o ar, prosseguia com a dificultosa respiração que retardava meus passos. Olhava em volta em busca de bonitas paisagens e arquiteturas, as quais costumo fotografar por onde viajo. Passeava pelas calçadas largas que me lembravam certos bairros de Porto Alegre. Os prédios também possuíam fachadas semelhantes, notava em janelas amplas e colunas de sustentação. Grafites e pichações me acompanhavam como um trailer de um filme. Terrenos baldios começavam a aparecer conforme eu me afastava da segurança hoteleira. Comecei a perseguir, a esmo, os matagais que cresciam até quase a altura de nossos joelhos. Contornei o que percebi ser uma praça próxima a uma biblioteca. Na verdade, a biblioteca como figura central, que se erguia como motivo maior para a extensão concretada do chão da praça. Ali, em breves degraus, que saltei, dormiam ou se preparavam para isso, moradores de rua. Enquanto o crepúsculo não denotava o encerramento da tarde, um velho senhor em cadeira de praia observava o movimento e percebeu-me como legítimo estrangeiro. Acho que estava acompanhado de sua velha senhora ou fingia estar, acontecimento comum aos viúvos sem maior rumo para os últimos anos de vida. Pela visão e audição periféricas a meu ainda desconhecido objetivo, percebia eu que o velho tecia comentários para sua esposa ou simulacro de. Era uma cidade estranha, mas o mundo assim o é.

Contornei a grande biblioteca, ali próximo uma catedral, como há de se, no mínimo, empatar esse jogo. Pensava dias atrás na quantidade de igrejas e suas isenções de impostos, enquanto as escolas definham em investimentos, mais tomadas pelos congelamentos do que chamam gastos. Mundo estranho. Os prédios, apesar de serem majestosos me pareciam surgir em área afastada à grande localidade central do município espanhol (ou brasileiro?). Sem um aglomerado urbano o suficiente para ser reconhecido como centro, defrontei-me ali com um pequeno e tosco hotel de arquitetura nem nova nem velha, prédio branco com contornos em bordô para janelas e portas, algo até mais alemão e que me lembrava os ares de Joinville. Sem saber bem o porquê, rumei àquele espaço, certificado que o subir da noite se fazia em substituição aos vestígios de sol. Ultrapassei qualquer impedimento ao não ser questionado por atendimentos portuários, o que obviamente atiçou minhas suspeitas quanto à qualidade dos serviços ali prestados.

Subi a escadaria e entrei em um quarto, altamente surpreendido, porque ali estavam a representação de meus pais com um outro casal. Eles já conversavam e os lençóis não eram mais participantes protagonistas. Meus pais ajeitavam-se para retirarem-se, mal dando-me a atenção necessária em extraordinária descoberta. Meu pai adiantou-se que iria seguir para o carro e que esperava minha mãe por lá. O casal proprietário do alquiler mostrava-se decepcionado. "É sempre assim, podem ir, podem ir..."

"As pessoas nos acham estranhos", completava o companheiro daquela dama, que já punha-se a fumar com habilidosa transição dedal entre dedo médio e indicador. Eu olhava estarrecido para todos os personagens ali depositados. Meu pai que já apressado descera, já ausentado, minha mãe pronta para ser a próxima a deixar o recinto. Pensava que diabos poderia ser aquela prática em ambiente suspeito e com qual objetivo. Como poderia eu encontrá-los de maneira surpresa e completamente inesperada. Eu viajava sozinho, havia ganho a promoção, havia me deslocado centenas ou até milhares de quilômetros. Sim, sim, milhares, sem dúvida. Como assim?

O casal tentou convencer-me a ficar e conversar um pouco. Ela era bastante atraente e sabia como conduzir uma conversa inicial, o que praticamente me punha em dúvida. Sem deixar-me seduzir aos vigaristas, fiz menção ao avançado da hora e estava pronto a retirar-me como há instantes haviam meus pais feito. Tomando fôlego ao ultrapassar o perímetro demarcado pela porta, o estreito corredor me revelava uma alucinação, só poderia ser. A escada estava fatiada, exatamente aquela em que eu havia subido para chegar ao quarto derradeiro. Havia um vão bastante acentuado entre o começo, o topo da escadaria que dava para aquele andar e a sequência até o estreito corredor de baixo. Impossível. Calculei minhas possibilidades de salto e senti-me ineficaz para tal missão. Maldição. Precisava encontrar alguma alternativa para sair daquela enrascada. O casal ajeitava-se também, abotoares de cinto, de botões de camisa, cuidado com franjas ou mechas de cabelo. Eles logo viriam atrás de mim.

Avancei por aquele corredorzinho já apercebido pela presença da mulher que segurava o final de sua bituca de cigarro e despejaria esse descarte sobre um pálido cinzeiro ao canto do corredor, parecendo mais propício que ele estivesse do que um vaso de plantas ornamentais, por exemplo. Segui até o final daquela obra para ser surpreendido pelo profissionalismo de um segurança. Uniforme, mesa de escritório como se fosse um advogado ou atendente de alguma publicidade. Ele parecia esperar pela minha confusa chegada. Sem demonstrar na face alterações significativas, ao explicar para ele que eu queria saber se havia algum elevador no prédio, ele se adiantou por sua saleta até a abertura de outro corredor, paralelo, mas em lado oposto ao que caminhei. Era uma passagem relativamente de aspecto secreto. Quem poderia saber? Por onde meus pais saíram? Será que eram meus pais? Eram a representação de meus pais.

O outro corredor, esse interno, de ligação com a saleta do fiscal, era escuro, entranhas trevosas e uma aparelhagem tecnológica que irrompia luz; conjunto de câmeras e sensores que em nada combinavam com a fachada inexpressiva do prediozinho. Um hotel afastado, quase de campo. Quase mais rural do que urbano. Equipamentos de última geração, captadores de movimentos, câmeras espalhadas de cima a baixo do hotel. Ou seja lá o que fosse aquela construção cada vez mais macabra. Segui o referido segurança, ele de uniforme como um policial, cinto apertado, porrete ao alcançar das mãos, pendurado à cintura. Era melhor não me meter em problemas com ele, mas queria apenas ir embora. Surpresa para minha desconfiança, ele passou por aquela ante-sala de câmeras, dobrou para esquerda em outro corredor cercado de portas que deveriam significar novos quartos como aquele que eu havia entrado e meus pais saído, e finalmente demonstrou-me uma abertura em porta como a de um elevador. Senti determinado alívio, mesmo pressentindo que o desfecho estava longe do findar.

Antes adiantado ao meu caminhar, agora eu media os passos lado a lado com o segurança, atento para qualquer movimento suspeito daquele. A mulher, ao que parece, havia desistido de suas técnicas de sedução. Vá saber quanto dinheiro pode ter tirado de inocentes. Já não nos seguia, como conferi com olhadelas discretas para trás. Mas o acesso ao elevador não levava diretamente a um elevador. Era um imenso galpão, como o de uma indústria. Era como um ginásio, teto alto, horizonte aberto aos olhos até onde, finalmente pude focar, havia sim um elevador discreto ao fundo de toda essa magistral estrutura. Caminhamos lado a lado pelo galpão extenso, eu ainda atento a cada movimento do servente, que mostrava-se tranquilo, assobiava e se remexia quase contente. Notei bazares como os de bichos de pelúcia. Tudo era completamente inacreditável. Dezenas para centenas de animais de pelúcia esquecidos em galpão de elevador secreto.

À metade do caminho, andados uns 30 metros, comentei com o guarda que já havia visualizado o elevador e que ele poderia voltar para seu trabalho, sem mais delongas ou interrupções. Ele franziu a testa, movimentou sinuosamente as sobrancelhas, as rugas de seu rosto acentuaram-se, a resposta lhe tardou de vir à boca enquanto processava meu dito. Finalmente manifestou-se: - tudo bem.

Girou em seus calcanhares e retomava o caminho por onde vínhamos. Eu senti-me aliviado pela segunda vez, a primeira sendo o encontro com a portaria de elevador, embora aquela fosse falsa, agora eu estava próximo da verdadeira. Mas meu plano era esconder alguns animais de pelúcia, queria roubá-los, senti grande impulso por essa missão. Já estava ali, eles estavam abandonados, eles precisavam de mim. Era maníaco meu pensamento. Precisava dos apeluciados em meus braços, pensei em escondê-los sob a camisa, não caberiam, trariam muito volumes, eram senhores animais, quero salvá-los. Percebi perifericamente o olhar sobre meu ombro uma alça, direcionei os braços para trás e dei-me conta de portar mochila. Fazia sentido, deixei o hotel logo cedo para prolongado passeio e uma mochila sempre vem bem a calhar para eventuais compras, carregar câmera, enfim. Embora não lembrasse de maneira alguma carregar a câmera naquelas intranquilas ruas. Mas espaço na bolsa havia e eu poderia colocar quase uma dúzia daqueles bichos sem fazer peso, pois eram de pelúcia, além de concluir meu súbito plano de resgate.

Quando estava ainda escolhendo quais levaria, minha mãe surgiu de uma - a ironia - escada ao lado da porta do terminal elevador. Ela me alcançou aturdida e disse que eu precisava me apressar "que essa gente é louca, não temos o que fazer aqui, não devia estar aqui, vamos, vamos" e eu contei-lhe o plano de carregar animais de pelúcia, que eles precisavam de nós, havia ninguém vendo, poderíamos recolher vários, ela poderia ajudar, seria perfeito, custo-benefício, presentear amigos, levar para gente, que não fazia sentido os animais trancafiados ali, logo eu entusiasta das questões ambientalistas, contrário aos zoológicos e

Ela quase me interrompeu com um tapa, estava mais histérica, gesticulava com pressa, mas sem alterar a voz para que não ecoasse naquela estrutura povoada de animais de pelúcia, mas ainda assim muito aberta para o propagar do som até as outras partes do hotel ou seja lá o que fosse. Ela me agarrou pelos ombros, disse que deixasse de besteiras. Eu, em ultimato, em tentativa de convencê-la a capturar algumas espécies, disse que poderíamos doar para crianças, que seria importante presenteá-las e que não fazia sentido os bichos de pelúcia presos. Ela me olhou atravessada em expressão duradoura de uns longos quatro segundos. Então topou a amalucada ideia, mas disse para eu baixar por aquela escada ou elevador, que ela veio da escada, elevador não conhecia, enfim, mas que desse o fora o quanto antes. Ela preencheria a mochila, tomou-me a mochila, eu contrário à permanência dela, que se fosse inseguro para mim, para ela tanto mais, embora não perguntasse o que ali faziam, que contato tinham com o casal suspeito daquele quarto. "Seu pai lhe espera a duas quadras daqui", disparou em seriedade enquanto avançava para as prateleiras e mesas de serzinhos inanimados, amontoados como naqueles cassinos do gancho para pegá-los. Eu já estava uns três degraus mais baixo que o nível dos acontecimentos anteriores, quando notei que quatro funcionárias voltavam. Conversavam alto e riam, gargalhavam, uma mexia no cabelo de outra, uma mascava chiclete em crescentes bolhas logo estouradas contra sua própria face.

Minha mãe, vendo que elas se aproximavam, fez um último gesto para eu seguir, ir embora, zarpar dali. Após muita hesitação e desconfiança anteriormente, resolvi obedecê-la, mas completamente incerto do que sucederia. A escada estava íntegra, os degraus nem sequer rangeram a meus apressados passos. Não houve interrupção novamente na câmara de entrada do decrépito prédio. Nenhuma alma para encerrar meu aterrador check in naquela casa maligna. Minha mãe seria atacada pelas demais funcionárias? Minha mãe fazia parte daquele plano? Eram traficantes? Que tipo de práticas ou cultos ali realizavam? A noite estava cerrada, a umidade crescente tornava até o próprio solo escorregadio quando ganhei novamente as largas calçadas da rua, os terrenos baldios em volta formulando uma escuridão espessa, rompida a distantes postes e a iluminação de raros prédios, que começavam seu aglomerar de estruturas urbanas conforme eu avançava e o resfolegar representava o esforço praticado pelos passos em desabalada corrida.

Nem sinal de meu pai. Queria apenas retomar, de alguma maneira, perdido por aquelas ruas, já sem minha mochila que havia ficado com a representação de minha mãe, o caminho para o hotel. Pegar o restante de minhas tralhas, roupas, sapatos e voltar para o Brasil, sem me atentar ao congresso da promoção vencida pela BABEL. A promoção surgida em bar em que eu bebia solitário e tranquilo, o vencer da promoção, o congresso perfeito em datas logo após o resultado da promoção, minha facilidade com o idioma espanhol para ali congregar-me. Meus pais. Tudo parecia armado, simulacro, falso. Tinha a certeza que voltando para casa, eu não os encontraria na cidade.

11 de setembro de 2020

Dia de Limpeza

tem que tirar o pó do quarto
tem que varrer o tapete
tirar o pó dos objetos
tirar o mofo da parede

dia de limpeza é um porre
e ninguém nos socorre
pra quê tantos objetos?
coleção de chaveiros
discos que não escuto
livros que não mais reflito
tantos objetos sem uso
lá se vão os meus turnos
afoga a folga
afoga a folga
afoga a folga

tem que por veneno pra rato
e as baratas dos bueiros
tem que aspirar o quarto
passar um pano no espelho
e trocar os lençóis
enquanto há sóis o dia inteiro

dia de limpeza é um porre
e ninguém por nós corre
faremos isso semanalmente
até o dia que se morre
e aí finalmente
tudo em trouxas se recolhe
e segue a prole
e segue a prole
e segue a prole

tem que tirar roupas da corda
que já está vindo a chuva
e remédio para pulgas
no colarinho dos pets
e o processo se repete
até o dia que se morre

dia de limpeza é um porre
e ninguém nos socorre
pra quê tantos objetos?
coleção de chaveiros
discos que não escuto
livros que não mais reflito
tantos objetos sem uso
lá se vão os meus turnos
afoga a folga
afoga a folga
afoga a folga

ao ritmo de Amor e Morte de Wander Wildner

10 de setembro de 2020

Começos de Fins

A lei e a ordem pareciam distantes em um Estado (com inicial maiúscula ou sem?) de abandono. Era o centro da cidade em desolação e decadência, evidentemente decrépito. Ainda havia os prédios, mas a iluminação com o envolvimento da noite era precária e caminhávamos a passos incertos, sem saber onde exatamente pisávamos, entre calçadas que nunca foram boas e pioraram de aspecto. Mas sabíamos que o apartamento de Gomes era uma saída contra a desproteção noturna. Ou ao menos costumava ser.

Ao chegarmos na derradeira quadra onde fica o edifício de moradia de Gomes, notamos que a situação das ruas permaneciam a mesma naquele projeto de inferno apocalíptico. É bem possível que a caída da noite tenha acentuado nossas impressões, mas todavia o aspecto era lastimável. O prédio, entretanto, ainda era verde, o que nos permitiu identificá-lo em local exato mesmo à distância. Primeiro notei a ausência de porteiro. Nada do sr. Dornelles ou do outro companheiro que esqueci o nome, mas que era bastante simpático. Tiago! Tiago, ele se chamava. Nada de Dornelles ou de Tiago, aumentando a ansiedade perante tanta consternação. Arquiteturas gastas, pinturas mal acabadas, o ar pesado como se a sede da violência poderia descambar a qualquer instante. A putrefação sanguínea em odor opressivo comum a hospitais muito cheios e consequentemente mal ventilados.

Contornando aquela entrada em breve saguão de edifício, que mais se assemelhava a uma sala de espera, pudemos avançar rumo às entranhas do prédio verde, levemente decorado com pichações internas e vidros em estilhaços de sua desorganizada fachada. Sem Dornelles ou Tiago para trocarmos ligeiros cumprimentos, a tensão permanecia em cada um de nossos rostos. Éramos um grupo reduzido, talvez cinco pessoas contando comigo. Parecíamos muito mais em missão da procura por abrigo do que para uma reunião amistosa. E logo na entrecurva para esquerda rumo às escadarias e notamos não sermos os únicos com essa majestosa ideia.

Moradores de rua aproveitavam a confusão de desgovernada cidade e montavam acampamento nos corredores dos prédios. Tentavam espalhar seus apetrechos de forma organizada para demarcar territórios, alguns ousavam erguer redes como se indígenas. Se distribuíam pelos corredores a cada lance de escada e a maioria permanecia silenciosa em sono resguardado por sacos de dormir, na ausência de colchões ou maiores estruturas de travesseiros. Eu olhava para aquela cena com certa horripilância transparecida, pois recordava o prédio em perfeito estado anterior, com a portaria, com o cheiro constante dos não menos nauseantes produtos de limpeza. Mas agora estávamos cercados pela atmosfera de uma guerra civil e de locais incertos para cada um se proteger.

Passei a pensar que muitos daqueles refugiados dos corredores poderiam ter casas destruídas, ou mesmo hipotecadas anteriormente pela alta dos preços, sem condições de arcarem com os impostos ou com os aluguéis elevados. De qualquer forma, uniam-se no denominador comum de não possuírem mais onde morar. O prédio de Gomes, de fachada liberada pela quebra de vidros, interior desprotegido com a ausência dos guardiões da portaria, tudo isso convidava para que levantassem o acampamento com o que podiam trazer consigo.

Mas Gomes, indiferente a esses pensamentos sensíveis ou disfarçando o melhor que podia, como muitas pessoas costumam fazer, mantinha a fronte em direção a seu apartamento, que ele aguardava manter-se intacto em meio ao furdúncio do mundo externo. Desviávamos dos novos inquilinos da região com passos cuidados, para não os acordarmos e não aumentarem as nossas enrascadas. A luta por espaço poderia se tornar sangrenta ao menor deslize.

Finalmente Gomes conseguiu chegar à sua porta de entrada, em madeira bem talhada, uma nogueira, sem dúvida alguma. Girou a chave esperando pelo estalar crepitante que lhe garantiria o desejado acesso. E ele ocorreu com um ranger contínuo de dobradiça enquanto cada um de nosso seleto grupo se apressava em adentrar ao abrigo de prometida segurança. Nos estiramos sobre o chão, não diferentes aos do lado externo. Alguns proveitosos deram melhor utilização para os sofás, que traziam sobre si as trouxas de roupas dobradas prontas para serem embaladas nos roupeiros, mas que ali seguiam à espera do pó, em partículas que, embora não inicialmente percebidas, sempre se formam na superfície dos objetos.

Respirávamos ainda ofegantes das aventuras do lado externo daquela segurança, tentávamos absorver a nova camada de ar, certamente menos densa do que a respiração grosseiramente desenvolvida de instantes atrás. Nossos pulmões, tais quais motores de carros forçados pelo engate de menor marcha, se aliviavam no exercício do ir e vir do ar. Ao que pareceu, nos primeiros momentos ninguém arriscou palavra sobre tudo aquilo que se passava, antes em movimentos delicadamente inéditos, agora diante de nossos olhos, no resguardo incendiado da memória recém recebida.

Apesar da população crescente pelos corredores e espaços que eram conhecidos por reproduzir o eco dos passos e quaisquer sons, em meio aos vazios, o prédio mantinha um silêncio ensurdecedor. Enquanto retomávamos o estimado fôlego, ouvíamos apenas o zumbir de nossas próprias vozes, através da narrativa interna que carregamos como pensamento. Ou seja, cada um ouvia a si mesmo e não arriscava palavra que rompesse esse cordão muito bem traçado e produzido, como uma teia em fibra ótica.

O anfitrião se adiantou perante nós.

- A coisa não estava assim.

- Como começou? - Perguntei em voz barganhada.

- Há algumas semanas. Perderam o controle. Governo. - Gomes tinha dificuldade de formatar as frases àquela altura.

O nítido aspecto apocalíptico que tanto me apetecera em filmes e livros agora estava diante da gente, formulando uma solução de alta contenção de adrenalina disparada ao sangue. E eu queria manter o sangue dentro de mim, não espirrado em jorros como poderia acontecer em qualquer batalha campal a ser travada pelo lado de fora daquela bonita e grossa porta de madeira talhada.

Estávamos no oitavo andar, mas o que notei minutos atrás é que havia mais uma infinidade para cima naquelas escadas nem tão quadradas, nem tão de caracol. Elas davam vista para os espaços reservados acima, mas não eram de contornos arredondados. Não sei como melhor me explicar, necessitaria de um engenheiro naquela pitoresca construção para descrevê-la. Mas o que acontecia era uma ocupação andar a andar em que os novos moradores procuravam se organizar entre seus bandos, entre suas famílias, entre seus pertences batalhadamente acumulados.

- E se os seus vizinhos foram despejados? - Perguntei novamente, dividindo o pensamento com os demais, que mantinham-se quietos.

- É possível. Mas não estabelecemos contato.

- Você é meio eremita. Falava com eles nem antes, acha que isto é São Paulo. - Brinquei. Gomes não riu. Nem os demais, que pareciam seres inanimados. Pensava o que estava acontecendo ali.

Procurei sinais de arrombamento, ou ao menos tentativa, na porta do apartamento de Gomes. Nenhum sinal. Ao subir o desgastante lance de escadas em oito andares, também não havia notado os sinais de apelo contra as entradas, mas é bem verdade que estava concentrado demais naquela visão sinistra de acampamentos inteiros de refugiados e para não pisar porventura em algum deles, causando tumulto. Só sabia, àquela altura, que a situação estava periclitante, densamente crítica.

Gomes abriu a geladeira e mostrou alguns produtos que desde já me preocupavam em data de validade. Queria lembrar da última vez que deixei meu bairro, mais distante ao centro. Meus pais, minhas duas irmãs, por onde andariam e em que estado de segurança em meio àquela calamidade generalizada. Os três demais componentes de nosso grupo, que pude analisar melhor naquela pausa, também eram nossos amigos. Havia uma menina chamada Jasmine e que estava bastante quieta. Tinha o olhar concentrado para baixo, enquanto mantinha a coluna bastante ereta apesar da possibilidade de maior repouso sobre o sofá.

Jones e Claudia ficaram próximos um do outro, em tamanho silêncio também. Eram grandes amigos e geralmente agitavam as rodas de conversa, mas o panorama estava muito diferente. Naquele caos, lembrei do professor Eduardo que sempre mencionava sobre as lojas de colchões e as garagens desocupadas nos edifícios enquanto milhares de pessoas vagavam e procuravam espaços desconfortáveis para dormir nas ruas. Não mais, professor Dudu... não mais.

8 de setembro de 2020

olhar pra frente

achava que o momento chegaria
olhei pra trás pro momento que nunca chegou
achava que algo melhoraria
programas sociais, tecnologia
olhei pra trás para o que me decepcionou

achava que tudo passaria
e tenho em mãos ainda aquele dia
achava que até me esqueceria
olhei pra trás com a marca de seu batom

olhava à frente, o momento chegaria
e coincidia, insidia em não chegar
olhei pra frente, eu não desistiria
e já olhei pra trás
para o que me decepcionou
olhava à frente, o horizonte se abria
olhei pra trás, para a porta que se fechou
mas eu olhava à frente, frente a frente ficaria
e de repente percebi que já passou

eu prometi, isso eu não rimaria
e agora não há outra forma de dizer
eu olhei pra frente, segui minha romaria
e de repente outro dia vai nascer

tanto faz, o ás na manga cairia
e não adianta mais me esmorecer
é entender que nada adiantaria
e todavia outro dia vai nascer

7 de setembro de 2020

a rua do poeta

triste poeta esquecido. para que não fosse esquecido, uma rua lhe dedicaram o nome. mas hoje, ao abrirmos a internet, na curiosa pesquisa, na busca por seu quase esquecido nome, ele é lembrado somente pelas ofertas imobiliárias de algumas casas em tranquila rua que lhe dedicaram o nome.

Brasil Parasita

era um país tão triste
nem mais mata existe
choro por ti, pantanal
se digo que não choro
estou a mentir, afinal
choro por ti, pantanal

o cosmos se alinhou na maldade
contra o homobrasilis-saudade
saudasos ministérios mais sérios
juízo aposentou emérito
ficamos em país sem critério
um barco aos destroços à deriva
olhar na fronte sem perspectiva
na cadeira cativa doutores
taça de vinho, peixe sem espinha
quando a nós nos sobra espinha
se atiram em meu dorso
gritam "essa já é minha!"
Brasil-paz para os parasitas
nada ao povo das palafitas
Brasil-paz para os parasitas
sub-versões não escritas

era um país tão triste
nem mais mata existe
choro por ti, pantanal
se digo que não choro
estou a mentir, afinal
choro por ti, pantanal

Brasil parasita se propaga
labareda ninguém apaga
Brasil propagado parasita
propaganda deles é infinita
das ruas reles de Brasília
invade circunda nosso litoral
tal qual
abominável avanço do mal
tal qual, tal qual
abominável avanço do mal

novos versos

tenho dificuldade em recitar os versos
dos poetas dos universos passados
em lembrar-lhes os traços como de berço
mas posso inventar sempre algo novo, inédito
antes desconhecido, agora recém calcado
posso inventar só por sair do tédio
posso inventar para te ver de novo

3 de setembro de 2020

O Fantasma e A Canção - Antônio de Castro Alves

Então, nas sombras infindas,

Se esbarram em confusão

Os fantasmas sem abrigo

Nem no espaço, nem no chão...

As almas angustiadas,

Como águias desaninhadas,

Gemendo voam no ar.

E enchem de vagos lamentos

As vagas negras dos ventos,

Os ventos do negro mar!

“Bati a todas as portas

Nem uma só me acolheu!...”

— Entra! — Uma voz argentina

Dentro do lar respondeu.

— Entra, pois! Sombra exilada,

Entra! O verso — é uma pousada

Aos reis que perdidos vão.

A estrofe — é a púrpura extrema,

Último trono — é o poema!

Último asilo — a Canção!...

Bahia, 13 de dezembro de 1869


2 de setembro de 2020

poetrix

poetrix
nunca mais
não sei como faz
nem sei se já fiz

haikai
não sei fazer
por não saber
daqui não sai

poeminha
minha anja
põe eminha
tua franja
na minha

1 de setembro de 2020

misérias morais

misérias morais 

são arbustos

e quais são seus pseudofrutos?

e onde eles jazem?


misérias morais

em toda parte contrariam

aquele sentimento augusto

inventado em nome da paz


misérias morais

das sociedades mais distintas

cobiças, infortúnios, inveja

sombras formatadas quimeras

com duas três mãos de tinta


misérias morais

acalentadas nos seios sociais

composições sérias do incapaz

de se satisfazer? nunca mais

miséria moral que orbita

junta ao seio se unifica

moscovita anseios carnais

no dostoievs-cais


um porto ao morto

as luzes: misérias morais

e pontos finais

Horas Vivas - de Machado de Assis

 Noite: abrem-se as flores...

          Que esplendores!
Cíntia sonha amores
          Pelo céu.
Tênues as neblinas
          Às campinas
Descem das colinas,
          Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
          Animadas,
Vão aquelas fadas
          Pelo ar;
Soltos os cabelos,
          Em novelos,
Puros, louros, belos,
          A voar.

— “Homem, nos teus dias
          Que agonias,
Sonhos, utopias,
          Ambições;
Vivas e fagueiras,
          As primeiras,
Como as derradeiras
          Ilusões!

— Quantas, quantas vidas
          Vão perdidas,
Pombas mal feridas
          Pelo mal!

Anos após anos,
          Tão insanos,
Vêm os desenganos
          Afinal.

— “Dorme: se os pesares
          Repousares,
Vês? – por estes ares
          Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
          E lascivas,
Somos – horas vivas
          De dormir!” –

Machado de Assis, in 'Crisálidas'