Calçamento ruim da última quadra da Gonçalves Chaves, em Pelotas. Diferente do asfalto novo recebido no centro (Foto: Henrique König) |
A Gonçalves que poucos conhecem é a da última quadra, no trajeto que fica entre a rua Bandeirantes e a avenida São Francisco de Paula. O trecho que fica de frente para minha janela e que, por muitas vezes, na ausência de uma vista boa da sacada de um prédio, é minha referência quando precisamos olhar para lugar nenhum.
Recentemente, ao conhecer o Rio de Janeiro, imaginei-me com uma vista privilegiada de uma das orlas da Urca. Qualquer apartamento de poucos metros quadrados me satisfariam em troca daquele verdadeiro colírio. Porém, de volta à realidade, o que tenho para diante de minha janela é esse final da rua Gonçalves Chaves. O final que pouca gente tem o conhecimento de que exista.
O asfaltamento da rua se deu apenas da Avenida Bento Gonçalves em diante no centro. O esquecimento torna-se maior da Dom Joaquim para o sentido do bairro Areal. Apesar de ser trajeto de ônibus, as crateras se fazem presentes ao meio do caminho. Além do transporte coletivo, há poucos carros, por vezes, charretes, idosos, cães perdidos e crianças em suas primeiras rodagens de bicicleta formam o grupo de transeuntes.
Na calmaria da quadra, os pontos de ônibus é que concentram senhoras com sacolas, senhores com olhares distantes e mais jovens em prontidão para mais uma jornada de ensino ou trabalho no centro de Pelotas.
Na composição desta última quadra, um terreno baldio de cada lado. Em um dos lados, o campo serviu para a construção de uma alta antena. Na época da construção, moradores teimavam em afirmar que estava torta. Até hoje, uma década depois, não caiu. Pelas noites, brilha uma luz vermelha em sua extremidade, que avisa aviões que cruzam indo ou voltando do aeroporto próximo ao Prado.
No outro terreno baldio, encontra-se ao lado uma casa abandonada. Até mesmo os grafites estão gastos, exaltando o tempo de abandono da construção. Em uma das casas próximas, mora um aposentado professor de matemática, sempre elegante em suas vestimentas e chapéu. Ele segue lecionando e costuma sair de casa em seu carro igualmente clássico.
O pai de um modelo de passarelas que já desfilou internacionalmente sofreu uma isquemia e se comunica muito pouco. Geralmente são grunhidos, sílabas desconexas, conectadas apenas em "bom dia" ou "boa tarde". A rua é bastante escura no anoitecer e, portanto, não há boa noite.
Em outra casa próxima há gêmeos de 20 e poucos, indo aos 30. Gostam muito de carros e não sei se ambos permanecem morando ali. Acredito, pelas exibições de modelos de automóveis personalizados na calçada, que ao menos um deles continua na casa. Minha vó ainda caminha muito por aí, mas, quando não está na rua, está na casa dela, onde mora com minha tia e sua amiga e, atualmente, apenas duas cadelas. Já foram bem mais os hóspedes de quatro patas.
Há um pequeno terreno adiante onde pessoas abandonavam cães que acabavam nos cuidados de minha tia de, agora, 52 anos. Sem a mesma disposição dos anos que passaram, na atualidade ela se dedica aos cuidados de apenas duas fêmeas caninas, também de idade avançada.
Uma outra senhorinha, de longe, lembra minha vó. Mesmo tom de pele, o grisalho dos cabelos e o embalado que supera as dificuldades de cada passo da terceira idade. Coincidência física de ambas que residem na mesma quadra, a última da Gonçalves Chaves.
Uma outra vizinha foi mãe na adolescência. As crianças, pequenas criaturas loiras que lembram a ascendência, já caminham pela frente do terreno.
Outro ocupante da quadra é colorado fanático e exibe posteres do Internacional em sua garagem, fato que descobri por uma ou outra vez em que ela estava aberta. Cumprimento-o seguidamente, pois costuma estar lá, com seu ar de aposentado em sua cadeira de praia na calçada.
Outro da vizinhança, gremista, arrumou emprego na Irlanda e volta para rever a mãe, que se encontra na mesma casa verde. Uma irmã dele casou e fez com que a mãe deles se tornasse vó. De vez em quando a bonita moça aparece com o pequeno garotinho em seus braços.
Recentemente, o dono de um pequeno armazém faleceu. Seu filho é alcoólatra e caminha extremamente devagar, solitariamente. Sua esposa, bastante velhinha, ficou viúva e cuida do endereço, mas sem ativar o comércio. O armazém era ponto de encontro para outros idosos, onde comentavam notícias dos jornais impressos, jogavam conversa fora e, às vezes, jogos de tabuleiro. Daqueles tempos significantes a eles, resta apenas a faixada do mercadinho desbotando.
Um dos diretores de um dos clubes de futebol da cidade mora por ali com sua esposa. Completam-se como casal e ergueram um bonito sobrado, american way of life.
Uma casa da qual não conheço os ocupantes, ostenta pastores alemães que ficam em frente à moradia. Não gostam quando trajo camisas do Grêmio e, seguidamente, latem quando cruzo a calçada ao passar pela vista deles.
Um lar de idosos foi criado há pouco tempo. Passo por ali e observo com melancolia aos olhares que me são retribuídos. Não há muito para decifrar do que eles esperam aos dias que estão por vir. Ali, quase ao lado, um senhor com terreno próprio estendia sua plantação para praticamente obstruir a calçada. Creio que algum dia reclamaram com ele e o mesmo reduziu sua horta em alguns metros, priorizando agora à passagem dos pedestres.
Em resumo, a última quadra da Gonçalves Chaves esconde histórias que só quem passa seguidamente por lá pode averiguar. Talvez quem pegue o ônibus nas paradas ali próximas também tenha notado algumas delas. Para mim, sempre será o caminho que me coloca no rumo do centro. Cumprimento uns e outros e observo o envelhecimento do bairro.
Já não é a mesma movimentação dos meus anos de infância. O tempo, implacável, pouco impõe de modernidade naquele solo. Os buracos na rua para o saltitante ônibus da linha Bom Jesus, os cães de rua que aproveitam o local de pouco trânsito como rota, os grafites da velha casa abandonada ao lado do terreno baldio. O terreno baldio que é limpo e, logo, estará sujo e com mato crescido novamente.
A última quadra da Gonçalves Chaves... A mesma Gonçalves Chaves do São José, da UCPel, dos barzinhos, do Guarany, da Boca do Lobo... A Gonçalves deste imenso jogo da velha que é o centro de Pelotas.
A casa abandonada ao lado do terreno baldio (Foto: Henrique König) |
Casa abandonada por dentro, com prédios ao fundo como contraste do crescimento em outra área da cidade (Foto: Henrique König) |