21 de setembro de 2015

O fim e os fins da Gonçalves Chaves

Calçamento ruim da última quadra da Gonçalves Chaves, em Pelotas. Diferente do asfalto novo recebido no centro (Foto: Henrique König)
É a última quadra da rua Gonçalves Chaves. É a mesma Gonçalves do colégio São José, do principal campus da Universidade Católica de Pelotas, da casa noturna João Gilberto, do bar do Tinteiro, do Dom Felipe. É a mesma Gonçalves da esquina do Theatro Guarany, das costas do estádio da Boca do Lobo, do Instituto Educacional Assis Brasil, um dos maiores colégios estaduais do estado.

A Gonçalves que poucos conhecem é a da última quadra, no trajeto que fica entre a rua Bandeirantes e a avenida São Francisco de Paula. O trecho que fica de frente para minha janela e que, por muitas vezes, na ausência de uma vista boa da sacada de um prédio, é minha referência quando precisamos olhar para lugar nenhum.

Recentemente, ao conhecer o Rio de Janeiro, imaginei-me com uma vista privilegiada de uma das orlas da Urca. Qualquer apartamento de poucos metros quadrados me satisfariam em troca daquele verdadeiro colírio. Porém, de volta à realidade, o que tenho para diante de minha janela é esse final da rua Gonçalves Chaves. O final que pouca gente tem o conhecimento de que exista.

O asfaltamento da rua se deu apenas da Avenida Bento Gonçalves em diante no centro. O esquecimento torna-se maior da Dom Joaquim para o sentido do bairro Areal. Apesar de ser trajeto de ônibus, as crateras se fazem presentes ao meio do caminho. Além do transporte coletivo, há poucos carros, por vezes, charretes, idosos, cães perdidos e crianças em suas primeiras rodagens de bicicleta formam o grupo de transeuntes.


Na calmaria da quadra, os pontos de ônibus é que concentram senhoras com sacolas, senhores com olhares distantes e mais jovens em prontidão para mais uma jornada de ensino ou trabalho no centro de Pelotas.

Na composição desta última quadra, um terreno baldio de cada lado. Em um dos lados, o campo serviu para a construção de uma alta antena. Na época da construção, moradores teimavam em afirmar que estava torta. Até hoje, uma década depois, não caiu. Pelas noites, brilha uma luz vermelha em sua extremidade, que avisa aviões que cruzam indo ou voltando do aeroporto próximo ao Prado.

No outro terreno baldio, encontra-se ao lado uma casa abandonada. Até mesmo os grafites estão gastos, exaltando o tempo de abandono da construção. Em uma das casas próximas, mora um aposentado professor de matemática, sempre elegante em suas vestimentas e chapéu. Ele segue lecionando e costuma sair de casa em seu carro igualmente clássico.

O pai de um modelo de passarelas que já desfilou internacionalmente sofreu uma isquemia e se comunica muito pouco. Geralmente são grunhidos, sílabas desconexas, conectadas apenas em "bom dia" ou "boa tarde". A rua é bastante escura no anoitecer e, portanto, não há boa noite.

Em outra casa próxima há gêmeos de 20 e poucos, indo aos 30. Gostam muito de carros e não sei se ambos permanecem morando ali. Acredito, pelas exibições de modelos de automóveis personalizados na calçada, que ao menos um deles continua na casa. Minha vó ainda caminha muito por aí, mas, quando não está na rua, está na casa dela, onde mora com minha tia e sua amiga e, atualmente, apenas duas cadelas. Já foram bem mais os hóspedes de quatro patas.

Há um pequeno terreno adiante onde pessoas abandonavam cães que acabavam nos cuidados de minha tia de, agora, 52 anos. Sem a mesma disposição dos anos que passaram, na atualidade ela se dedica aos cuidados de apenas duas fêmeas caninas, também de idade avançada.


Uma outra senhorinha, de longe, lembra minha vó. Mesmo tom de pele, o grisalho dos cabelos e o embalado que supera as dificuldades de cada passo da terceira idade. Coincidência física de ambas que residem na mesma quadra, a última da Gonçalves Chaves.

Uma outra vizinha foi mãe na adolescência. As crianças, pequenas criaturas loiras que lembram a ascendência, já caminham pela frente do terreno.

Outro ocupante da quadra é colorado fanático e exibe posteres do Internacional em sua garagem, fato que descobri por uma ou outra vez em que ela estava aberta. Cumprimento-o seguidamente, pois costuma estar lá, com seu ar de aposentado em sua cadeira de praia na calçada.

Outro da vizinhança, gremista, arrumou emprego na Irlanda e volta para rever a mãe, que se encontra na mesma casa verde. Uma irmã dele casou e fez com que a mãe deles se tornasse vó. De vez em quando a bonita moça aparece com o pequeno garotinho em seus braços.


Recentemente, o dono de um pequeno armazém faleceu. Seu filho é alcoólatra e caminha extremamente devagar, solitariamente. Sua esposa, bastante velhinha, ficou viúva e cuida do endereço, mas sem ativar o comércio. O armazém era ponto de encontro para outros idosos, onde comentavam notícias dos jornais impressos, jogavam conversa fora e, às vezes, jogos de tabuleiro. Daqueles tempos significantes a eles, resta apenas a faixada do mercadinho desbotando.


Um dos diretores de um dos clubes de futebol da cidade mora por ali com sua esposa. Completam-se como casal e ergueram um bonito sobrado, american way of life.


Uma casa da qual não conheço os ocupantes, ostenta pastores alemães que ficam em frente à moradia. Não gostam quando trajo camisas do Grêmio e, seguidamente, latem quando cruzo a calçada ao passar pela vista deles.

Um lar de idosos foi criado há pouco tempo. Passo por ali e observo com melancolia aos olhares que me são retribuídos. Não há muito para decifrar do que eles esperam aos dias que estão por vir. Ali, quase ao lado, um senhor com terreno próprio estendia sua plantação para praticamente obstruir a calçada. Creio que algum dia reclamaram com ele e o mesmo reduziu sua horta em alguns metros, priorizando agora à passagem dos pedestres.

Em resumo, a última quadra da Gonçalves Chaves esconde histórias que só quem passa seguidamente por lá pode averiguar. Talvez quem pegue o ônibus nas paradas ali próximas também tenha notado algumas delas. Para mim, sempre será o caminho que me coloca no rumo do centro. Cumprimento uns e outros e observo o envelhecimento do bairro.

Já não é a mesma movimentação dos meus anos de infância. O tempo, implacável, pouco impõe de modernidade naquele solo. Os buracos na rua para o saltitante ônibus da linha Bom Jesus, os cães de rua que aproveitam o local de pouco trânsito como rota, os grafites da velha casa abandonada ao lado do terreno baldio. O terreno baldio que é limpo e, logo, estará sujo e com mato crescido novamente.

A última quadra da Gonçalves Chaves... A mesma Gonçalves Chaves do São José, da UCPel, dos barzinhos, do Guarany, da Boca do Lobo... A Gonçalves deste imenso jogo da velha que é o centro de Pelotas.

A casa abandonada ao lado do terreno baldio (Foto: Henrique König)


Casa abandonada por dentro, com prédios ao fundo como contraste do crescimento em outra área da cidade (Foto: Henrique König)

12 de setembro de 2015

Domingo de Fla-Flu no Maracanã


"Domingo eu vou ao Maracanã. Vou torcer pro time que sou fã", dizem os versos de Neguinho da Beija-Flor, adaptados pelas torcidas locais do Rio de Janeiro. Clássico entre Flamengo e Fluminense, o popular Fla-Flu é especial por sua tão rica e mais do que centenária história. Trata-se de um enfrentamento surgido no futebol em 7 de julho de 1912, em ocasião que terminou com a vitória do Fluminense por 3 a 2.

O Fla-Flu chegou à edição de número 401 no exato domingo de 6 de setembro. Em campo, equipes com grande proximidade na tabela. O Fluminense com 33 pontos, vindo de três derrotas. Do outro lado, o Flamengo, logo atrás, com 32, vindo de três vitórias e buscando ultrapassar o rival na briga por posições no campeonato brasileiro.


O deslocamento das torcidas vem das mais distantes áreas do Rio de Janeiro. Passando o meio-dia, as camisas começam a brotar pelas ruas, como a chegada primaveril de quem desperta o sentimento de viver o domingo pelo seu clube. Descem as escadarias do metrô os com número 7, 9 e 10 às costas e que, juntos formarão o 12º jogador de cada equipe na disputa de mais um clássico.

A chegada à estação do Maracanã, passando o campus da UERJ, anuncia que a hora está próxima. Os torcedores já unidos uns com outros, antes completos desconhecidos, agora obtém alguma simpatia para com quem traja as mesmas cores.

Apesar da rivalidade, Flamengo e Fluminense dividem as linhas do trem subterrâneo. O verde e grená, do Flu, contrastante com o rubro-negro, do Fla, com ambas as cores em predominância nos vagões e nas saídas dos mesmos.

"Neeeeeense" e "Meeeeeeengo" são os gritos iniciais nos ritos de deslocamento. Nos entornos do gigante estádio em homenagem ao jornalista Mário Filho, o Maracanã recebe as caravanas dos mais distantes aficionados. Noto, ao cruzar por mim, uma camisa do Brasil de Pelotas junto aos flamenguistas.

O Fluminense, por sua vez, conta com apoio de hinchas do Velez Sarsfield, da Argentina, clube com o qual possui determinada amizade pela origem comum das cores. Um torcedor do Sampaio Corrêa do Maranhão também marca presença.

Após a revista dos seguranças, dentro das imediações, o clima é de foco no que vai acontecer logo abaixo das preenchidas tribunas. O tapete verde aguarda os 22 jogadores, representantes das massas de mais de 50 mil vozes na tarde dominical.

O primeiro tempo é de amplo domínio do Flamengo. A zaga do Fluminense bate cabeça e Emerson Sheik e Kayke aproveitam para balançar as redes ainda no primeiro quarto dos 90 minutos. Levam ao delírio os rubro-negros e dificultam a vida dos esforçados torcedores da barra Bravo 52, do Fluzão. Placar de 2 a 0 para o urubu.

No intervalo, talvez o momento mais relevante e importante socialmente dentro do espetáculo: o Fluminense, mandante da partida, anuncia o apoio aos refugiados da guerra na Síria, país do Oriente Médio. Alguns dos vindos ao Brasil aparecem no gramado como símbolos de resistência. Aos aplausos pela ação solidária e ato de humanidade, os torcedores buscam forças para o segundo tempo.

Elas realmente ressurgem. Nosso recém conhecido e já amigo David sonha alto com um roteiro épico de virada para 3 a 2. Em pênalti marcado no início da etapa final, Jean desconta para o Flu.

Mas o domingo de Fla-Flu era da primeira sílaba e o atacante Paulinho, aproveitando mais uma chance, faz 3 a 1 para os rubros, gerando, enfim, comemorações definitivas no setor norte do Maracanã.

Não é o mesmo Maracanã de Zico, mas a torcida busca manter a festa com as luzes dos celulares, recurso possível com a proibição dos sinalizadores há alguns anos. Embalados pela endiabrada atuação em campo, os torcedores do Flamengo é que encerram o domingo aos sorrisos.




Apesar da derrota doída, o Fluminense não baixa a cabeça. As rampas de saída são mais cansativas ao lado que perde, mas nenhum princípio de confusão marca a volta para casa nos arredores. Em comparação do mesmo fim de semana de clássico, por exemplo, houve agressões de corintianos contra palmeirenses que estavam dentro de uma van, em São Paulo. Barras de ferro foram utilizadas pelos que acham que assim apoiam ao Corinthians. Lamentável sinal de selvageria que persiste em rondar noticiários.

No Rio de Janeiro, ao menos, ficam as lembranças de um jogo resolvido no campo, de 55.999 torcedores presentes, de torcidas dividindo metrôs e saídas e da mensagem maior de apoio e de proteção aos refugiados da Síria.

O futebol não deve ser guerra. Mas o futebol pode ajudar a combater uma.

Fotos: Henrique König

10 de setembro de 2015

Não gosto de shoppings


A ideia claramente evidenciada no título mostra como serão tecidas as linhas a seguir. Após viajar para terras mais distantes, no caso, o Rio de Janeiro, o mundo fantasioso dos shoppings passa a ser objeto de desconstrução proposto por minha pessoa.

A segregação existente não passa por barreiras para entrar, até porque há as convidativas portas que abrem automaticamente. Apesar disso, só ultrapassam as barreiras das mesmas aqueles com poder aquisitivo: os clientes do shopping center - o centro das compras.

O capitalismo é descarado lá dentro. A briga dos anúncios luminosos com os chamativos tons em cores fluorescentes e chamativas são o mantra pelas paredes e vitrines.

Atraem olhares antes vislumbrados como quem encara o trajeto pela primeira vez. Mas, após algumas idas e vindas, a tela do smartphone ou do iphone para andar cabisbaixo parece mais interessante a alguns.

De tudo que há no interior dos prédios unificados com as marcas globais mais badaladas, as praças de alimentação me causam o maior alvoroço, a maior inquietação. Nos espaços tomados pelos anunciantes de redes famosas de fast food, pessoas se aglomeram para dividir as selvagens refeições com várias vozes de diferentes direções.

Nos horários de almoço e de maior movimento na noite, lutam bravamente por espaços nas mesas. Jogam mochilas, bolsas e arrastam cadeiras o quanto antes para marcar território, mesmo que a superfície do móvel ainda esteja preenchida com os restos da refeição do desconhecido ocupante anterior.

Outra questão é o emprego de senhoras que estão paradas ali, apenas esperando o cliente terminar sua degustação e alcançar-lhes a bandeja. Nessa função, mais uma inventada, pela rede de shoppings, a humilde funcionária depara-se com os restos de refeição das pessoas, o lixo orgânico delas. É algo tão ou até pior do que as limpezas de banheiro.

Quanto a isso, a solidariedade de pensar como é estar no lugar dessas pessoas. No lugar dos atarefados e sobrecarregados funcionários atendentes. Lutam para servir os minimizados lanches que pouco ou nada lembram as ilustrações das propagandas. Eles, exaustos, correm contra o tempo para satisfazer os insatisfeitos clientes. Ou, para simplesmente manterem-se empregados na selva da competição.

Os desumanos shoppings vão assim mantendo hábitos cada vez mais naturais nas pessoas. Louco é quem discorda desse processo que vem acontecendo e tomando conta de cidades com uma lógica unitária, neoliberal, capitalista. Pelotas, Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantas cidades por Brasil e mundo com os mesmos males.

Dessa maneira, manifesta-se a busca da satisfação por meio das compras, do bem material, do bem de consumo. Dessa maneira, segrega-se a população entre quem tem e quem não tem condições. Quem merece e quem não merece tais privilégios, muitas vezes supérfluos. Quem é cliente e quem é o passageiro atendente, que o atendido quer nem saber o nome.

Assim caminha a humanidade ► Fabricando sorrisos às custas de mão de obra barata em países em desenvolvimento. Mas nada disso é mostrado. O que é mostrado, é a vitrine iluminada com a grife estampada em letras garrafais.

Como diz Black Alien, "a justiça dos homens perdeu um ônibus". Segue essa disfarçada babilônia (entre tantas babilônias) do século XXI.
Na pesquisa Google para a palavra "shopping", só há pessoas brancas nas imagens, conforme a escolhida. (Foto: Reprodução / Internet)

1 de setembro de 2015

Vida não tem replay - Em frente

Deita água nas últimas horas do mês de agosto de 2015. O calor de veraneio, tão comum de se intrometer no mês que antecede meu aniversário, veio dar as caras somente nos últimos dias.

Leio mais umas páginas de Douglas Kellner, autor que questiona e critica a cultura midiática, principalmente o que é oferecido e distribuído pelos Estados Unidos da América. Os estadunidenses, além de toda dominação e opressão cultural ofertada, ainda adonaram-se do termo americano.

Eu sou americano. Os índios xavantes são americanos. Os salvadorenhos e os jamaicanos também são americanos. Não só eles.

Na sala, meu pai distribuiu assobios há alguns minutos. Já migrou para a cozinha, onde acabou de arredar a cadeira sabe-se lá com que objetivo de transitar. A internet foi cortada em proteção aos raios próximos. Salvarei o texto primeiramente no word.

Lá fora, o world segue seu curso natural. A chuva chovendo para baixo. Mais tarde, evaporada para cima e assim flui a coisa, me entendem?

Aprendi, neste mês que se finda, de que a vida não tem replay. Parece meio óbvio afirmar isso, mas é preciso provas para comprovar. E, quando fui à celebração pela mesma causa do semestre anterior, no mesmo lugar, percebi que as pessoas, inclusive eu, não são as mesmas.

Procurei-a novamente. Só satisfez meus objetivos circunstanciais por uma noite no passado e ainda incompleta. Mais incompleta ainda tornou-se esta noite da percepção de que a vida não tem replay.

A alegria dela parece se repetir com o que encontrou e fico feliz. Eu? Mudo minhas percepções e caminho por algumas ruas em que não estou acostumado. Seguir adiante.


Ao início deste setembro, viajo ao Rio de Janeiro. Atesto que toda viagem gera texto.