'Amanhã Nunca Mais' é um filme que me agradou muito mesmo. O desenvolvimento das situações pelas quais Walter passa são uma sucessão de constrangimentos e indelicadezas das quais não estamos livres no cotidiano, sobretudo na profissão dele, que é um médico-anestesista.
Praticamente todo o filme se desenvolve com cenas constrangedoras e Walter torna-se um personagem aprisionado pelo caos dos grandes centros. São situações específicas para o público morador das cidades grandes, mas também problemas que qualquer pessoa pode passar por. Pensei em elencar algumas dessas situações.
O constrangimento de Walter na praia, quando precisa passar protetor solar nas costas de sua sogra. Em seguida, ele também presencia sua esposa em uma foto com o pai de outra criança, quando os pequenos brincavam na areia. Essa situação já dimensiona que o casamento do anestesista não vai bem. O pai de família ainda tem interrompido o seu descanso quando precisa levar a pequena Juju até onde possa fazer cocô. Antes disso, é importante lembrar que Walter não conseguia descansar a mente direito, olhava para o topo de seu guarda-sol, mas enxergava mesmo eram as figuras de seus pacientes sendo sedados, entubados, sangrados, medicados. Por fim, recebe uma ligação de caso de urgência em seu serviço e a família precisa sair da praia mais cedo.
O filme perpassa situações cotidianas do caótico trânsito paulista. Na saída da praia, Walter e família estão na estrada tumultuada com a volta da praia, vários e vários carros cinza em lentidão. Na rodovia de sentido oposto, o trânsito fluía sem problemas, com liberdade para dirigirem. O médico fica preso entre os demais carros em grande parte do desenvolvimento da trama. Outra situação que caracteriza Walter é ser negro em um cargo de anestesista, de médico. Ele precisa seguidamente estar provando a sua competência, ao que pessoas desconhecidas estranham como um negro conseguiu chegar a tal cargo. Isto é provado nas encrencas em que ele acaba se metendo no casamento de uma conhecida, um dos momentos de coincidência exagerada do filme. Ao ficar sem gasolina para buscar o bolo do aniversário da filha, Walter acaba parando o carro em frente à casa dessa conhecida, que nutre uma paixão que estava adormecida pelo personagem principal. Ele acaba se metendo nessa enrascada, pois a mulher o convida para entrar, fugir da repentina chuva que aguça seu azar e, nessa troca de favores, Walter consegue reabastecer seu carro para retomar sua missão de entregar o bolo a tempo da festinha de Juju. Porém, a conhecida não se dá por vencida: ela se embebeda, trazendo a temática do alcoolismo à tona, o constrangimento pela atuação da moça em busca de ser correspondida pelo nosso Walter. Ela acaba armando cenas e mais cenas, sendo uma delas atender o telefone de Walter enquanto ele estava no banheiro, se trocando após ter se sujado na missão de transferir a gasolina entre os carros deles. A mulher atende Solange, a esposa de Walter e é claro que o casamento vai se arruinando mais e mais, afinal de contas, uma desconhecida atende o celular do marido enquanto ele está ausente "no banheiro se trocando", conforme as palavras da doida apaixonada pelo protagonista.
Pois bem, o foco são as pequenas situações que criam o todo, a bola de neve onde está submergido nosso querido Walter, um personagem sobretudo caracterizado por não conseguir dizer não - conforme toca a música de Seu Jorge logo na abertura da película. Todos fazem pouco caso das vontades do pobre Walter. Com a dificuldade de se impor desde casa até o trabalho e mesmo frente a desconhecidos. Para se livrar do bloco-cirúrgico, ele tem uma imensa dificuldade de convencer seu amigo médico durante a prometida "rápida saída" no período, o que, como vimos, acaba se tornando uma tremenda confusão. Walter queria apenas sair por cerca de 1h30 para buscar o bolo e entregar na festinha, cumprimentando à filha e aos convidados, mas nada acontece conforme o planejado. Dentro do hospital Walter também estava predisposto a mais constrangimentos. Esse seu amigo médico é um tremendo fanfarrão, pois é egocêntrico (crítica social aos médicos?) e fica passando cantadas e exageros em pacientes e enfermeiras. Fala de mulheres objetificando-as e constrange Walter com suas frases disparadas sem o menor pudor. Em uma das cenas logo no início, o médico esse pede para que Walter assine um abaixo-assinado requerendo melhorias para o bloco dos médicos, onde eles deixam seus pertences naqueles conhecidos armarinhos. O anestesista estranha que a lista para assinarem ainda está vazia e o médico brinca "não tem problema, eu posso assinar primeiro então", ao que Walter nota que o médico folgado assina na segunda linha, deixando o espaço principal, a cabeça da folha para o protagonista que não sabe dizer não. Constrangido, Walter assina, mesmo em dúvida se aquela apelação por melhorias poderia comprometer a situação empregatícia de ambos - principalmente dele, afinal, fora o primeiro a assinar o texto exigindo as obras.
Outros recortes são bem sutis na proposta do diretor, como uma caminhada na praia entre diferentes pés, diferentes pernas e garrafas e sobras de cascas de frutas na beira do mar, a conhecida crítica social ao bicho homem e suas sujeiras. A cena se repetiria entre o caótico trânsito da capital paulista e também por entre as pernas e macas dos corredores hospitalares. A diferenciação de ritmos, entre a caminhada tranquila com os pés na água e a pressa de Walter em contornar colegas e pacientes dentro do hospital, sempre com pressa. A pressa, o aprisionamento da rotina, os afazares, tudo corroem um Walter que perde a calma em pouquíssimos momentos, fato que faz com que alguns críticos do cinema diminuam a atuação do presente Lázaro Ramos. Pois bem, quando consegue se libertar das amarras dos hospital, não sem antes ouvir poucas e boas dos colegas de serviço, Walter se atrasa no trânsito, no enrosco das ruas e viadutos e avenidas e até na hora de simplesmente pegar o maldito bolo, prato principal do filme, sendo que este já estava inclusive pago pela esposa. Na casa onde a doceira produzia o bolo havia muitos gatos, fazendo-nos duvidar da higiene adequada do local. São filhotes salvos ou adotados, gatos adultos, bichos que não acabam mais. Com seu olhar sempre benevolento, o personagem interpretado por Lázaro Ramos também acaba servindo de alvo das velhas senhoras que o tiram para confessionário, já outras, como as senhoras no casamento onde ele acaba levando a amiga que o ajudou a abastecer a droga do carro ao faltar gasolina, situação em que algumas, ao descobrirem que estavam defronte um médico, começam a pedi-lo para examinar caroços surgidos e dissertar opiniões conceituadas.
Enfim, Walter se mete nas mais diferentes enrascadas. Antes do casamento e desse encontro casual e exagerado com a antiga vizinha, ele já havia atropelado um motoqueiro que furou sinal e - mesmo com sua pressa e não sendo dele o erro, prestou o socorro de chamar-lhe uma ambulância e embutiu uma velha vizinha fofoqueira para que cuidasse do caído enquanto o resgate não chegava para acudi-lo. Walter então dispara, volta ao trânsito caótico e doentio da maior cidade brasileira, mas se perde nos endereços e precisa pedir ajuda num posto de gasolina, onde conhece uma suposta estudante da faculdade de Comunicação, que a pagava da forma como muitas jovens precisam pagar no país: com a prostituição. Ela gosta de Walter, talvez por sabê-lo agora como um médico (sem imaginar que um anestesista?) e propõe brincadeiras que obviamente Walter custa muito para se livrar, afinal de contas, era casado e estava na missão de simplesmente levar um bolo para a festa de aniversário da filha Juju. Mas as pessoas, em seus universos egocêntricos sempre têm dificuldade para entenderem o pobre Walter, que não consegue se impor a cada encontro e a cada cena.
Mais um enfim para a coleção deste texto, mas enfim, com uma leitura nada linear e repleta de spoilers, podemos encaminhar o fim dessa análise novamente salientando que a narrativa de Walter pode ser comum a muitos paulistanos e brasileiros perdidos por esse país. O adulto classe média, o negro que precisa provar que é merecedor de estar onde está, o pai de família atrapalhado na rotina, o casamento em destroços, as pessoas que cruzam seu caminho e tentam desvirtuá-lo e tentam tirar vantagem e tentam enlouquecê-lo das mais diversas formas. Os personagens que fazem parte do cotidiano dos grandes centros, os malucos que convivemos em nossos serviços, o médico abusador, que constrange as colegas de serviço e as pacientes, o outro estressado e que trata os demais com submissão, xingando o pobre Walter por cada pequena falha, em cada pequeno atraso. A família desconfiada - talvez racista - desconfiada da capacidade de Walter conseguir cumprir com os acordos. O próprio cidadão tentando lidar com esse mar de gente, com esse caldeirão confuso de alta periculosidade. O estresse do trabalho, a correria do trânsito, o aprisionamento da rotina como gumes centrais dessa bem construída trama. Uma espécie de road movie, de aventura e trapalhadas para humores mais ou humores menos pastelões, mas com toques refinados de crítica social ao bom gosto. Uma transposição de coisas já vistas por outros países mas com uma pegada totalmente brasileira, seja pelo ambiental paulista ou pelas espécies que cruzam o caminho do aturdido anestesista.
Um grande filme, a mim avaliado como um clássico, pois a rotina das grandes cidades não dá trégua aos mais diferentes Walters, negros, brancos, jovens, velhos, motoristas, trabalhadores da área da saúde, pais de família, secretários, negociantes, comerciantes, doceiros, costureiros, officeboys. Pessoas alcoolizadas, judeus do casamento da antiga vizinha de Walter, doceiras fãs de criar gatos, universitárias que precisam se prostituir, entregadores que furam o sinal vermelho, socorristas, vizinhas fofoqueiras, idosas que precisam com quem conversar, uma salada totalmente brasileira em um filme que apresenta lá seus muito valores e precisa de seu revestido reconhecimento embora a nota nos sites especializados não assim se demonstre. Pausa para o fôlego e para a mera indignação: mas que coisa!