29 de novembro de 2021

Análise do Amanhã Nunca Mais (2011)

'Amanhã Nunca Mais' é um filme que me agradou muito mesmo. O desenvolvimento das situações pelas quais Walter passa são uma sucessão de constrangimentos e indelicadezas das quais não estamos livres no cotidiano, sobretudo na profissão dele, que é um médico-anestesista.

Praticamente todo o filme se desenvolve com cenas constrangedoras e Walter torna-se um personagem aprisionado pelo caos dos grandes centros. São situações específicas para o público morador das cidades grandes, mas também problemas que qualquer pessoa pode passar por. Pensei em elencar algumas dessas situações.

O constrangimento de Walter na praia, quando precisa passar protetor solar nas costas de sua sogra. Em seguida, ele também presencia sua esposa em uma foto com o pai de outra criança, quando os pequenos brincavam na areia. Essa situação já dimensiona que o casamento do anestesista não vai bem. O pai de família ainda tem interrompido o seu descanso quando precisa levar a pequena Juju até onde possa fazer cocô. Antes disso, é importante lembrar que Walter não conseguia descansar a mente direito, olhava para o topo de seu guarda-sol, mas enxergava mesmo eram as figuras de seus pacientes sendo sedados, entubados, sangrados, medicados. Por fim, recebe uma ligação de caso de urgência em seu serviço e a família precisa sair da praia mais cedo.

O filme perpassa situações cotidianas do caótico trânsito paulista. Na saída da praia, Walter e família estão na estrada tumultuada com a volta da praia, vários e vários carros cinza em lentidão. Na rodovia de sentido oposto, o trânsito fluía sem problemas, com liberdade para dirigirem. O médico fica preso entre os demais carros em grande parte do desenvolvimento da trama. Outra situação que caracteriza Walter é ser negro em um cargo de anestesista, de médico. Ele precisa seguidamente estar provando a sua competência, ao que pessoas desconhecidas estranham como um negro conseguiu chegar a tal cargo. Isto é provado nas encrencas em que ele acaba se metendo no casamento de uma conhecida, um dos momentos de coincidência exagerada do filme. Ao ficar sem gasolina para buscar o bolo do aniversário da filha, Walter acaba parando o carro em frente à casa dessa conhecida, que nutre uma paixão que estava adormecida pelo personagem principal. Ele acaba se metendo nessa enrascada, pois a mulher o convida para entrar, fugir da repentina chuva que aguça seu azar e, nessa troca de favores, Walter consegue reabastecer seu carro para retomar sua missão de entregar o bolo a tempo da festinha de Juju. Porém, a conhecida não se dá por vencida: ela se embebeda, trazendo a temática do alcoolismo à tona, o constrangimento pela atuação da moça em busca de ser correspondida pelo nosso Walter. Ela acaba armando cenas e mais cenas, sendo uma delas atender o telefone de Walter enquanto ele estava no banheiro, se trocando após ter se sujado na missão de transferir a gasolina entre os carros deles. A mulher atende Solange, a esposa de Walter e é claro que o casamento vai se arruinando mais e mais, afinal de contas, uma desconhecida atende o celular do marido enquanto ele está ausente "no banheiro se trocando", conforme as palavras da doida apaixonada pelo protagonista.

Pois bem, o foco são as pequenas situações que criam o todo, a bola de neve onde está submergido nosso querido Walter, um personagem sobretudo caracterizado por não conseguir dizer não - conforme toca a música de Seu Jorge logo na abertura da película. Todos fazem pouco caso das vontades do pobre Walter. Com a dificuldade de se impor desde casa até o trabalho e mesmo frente a desconhecidos. Para se livrar do bloco-cirúrgico, ele tem uma imensa dificuldade de convencer seu amigo médico durante a prometida "rápida saída" no período, o que, como vimos, acaba se tornando uma tremenda confusão. Walter queria apenas sair por cerca de 1h30 para buscar o bolo e entregar na festinha, cumprimentando à filha e aos convidados, mas nada acontece conforme o planejado. Dentro do hospital Walter também estava predisposto a mais constrangimentos. Esse seu amigo médico é um tremendo fanfarrão, pois é egocêntrico (crítica social aos médicos?) e fica passando cantadas e exageros em pacientes e enfermeiras. Fala de mulheres objetificando-as e constrange Walter com suas frases disparadas sem o menor pudor. Em uma das cenas logo no início, o médico esse pede para que Walter assine um abaixo-assinado requerendo melhorias para o bloco dos médicos, onde eles deixam seus pertences naqueles conhecidos armarinhos. O anestesista estranha que a lista para assinarem ainda está vazia e o médico brinca "não tem problema, eu posso assinar primeiro então", ao que Walter nota que o médico folgado assina na segunda linha, deixando o espaço principal, a cabeça da folha para o protagonista que não sabe dizer não. Constrangido, Walter assina, mesmo em dúvida se aquela apelação por melhorias poderia comprometer a situação empregatícia de ambos - principalmente dele, afinal, fora o primeiro a assinar o texto exigindo as obras.

Outros recortes são bem sutis na proposta do diretor, como uma caminhada na praia entre diferentes pés, diferentes pernas e garrafas e sobras de cascas de frutas na beira do mar, a conhecida crítica social ao bicho homem e suas sujeiras. A cena se repetiria entre o caótico trânsito da capital paulista e também por entre as pernas e macas dos corredores hospitalares. A diferenciação de ritmos, entre a caminhada tranquila com os pés na água e a pressa de Walter em contornar colegas e pacientes dentro do hospital, sempre com pressa. A pressa, o aprisionamento da rotina, os afazares, tudo corroem um Walter que perde a calma em pouquíssimos momentos, fato que faz com que alguns críticos do cinema diminuam a atuação do presente Lázaro Ramos. Pois bem, quando consegue se libertar das amarras dos hospital, não sem antes ouvir poucas e boas dos colegas de serviço, Walter se atrasa no trânsito, no enrosco das ruas e viadutos e avenidas e até na hora de simplesmente pegar o maldito bolo, prato principal do filme, sendo que este já estava inclusive pago pela esposa. Na casa onde a doceira produzia o bolo havia muitos gatos, fazendo-nos duvidar da higiene adequada do local. São filhotes salvos ou adotados, gatos adultos, bichos que não acabam mais. Com seu olhar sempre benevolento, o personagem interpretado por Lázaro Ramos também acaba servindo de alvo das velhas senhoras que o tiram para confessionário, já outras, como as senhoras no casamento onde ele acaba levando a amiga que o ajudou a abastecer a droga do carro ao faltar gasolina, situação em que algumas, ao descobrirem que estavam defronte um médico, começam a pedi-lo para examinar caroços surgidos e dissertar opiniões conceituadas.

Enfim, Walter se mete nas mais diferentes enrascadas. Antes do casamento e desse encontro casual e exagerado com a antiga vizinha, ele já havia atropelado um motoqueiro que furou sinal e - mesmo com sua pressa e não sendo dele o erro, prestou o socorro de chamar-lhe uma ambulância e embutiu uma velha vizinha fofoqueira para que cuidasse do caído enquanto o resgate não chegava para acudi-lo. Walter então dispara, volta ao trânsito caótico e doentio da maior cidade brasileira, mas se perde nos endereços e precisa pedir ajuda num posto de gasolina, onde conhece uma suposta estudante da faculdade de Comunicação, que a pagava da forma como muitas jovens precisam pagar no país: com a prostituição. Ela gosta de Walter, talvez por sabê-lo agora como um médico (sem imaginar que um anestesista?) e propõe brincadeiras que obviamente Walter custa muito para se livrar, afinal de contas, era casado e estava na missão de simplesmente levar um bolo para a festa de aniversário da filha Juju. Mas as pessoas, em seus universos egocêntricos sempre têm dificuldade para entenderem o pobre Walter, que não consegue se impor a cada encontro e a cada cena.

Mais um enfim para a coleção deste texto, mas enfim, com uma leitura nada linear e repleta de spoilers, podemos encaminhar o fim dessa análise novamente salientando que a narrativa de Walter pode ser comum a muitos paulistanos e brasileiros perdidos por esse país. O adulto classe média, o negro que precisa provar que é merecedor de estar onde está, o pai de família atrapalhado na rotina, o casamento em destroços, as pessoas que cruzam seu caminho e tentam desvirtuá-lo e tentam tirar vantagem e tentam enlouquecê-lo das mais diversas formas. Os personagens que fazem parte do cotidiano dos grandes centros, os malucos que convivemos em nossos serviços, o médico abusador, que constrange as colegas de serviço e as pacientes, o outro estressado e que trata os demais com submissão, xingando o pobre Walter por cada pequena falha, em cada pequeno atraso. A família desconfiada - talvez racista - desconfiada da capacidade de Walter conseguir cumprir com os acordos. O próprio cidadão tentando lidar com esse mar de gente, com esse caldeirão confuso de alta periculosidade. O estresse do trabalho, a correria do trânsito, o aprisionamento da rotina como gumes centrais dessa bem construída trama. Uma espécie de road movie, de aventura e trapalhadas para humores mais ou humores menos pastelões, mas com toques refinados de crítica social ao bom gosto. Uma transposição de coisas já vistas por outros países mas com uma pegada totalmente brasileira, seja pelo ambiental paulista ou pelas espécies que cruzam o caminho do aturdido anestesista.

Um grande filme, a mim avaliado como um clássico, pois a rotina das grandes cidades não dá trégua aos mais diferentes Walters, negros, brancos, jovens, velhos, motoristas, trabalhadores da área da saúde, pais de família, secretários, negociantes, comerciantes, doceiros, costureiros, officeboys. Pessoas alcoolizadas, judeus do casamento da antiga vizinha de Walter, doceiras fãs de criar gatos, universitárias que precisam se prostituir, entregadores que furam o sinal vermelho, socorristas, vizinhas fofoqueiras, idosas que precisam com quem conversar, uma salada totalmente brasileira em um filme que apresenta lá seus muito valores e precisa de seu revestido reconhecimento embora a nota nos sites especializados não assim se demonstre. Pausa para o fôlego e para a mera indignação: mas que coisa!

Walter preso no elevador na festa de casamento da amiga de sua antiga vizinha, que o convence a levá-la em nome da troca de favores (por ter abastecido o carro dele) e em prol de uma antiga paixão adormecida - ela ainda se serve de uma chantagem, pois roubou o celular de Walter, colocando-o na bolsa

Walter preso no trânsito com a estudante de Comunicação que pagava a faculdade através de serviços de prostituição - era para ser somente uma carona em outra troca de favores, pois o azarado anestesista havia recebido dela a informação sobre onde deveria dobrar


Consigo notar minha sorte dentro dos seus olhos 



E outra hora faço uma canção com esse trecho

27 de novembro de 2021

Memórias e público-alvo

Eu, escritor impaciente que quer registrar muitas - quase todas - suas memórias. Pensando o quão narcisista precisa ser para considerar todo esse bloco de anotações confusas relevante. Mas não é somente por considerar relevante. Na verdade parece longe desse ser o ponto principal. Acontece nesse processo o medo do esquecimento. Não de outros não lembrarem mas de eu próprio esquecer. Esquecer pelo que passei e o que pensava à certa altura do campeonato. Porém, se não havia o narcisismo de considerar tudo relevante, há novamente em foco a cultura do eu, por achar que é relevante se lembrar. Lembrança aqui não em seu estado abre aspas "natural" fecha aspas, mas lembrança evocada pelo registro no papel.

Enfim, fico a me questionar se os demais escritores registram suas próprias lembranças por A) considerarem relevantes às demais pessoas ou B) necessitarem de registro para combater o esquecimento. Um esquecimento que, caso não tenha ficado claro, é mais para eu mesmo lembrar do que para terceiros. Embora terceiros podem se servir dessas linhas sempre que assim quiserem, se identificarem, forem escolhidos por elas - fazendo alusão ao lema do Botafogo que escolhia os torcedores e não os torcedores o escolhiam. Talvez essas linhas tenham escolhido a ti, leitor. Não te parece? Pois bem, então não foste escolhido por elas. Talvez nem pelos textos anteriores ou pelos posteriores que eu tenha a publicar. Uma pena. Mas posso fazer nada. Talvez então eu não estivesse pensando em ti quando escrevi. Provavelmente era questão apenas de habitual registro de escrita. Exercício que pratico costumeiramente.

Ausente de me registrar desde a infância, certamente muita coisa se perdeu. Não lamento. Talvez tenham ficado em minha mente os principais pontos e a partir deles me construo. Edifico o que aqui escrevo. É interessante como somente alguma mera passagem pode arborizar um jardim inteiro. Seria uma analogia como a expansão do universo que pode se reproduzir e desdobrar-se muitas vezes o seu próprio tamanho em frações de segundos. Assim são as memórias, assim são os textos em que muitas vezes não planejo mais do que formal introdução. Por ora, finalizo essas transgressões e prometo voltar numa próxima para mais pontualidades. Podendo acertá-lo como uma flecha ou passarem distante do alvo leitor. Assim são muitos textos.

26 de novembro de 2021

Alegria no esporte

Hoje recebi no aplicativo mais famoso de conversas um áudio da menina Dóris de Andrade. Ela é uma corredora, paratleta pela sua deficiência visual. Dóris já nasceu com essa limitação de visão, mas isso não a impediu de ser uma excelente atleta. Nesta semana, do final de novembro de 2021, Dóris foi a São Paulo representar o Rio Grande do Sul e, especificamente, a cidade de Pelotas, onde ela representa a Escola Louis Braille e o Colégio Municipal Pelotense.

Aos 14 anos, Dóris somou mais uma medalha de ouro a nível nacional, nas Paralimpíadas Escolares Brasileiras. Ela tinha conseguido o feito em 2019. Voltou ao pódio com o terceiro lugar em uma prova curta, de apenas 75 metros. Mas, na sua especialidade, nos 1.000 metros, ninguém segurou a menina pelotense. Ela que conduziu o guia e não o contrário. O mais tocante é a alegria com que a equipe se trata. Pensamos sempre em esporte de alto rendimento com semblantes fechados, carregados, testas franzidas, esforço sobrenatural. Mas por que não aliar a alegria a tudo isso? Dóris consegue.

Ela e o instrutor Huibner se tratam com muito carinho, com respeito, mas, sobretudo, me chamou a atenção o aspecto da alegria. Comemoram juntos, sorriem juntos, aproveitam o esforço, o suor, a cada passo rumo a mais uma conquista. Talvez às vezes a vitória não venha, mas é necessário entender isso como parte do esporte. E assim, mesmo entre os melhores, as melhores competidoras do Brasil, não perder de foco o lado lúdico do esporte. Hoje, sobretudo no futebol, o dinheiro toma o protagonismo. Não deveria ser assim. E por que será que tratamos tão mal, no futebol, quando se fala em amadorismo? Em tempos remotos dos amadores? Em falta de profissionalização - sempre - com teor negativo? Não serão mais comuns os exemplos de alegria estampada no rosto entre os que praticam o esporte pelo esporte? Provável.

Entre quem se dispõe a esse profissionalismo das cifras e das máquinas, ok, que se busque esse caminho. Mas não deveríamos direcionar um olhar tão reprovador para o que é amador. O amador que é a origem de tudo, antes da profissionalização. Dos tempos mais antigos, dos tempos mais românticos e, onde aqui e ali, em um lado ou outro, muitos tentam manter acesa essa chama. Aquilo mais regado a companheirismo, amizade, confraternização ao final das jornadas, das semanas. Diferente de outros ambientes de competição mais perversa, de tentativas de golpe, de escaladas para chegar ao topo mas por sobre quantos?

Enfim, a história de Dóris me despertou um sentimento muito positivo. Espero que ela alcance seus objetivos. Seja competitiva entre as melhores, mas sem perder de vista as origens, o sorriso no rosto, a alegria infantil de seus avanços a cada passo. Lembrar quem esteve junto consigo, lembrar que fez a alegria de muitos funcionários que a acompanharam. Lembrar que fez, inclusive, a minha alegria, eu que ainda não a conheço. Obrigado por me devolver cédulas de esperança - que valem mais do que dinheiro - nesta sexta-feira.

16 de novembro de 2021

Esgotos de Varsóvia

Esgotos poloneses

Por onde ocorre a Segunda Guerra

Por entre as fezes

Por muitos meses


Esgotos de Varsóvia

Dias e noites soterrados

Não sei se faz sol

Ou talvez chova

Preso nos esgotos

De Varsóvia


Esgotos e todo lodo

E tão logo nada se resolve

Falta oxigênio

No meio dos túneis

E ninguém foge

Nem fica imune


Alemães na caça

De tudo que é diferente

De sua 'raça'

Essa desgraça

Nos túneis de Varsóvia

E tudo se desova

No esgoto

Um a um

Outro a outro


Perigo nos túneis da Polônia

Sem ajuda e com a fome

Tombam homens

No reduto dos ratos

Lado a lado

Acossados


A guerra se estende para o leste

Como a peste

Como a fome

A Polônia ocupada

Em sobreviver

Contra as granadas

Os céus e os esgotos

Contra o todo

De uma guerra





9 de novembro de 2021

Antes de mais nada

Antes de mais nada

Avisa que é ela

Antes de mais nada

Subo quatro lances de escada

Vou até tua janela

Olho o céu que tu me pedes

Com o olhar que é infinito 

Mas tão logo reflito 

Sei que há nada mais bonito 

Os 160 e poucos que tu medes

Há lares

Você faz com que minha vida às vezes caiba num sofá

Você me deixa com uma do Bidê ou Balde na cabeça

Você me faz perder um filme que realmente não quero ver

Você me faz iniciar versos com você 


Você também leu e não sabia de quem eu falava

Falava de ninguém, agora falo de você

Você me fez sentir o que já não me importava

Bastava nesse tempo todo era te ver


Acho que muito imaginava e dali escrevia

Agora que é de verdade, quem diria?

Já não tenho tanto o que escrever

Sobravam fantasias e hoje é sobre você


Você não erra uma na cozinha

Você às vezes ansiosa

Às vezes assombrosa em bruxaria

Mais me admiro que me assusta

Você antes fosse mesmo bruxa 

A caixa dos gatos eu limparia


Eu que te faço dormir mais tarde

Causa em mim na terça alarmes

E no sábado poesia

Mais belo parte assim um dia

Eu perto de ti, enfim, há lares

Querendo

Passei tanto tempo vivendo querendo morrer que não duvido que eu morra logo agora querendo viver. A vida é também a morte.