26 de dezembro de 2013

Fronteiras sutis (05/12)

Sutis são as fronteiras que delimitam os conceitos, dividem classificações subjetivas, definem, como alguns dizem, a grosso modo. Algumas situações muito mais complexas do que a demarcação entre a sua casa e a do vizinho.
Sutil é a fronteira entre quem não acredita que exista música boa no Brasil, e assim ouve somente estrangeirismos, e quem idolatra Michel Teló e Parangolé. Sutil é a fronteira entre falar pouco, por timidez, desconhecimento ou antipatia, e falar demais, a ponto de irritar os ouvintes e outros contribuintes da conversa. Sutil é a fronteira do cálculo extenso, em que uma vírgula determina ou não sua aprovação. Sutil é a fronteira entre Rio Grande do Sul e Uruguai, que, apesar da mudança (até sutil?) de idioma entre seus habitantes, mantém as mesmas pastagens dos dois lados do rio.
Sutil é a fronteira entre chegar cedo demais e não ter o que fazer enquanto espera, ou chegar atrasado e passar por irresponsável. A hora certa de chegar, às vezes, é a incógnita. A sutil fronteira entre pressionar a pessoa especial à espera de reciprocidade no sentimento dela, e não investir, perder o portal para um relacionamento. A sutil fronteira entre estar muito sóbrio e muito bêbado.
A sutil fronteira entre os sons e regras de um idioma, complicadas em demasia para os novatos na aprendizagem deste. A sutil fronteira entre o herói e o vilão. No futebol, o goleiro de 5 milagres operados para evitar o gol em um jogo pode tomar um frango e acabar responsabilizado pela derrota. O jornalista pode escrever 50 grandes textos, mas um deslize o coloca na forca da opinião pública.
A sutil fronteira entre o instante de um piscar de olhos, na vida sem reprise, sem replay. O mágico não repetirá o truque e o próximo bote da cobra será só na próxima refeição, mais de uma semana depois. A próxima passagem do cometa daqui uns 70 anos. O próximo eclipse vai demorar também. A Ponte Preta, quem diria, na final da Copa Sul-Americana, passados 113 anos desde sua fundação e com nenhum título paulista da primeira divisão na estante de troféus, pode se tornar campeã continental.
Uma sutil fronteira deve decidir o duelo no jogo de volta da final. Mais absurdamente sutil se for decidido nos pênaltis. Mais sutil do que o balanço entre o bom e o mau para entrar no céu. Mais sutil que a diferença entre o apático e o vulgar. Mais sutil do que a teia da aranha. Mais sutil do que a transição entre acordado e dormido. Muito, muito sutil.

6 de dezembro de 2013

O Céu É Só Uma Promessa

O chão. O chão é esse misto de transtorno e segurança. Sim, precisamos de um chão acolhedor e agradável, de preferência cercado por paredes, que intimidem os estranhos, para não pisarem em nosso precioso. De preferência sob um teto, ainda na mesma função das paredes e que nos impede de olhar as estrelas. O chão que necessitamos para estacionar pares de chinelos, acomodar móveis com harmonia e limpar de 15 em 15 dias.

Fora das quatro paredes, o chão fica mais restrito ao sentimento de transtorno. Lixo pelas ruas, trânsito nervoso de pedestres zumbis. Mais mortos do que vivos. Os caninos de rua procriam e largam dejetos no chão. Cuidado pra não pisar! Naquela esquina, teve acidente ontem. A moto furou o sinal. “Não foi a primeira vez”, comentou um. “O cara cercou o moleque e pediu o celular dele. Foi logo ali”, apontou o atendente de uma loja. Às vezes, ele e outro funcionário anunciam as promoções em papéis, que ficam na travessia por onde solas e saltos gastos desfilam. Na verdade, entregam nas mãos das pessoas. Logo, alguns acham que o lar perfeito ao panfleto é no bueiro mais próximo. “Larga ele aí, vai achar o caminho de casa sozinho.”

“E nessa última chuva, entupiu tudo! A água arrastava sacos de lixo e eu não enxergava onde pisava.” Que insegurança essa: não saber onde a pata vai! O passo a seguir pode ser só mais um, ou pode ser aquele em que prendesse a perna no ralo destampado. Conta os passos cautelosos para chegar em casa, olhando pros lados, desconfiado, tem sacola de loja famosa na mão esquerda e o molho de chaves trêmulo a tintilar na direita. Foi ao banco mais cedo, era dia de pagamento. “Será que alguém me seguiu?”. Suspira, falta menos de uma quadra. Vai chegar no seu chão precioso. Será?

Acima de tudo, a calmaria do céu, onde, apesar das linhas aéreas, o tráfego de nuvens predomina. Voos de pássaros para longe do alcance de nossos olhos. Apesar também de todo o monitoramento do espaço aéreo e das delimitações de fronteiras, não é o mesmo caos de divisão de hectares, MST, metro quadrado de apartamento, de bairro de luxo, de morro, de leito de hospital, de caixão, de distância do concorrente para não colar na prova do concurso público para trabalhar em outro cubículo.

Sim, o céu. Quanto mais próximo dele, vemos o quão insignificante é aquele pedaço de civilização visto da janela do avião. Formigas em desarmonia. Por isso, na crença, os anjos viveriam nas nuvens. Por isso, mais um motivo para os anjos caídos praticarem o mal. Ainda não sei se acima ou abaixo do chão. Enquanto o céu... o céu é só uma promessa.