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21/07/2025

Classe Operária (1982)

Com título de Moonlighting (1982), o filme conta a história de um trabalhador polonês melhor instruído que seus colegas, por falar a língua inglesa e se meter nos trâmites. Em meio à crise política que cercava a Polônia, Novak vai para Londres com outros três trabalhadores sob sua tutela, entre aspas. Ele é o líder entre os quatro por se comunicar com os empregadores. Com visto/passaporte para apenas um mês, eles precisam agir rápido em uma obra para restauração total de uma casa/apartamento (bem ao estilo britânico, como já devem ter visto).

O objetivo dos ingleses ao contratar a mão de obra estrangeira é reduzir ao máximo os custos. No início do filme fala-se em um serviço até quatro vezes mais baratos quando realizado pelos poloneses. As condições do emprego são extremamente precárias. Os trabalhadores poloneses dormem na própria obra. Um canto, uma esteira, alguns escassos pertences para cada um. Novak obviamente é o mais abastado, chutando para longe qualquer referência a um bom socialismo - ou talvez emulando as maiores desfaçatezes possíveis nos regimes. Assim, o líder do grupo é o que se comunica e recebe o dinheiro do contratante. Inclusive o filme todo se passa em inglês, com diálogos entre os trabalhadores polacos propositalmente não traduzidos.

Para além do protagonismo de Novak, os demais personagens até recebem nomes, mas pouco ou quase nada se sabe sobre suas vidas. Parece um recurso proposital para torná-los simplórios e pouco articulados, ainda mais diante de cultura e país que não conheciam. Novak lê jornais, compra os materiais necessários para obra, mesmo casado tenta encontrar um tempo para uma escapada e, de forma gradual, vai se tornando o grande canalha que dificulta inclusive a relação de prosseguir a vista do filme. É um personagem principal bastante audacioso e apegado a truques.

Novak articula golpes na vizinhança. Além da tentativa de flerte que, perdão, parece até bem secundária na trama, preocupa a Novak o escasso dinheiro que teria de dividir entre seus parceiros. Assim, o mal intencionado promove golpes a supermercado e tenta pechinchar sempre que possível diante das poucas libras que lhe restam. O cerco vai gradativamente fechando contra o canalha, com truques em decadência, confiança dos rapazes em baixa e o prazo para entregar a obra cada vez mais próximo do esgotamento. Com tantas dificuldades para equilibrar-se no estilo de vida britânico, Novak percebe que a grande oportunidade para voltar para Polônia com dinheiro valorizado acaba se tornando uma grande furada.

O filme transcorre acontecimentos paralelos, como uma grande repressão a movimentos políticos de oposição na Polônia, em uma batalha por direitos sociais e por uma maior liberdade no país. Procurando esconder de seus colegas de trabalho as informações, Novak camufla notícias, desconversa sobre a situação polonesa e busca manter a trupe organizada unicamente no objetivo de entregar a obra no prazo estimado.

Socialmente, chama a atenção a peculiaridade de contratar a mão de obra desconhecida, de pouca garantia, mas bem mais barata, movimento comum até hoje a muitos países, com diferentes recortes e possibilidades pelo mundo. Os Estados Unidos contam com latino-americanos, filipinos, a Europa com árabes e africanos e até o Brasil muitas vezes se favorece da diferença de oportunidades e moedas para contar com bolivianos, venezuelanos, paraguaios, haitianos e alguns africanos vindos de longe. Sobre o Paraguai, há um filme brasileiro sobre a contratação dos nativos deste país, principalmente na grande São Paulo, um filme antigo (mesmo ano do filme desta resenha, 1982, em tremenda coincidência) chamado de Noites Paraguaias - este conta como esses migrantes buscam qualquer tipo de emprego para resistir e acomodar suas famílias. O principal nesses assuntos é apontar as dificuldades do elo trabalhista, as tensões criadas entre os estrangeiros e os locais e, obviamente, muitas vezes o preconceito partindo do empregador e da comunidade em relação a esses estranhos em potencial. Trabalhadores homens com ou sem esposas, potenciais estupradores na visão dos locais, financeiramente pobres, talvez pouco instruídos e com costumes diferentes: o preconceito torna-se gritante. A adaptação sempre traz e expande climas de tensão e a continuidade das missões é posta em risco.

Assim, filmes com essa temática trazem excentricidades e pontos em comum, demonstram a vida e o convívio tensos em diferentes partes do mundo, cabendo a identificação do que se repete, do que se difere e onde a ficção encontra a realidade e a realidade bate na porta da ficção. Vocês cumprem os requisitos?

Classe Operária (Moonlighting)

🌟🌟🌟

24/03/2025

Tragédia no Amor Europeu

Escrevo estas linhas após ver dois filmes em um domingo. Estou afetado dos nervos. Não sinto dois dedos de cada mão, que, de alguma forma, estão mal abastecidos. Pensei em fazer uma crítica de Blanche (1972), filme de diretor polonês e linguagem francesa. A ver tem também com o mais recente Little Ashes (2009), que se passa na Espanha, mas é dirigido por Paul Morrison e a linguagem toda é em inglês, com exceção de mísera fala ou outra.

Blanche é a esposa de um rei velho. O filho do rei está muito mais para sua idade. Em uma festividade no castelo durante a Idade Média, mais dois candidatos se apresentam à formosa Blanche: outro rei e seu galanteador filho. Obviamente lançadas as diretrizes de tantos candidatos não poderia acabar em boa coisa. Tive um afeto especial no filme por Nicolas, o filho do velho esposo de Blanche. O amor entre eles pareceu o mais verdadeiro da obra, tanto que ele, desesperado, não seria oposição em colocar sua própria vida em proteção de Blanche. 

No desenvolvimento da tragédia há momentos cômicos. Um dos religiosos veste a roupa do filho do rei visitante e é interceptado, ameaçado e inclusive tem sua mão cortada pelo valente Nicolas, que obviamente vigiava para proteger Blanche de galanteios terceiros. Nisso o frade aparece de mão cortada no dia seguinte, levantando suspeitas que o religioso é quem queria dar uma fugida até o quarto da jovem. Uma pouca vergonha medieval. É interessante que na relação de pais e filhos terem se apaixonado por Blanche, nenhum teve a comunicação necessária, ou a falta de vergonha de abrir o jogo pelo qual estavam interessados. Nenhum pai soube dos interesses de seu filho. E o filho visitante, enquanto punha seu nome em risco pelo almejado amor de Blanche, não sabia que o rei visitante mais velho também sonhava com mais um casamento.

Desenhada a tragédia, não houve quem contasse a história, talvez um destino mais parelho entre tanta perversão. Apesar de minha afeição por Nicolas, deparei-me com a reflexão de que ao mesmo tempo estava tentando fugir com a esposa de seu próprio pai - que pese a galopante diferença de idade.

É a época da Europa Medieval entre os séculos depois de Cristo e antes dos ideais iluministas. Pesquisei algo sobre a população desses pequenos reinos e a curiosidade veio sobre mim no fato de que a Europa Ocidental chegou a ter 22 milhões de habitantes na Alta Idade Média. Em 1348, segundo Le Goff, a população europeia era de cerca de 54 milhões de pessoas. Interessante como o continente de tantas descobertas e navegações mal superaria um estado de São Paulo. 

Em Little Ashes, ou Pequenas Cinzas, a história de amor é entre dois personagens centrais da arte no Século 20, em especial na Espanha. Foram colegas de estudos artísticos o escritor e poeta Federico García Lorca e o pintor Salvador Dalí Domenech. Mais do que isso, a relação desenvolvida entre ambos é uma crescente aproximação e inspiração em seus trabalhos. Também estava envolvido no grupo o cineasta Luis Buñuel, que depois desenvolveu carreira na França, que depois desenvolveu carreira no México. 

Entre uma amizade pulsante e as proibições à homossexualidade, a relação entre García Lorca e Salvador Dalí também sofreu impasses sobre o que consideravam mais benéfico para suas promissoras carreiras, causando discordâncias de ideias. Desde jovens esses artistas estavam alcançando status de destaque na Espanha madrilenha, mesmo em meio aos domínios fascistas que ameaçavam as artes e a todos os cidadãos com ideais dissonantes ao governo.

O final trágico da morte prematura do escritor novelesco García Lorca, o cão andaluz (?), evidencia que, apesar de suas duras e perigosas críticas ao regime espanhol, a homossexualidade seria de seus grandes crimes, interpelado pela polícia em sua localidade de nascimento, Granada, e chamado de maricón. Fuzilado distante dos holofotes do mundo, sua morte seria lamentada dias depois em notícias de jornais velhos e radiofônicas. Little Ashes era o nome que Lorca soprou para um quadro feito pelo amigo Salvador Dalí. O nome propunha explicar que futuramente, com suas mortes, as lembranças que as pessoas teriam deles seriam apenas cinzas, eles como mero fantasmas após o que suas obras artísticas realmente representavam, ou queriam representar.

Histórias fascinantes podem ser escritas, mas restam apenas cinzas. "Cinzas e madeiras" sobre o caixão lamentava o rei velho após a morte do filho Nicolas no duelo realizado em Blanche. Dos idealizadores, noveleiros, cavaleiros, reinados e castelos, restam apenas pequenas cinzas. Em outra cena de Blanche, o rei velho sente o peso material de toda aquela construção em pedra. "Vai durar mais do que muitos de nós" e o jovem Bartolomeu, um dos postulantes à bela Blanche, apenas concordava, já estes por cima do cadáver do jovem Nicolas.

De amores idealizados pela bela princesa do reino ou mesmo homossexuais perseguidos por regimes fascistas, seremos apenas cinzas no futuro.

Little Ashes (direção de Paul Morrison, 2008)



16/11/2021

Esgotos de Varsóvia

Esgotos poloneses

Por onde ocorre a Segunda Guerra

Por entre as fezes

Por muitos meses


Esgotos de Varsóvia

Dias e noites soterrados

Não sei se faz sol

Ou talvez chova

Preso nos esgotos

De Varsóvia


Esgotos e todo lodo

E tão logo nada se resolve

Falta oxigênio

No meio dos túneis

E ninguém foge

Nem fica imune


Alemães na caça

De tudo que é diferente

De sua 'raça'

Essa desgraça

Nos túneis de Varsóvia

E tudo se desova

No esgoto

Um a um

Outro a outro


Perigo nos túneis da Polônia

Sem ajuda e com a fome

Tombam homens

No reduto dos ratos

Lado a lado

Acossados


A guerra se estende para o leste

Como a peste

Como a fome

A Polônia ocupada

Em sobreviver

Contra as granadas

Os céus e os esgotos

Contra o todo

De uma guerra





20/07/2021

Viagem ao Desconhecido - Ana - Capítulo 1

Ana havia estranhado que conhecia nenhum daquelas dezenas de passageiros. Ela já havia feito aquela viagem também dezenas de vezes, entre a região metropolitana e sua pequena cidade, Sertão Santana, ao sul de Porto Alegre, rumo ao Sul do Sul. Viu cada pessoa mecanicamente demonstrar o bilhete ao cobrador, que era um mero assistente do motorista. Ela impulsionou com dificuldade sua mala de rodinhas para o degrau correspondente das entranhas do ônibus. A bagagem de mão colocou a tiracolo e se dirigiu também para o interior da nave. Escolheu um bom lugar, deu-se por conta, nem tão atrás, para perto do banheiro, nem tão para frente, onde sentia-se inoportuna, como se atrapalhasse o trânsito dos transeuntes que embarcariam depois, embora dessa vez ela fosse uma das últimas a subir a bordo.

Deu uma última olhada pela janela que já iniciava o processo de embaçar-se pelo fluxo de respirações daquele diminuto enxame. Diminuto, porque, por conta da pandemia, o número de passageiros era reduzido no local e o acesso era restrito aos portadores de máscara. Ela aproveitou o espaço disponibilizado pela poltrona ao lado e melhor aconchegou-se. Afundada no conforto que lhe era disponível, mergulhou os olhos para o interior de sua mente, mantendo a visão encoberta pelas próprias pálpebras. Antes, verificou se a playlista de seu dispositivo conectado ao aplicativo Spotify estava de acordo com suas vigentes exigências. Estava tudo em ordem.

Ana acordou achando que havia perdido o horário. Sabia que a viagem não era tão longa quanto quando vivia em Rio Grande e o ir e vir da região metropolitana lhe custava mais no dinheiro das passagens e mais horas empobrecidas por escutar somente suas repetitivas canções, vez ou outra alternadas por novas descobertas dos últimos tempos. Sabendo que Sertão Santana não distanciava-se tanto da capital do estado, era possível que houvesse cochilado e perdido a saída. Mas, ao olhar pela aparente normalidade em sua volta, concluiu também que se perdesse a hora de saltar seria notificada pelo mesmo assistente que apoderava-se de seu bilhete no embarque. "Estava tudo em ordem", repetia mentalmente para si mesma, talvez balbuciando o final da sentença com a ponta dos lábios.

Mas uma coisa chamou sua atenção a um par de segundos depois. Mirando em frente, para a poltrona imediatamente dianteira a seu nariz, notou que o nome da empresa era DATA, diferente da que muitas vezes viajou, a DATC. Primeiro sentiu-se delirante pelo efeito sonífero de suas horas de inércia e resolveu contrapor a vontade dos especialistas em tempos pandêmicos (os infectologistas) e passar as costas dos dedos, os nós sobre os olhos. Retirou qualquer princípio de remela que se formaria naquele lapso e correu panoramicamente a vista, em um movimento traveling, como a câmera de um filme rodado em primeira pessoa. Notou o pior, para certificar de que o erro não era o captado pelos olhos: todas as poltronas, mais cerca ou mais longe, informavam que a empresa de transporte que a conduzia a Sertão Santana (ou para onde?) era a DATA.

Em seguida, notando a ainda total apatia e tranquilidade dos demais passageiros mascarados, sem reconhecer um único rosto que lhe fosse comum do cotidiano de pacato município emancipado em 1992, tentou adivinhar as respostas com seus próprios recursos. Trazia consigo um cafona relógio de pulso, que, para sua surpresa, o descobriu travado em um horário muito próximo ao de embarque. Como poderia isso? Em seguida, sacou da bolsa o celular que traria a resposta do horário e outras tantos, tudo isso ao alcance de poucos códigos a serem destrinchados pelos inquietos dedos. Mas, ao tentar a senha para liberar a tela inicial, foi surpreendida com o acesso negado. Tentou novamente. Ora, Ana, acorde logo, está perdendo tempo errando coisas que nunca erra. Um relógio de pulso com problema de bateria, um celular com bateria, olha ali, 93%, mas trancafiado pelo seu eleito esquema de segurança. Tão seguro que agora nem ela conseguia liberá-lo ao uso. "Droga" - exclamou e era possível que seus passageiros vizinhos pudessem ouvi-la a lamuriar.

Um senhor que apenas tentava esconder o bigode proeminente sob a máscara, com um rosto magro que lembraria o de um personagem Mario Bros envelhecido, a observava com um olhar atônito, circundando a barreira do indiscreto, diria-se. Percebeu, como era de costume, a quantidade significativa de população velha no veículo. Estranhou que, pelo tanto que pensava ter dormido, não havia sinal ainda da chegada ao município de Sertão Santana, ela que praticamente decorava cada buraco que o ônibus colidiria na estrada, fazendo balancear-se suas 18 toneladas sobre. Ficou cada vez mais inquieta e passou a tamborilar com os dedos, que lhe restava fazer?

Não queria utilizar o banheiro do veículo, pela pandemia e porque nunca quis, nem em outros tempos, claro que não queria. Mas resolveu ir para lá, dirigir-se aos fundos, 50% da intenção para realmente aliviar-se, fazia tempo não urinava, outros 50% para tentar puxar uma conversa sobre a demora da viagem e descobrir o que estava acontecendo. Trôpega, mas nem tanto, observando que a estrada devia ter sido requalificada desde a última vez que deixara a capital para aqueles rumos, a visitar seus pais, eles já vacinados, ela ainda não. Apoiou levemente a mão somente sobre algumas poltronas, tomando o devido cuidado de encostar em nenhum topo de cabeça, entre aqueles pelos grisalhos do que um dia foram louros, outros plenamente entregues à calvície. 

Não viajava com os óculos para leituras próximas, provavelmente estava estojado para dentro de sua bolsa, que permanecia inerte sobre a poltrona enquanto ela tentava entender aqueles símbolos escritos à porta do banheiro, quando estava interna a ele. Havia um aviso, desses das companhias de transporte sobre o bom uso dos dispositivos e também haviam algumas pichações que desocupados faziam ao fingirem-se de ocupados com as necessidades fisiológicas: jovens. Cada vez mais tonta, criando quase uma poderosa vertigem, deu a descarga, lavou as mãos e começou o caminho inverso ao que fizera. Inclinou-se um pouco, quase de joelhos, distribuindo sua massa para equilibrar-se a algum desavisado solavanco. Queria assim tomar a atenção de uma senhora. Ignorou o distanciamento social em busca de derradeiras respostas.

- Demorando a viagem hoje, né, senhora?!

Nada de resposta. Ela não parecia ouvir direito. Com a noite que caía, o semblante em frente, em riste, queixo levemente arrogante.

- Sabe se falta muito para Sertão Santana? - Insistiu Ana.

A senhora dessa vez se virou, entre o bruscamente da surpresa de alguém falando com ela, que parecia absorta em qualquer pensamento que o valha, e o calmo e sereno de quem não devia satisfações àquela intrometida. Com a boca coberta pela máscara, a senhora não hesitou em enrugar, franzir a testa o máximo que pôde para exprimir seu total desconhecimento sobre o que a desconhecida falava. Não havia modo de se entenderem.

- Desculpe - disse por último Ana, já embrenhando-se pelo corredor rumo ao seu lugar, nem tanto atrás, nem tanto à frente. Arriscou uma olhadela para trás e certificou-se da cena que a vez rubrar por sob a máscara, mas sem que pudesse esconder a transmissão de sua vergonha: a senhora a encarava, aparentemente ainda incrédula pelo encontro repentino.

Ana quase errou os passos, por pouco seus joelhos não conheceram deliberadamente o solo do corredor, precisou apoiar as mãos mais do que gostaria. Para completar o vexame que só ela (e a senhora?) sabia carregar, encostou na careca de um dos vovôs à sua direita. Era um princípio de pesadelo, sem dúvida. Maior ainda tornou-se quando o ônibus, com Ana já recostada, querendo proteger-se de corpo e extremidades todas para dentro das roupas, tal qual uma tartaruga em modo de defesa, na falta de uma terra fértil para o movimento do avestruz, o ônibus guinou em curva à direita, à qual Ana não fazia ideia de qual entrada significava aquele trajeto. Deparou-se ela pela janela que tratava-se de altos e góticos portões de ferro retorcido em bonitas e trevosas formas e pintura. De pronto não sabia se aquela bem retocada pintura a assustava ainda mais no tom brilhoso do negro ou se uma ferrugem tornaria tudo mais decrépito e inacreditável. Uma placa confirmou sua total e horripilante suspeita, aponderando-se de si uma realidade inacreditável: estava ela, pelas formas vistas ao longe, não mais pela leitura embaçada de seus olhos de perto, placas que indicavam que ela estava em algum lugar perdido e oculto pelo leste europeu.

Como sair dali?

28/06/2021

a wislawa szymborska

tento ressuscitá-la, poeta morta
mas ninguém se importa
além da minha mente que estala
da minha mente que instala
suas acomodações, noite outra

confiro sua data de nascimento
teria noventa e oito hoje
quase lhe desejo morta
para melhor dedicar-te o poema

primo sempre pelas rimas
como podes ver acima
como preferes os teus assim, sem açúcar
com um pouco esforço a gente muda
e agrada a visita - já tão íntima

adoro seu senso de humor
estrategicamente mais defensivo que ataque
forma assim bela práxis
se é que para isso algo serve

sorvo tudo que trazes
em temperatura ambiente
o frio de hoje em tua homenagem
penso nos campos de lá, daqui as pastagens
e nas palavras - ruminantes repetentes

absorvente de teu humor
em alto teor, de timbre e de álcool
solução que nada cura, mas banha os problemas
dilacera o que era puro eczema
e agora é nosso - porque tu o inspiraste
poema

08/12/2019

venceslau

eu tenho uma namorada em novo hamburgo
ela deve estar com os namorados dela
eu tenho uma janela de frente pro tumulto
ali eu sepulto uma ou outra ideia

eu tenho pensado na minha família lá nos burgos
por fora e tão pobres camponeses
na américa a imaginar um outro futuro
com o nome mais vagabundo dos poloneses

venceslau
venceslau
venceslau

eu tenho uma paixão por rock gaúcho
escrevo umas letras qualquer
e ponho no fluxo
se ficar um pouco melhor
já serve pra forrar o bucho
não precisa grandes coisa
pro rock gaúcho

eu tenho uma madrugada em outro fluxo
a cardia acelerada e o comprometer
de outros músculos
eu tenho uma janela pra outro mundo
lá estamos eu e ela em
königsberg

minha tia-avó acreditava numa herança
na alemanha
talvez fosse a maior esperança dela
dos meus sonhos de criança
não sei quais estou à espera
eu queria ainda acreditar
na primavera

venceslau
venceslau
venceslau

19/06/2018

Lutas e Gratidões

Minha irmã acorda tarde, toma o café da manhã tarde e reclama do almoço, que é servido em um intervalo de tempo curto entre as duas refeições. Minha mãe acumula cabelos brancos que ela não mais esconde e estresse que não mais segura, entrando em erupção de quando em quando. Hoje foi um desses quando.

Mais tarde, entre o almoço e um jogo da Copa do Mundo na televisão, minha vó aparece de jaqueta rosa e óculos escuros bastante chamativos. Em um horário que muito bem poderia ser de algum pedinte, geralmente uma senhora negra com uma filha com necessidades especiais e que pede leite ou algum ser adulto não disposto ao trabalho para o ganha pão. Confiro para confirmar pelo olho mágico e abro a porta para minha vó na certeza que o jogo entra em segundo plano, porque ela insistentemente e incessantemente puxa assunto ou narra com detalhes episódios cotidianos de pouca relevância. O encontro com as mesmas vizinhas, uma ou outra palavra trocada na frente de casa ou no caminho para ônibus ou em armazém. Pequenos causos de pessoas as quais não conheço e que para minha mãe pouca diferença faz também são uma constante.

Porém, ela conta de uma conhecida, alguma família que adotou uma menina. E minha vó a caracteriza que dizem ser muito alegre, muito obediente. E sobre algo que a ofereceram, se manifestou com "tudo isso é para mim?", com as mãos cruzadas sobre o peito, em claro e universal gesto de agradecimento. Tem três anos, completa os dizeres minha vó. E tudo isso me leva a uma reflexão sobre gratidão, uma reflexão que na minha mente ocupa e ocupa o primeiro plano. O jogo passava ao segundo posto, mas logo voltaria à tona por outros encaixes.

Às 14 horas na pontualidade terminava a partida da Copa do Mundo com a surpreendente (para alguns nem tanto) vitória de Senegal sobre a Polônia em plena capital russa de Moscou, local de muitos acontecimentos de injúrias raciais. Racismo não escondido. Jogadores negros na atualidade, mais e mais pessoas em antigamente. Ou talvez menos antes sem o advento da globalização dos dias atuais. A globalização que coloca jogadores negros em praticamente todos os times titulares das seleções da Copa, com exceção do extremo oriente, Argentina e a própria Polônia. Outras, se não tem na titularidade, tem reservas imediatos que costumam adentrar nos jogos.

No mesmo horário de término do jogo com triunfo senegalês, uma senhora que aqui é pedinte há bastante tempo retorna em busca de mínimo sustento. Seus filhos já não são pequenos e agora buscam driblar as condições desfavoráveis em busca de emprego ou desviando do mundo mais ilícito de drogas e assaltos. Nada fácil. Frutas e leite e um papo cordial são o que minha mãe oferece à senhora. Um de seus filhos é Romário e, não recordando o nome dela, apenas a lembro como Romária.

Com outros endereços, certamente não são poucas as pessoas nessas condições no município e região. Políticas públicas insuficientes, políticas privadas desinteressadas, procurando apenas por consumidores e não por fazer caridade ou procurando apenas a solidariedade como troca por promoção de carisma e serviços aos olhares dos aí sim consumidores, potenciais clientes. Trocas de favores e espelhos. Reflexos e vitrines.

Em outras cidades gaúchas, incluindo Pelotas, como estão os imigrantes senegaleses? Um momento de cessar o trabalho ambulante, as vendas nos centros e focar um pouco no jogo, na ginga. Um resultado favorável, uma vitória consistente. A alegria nos olhos e nos corpos. Vencer o preconceito é uma batalha muito mais árdua, mas que tal esse tapa no frio, tapa aos que oprimem, deixam mal vistos os imigrantes de hoje, esquecendo suas raízes italianas, alemãs e de outras etnias que um dia foram imigrantes, estrangeirismos nessas mesmas terras.

Numa primeira rodada em que a Alemanha perdeu e numa Copa em que a Itália nem está, a vitória imigrante do Rio Grande do Sul na estreia da competição foi senegalesa. E são tantos os homens e tantas as mulheres, tantos os descendentes, mais diretos ou de povos passados do continente africano, tantas as histórias de linhas torcidas a procurar seus triunfos no dia a dia nesses lados do mundo.