30 de maio de 2020

Histórias da dona Eloá

Era uma tarde de calor apesar do fim de maio. Cristiane tentava se entreter no passatempo para época: colher e degustar vergamotas. Antes do aroma das frutas entranhar-se na sua pele, a sua mente já estava divagando pela decepção que havia conhecido. O nome da menina era Laís. Ambas compartilhavam muitas situações em comum, com taxas de compatibilidade consideradas altas para as músicas que ouviam e os filmes que assistiam. Quando faltava assunto, sobravam aspectos da arte para entreterem-se em demoradas conversas.

Tudo fluiu tão fácil que nem precisavam do desgaste de encontrar as palavras certas para estender essa amizade para algo a mais. Após se conhecerem na faculdade, a forma como o olhar se desenvolvia falava mais do que as obras cinematográficas de Kubrick ou os livros de Margaret Atwood. Expremiam confiança para seguirem envolvidas como bem entendessem. E elas se entendiam.

Tinham opiniões semelhantes sobre a preservação ecológica. Em testes de internet, a distribuição entre optar pela prioridade para produção ou natureza, para as duas era quase a mesma porcentagem. Laís havia tirado sarro disso porque, para elas, naquele momento, o importante mesmo era a solidão daquelas árvores, onde podiam estreitar a relação. No bosque, descobriam mais do que a cor dos sutiãs e os ignoravam. Decoraram, mentalizaram as tatuagens uma da outra. Soltaram e prenderam cabelos, ao gosto e ao ritmo. E tantas mais coisas que eram assuntos restritos delas.

Em cidade menor, a fama é complicada. Apesar do campus da faculdade estar mudando aos poucos essa realidade, elas ainda preferiam tomar cuidado. Não queriam que a desconfiança dos mais enxeridos fosse confirmada. Seria uma afronta muito grande, Cristiane formada em igreja, com esse nome não por acaso, Laís vinda de fora, se importando menos com ela, mas tanto mais se importando com a companheira que não queria complicações maiores com a família.

Cristiane estava em período triste. A avó começava a regredir as ideias por conta do alzheimer descoberto. A mãe de Cristiane trabalhava durante a infância da filha, faltava pouco agora para se aposentar, mas de modo que a menina passou boa parte dos primeiros anos sob cuidados da avó, dona Eloá. Eram muito apegadas nas companhias uma da outra. A velhinha com pouco estudo, mas com refinado gosto para leitura, havia provocado esse hábito em Cristiane, o tanto feliz porque havia fracassado nessa missão com a própria filha. Era uma realização que a completava.

Mas com essa cronicidade no desandar das faculdades cognitivas, dona Eloá é quem precisava de Cristiane cada vez mais. A moça pegava algum exemplar da estante da avó e lia para confortar a solidão de sua criadora. Fisicamente Eloá também piorava drasticamente, com uma limitação de movimentos que a todos causava comoção.

Dona Eloá e seu Jeremias não viviam mais juntos havia 10 anos. A teimosia de um e a irritabilidade da outra fizeram com que o casamento se esgotasse antes que um deles partisse dessa para viajar ao desconhecido. Jeremias, apesar de teimoso, nunca havia recusado morar em um lar de idosos. Errado. Nunca havia recusado morar naquele específico lar de idosos das paredes verdes, supostamente porque era apaixonado por uma das enfermeiras. Nem os ciúmes por ela dar banho e trocar outros incomodava o ancião. Um boato era o de que Jeremias, em seus gloriosos anos de juventude, nutria caloroso apreço pela avó daquela senhorita de uniformes brancos. Mas falta confirmação autenticada desta tese, que de fato não está em letras garrafais na biblioteca ou nos registros escolares do interiorano município.

Mas onde encaixamos o senhor Jeremias na história toda? Simples, ou nem tão simples, complexo. O vasto coração de humilde senhoria possuía diversos quartos, como um hotel de dois andares. O espaço reservado para a família era reaberto em dias de visita ao lar de idosos. Havia uma suíte a níveis presidenciais para a enfermeira e quiçá sua falecida avó. Mas apesar do término com dona Eloá, seu Jeremias ainda parecia reservá-la ótimas chaves ou até mesmo o quarto principal. Essa é uma hipótese bem endereçada porque, ao saber da notícia da piora repentina de Eloá, o ex-marido sentiu forte impacto.

Visitou Eloá mais três vezes, todas com pouca conversa, fatalmente menos do que ele imaginava nos ensaios aos últimos encontros com sua ex-esposa. Eloá era bastante ríspida e severa. O hotel-coração de seu Jeremias se aproximava da falência. Ficou derretido pelo gelo da então companheira. Tentava consolar-se que a doença do alzheimer estava tratando de liquidá-la. Dessa maneira é que a desatenção com que ele pairava. A culpa não era dela, talvez fosse dele? Sabia que a amava, mas sentia que ela não correspondia. Vagueou por corredores fundos, até as profundezas de onde não saberia mais sair. Labirinto. Investiu seu casamento em Eloá, evento respeitado na época. Anos que pareciam felizes, mas logo não foram. Apenas se aturaram por quantos, como uma estrada tortuosa de anos de trabalho para uma aposentadoria mal paga e curta. Se ao menos tivesse avançado para outras possibilidades (talvez a avó da enfermeira?).

Sentiu-se depreciado como nunca havia ficado, mesmo nos tempos conseguintes à separação de Eloá. Percebeu não ter sido amado da forma como gostaria, nem mais seria. Os cuidados da enfermeira não seriam o bastante para evitar sua derrocada. Durou dois meses e o coração-hotel fechou-se por definitivo. Um duro golpe para a moça Cristiane. A avó naquela condição de piora gradativamente, o avô levado a sepulcro.

O coração de Cristiane estava em pesarosas derrotas acumuladas. Ela sentia-se para baixo. A avó que demasiado havia participado de sua criação naquele estado, o avô acertando a conta com outros portões, julgava ela que os celestiais. Da mãe Cristiane não era tão próxima a ponto de grandes confidências, toda aquela religião obrigatoriamente imputada sobre ela cobrara um preço na relação entre as duas. O pai era caminhoneiro, vivia pelas viagens e também não era a figura mais presente para ter com ela. Sua idosa e fiel confessora com alguma hora não muito distante marcada para partir. O peso iria para os ombros de Laís.

24 de maio de 2020

aos desgarrados e indigentes

Os que se alimentam com três ou mais refeições por dia, dormem sobre colchões confortáveis, lençóis limpos e recolhem-se sob abrigáveis cobertores, estes acreditam que investe-se, gasta-se, eles dizem, demasiado com programas de assistência social.

Acrescentaria no mesmo molde apresentado que aqueles que vivem da fartura, estão anestesiados pela boa-aventurança, eles creem que escrevemos demais sobre a morte. A morte e todos os seus apêndices, uma morte que seja de julho de 1943, presente no sabor dos cafés por décadas conseguintes. A morte e seus sub-produtos derivados. A morte que cessa mas atrela tantos fios, emaranhados, teia das lembranças, pode paralisar o produtor original da obra, morto, mas não seus reprodutores.

Morte que arrebata, desconfigura, ou mesmo aniquila uma nascente de rio, mas seus afluentes seguem correndo. Quem convive com um rio, fonte de inúmeras vidas, não o esquece. Vida que nele colhe, banha, pesca e, nas mais severas sedes, bebe. Vida submergida, visível quanto maior a transparência, mas vida mais complexa de como existe, resiste e sobrevive quanto mais turva for a água.

Comentava sobre a morte de deparei-me aqui com a vida. Intervalo para refletir sobre como uma morte pode impactar em tantas vidas, principalmente tratando-se de um rio e seus afluentes.

Chamou minha atenção um trecho de Erico Verissimo (vertiginoso rio!) - curiosamente aprendi que sem acento em seus nomes - sobre o papel do escritor em tempos de violências, ganâncias, ditaduras. Segundo o escritor de Cruz Alta, autor da trilogia de O Tempo e o Vento, Senhor Embaixador e Incidente em Antares, o propositor dos relatos deve segurar uma lâmpada para minimamente clarear os fatos e verdades, expor as situações. Humildemente, confere que deve-se manter essa lâmpada acesa. Caso apague, que seja substituída, lamparina, fósforos riscadas, velas em riste, até a última chama, clarividência sobre registros ocultos em tempos obscuros e trevosos. Fermento eu que assim são os tempos ao gosto do poder. Prometo a devida abertura de aspas a Erico Verissimo ao final desse registro.

Sobre os destrinches da imaculada morte, escrevo para a familiarização daqueles desgarrados, filhotes sem colo, personagens de José Louzeiro, sem mais passeios sobre ombros, beijos sobre testas e em outras superfícies. Escrevo aos renegados de suas terras, exilados de seus solos. Improviso meus ditos, para muitos, malditos, para afirmar que estamos em lapsos juntos, em fendas adjuntos, em becos articulados, na coragem de, hoje, em comum seguirmos em frente. Escrevo para imputar, impertinente, o dedo no buraco da bala que te atingiria, enquanto, hipócrita, planejo a lejos, meu próprio fim.

Escrevo para velar os mortos, os idos, os vindos e os teimosos a continuar vir. Escrevo obituário frequente, como se obturações eu dentista prestasse. Escrevo, agente funerário de um cem número de gente. Escrevo em memória dos não identificados, indigentes, filhos negados, desconsiderados pelo que fizeram ou deixaram de fazer no tempo passado. E, num segundo, piscar de olho presente, a terra os envolve para o comum acordo de putrefação, que desfia e desconfigura pobres e ricos, em um ritmo biológico decompositor de denominador comum. Diferem de onde os enterram, embaixo de quais ou de nenhum mármore, mas na praça das memórias, onde crianças correm guiadas pela bola, vendedores de pipoca e algodão-doce vendem, idosos cruzam braços e pernas e charlam, mascam vergamotas e fuminam cigarros, é nesta praça a gosto popular que muitas vezes o mal ranqueado em serviços funerários recupera e impera um posto superior aos mauzoléus extravagantes em cemitérios.

Talvez no próprio enterro já se apresentam parâmetros que permitam tal sonhada (ou mesmo desejada?) comparação. O reconhecimento de um marido, de uma esposa, de um filho, de uma filha, de uma mãe, pai ou pessoa amiga. Atendendo a nenhum desses cruciais aspectos ao final da vida, que tamanho despoder paira sobre o mármore de congeladas impressões! Que infindável despropósito se desprendeu, se desencadeou na companhia de seus contemporâneos concidadãos. Neste caso, minhas senhoras e meus senhores, que aqui nada posso fazer e até me atribuiria a vergonha se minhas paráfrases os encontrassem.

Todavia, através das distorcidas histórias, narrativas sobre esses infaustos e infortúnios de mal aproveitadas vidas humanas, que me chegariam essas histórias aos ouvidos, eu tentaria, em uma purificação de alma, o exercício do perdão. O perdão, sobretudo aos indigentes, fontes tão logo secas, ninguém conseguiram / puderam cativar, nem pela última vez.  Teu Deus saiba que sim, em meus melhores e mais luminosos momentos, eu tentaria olhar por eles. Para todos e para cada um.

E, nos meus piores e mais rugosos, funestos e desgraçados momentos, eu procuraria deles me afastar, dispensando ou ao menos reduzindo o tempo gasto em julgamentos maldosos, seletivamente perniciosos e derivados. Que, se possível, os perdões sejam concedidos. Inclusive o perdão a mim, por ser assim.

"Sempre achei que o menos que um escritor pode fazer, numa época de violência e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões e aos assassinos. Segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do resto. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto"
Erico Verissimo

19 de maio de 2020

Agradecimento a Mariana

Acordei com sono, com a boca seca, com as laterais do rosto, ditas bochechas, dormentes. A primeira coisa que pensei, ao ligar meu barulhento notebook, que um dia me abandonará, é que "sou um eletrônico e um dia falharei definitivamente", meu cruel destino, minha incalculável obsolescência, minha adolescência em desperdícios, juventude nem carnal nem intelectual, tão meia-bomba.

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente."

Quando solicitarem que eu ligue. Quando eu mesmo, quem mais? solicitar que eu ligue e o sistema não vai responder, peça que não foi trocada, corroção geral das funções afetadas, pane e pânico instaurado. Silêncio.

Conversei mais cedo com Mariana. Faz-me bem conversar com Mariana. Mariana que me entende vezes que nem eu mesmo consigo. Mariana falou que a tia está mal, está com câncer. Agravou e os médicos abrem os braços que nada podem. E as pessoas chegam na derradeira pergunta de "e agora?" e é sempre ruim elaborar uma resposta. O tempo agilizando que se conteste logo.

Dissertamos sobre nossos tios. Mais pelos que foram do que pelos que ficaram. Muitos já foram e muitos ficaram. Receoso, explico para ela que me faz um pouco bem pensar que existem os que ficam para consolar pelos que foram, em pesos de perda compartilhada, denominador comum. Ela concorda e fico aliviado, sem alimentar um possível pesar em tão má hora para uma divergência opinativa.

A morte vem buscar, sempre ela, insaciada. Buscou tio meu, casado com a prima de minha mãe. Ele foi fulminado internamente, notebook corrompido, sistema operacional abatido, quando tinha saído para pescar. Essa é a versão oficial. Bebeu quantidades que não devia em horas impróprias por um longo tempo e o preço bateu-lhe a porta tão cedo. Tão cedo o garçom depositou sobre sua mesa a conta e os que em terra ficam permanecem pagando sua ausência. Viúva e filhos reacostumando.

A morte veio buscar tio dela em inesperada e abrupta queda a cavalo. Nunca havia ficado doente, ela me confessa. Ultrajante maneira de surrupiar a vida de jovem cidadão. E assim multiplicam-se as histórias, quem tem famílias maiores sabe contá-las de demasiadas maneiras distintas, com o enterro, as flores, talvez uma solicitação de cremação aparecendo aqui ou acolá.

Tocamos em delicados pontos, cosendo, costurando linha por linha de finosa agulha sobre os aspectos e os preparativos para enfrentar essa terminante adversária morte. Jogamos um demorado xadrez tal qual propôs em filme cinquentista o sueco Ingmar Bergman. Suécia que hoje flerta com a morte, namora e dança bailado extenuante com suas mais de 3 mil mortes em menos de três meses de pandemia.

Pandemia que açoita a repetição de assunto a cada escrita. Quando Mariana abriu conversa, clarão na floresta de pensamentos variados, afirmando que a tia estava mal. Logo liguei o Nordeste, Pernambuco, a pandemia, o covid-19 vitimador. Mas era o câncer, esta moléstia que seguidamente é implorada que tire férias, mas aqui permanece.

Divido com ela que, do abdômen, pelos órgãos internos do sistema digestório, perdi um tio e recentemente também perdi uma tia. Um alastrou de intestinos para outros órgãos. A pele, órgão maior acima dessas dores em aspecto repuxado, amarelado, o proprietário da chaga emagrecido e encaminhado para o encontro imóvel para dentro do caixão. Inevitável. Trocam-se os médicos e a sentença é a mesma e os atendentes de cartórios se acostumam à fisionomias de dor e devem imaginar quem perdeu e quem ganhou nesse tabuleiro esquisito de posições variadas.

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente."

Minha tia, irmã de meu pai, foi consumida pela bebida alcoólica que consumiu por altos volumes em desastrosos anos finais. A perda do marido, a condição de viúva, a solidão, a bebida, a vizinha com filho problemático, os convites, os únicos convites, a aceitação, só dessa maneira, mais uma dose, por que, por que tinha que ser ele, por que, homem tão bom, meu Deus? Meu Deus! Mais uma dose. Cabeça baixada em lágrimas, copo erguido, misturas. Fins de tarde, noites em perigosos banhos em boxes de banheiro, trêmulos, girando, elevador para cima e para baixo e mais para baixo. As pernas em alternado esforço de uma para outra em cada trôpego passo. Por que tudo isso, meu Deus?

"Sou como um eletrônico e um dia falharei definitivamente"

Mas enquanto não acabar-me quero consolar Mariana, a família que não conheço e já considero que mereça as minhas melhores preces, minhas aquiescências, meus consentimentos, meus pesares e apesares, como queiram escrever, pena ondulante, ululante, gritante. Quero consolar Mariana, virtual e distante abraço.

Mariana que passo a conhecer e é indubitável que mereça as complacências todas citadas, essas e tantas outras. Ela que me entende, decifra meus pensamentos por vezes, em leitura ordenada, concisa e coerente, como gostam e operam binariamente os corregedores de redações. Mariana lê em português, inglês, francês e pensamentos. Mariana deve encontrar barreiras para as palavras certeiras, se é que existem? para consolar a mãe, os familiares, o que se pode fazer?

Encaramos a morte um tanto melhor quando não é surpresa, quando não é onda que arrebata pertences nas areias de uma praia, levando dos despreparados os chinelos, as toalhas, óculos, chaves, celulares e guarda-sóis. O sobreaviso nos prepara para o inevitável, nos dá mais tempo de procurar palavras e procurar consolos em nós mesmos e também nos braços estendidos adiante, na espera por abraços. A pandemia sucumbe abraços, a pandemia abre valas, abre peitos, por ora incuráveis. A pandemia, o câncer, a presidência de triste fim de República, de Jair, de meninos João Pedro, de Rio de Janeiros, de rios de mesmas e diferentes nascentes, de afluentes que não se tornam mais navegáveis, da seca que assola. Do Rio Grande do Sul onde não tem chovido e quem ousou falar do Nordeste em outrora? Meu amigo Régis emenda pontualmente que é o desmatamento da Amazônia que fará todo o país sofrer, em efeitos desencadeados, sem o abastecimento de águas. Concordo.

Enquanto não finda meu sistema eletrônico de obsolescência programada para alguma data que não sei, quero consolar Mariana, quero desviá-la dos piores assuntos ou ao menos compartir com ela os piores para que dividamos as dores. Conjuntamente soframos nos nossos diferentes ritmos. Mariana que é mãe, que é amiga, que é mulher de superação de obstáculos, de corridas, de planos, de ir muito além do que a propaganda de canal pago sugeria para mulheres os itens decoração, moda, beleza e bem-estar. Pode até ser isso, mas é muito mais, há de ser, faz tempo, sem retroceder.

Mariana que ao fim desse texto é agradecimento pelas vezes, sem ela perceber, ela ter sido a técnica da informática que reiniciou o sistema, tendo esperado esfriar, me salvou de eu salvar atualizações desnecessárias que me derrubariam. Prorrogou a inevitável perda que virá para todos os corações, como eletrônicos, que um dia falharão definitivamente. Futuros que, ao final de tudo, desprovidos de escolhas, um dia serão conjugados no presente.

Por enquanto, no presente, eu presto minhas solidárias considerações a Mariana, no que posso oferecer e no que prontamente já posso agradecer.

15 de maio de 2020

O passado de Dalia

Ela não se misturava com algum grupo de prostitutas das ruas de Mwanza. "Fui excluída das excluídas", ironizava Dalia. A moça tinha 22 anos. Pelo menos quatro deles eram com a companhia de um saco de materiais recicláveis às costas. Mais leve no começo de cada dia, mais pesado antes do recolhimento definitivo. O selecionado hábil dos dedos em reconhecer os materiais mais valiosos entre as sobras que poderiam ser levadas para a indústria da reciclagem, bom grado instaurado pela empresa responsável pela exploração do pescado local. Outras Dalias se multiplicavam na tarefa, com o slogan local de que elas estavam embelezando as ruas nesse serviço a troco de misérias.

Dalia não transparece remorsos, não se arrepende das brigas em que se envolveu e fala que nem queria mais deitar com homem mesmo. Coloca-se em uma argumentação de que a exclusão do grupo das que um dia foram amigas na verdade a concede essa faísca de liberdade, de poder fazer melhor seus horários e não ser violentada por falsos pretextos de que seria paga ao término da relação puramente financeira. "Mas, se eu for atacada hoje nas ruas, acho que ninguém fará algo por mim."

É a visão conformada de quem cresceu nas ruas da cidade grande. O ritmo de crescimento de Mwanza é desordenado. A prostituição é o caminho para muitas Dalias. As irmãs ficaram trabalhando no campo, em uma espécie de escravidão legalizada, a vistas grossas de qualquer fiscalização. Aos 16, preferiu tentar a sorte em Mwanza, segundo maior aglomerado da Tanzânia. A escassez de emprego a levou para a prostituição. A briga com as prostitutas a deixou nas ruas, recolhendo plásticos e papéis e o que mais der sustento. Paga para dividir um quartinho no centro. Uma cama para deitar, um teto para proteger dos envios do céu e porta e paredes para proteger dos homens da rua. Agradece que não é cobrado horário para entrar e sair. Divide os poucos metros quadrados com outras duas companheiras, mas é sempre a que chega mais tarde. Provavelmente mais extenuada também. Sobe o beliche e tenta descansar um pouco antes do sol renascer, na claridade que agulha nas primeiras horas matinais.

Não sabe das irmãs há pelo menos dois anos. Era a mais velha delas, mas sentia que o compasso da liderança estava nas mãos da filha do meio. Havia ainda um irmão, que dedica boa parte da sua curta expectativa de vida a uma mineradora. Dalia tampouco sabe do rapaz, o primeiro a nascer entre as quatro histórias. Dalia se esforça para ler, atesta alguma dificuldade, trava em sílabas, demonstra ansiedade e nervosismo para completar palavras complexas, mas consegue. A leitura segue o ritmo acidentado da sua existência de percalços. Sonha trocar de sapatos, comprar um vestido que destaque a tez mais negra do que a das irmãs, ela pondera.

Dalia é questionada do porquê deixou a prostituição, situação dolorida que ela mesmo aponta como mais lucrativa. A prostituição, segundo Dalia enumera, praticamente traz direitos trabalhistas que o trabalho autônomo de recolhimento para a indústria da reciclagem não lhe competem. Na prostituição, as meninas se organizam em casas específicas, possuem proteção para que não as violentem, são algumas garantias fundamentais para a subsistência. Os ganhos financeiros permitiriam uma troca de sapatos e o almejado vestido.

A moça hesita, demonstra desconforto com a pergunta da saída da atividade. Passa quase um minuto inteiro em silêncio, olhar voltado para o horizonte. Pela janela anoitecida, algumas crianças, provavelmente sem pais ou ao menos provisoriamente desgarradas deles, chutam latas e vão avançando a quadra dessa maneira. Alguns caem no chão, logo se levantam, dois ou três simulam uma briga. Um quarto chega e aparta. A lata vai rolando por mais uns 15 metros, os gritos se afastam, somem do campo de visão. O silêncio de Dalila retorna, interrompido somente por um vira-luta que cruza na direção oposta aos garotos.

Ela penetra no interior de nossos olhos e afirma que vai confessar o passado. Do ponto de vista dela, infestado pelo progresso das mineradoras e exploradoras do pescado, consequentemente poluentes de terras e rios, a cidade passa por um regresso, com pessoas estressadas por empregos miseráveis, desempregados sobretudo raivosos e a violência em disparada. Pensar no fim daquela adolescência indomada é remeter a um período mais esperançoso de Dalia. Era a época em que ainda conseguiu comprar sapatos ou vestidos, embora o abandono repentino da casa de prostituição tenha feito ela sair apenas com a roupa do corpo, um par de sapatos e o despreparo para a sequência de dias mal alimentados, sem saber como voltar a conseguir o dinheiro mínimo que fosse.

A história dela, do seu findar na prostituição, pode ser comum a muitas outras. O chamado roubo de cliente. "Ele nem era grande coisa. Se tinha 14 centímetros era muito", riu por três segundos antes de novamente ocultar o sorriso surpreendentemente branco, comprovação do que ela havia afirmado, uma dedicação especial para toda e qualquer higiene. Dalia possuía dificuldades com a matemática, com qualquer sistema numérico e etiquetador, mas aprendeu sobre tamanhos com os pênis dos clientes. "As outras putas comentavam enquanto nos preparávamos para a noite. Era uma das poucas aulas possíveis naquele ambiente."

Quando Simba (leão só no nome, ela pontua) preferiu Dalila em relação à Latifa, a rejeitada resolveu agir. Debulhou a situação em uma frieza para esquentar no momento que considerou adequado. Esperou até a noite de retorno de Simba ao prostíbulo. Conferiu que ele escolheria novamente Dalila e armou o escândalo. A dona do prédio sentenciou-se pela que organizou o barraco. Latifa era antiga na casa, não trazia problemas, tinha uma clientela que a fazia sempre posição de pódio entre as escolhidas, independentemente da rotatividade das meninas. Dalia interpreta a situação toda como pura birra, sensação de ameaço sentida por Latifa, que via na novata uma projeção superior ao que ela alcançaria nos próximos tempos.

Latifa estava começando a colher os efeitos da curva descendente. As costas doeriam, os namorados-clientes não seriam os mesmos. "Ela brigou comigo, mas logo vai ter que lutar com muitas outras. O império dela começava a ruir, disso não tenho dúvidas."

A fugidia dos campos foi mandada embora pela senhoria naquela derradeira noite. Dalia conta que estava despida, pronta para o ato com o tal Simba. Foi surpreendida por toda aquela confusão. Latifa escancarou a porta, outras duas a acompanhavam, na retaguarda, em guarda para usarem a força, se fosse (e seria) necessário. Dalia foi prontamente arrancada de seu espaço, enquanto o leonino ficou sentado à cama, confuso, pensamento desorientado, o sangue ainda muito direcionado para o pênis para reagir com a cabeça de cima.

Já o sangue de Dalia subiu e as estrideiras perderam-se. Atacou e conferiu boas arranhadas na face de Latifa, fragilizada fisicamente em relação à jovem. Quando as outras duas prostitutas envolvidas já deixavam a retaguarda de Latifa para assumirem o vanguardismo da cena, a senhoria apareceu e, em poucas palavras ouvidas e menos ainda pronunciadas, conferiu a vitória do tribunal para a golpeada Latifa, que havia perdido feio para Dalia nas manobras do ringue.

"Eram praticamente as três contra mim. E aquele otário do Simba ainda parado lá na cama. Merecia um tipo como a Latifa mesmo." Dalia teve a mente turvada pela sequência repentina de acontecimentos, que nada sondavam seu plano noturno. Sair daquela situação de, ao menos para como estava acostumada, aparente comodidade, direto para as ruas, de supetão, foi um impulso totalmente indesejado, uma vertigem que desestabilizou a ordenação de seus pensamentos.

Enquanto tentava assimilar sua demissão, sua expulsão da residência, os griteiros da voz de Latifa, considerada insuportável, nas palavras dela, faziam coro contra as decisões que ela deveria tomar a seguir. A estratégia de Latifa era fomentar a bagunça, escandalizar ainda mais à dona e às companheiras, estas já de partido tomado pela prostituta mais velha, uma eleitoreira de carteirinha que, sabia Dalia, já havia provocado uma expulsão anteriormente.

"Não sabia bem o motivo da outra mandada embora, eu não a conheci, apenas soube superficialmente da história. Mas aí reconheço minha descompostura de ter jogado mal essa partida. Eu deveria ter tomado conhecimento dos perigos que significavam qualquer envolvimento com a Latifa. Descarada e invejosa, um dia vai ter o que bem merece. Volto a dizer que o império dela vai ruir, se é que já não ruiu, nesse tempo todo..."

Noite ainda bastante presente na memória da ex-camponesa, Dalia teve condições somente de reunir mais um par de sapatos e sair para uma clandestinidade desprotegida. Conta que duas das companheiras de prostíbulo ainda foram até a porta e disseram que havia mais coisas que a pertenciam. Mas Dalia estava tão chocada com o ocorrido que resolveu, perante aquelas vozes ecoando em seus ouvidos, não olhar para trás. Não quis voltar nem para o que lhe pertencia. "Até hoje não recolho materiais naquela rua. Na verdade, evito aquela área, o quarteirão, o máximo que posso. Só gostaria de saber se Latifa já foi derrubada de seu trono."

Novamente sorri, dessa vez plenamente vingativa. "Mas era tudo muito superficial. A história de que éramos protegidas lá era balela. Cliente que pagasse bem comprava até o direito de nos agredir, nos dar uns tapas. Ouvi muito dessas estórias e algumas comprovaram: possuíam machucados no corpo que não mentiriam."

E volta a mostrar os dentes. "Olhe aqui, no meu pulso, foi daquela noite. Alguma daquelas putas me torceu o braço. Não consigo fazer pleno movimento, olha..." e demonstra girando o braço, de uma maneira que a mão não obedece como se espera. "Minha mão virou rebelde como uma garota da Tanzânia deve ser."

Depois daquela noite, tentou se refugiar em outro prostíbulo. Mentiu que não tinha experiência na área, mas, pelo contrário, progredia na atividade e não demorou para colecionar novos clientes. Se Talifa era pódio ameaçado no prostíbulo anterior, Dalia decolava sua carreira para a liderança na segunda empreitada. Causou inveja em novas companheiras. E elas se uniram às antigas.

Certo dia, o sol ainda estava lá em cima e Dalia foi logo identificada no acesso ao seu novo bordel. Uma das companheiras da primeira casa noturna correu para espalhar a novidade para as outras. Isso afetou Latifa e suas subordinadas, além da própria senhoria do primeiro prostíbulo. "Estamos com quedas nos lucros."

Dois dias depois, quando se direcionava para o trabalho, na preparação para o que se tornara outra noite interrompida, a ex-camponesa foi novamente abordada de surpresa. De um carro, provavelmente de algum cliente das inimigas ou até do esposo, do fixado da dona do outro bordel, foi recebida a pedradas. "Mas só uma me acertou, infelizmente em cheio." Dalia mostra a cicatriz próxima ao supercílio esquerdo.

Aos gritos, em uma confusão de vozes, Dalia reconheceu e assimilou o que precisava para encerrar sua carreira de prostituição. Se fosse pega em serviço novamente, seria degolada. Ela conta que pouco estremeceu perante as ameaças. Mas mostra a decepção de quem chegou ao posto de trabalho e em seguida foi demitida.

Dalia afirma que as prostitutas votaram pela sua expulsão. Piadista, concluiu que a democracia funcionava melhor nos bordéis do que nos governos africanos. Segundo ela, o episódio que as demais tomaram conhecimento somou vários fatores. Descobriram que ela havia mentido, pois não era recém vinda do interior, já conhecia os artifícios do trottoir da prostituição. Além dessa moralidade pregada com ou sem calcinhas, as companheiras sentiam-se ameaçadas pela falta de clientela para elas, com o brilho que resplandecia de Dalia. Por último, usaram como pressuposto o fato do prostíbulo estar desprotegido com a presença de Dalia. Ela atraía confusões, como o episódio das pedradas, que manchou de sangue a calçada defronte e a reputação do bordel. Doces ironias.

Expulsada desses serviços, a ex-camponesa cogitou procurar pela família nos interiores tanzanianos. Relembrou que sua saída para Mwanza também foi em tom de expulsão. Reconheceu que não seria quista no interior caso algum rumor de seus casos de prostituição chegasse ao ouvido das irmãs ou do irmão ou mesmo da mãe, que ano depois ela descobriu que havia morrido. Excomungada dos prostíbulos e de futuro incerto nos campos, descobriu a possibilidade de tirar seus recursos através da reciclagem, um novo ramo que surgia. A propaganda era alegre e acolhedora: "Ajude a tornar a cidade mais bela."

Dalia conta que pouco se importa com a limpeza externa da cidade, de suas ruas, porque a proliferação de lixo dentro das casas, dos prostíbulos, das terras arrasadas com as mineradoras e dos rios com as demais empreiteiras, tudo isso faz com que o trabalho dela seja minimizado como a sucata arrecadada, que é prensada e passa por uns processos lá até sua reutilização possível.

Apesar das dificuldades de uma leitura firme, concisa e de desconhecer o significado de algumas palavras, Dalia entende que sua vida é como um processo de reciclagem. "Joguei a prostituição fora e me sinto reutilizável, mas nem sinto falta de deitar com homem. Raramente encontro algum livro jogado fora, mas, quando aparecem, são um tesouro, é uma satisfação. Tento ler e entender melhor o mundo."

"Em seguida que fui demitida, pensei em continuar com a prostituição por conta própria, eu precisava comer, me alimentar. Mas seria muito perigoso. As ruas, por si só, são assim, é evidente. Eu ainda carregava o peso de duas ameaças nas costas. Prefiro carregar só o saco de reciclados nelas. Sim, sei que posso ser agredida gratuitamente, morta em qualquer noite, acordar com a boca em formigas, mas trabalhando dessa maneira que estou, os riscos diminuem consideravelmente. Os ganhos são menores também, mas é uma redução que acho que vale a pena passar por ela. Enquanto eu conseguir comer e ter o meu quarto..."

A entrevista, que parecia pontuada em final, foi interrompida pela porta, que, após uma breve batida, se abriu. Era a primeira das companheiras de Dalia a retornar da noite. Ela suava nas mãos e as mexia freneticamente, de uma maneira nervosa. Imaginava que fosse a minha presença enquanto entrevistador, o gravador sobre o único móvel fora as camas, que servia como mesa, à qual elas compartilhavam todas.

- Dalia, precisamos conversar. - Pausa. - Ele é de confiança?

- É, sim, é só um entrevistador. Contei mais para ele do que para vocês duas de aqui. Podem ter certeza.

- É que estou tão nervosa. Sei que você não concorda com isso... Veio do campo e a família de vocês deve ter muitos princípios a zelar. Mas... é que a grana está tão difícil para me manter aqui. Atrasei pagamentos nos últimos dois meses... Mas eu... Eu vou ter que trabalhar em um bordel.

- É aqui perto?

- Não, é longe até. Parece que trocou a dona recentemente. É uma tal de Latifa.

- Precisamos conversar.


Centro da cidade de Mwanza, na Tanzânia

(Foto: skyscrapercity.com)

14 de maio de 2020

O Sonho de Alika

Região do Delta do Níger. Apesar do nome que reverencia o Rio Níger, o trecho florestal aqui abordado pertence ao território dos vizinhos da Nigéria, um dos países mais populosos - e um dos mais pobres do mundo. Mas quase nunca ouvimos falar sobre essas populações, que confundem dialetos e idiomas por regiões esquecidas pelos jornais e telejornais. Cenário perfeito para uns poucos prosperarem, rodeados pela miséria, enquanto não tomamos sequer a bênção ou o castigo do conhecimento. O que se pode fazer?

Alika era uma jovem nigeriana, de comunidade ribeirinha, das margens do Rio Níger. Sonhava a enfermagem ou, se as portas continuassem abertas para sua passagem, por que não a medicina? Mas Alika sabia que isso lhe custaria caminhos intermináveis. Ir para a cidade grande, conseguir entrar para uma faculdade, voltar para socorrer seu povo, afetado por doenças trazidas por mosquitos, pela Aids, pelas contaminações. A mãe envelhece a passos rápidos, contrastando com o canto sereno e despreocupado das cigarras da vegetação cerrada. Alika pensa que nenhuma devastação havia por ali nos tempos da mãe. Dona Iniko vivia debochando do nome. "Aquela nascida em tempos difíceis." Bobagem, pensava ela. Difícil está para Alika e seus dois irmãos menores. Dona Iniko era fruto daquela mesma comunidade, mas de outras épocas. O rio era despoluído e as empresas estrangeiras desconheciam a área para aportar seus maquinários e traquinices.

A floresta cumprimentava a janela de sua habitação. As cigarras eram companheiras de canto. Segundo ela, cantavam bem mais alto. Devem ter tirado o prazer das coitadas. O dela também estava em baixa e não havia jeito de recuperar pelo menos nos últimos dois anos. Revezava com a filha Alika as longas pernadas em busca de água. Apesar de morar a poucos metros do rio, preferiam escalar para uma região mais alta, em busca de maior qualidade no que beber e se lavar. Tarefa cada vez mais árdua pela idade que acometia a senhora. Ela faria 46, se assim fosse permitido. Alika tinha recém feito 24. Os irmãos eram adolescentes. Ajudavam com lenha, iam ao mercado e às vezes tentavam pescar.


Rio Níger (Foto: Anistia Internacional)

Alika também gostava de pescar. Essa era a responsabilidade dela desde cedo, quando vivia com a mãe. O pai morreu jovem, quando Alika ainda não havia trocado todos os dentes e os irmãos não tinham a memória como companheira. O pai foi vítima de complicações de uma infecção. Alguns acham que era o vírus da Aids acelerando a partida do jangadeiro. Dona Iniko apenas emitia grunhidos quando alguma vizinha fofoqueira declarava a polêmica opinião sobre o falecido. Iniko jamais teve debilidade em seu corpo para acusar o vírus e prefere não pensar que tenha sido esse o responsável, que chega a permear o organismo de até 2% dos nigerianos.

A única filha e os outros dois filhos estavam sãos, dentro do possível. O mais novo teve diarreia nos últimos dias. A água que consomem não é recomendada. Nada de água encanada, incolor, filtrada, potável. É a que tem. Para a família de Alika e para outras milhares da região. Se possuíssem acesso a informações via redes de comunicação, Alika, a mãe e os irmãos saberiam sobre o aumento de intoxicações. Os ribeirinhos daquela área da Nigéria podiam optar entre o rio contaminado de óleo e a fonte alternativa, a mais distante, esta com alta concentração de metais. O irmão caçula de Alika não era exceção na estatística.

Os dados coletados geralmente não voltavam para a sapiência dos moradores. Não havia posto de saúde por ali. Hospital só na concentração urbana, quilômetros adiante. Se fossem contratados como mão de obra barata das empresas exploradoras do rio, poderiam usufruir, após muita teimosia, por algum atendimento médico. Embora os serviços de saúde estavam mais interessados e preocupados com os europeus que fiscalizavam obras, visitavam para observar o andamento das empresas e que podiam passar mal em função do forte calor.

Quem atendia à população em formato de visita eram médicos praticamente voluntários, vindos das Nações Unidas ou outras organizações, raramente com patrocínio empresarial. Eles percorriam as comunidades, davam atendimento prioritário a quem já possuía chagas em desenvolvimento, mas atuavam também como médicos das famílias, indagadores e coletores de amostras e dados, pela qualidade de vida e pela pesquisa. Procuravam mapear e entender o que poderia melhorar. E era muita coisa, evidentemente. Equipes de 10 a 20 profissionais teriam que dar conta de mais de 200 mil moradores em situações semelhantes, estes de menos de dólar diário para reverter em comida na mesa. Mas os incansáveis médicos davam algum jeito de limpar o suor da testa e seguir em frente, via sacra de dias e noites.

Galão ou cestos sobre a cabeça e Alika tropeava com o maior cuidado para buscar água, desviando da mata cerrada, cada vez menos, em função da quantidade de árvores derrubadas. Driblava os obstáculos estirados ao caminho dos pés, que experimentavam os mesmos sapatos desde os 18 anos. Apesar da longa distância, ela conservava a opinião de que a ida era mais demorada do que a volta, quando a sede já havia sido sanada ao chegar ao reservatório. E enchia-se de orgulho por poder ajudar a mãe e aos irmãos, principalmente ao enfermo. Ao mesmo tempo pensava na possibilidade da água ter deixado o menino com febre e os problemas digestórios. Entretanto, nada poderia ser feito. Era torcer para a qualidade da água ter melhorado em relação às doses anteriores. Para sanar o que ela própria poderia ter prejudicado. A vida na Nigéria era cheia das contradições, pensava Alika. Fazia poucos dias que os médicos haviam visitado aquela parte da comunidade. Se não haviam voltado para seus países de origem na Europa, só uma caminhada maior do que a busca por água para entregar o irmão aos cuidados de hospital. E, da forma como o irmão estava debilitado, não conseguiria chegar até lá. Qualquer transporte por terra seria cobrado. A opção mais válida era esperar por uma repentina melhora. Tentar um chamado para um incerto transportar do garoto até a cidade poderia custar dias de punhados de arroz à mesa.

Apesar da visita esporádica dos médicos, a cada semestre, na forma otimista, ou só anualmente, de maneira pessimista, Alika sentia falta mesmo era de Gunter e Gustav - ela achava engraçado a semelhança dos nomes. Os dois eram responsáveis pelas relações públicas da grande empresa estrangeira que explorava o rio. O que eles tinham a ver com Alika e a família? Acontece que Gunter e Gustav entraram em contato com a comunidade a partir de algumas lideranças. Para ser mais preciso, falaram com seis delas, entre os moradores, Alika, que dominava bem o inglês. Ela era sempre muito curiosa e autodidata em grande parte de seu aprendizado. No que eles se propuseram a ouvir os principais anseios da região, entenderam que um posto de saúde, básico que fosse, seria fundamental para atender aos chamados mais urgentes. Além disso, a radiocomunicação poderia acelerar a travessia de enfermos agravados, estes rumo à cidade. Mas uma disposição fixa de médicos no coração da floresta, em região que ligasse e contemplasse o maior número possível de cidadãos, quebraria galhos tremendos. Medicações, atendimentos, medições, desinfecções, curativos, testes para detectar doenças. Os ganhos seriam inigualáveis.

Entre muitos europeus que possam mamar nas tetas da empresa nos ramos de relações públicas, organizadores de reuniões, eventos, celebrações, comemorações de resultados expressivos para eles (...), Gunter e Gustav estavam selecionados para conversar com aquela região pelo esperado ensejo de quererem melhoras na saúde pública. Os resultados coletados pelos poucos médicos que faziam as visitas chegaram ao conhecimento da grande multinacional exploradora do rio. Alarmantes subidas de 40% de contaminações por óleo ou metais, 60% de casos de febre, muitos sintomáticos das primeiras aparições da fome. Era isso, um posto de saúde amenizaria os problemas. Talvez até vitaminas ou fortificantes manteriam a comunidade mais ativa, visto que alguns trabalhadores da mão de obra fabril saíam daquelas moradias, iam e voltavam diariamente. Não se poderia perdê-los assim facilmente.

Gunter e Gustav (e literalmente companhia limitada) frequentavam a região para estudar a área, os preparativos necessários, as conversas com a equipe de engenharia de como ficaria melhor o prédio para o atendimento dos nigerianos. Os dois eram enfermeiros na Europa e acabaram passando em concurso para essa nova função, que estava realmente bandejando cargos por Alemanha, Bélgica e Holanda, principalmente. Alika se interessou muito em investir o seu inglês com os dois rapazes, pouco mais velhos do que ela. Enquanto a moça africana tinha 24 anos, os alemães possuíam 27 e 26, respectivamente. Conversavam sobre suas histórias de vida, sobre as poucas semelhanças e abissais diferenças de seus países.

O interesse pela medicina era comum entre Alika e os dois rapazes. Apesar de não exercerem havia mais de dois anos a profissão de enfermeiros, os Gugu Boys partilhavam suas experiências e conhecimentos. Alika gostava muito de aprender e sonhava suas próprias oportunidades.

Em uma tarde, se sentaram à beira do rio, não muito longe da casa de Alika. A mãe desconfiava daqueles rapazes andando com a filha, dizia que homem branco nunca prestou, que só exploravam a região, derrubavam árvores, poluíam o rio e os poucos negros que eles empregavam eram com pagamentos miseráveis. Mas os alemães gostavam de Alika e ela nem preciso dizer que apreciava a companhia deles.

- Eu costumava pescar muito enquanto minha mãe sempre foi de ficar em casa - Alika olhava para trás, certificando que adiante a progenitora se misturava ao sombreado das árvores na tarde que rumavam ao término.

- Mas nem há muito o que pescar aqui - estranhava Gunter.

- Isto porque a poluição do rio, causada pelo óleo, vem acabando com as espécies.

- As águas aqui eram mais claras? - quis saber Gustav.

- Eram quase tão transparentes quanto esses braços de vocês - e ria Alika sobre as veias azuladamente visíveis, principalmente de Gunter. De repente conteve o sorriso aberto. - Agora a água está muito escura. Não enxergamos os peixes e eles devem estar enxergando cada vez menos vida.

Os alemães se entreolhavam. Apesar de estudados, parecia que só essas poucas palavras de Alika para abrirem os olhos sobre a poluição descabida que desaguava no Rio Níger.

- Vamos até a área do novo posto - sugeriu Gustav.

- Vamos - os demais concordaram, alçando as pernas que balançavam próximas à tranquilidade do trecho do rio.

A caminhada era insignificante àquela que Alika fazia por água. Em menos de quatro minutos, estavam na área destinada ao posto médico. Algumas árvores haviam cedido espaço - no eufemismo - para o quarteirão armado para receber moradores. A área estava toda delimitada. As bases alicerçadas permitiam que as primeiras paredes fossem erguidas. O futuro se mostrava promissor. Alika conseguia imaginar o posto de saúde tomando forma, erguendo-se branco contra o verde das ramagens. Nem precisava forçar a imaginação para ver os jovens recebendo medicações e fortificantes e vitaminas. Os médicos com certeza iam reclamar da pouca quantidade de água ou da qualidade ruim que era servida. Assim, o abastecimento da região seria prioridade. As preocupações seriam reduzidas um tanto.

Alika só parou de sorrir com os olhos ao se despedir dos garotos. Gunter e Gustav se retiraram, pensativos ainda sobre a poluição do rio. Se flajelando internamente pela ignorância de não terem percebido a gravidade da situação naqueles lados da Nigéria. Enquanto os alemães partiram preocupados, prontos para falar com a gerência e contatar com proprietários, Alika era apenas sonhos pelo projeto do estimado posto de saúde.

Esse também era o sonho de Gunter e de Gustav. Estes mais contidos, obviamente, não tinham a mesma vivência e seria impossível comparar a atribuição daquele investimento para eles e para Alika, que vivia desde pequena, nascida e criada, naquela região por quantidade infindável de anos esquecida pelos avanços da medicina europeia. Mas, liderados por Gustav, a dupla de alemães quis falar com seus superiores sobre a poluição demasiada do rio. Levaram esporro e ainda tiveram a inteligência minimizada e ironizada pelo vice-presidente da companhia, que os chamou de enfermeiros burros e incompetentes. "Tantos meses naquela droga e não viram que aquele rio é de corroer um ser vivo." Acabaram ambos demitidos.

Alika esperou por tardes e mais tardes o regresso dos simpáticos alemães. Os homens brancos mais simpáticos que ela conhecera, sem dúvida. Saía de casa e esperava muitas vezes no terreno abandonado onde sairia o posto de saúde. No começo, outras mulheres e alguns garotos iam até lá, lamentar com Alika. Alguns a chamavam de mentirosa, que ela prometeu grandes fundos e aquela obra nunca mais teve tijolo colocado. Mas a maioria compartilhava de seu sofrimento, percebia o modo inculpado da jovem. E todos sentiam falta da saúde que não era prestada a eles.

Com o passar dos meses, Alika ficou cada vez mais solitária, plantada nos entornos do mato crescente, com os ramos alcançando o topo das paredes que jamais ganharam teto. A única participação humana ali eram as lágrimas derramadas pela jovem, diante do abandono do posto prometido.

Ao chegar em casa com a água naquele dia em que novamente lembrava do posto que salvaria vidas, viu a do irmão em apuros. A febre havia piorado drasticamente, a contaminação intrometia-se naquele organismo de maneira arrasadora. Entranhava-se no garoto a chaga mais demoníaca. A mãe não quis acompanhar Alika na viagem com os irmãos. No olhar do filho caçula, a mesma expressão do pai quando havia morrido de infecção. "Não há mais o que ser feito." E viu o barco da família partir rio abaixo.

Alika e o irmão remavam pelo menor. Já era noite quando o grito ensurdecedor de Alika acordou humanos e animais na mata à beira do rio. Talvez alguns heroicos peixes, se é que, na escuridão da água, sabiam diferenciar a noite do dia. Em uma árvore alta, disparou uma passarada em bando, fugindo do impacto sonoro. Para longe do Rio Níger.

Quatro meses depois...

Desde o enterro do caçula, Alika jurou ódio a todos os homens brancos. Traidores. Da poluição do rio, da exploração da região às falsas promessas. Estava tão ensandecida com tudo aquilo que havia passado que pensou em expulsar os médicos da ONU na visita seguinte. Só tapavam sol com a peneira, nada faziam para mudar aquela realidade.

Cinco médicos se aproximavam da casa de Alika. "Que fossem para o inferno, os que estão vivos estão todos bem nesta casa, podem seguir para os vizinhos", pensava ela.

Dois médicos estavam mascarados e iam na frente. Ela nunca tinha visto eles vestidos daquela forma, ocultando o rosto. O modo como caminhavam também foi peculiar para a percepção da nigeriana.

Quando o ódio já brotava florescente em seu coração e começava a transmitir as impressões até a pele, Alika estava a 20 metros dos médicos. Os dois que iam na frente pararam. Olharam para Alika e ela para eles. Tiraram as máscaras.

A jovem ficou perplexa, absolutamente confusa. Gunter e Gustav pararam com as mãos para baixo, colocadas à frente do corpo, em um sinal respeitoso. Não baixaram a cabeça e seguiram olhando firmes para Alika.

- Soubemos. - Disse Gunter.

Alika teve toda aquela tarde para ouvir a versão de lamento dos alemães. De intuição forte, um dos motivos pelos quais lutava para ser enfermeira ou médica, ela percebeu a verdade no semblante dos estrangeiros desde a retirada das máscaras, antes mesmo da palavra flechada por Gunter.

Após passos vagarosos, os deles desconfiados e não os dela, se aproximaram até juntarem as testas e as lágrimas salgarem o mesmo metro quadrado em que os três ficaram sem pronunciar palavra.

Após a morte da mãe e com o irmão adulto e empregado, Alika foi estudar medicina na Europa. No episódio, a Organização das Nações Unidas, ao conhecer sua história e suas reivindicações, não mediu esforços. Gunter e Gustav seguiram sempre amigos da jovem visionária. Faltando um ano para encerrar o curso, Alika promete retornar de vez para o Rio Níger, na comunidade de sua morada na Nigéria. Além da ambição maior por despoluir o rio e expulsar mineradoras e petrolíferas estrangeiras, seu sonho é terminar o projeto do posto de saúde. Ali, no mesmo lugar, a menos de quatro minutos da sua eterna casa.


Rio Níger, em trecho entre Mali e a Guiné. É o terceiro maior rio do continente africano, com mais de 4.000 quilômetros
(Foto: West Africa Travel Guide)

12 de maio de 2020

O Presente dos Céus

Era piloto da aviação russa havia 26 anos. E tudo levava a crer que não chegaria a Moscou dessa vez. Mais do que essa notícia, o suor lhe corria da testa porque o avião poderia desabar a qualquer segundo no meio das savanas africanas. Andrey voltava da Tanzânia, viagem que há seis anos era sua responsabilidade quase mensalmente. Quando a temporada era boa e se desligava de qualquer outro trabalho na Rússia, viajava quinzenalmente. O assunto no continente abaixo da Europa? O pescado.

No lago Victória, o principal da África e um dos principais do mundo, a pesca estava no monopólio daqueles portentosos aviões, muitos deles guiados pelos russos. Embora trabalhasse com experiência nesse ramo, nesse trajeto, Andrey apenas lutava para entrar no top 10 dos mais viajados naquela rota. A esposa demonstrava preocupação, jamais se acostumava com aquele cotidiano, imaginava o marido como um piloto kamikaze, mal sabendo que quem morria eram os que ficavam no solo africano, devastados na fome e na falta de esperança.

Mas essa missão estava em ruínas. Andrey percebia isso e, religioso que era, beijou sua medalha com afinco, de uma maneira que, acostumado pelos voos corriqueiros, jamais pensou que poderia acontecer. Beijou o objeto metálico, condutor de sua fé, de uma forma apaixonada. Colou os lábios que ressecavam no frio russo ou no calor da Tanzânia. O filme em sua mente transcorria ferozmente, tão fora de controle quanto a pane que tomava conta da aeronave, uma considerada moderna pelo espaço aéreo russo, mas que, na economia de manutenções necessárias, estava comprometida. "Malditos tanzanianos", sabia ele repetir alvoroçado, raivoso, em seu próprio idioma. Queria ao menos um gole de vodca, mas não trazia bebida consigo na cabine. Queria afogar um pouco das dores antes do desastre definitivo.

O último reparo da aeronave foi feito em solo tanzaniano, na cidade de Mwanza, um dos principais portos que leva o pescado africano para a Europa. Por conta da mão de obra mais barata, a orientação de sua companhia aérea havia sido para receber manutenção na Tanzânia. Andrey era experiente, mas nunca foi um ás na parte técnica. Gostava mesmo era da pilotagem, apesar das exigências feitas que aperfeiçoasse seus conhecimentos. Obviamente ele conhecia bastante sobre motores, painéis e turbinas, mas a revisão última estava fora de seu interesse na estadia no centro da África. Preferiu a companhia integral de Hasina, negra esguia de musculatura forte que o fascinava. Dava dinheiro extra para ela, que tanto precisava. Hasina se sobressaía em relação às companheiras na escolha feita pelo piloto russo. Era por conta do porte físico. "Ela é mais forte do que as outras", justificava ele. Andrey teria idade para ser pai de Hasina, mas naquela hora nenhum deles se importava com essa constatação.

Hasina precisava se alimentar melhor e o rendimento não tinha outra maneira de vir. Conseguia entrar para o seleto grupo que dormia com pilotos europeus e não perdia a oportunidade. Era valorizada e Andrey sabia disso, por isso não descuidava sua atenção. Gostava mesmo era das viagens quinzenais, porque sabia que menor era a chance de Hasina tê-lo trocado por outro. Mas sabia que ela tinha, eventualmente, outras companhias. Era o trabalho dela, afinal. E ele não se queixava, tinha família lhe esperando na Rússia. Além da esposa Aleksievna, tinha dois filhos, o mais velho indo para a faculdade e a menina era dois anos mais nova do que o irmão.

Andrey sentiu que não havia mais o que fazer, a não ser esperar a queda. Olhou o retrato dos filhos pela última vez, abrindo a carteira. Lamentou não ter deixado todo o dinheiro daquele pedaço de couro para Hasina. O que carregava poderia sustentá-la por mais de dois meses e seria tempo a mais que ela lembrasse dele e não precisasse daqueles outros porcos desgraçados. Sentia rivalidade e desprezo por dois ucranianos que deitavam com ela. Um antes dele conhecê-la o outro depois. Odiava-os da mesma forma. Para ele, tanto faz.

Não tinha uma foto de Hasina para ver pela última vez. Não poderia estar carregando foto dela, com medo de possível descoberta e escândalo, represália de Aleksievna. Da esposa, sim, havia três fotos. Ciente de que a colisão próxima por acontecer não deixaria vestígios da cabine, jogou-as fora.

O co-piloto, Nikolay, vendo a cena dantesca que se desenhava à sua esquerda, apenas balançou a cabeça. Na verdade, o co-piloto pressionava os dedos contra os olhos, querendo ver era mais nada. Estava nesse ramo há bem menos tempo, apenas dois anos. Ao descobrir as falhas mecânicas que se tornaram irreparáveis, gritou, esbravejou, xingou deuses russos e africanos, cuspiu contra o de Andrey e o de Hasina e mandou todos para o mesmo inferno, fosse o frio da Rússia ou o calor da Tanzânia.

Nikolay havia pensado em desistir das missões aéreas no último ano, porque era exatamente o choque de temperatura que lhe congestionava nariz, garganta e estava fazendo um mal danado para o seu pulmão. Mas gostava era da grana que era maior do que qualquer trabalho que houvesse arrumado em Moscou ou Ekaterimburgo. Ao contrário de Andrey, não se apaixonava por nenhuma nativa. Pelo contrário, ele tinha verdadeiro pavor de dormir com uma e ainda mais com o crescente número de mortos por vírus. Se dependesse de Nikolay, levaria somente marmitas da Rússia e nem sequer se alimentaria nos restaurantes de Mwanza.

Preconceito até o talo. Mas nenhuma russa esperando por ele quando voltasse, nenhuma religião para rezar naquele momento. Mandou todos e todas para o inferno. A única crença que brotou naquele piscar de segundos foi que Andrey, infiel, ser humano repugnante em vários aspectos e que fazia parte de sua torturante gama de viagens que valiam só o dinheiro, Andrey havia trazido aquela má sorte. O piloto principal é que merecia queda e que o avião afundasse até o centro da Terra ou onde fosse a primeira parada para o expresso rumo ao coisa ruim.

Andrey sabia o que sempre levavam para a África ao saírem do aeroporto em Moscou. Além da descida para buscar o pescado no lago Victória, em Mwanza, o avião seguia até regiões conflituosas, com um carregamento de armas e munições. "Eram os negócios", ele apenas repetia enquanto contava o dinheiro. E não era pouco. Guardava em bolsos separados, em mochilas separadas, desconfiava do próprio Nikolay, que não ia com a cara dele. Mas ao menos era bastante prestativo, disso não podia reclamar. E jamais assoprou algo na Rússia sobre a sua carreira infiel em terras africanas. Nunca cobrou propina para ter o bico calado. Mesmo assim, Andrey sabia que esses podiam ser os piores. Os que ameaçavam matraquear era molhar a mão que mantinham o silêncio dos sustentados. O quieto Nikolay, não corruptível dessa forma, podia abrir a caixa de verdades a qualquer momento. Mas aquilo nunca ocorrera.

Não que Andrey soubesse.

- Eu falei de Hasina para sua esposa.

A frase, pronunciada de repente, deixou Andrey ainda mais zonzo. Ele pensava justamente em Hasina naquele prolongado momento em que as sinapses estavam a todo pau.

- Desgraçado! Vocês do interior são piores que os da capital. Maldito o seja! Mas dane-se, agora não fará diferença. Só não pense você, Nikolay, que vai escapar do mesmo destino que o meu. Vamos para a mesma merda - vociferou o piloto.

Nikolay pensou que nisso o bastardo tinha razão. Dentre os motivos quase fizeram o co-piloto desistir das extensas e cansativas viagens, estava a descoberta da carga nas grandes caixas transportadas. Como a grana falava muito alto, em tom ensurdecedor, Nikolay nem se importava se o que transportavam logo atrás da cabine fossem materiais inflamáveis prontos para explodir. Não queria saber se eram corpos, armas biológicas ou mesmo uma ajuda humanitária, que aquele povo imploraria na Tanzânia. Nikolay via eram os dígitos crescerem no saldo da conta bancária. E agradecia ao FMI, ao Banco Mundial ou a quem quer que fosse que intercedia por eles naquelas idas e vindas, ou mesmo fizesse vistas grossas, como ele sabia ser o caso das Nações Unidas.

Mas um dia Nikolay escutou demais e soube da presença das armas entre as cargas da aeronave. Óbvio que ele suspeitava, mas agora tinha certeza. E a certeza fez a sua cabeça mexer-se nos degraus das dúvidas. Podia abandonar aquela escada ou continuar a ordenar a vaca de seu sustento, engordando a poupança que o preparava para viajar pelo mundo descompromissado, em uma aposentadoria antecipada e uma velhice confortável. Doce ilusão.

Queria beber nem que fosse um pouquinho do veneno, o mesmo que o porteiro tanzaniano posicionava na ponta das flechas, caso houvessem invasores na sede deles. Sabia que aquele pobre coitado ganhava um dólar por noite para se expor aqueles riscos, enquanto eles dormiam em lençóis limpos, sobre camas de colchões macios. "Ainda que ele ganhasse um adicional noturno...", pensou enquanto desejava que aquele porteiro-segurança não fosse apunhalado pelas costas, literalmente, como ocorreu com o anterior no serviço. Aquela violência tão próxima ao alojamento de russos e ucranianos era mais um dos ameaços que o fariam desistir, mas nunca desistiu, cabeça dura e gananciosa. Agora era tarde demais.

Enquanto Andrey voltava a beijar a medalha, o avião beijou o solo às 16h48, horário da Etiópia. A colisão derradeira foi próxima à capital daquele país, Adis Abeba. Segundos antes de tudo virar chamas e a dupla ser conduzida para outro plano, o plano de Andrey foi liberar a carga que carregavam. Cerca de 40 toneladas do peixe perca-do-Nilo, o predador que devastou as espécies originárias do Lago Victória.

40 toneladas indo ao solo antes deles com o avião. O peixe originário do Lago pertencente ao país da Tanzânia, geralmente só é consumido na Europa, a preços refinados e extravagantes. A maior parte da população da própria Tanzânia, que muitas vezes auxilia no pescado de alguma forma, não tem os dólares necessários para consumir o seu produto. Aqueles milhares de quilos do peixe caíram próximo à capital da Etiópia e logo a notícia se espalhou e o povo local correu para buscar o que sobrara do peixe, para muitos, mais do que as refeições habituais podiam oferecer. Era comum muitos africanos comerem somente as sobras, por exemplo as cabeças, enquanto a parte plenamente comestível, por assim dizer, da perca-do-Nilo trocava de endereço, rumo a outro continente, para jantares chiques ao som de violinos. As cabeças eram vendidas na Tanzânia em mercadões, expostas ao chão. Quem nem isso conseguia, podia tentar a sorte na quantidade impressionante que apodrecia em lixões, na companhia de aves e outros predadores, ou mesmo larvas e outros decompositores.

O piloto Andrey tomou a decisão de liberar a carga antes que ela explodisse consumida pelo fogo, porque, após muitos desvios corruptíveis e de adultério conjugal, resolveu seguir sua religião em um último momento. "Jesus gostaria assim".

Os 162 quilos somados de Andrey e Nikolay sumiram com as ferragens, em função da atividade combustora da colisão. Das 40 toneladas da perca-do-Nilo, pelo menos metade foi aproveitada pelo povo etíope, auxiliados pela traição feita pelos mecânicos e engenheiros tanzanianos, que sabotaram o avião dos considerados tiranos russos. Os etíopes não sabiam a causa do acidente, mas agradeceram por dias e noites pelo presente vindo dos céus.

11 de maio de 2020

a data

a data pacata
só na dela
e a cidade tão ingrata
é quimera na janela

a data é
apenas o que tem que ser
contagem exata
pelotão a obedecer

a data é rígida
numerada e uniformizada
a data é ereta
sem errata a esmorecer

a data é tua
teu aniversário
números pares
e nós ímpares a sofrer

fevereiro 2020

transigente ao ouvinte
o rádio é a frase certa
daqui ao ponto seguinte

familiares são as palavras
que saem de mim
minhas descendentes
encontram seus lares
poesia é malabarismo
palavras são malabares
toco e recito
novos ditos populares

uma dupla de vintes
faz a data
um irmão fica
e o seguinte vira um
são dois mil e vinte e um

(fevereiro 2020)

fogo nos iates

eu queria fazer parte da sua vida
eu queria estar contigo
eu queria por fogo nos iates em Ibiza
e voltar pro seu abrigo

eu queria te chamar de querida
ao final de cada domingo
eu queria cortar cabeça de nazista
e não ser só o que eu digo

eu queria o final da pandemia
e entrar no seu vestido
eu queria garantir todas alforrias
desse mundo todo perdido

fragmentos de novembro de 2019

repassando poemas de novembro de 2019


meu sono desenrola-se
crescente não controla-se
durmo nos teus braços
na minha imaginação

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sinto as dores do mundo
nas palmas de minhas mãos
as frieiras de inverno
as chagas dos verões
dores que me consomem
que os outros nem verão

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poesia, venha outro dia
já é tarde e muito me arde
venha sozinha
não venha com ela
amor a três
eu, a poesia
de mãos dadas com a vida eterna

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escrevi uma das poesias
mais bonita do que ela
era mais ou menos assim
agora já era

10 de maio de 2020

Cochabamba e algures

Acordei em Cochabamba, uma das maiores cidades da Bolívia. Ao menos, minha imaginação me levou a crer que ali estava. Meu inconsciente certa vez levou-me a conhecer Cacoal, na Rondônia, bem sei eu o porquê. No país vizinho, nas terras bolivianas, um antigo sonho a ser realizado e uma parcela reduzida de realidade ao meu alcance.

Saio para as calçadas na parte central de Cochabamba. As ruas são, em suma, retas, na conhecida descrição de jogo da velha que se expande, quadras de tabuleiro. Assim é que devem ser para melhor orientação dos visitantes, a exemplo dos pampeanos. Só se recortam ou curvam-se as estradas em caso de obstáculos de relevo ou outras barreiras. Não era o caso. O trânsito pedestre era intenso, bolivianos apressados, rotinados no dia a dia. Qual dia da semana era? Eu não fazia ideia. Não sabia o que estava fazendo ali. Tão distante de minha terra natal, nas entranhas do continente sul-americano.

O tempo era um adversário voraz e percebia-se uma orientação para o fim da tarde. Os passos dos transeuntes indicavam a pressa em chegar em casa. Eu, pelo contrário, estava deslumbrado e não possuía casa definida para aportar. Imaginava que um hotel não sairia muito caro e assim eu torcia com meus botões. Estava sozinho, nenhuma companhia, mas o ar que eu respirava era a plenitude da coragem em socializar. Queria conversar com todos, com qualquer um, falar de onde eu vinha, que estava maravilhado em aportar naquela cidade tão interessante, histórica, sintetizadora da América do Sul. Queria conversar com a primeira pessoa que me cruzasse o caminho, entretanto os bolivianos e bolivianas seguiam seus rumos, não ligavam para o turista em questão.

Um pouco desorientado enquanto tentava assimilar meu papel naquele barril de vida, praticamente esbarro, após atravessar uma rua e encontrar o ângulo de 90 graus de uma esquina, praticamente colido com uma descoberta ainda mais inacreditável: Azocar. O jovem mais jovem do que eu, mais baixo do que eu, mais moreno do que eu, cabelos mais escuros do que os meus, Azocar, em total coincidência, também havia saído de nossa cidade natal para Cochabamba na Bolívia. Na mesma data! Absolutamente inacreditável façanha. Fui parar em Cochabamba, Azocar, seja lá com quem tenha vindo, tomou a mesma ideia, coincidência de dias e, naquele universo de pelo menos 600 mil bolivianos, nos peixamos. A probabilidade, naqueles 2500 metros de altitude, a probabilidade foi definitivamente lançada ao espaço.

Cumprimentei efusivamente meu amigo, ele naquele estilo recatado, mais do que o meu, voz baixa, tom comportado em moderação bem dosada, olhos e expressões inteligentes, parecia estar melhor habituado àquele trânsito central. Teria planejado melhor a viagem? Pior do que eu nesse aspecto era impossível, eu caído de para-quedas. Teria estado em Cochabamba há mais dias? Provavelmente, tamanha tranquilidade com a qual me encarava. Como, se não antecedemos esse encontro casual, poderia ele estar tranquilo daquela maneira? A altitude daquele município pitoresco deveria estar carregando minha alma aos céus e nada mais faria sentido.

Seguimos regulando nossos passos para dividirmos as calçadas. Eu estava em êxtase e trocava palavras breves com os bolivianos que cruzavam conosco. "Ese es mi amigo Azocar, no combinamos el viaje, pero acá estamos nosotros." E eles nos olhavam com pouco interesse naqueles turistas. Alguns traziam jornais em mãos e eu imploraria que algum me entregasse para melhor me situar no tempo, no espaço, no lugar, naquele transe de acontecimentos sucessivamente inexplicáveis.

Atravessamos mais duas quadras, o tempo se acinzentava, não era somente a noite que mergulhava sua treva sobre a copa dos edifícios centralizados, eram o cheiro e o som da violência pungentes, a iminência do caos na profecia do pior por vir. Os bolivianos perdiam o pudor em correr, disparavam pelas ruas, mudavam suas rotas, dispersavam-se e temiam as ameaças prometendo se concretizar. Um formigueiro posto a perigo, uma mangueira a enxotar a desordem naqueles concidadãos aspirados pelo desespero. Tumulto logo adiante, mentiria se eu dissesse que era na quadra seguinte. Era na mesma! Menos de 50 metros de nossos atônitos olhares.

A polícia se movimentava, formação do batalhão organizadamente pronta para conter ou, como é comum, ampliar uma baderna. Escudos, bombas de efeito moral, armas em punho, uns protegendo os outros enquanto as formigas daquele urbano formigueiro eram postas ao efeito desestabilizador dos inseticidas. Não tínhamos escolha. Ninguém nos ouviria, na surdez dos disparos de gás lacrimogêneo. "Somos turistas! Somos jornalistas! Somos periodistas!", mas nada adiantaria.

Meia volta em nosso trajeto ainda atordoado no efeito inebriante do sonho daquela aventura romanesca. Azocar e eu em pernadas pela sobrevivência na altitude boliviana de Cochabamba. Frases que pensamos jamais um dia pronunciar, mas aqui é feito o relato tal como ocorreu. Se antes era impossível atrair a atenção dos concidadãos, agora era missão que nem me cabia tentar, cada um por si pela sobrevivência. Obviamente, um grupo aguerrido, destemido de revolucionários procurava enfrentar o batalhão da polícia local. Não saberia precisar, naquele vespeiro em chamas, qual a reivindicação em pauta, o motivo do confronto em plena porta de saída do sol no horizonte. A névoa, a bruma do gás lacrimogêneo misturando-se ao nebuloso cerrar da noite. Precisávamos de abrigo.

De repente, sinto-me encurralado, minhas pernas talvez não tenham sido rápidas o suficiente, os estalidos e o crepitar dos disparos seguem envolvendo completamente meus tímpanos, Azocar é minha única esperança. Ele, minguado ser de bom coração, astuto nos projetos que desenvolve, é ele quem me ajuda a terminar a travessia, carregando-me ombro a ombro, arrastado, canelas contra as calçadas, inoperância minha pela perda parcial dos sentidos, meios fios das ruas atulhados de jornais abandonados por seus leitores. Aquilo seria notícia no dia de amanhã.




No dia seguinte...

Estou recuperado do baque sofrido. A ressaca não foi de cerveja, licor ou aguardente. Nem mesmo a imbebível cocoroco, mistura boliviana considerada uma das soluções alcoólicas mais dissolventes do mundo. A ressaca foi de balas de borracha, estouros, bombas arquitetadas pelos policiais, pane de meu sistema nervoso central. Azocar havia me salvado.

A claridade matinal estava a nosso favor novamente, um dia após o outro. Penso naqueles bolivianos envolvidos no violento conflito, torço do fundo de meu coração não ter sido um inescrupuloso massacre em plena área central da grande Cochabamba. Recordo do filme que se passa na Bolívia, o Conflito das Águas, com atuação do bem renomado ator mexicano, Gael García Bernal. Direção da espanhola Icíar Bollaín. A Bolívia como palco da trama, complexa obra de crítica social contra a desigualdade no abastecimento. Em questão, o acesso à água. A população revoltosa pela inefetividade do transporte desse recurso vital, ensandecida pela má vontade governamental em assisti-los. Os protestos tomaram conta, as gravações de um filme (dentro do filme) sendo desarticuladas em meio aos conflitos, segundo plano, inclusive na mente do ator interpretado por Gael Bernal.

Minha cabeça permanecia zonza, a recuperação da memória ainda tornava em vão a pergunta de como fui parar em Cochabamba. Não recordava o planejamento dessa diferenciada viagem. Não lembro da passagem por aeroportos no Brasil ou na Bolívia, nem de conhecer a malha rodoviária das estradas bolivianas, nada de autobus. Como havia parado ali e qual era a minha missão, tudo isso era um mistério.

Pelo deslocamento de algumas ruas íngremes, onde rapidamente me perdi da presença do amigo Azocar - e fiquei a pensar se eu tinha o seu número celular para nos comunicarmos - fui conduzido por uma jovem moradora até o que ela indicava como litoral. Inebriado pela moça de tom de pele bastante moreno, cabelos negros, olhos sedutores, praticamente ignorei aquela sentença espantosa, visto que a Bolívia, trancafiada entre países, não possuía um litoral. Ao pesquisar sobre Cochabamba, os possíveis pontos daquela condução quase de mãos dadas podiam ser o lago Angostura ou o Alalay. Mas, pelas imagens que a internet me retransmite, é provável que aquela paisagem fosse de nenhum deles.

Estava mais para o Angostura, sem dúvida, mas os arredores ainda eram urbanos, como se fosse a Praia dos Ingleses em altitudes bolivianas. Um lago totalmente povoado em volta, o que não é a característica de Cochabamba, ou uma encosta de tranquilizado mar à uma altitude impressionante. Nada mais fazia sentido. Provavelmente, com o estouro do conflito do dia anterior, eu havia me despedido de Cochabamba com Azocar. Não sabia mais em qual cidade estava. E o próprio Azocar havia sumido. Só boas notícias.

Mas havia a minha nova guia turística. A primeira moça ou mesmo primeira pessoa que havia me notado, aparentemente mais nova do que eu. Entre subidas e descidas naquelas ruas apertadas e de trânsito dificultoso, por serem íngremes e estreitas, chegamos finalmente a uma encosta derradeira, onde as últimas casas desciam em direção à baía em questão. Ela estava orgulhosa do molde geográfico de sua cidade. Eu sorri com os olhos para a apresentação de nossa anfitriã, que só faltou abrir cortinas para aquela paisagem arrebatadora.

Acompanhei-a até uma pedra que se elevava entre dois e três metros acima da areia lambida pelas águas calmas daquele oásis. A vegetação por trás da gente era semelhante à mata atlântica, densa, cerrada, local perfeito para inimigos se esconderem, imaginava minha mente paranoica, ainda ofegante das trêmulas imagens do dia anterior. Ela fazia questão de me acalmar, ouviu meu breve discurso de jornalista perdido naquele mundo, interessada, ouvinte, boca e olhos a rebolarem naquele bem esculpido rosto. Em seguida foram os dedos que se mexeram e percebi que ela enrolava um cigarrillo de maconha. Fiquei entre o contentamento e a apreensão com aquela cena, pois não queria problema com as leis estrangeiras, ainda mais depois do cartão de visitas daquele ontem. Ao mesmo tempo, se sobrassaíam a excitação e aparência paradisíaca de toda aquela região, em um dos átrios da América do Sul, paisagem que eu jamais havia visto pela internet, em reportagens de televisão ou em fotos publicadas por amigos. Tudo era absolutamente inédito e desconhecido.

Ficaria muito exitoso em narrar que estávamos a sós com aquele mundo recém-descoberto, torcendo que nem os espanhóis tenham se banhado naquelas águas, bolivianas ou não. Apesar de meu desejo de paraíso à moda de Adão e Eva, havia bastante gente ao redor. Parecia um lago, baía ou pedaço abençoado de mar calmo frequentado pela camada jovem daquela sociedade. Alguns eram atléticos e mal encarados, uns exibindo tatuagens, outros mirando meu aparente retrato de turista, germânico demais para disfarçar-me naquelas terras.

Com qualquer tentativa de camuflagem sendo-me inútil, ao menos eu teria que agradecer que essas características me garantiram uma anfitriã atenciosa, rica em vários aspectos e que sabia se posicionar para uma boa paisagem. Recordei que no dia anterior eu lamentava não estar portando minha câmera, desesperado por não registrar minha inusitada aos paraísos bolivianos. Entretanto, após a confusão geral nas ruas de Cochabamba, passei a considerar sorte não ter perdido minha Nikon, prejuízo financeiro que eu não poderia arcar.

Tímido, pitei aquele cigarrillo e rapidamente o devolvi, ainda tentando assimilar tudo aquilo. Observei os jovens em volta e temi pela minha integridade caso a menina anfitriã tivesse qualquer caso com um daqueles nativos. Provavelmente me atacariam em bando, eu precisava estar preparado para manobras defensivas. Tive a impressão dela cumprimentar alguns e permaneci em guarda. Passados uns minutos, minha vista começava a decorar os rochedos impressionantes que emolduravam a paisagem, fundidos e difusos até emaranharem-se nas teias da semelhante mata atlântica. Fui defenestrado dessa tranquilidade quando minha guia se levantou e subiu as areias em direção à civilização de casas. Atrasado com minhas pernas atordoadas pelo meu natural cansaço físico e pelas atividades extenuantes do ontem, eu a perdi de vista. Não, não poderia estar acontecendo. Primeiro sumiu Azocar, agora a única pessoa que me sorria e tentava ajudar. Era muita falta de sorte aliada à incompetência. Nem sei em que cidade estou!

Daquelas ruas de centímetros acumulados de areia aos seus encostos, nas juntas com o meio fio, em um aspecto praiano, serpenteei em busca da fascinante morena que nem o nome eu sabia. Não sabia, naquele momento, se preferia saber onde estava ou saber o nome dela. Provavelmente o dela. Continuei cruzando por pessoas que me ignoravam a presença. Daquela encosta de tirar o fôlego (pela vista e pela cansativa caminhada), acabei chegando junto a um mercadinho, que interpretei como mercado central. Sim, havia história, haviam casas antigas, logo percebi. Ao eixo de uma praça central concretada, se estendiam por ali o mercado e outras construções antigas, segmentadas, um labirinto a desconhecidos. Rodei por ali.

Digo que rodei porque evidentemente não sabia para onde ir, encontrei pequenos vendedores, camelôs, posicionados em bancas ou amontoados pelas calçadas. Vendiam tecnologias celulares e adereços para os mesmos. Capinhas, protetores, películas e chips. Microbolsas, acessórios, brincos, pulseiras, pérolas, lembrancinhas. Nada disso eu adquiri. A maioria dos vendedores era composta por latinos ou africanos. Circulavam muitos nativos daquela américa andina, uma excencial predominância de jovens. Aspectos estudantis, pessoas de mochila. Os mais velhos talvez fossem os trabalhadores do mercadinho central. Aquele comércio contava com trabalhadores braçais, vendedores cansados de seu repetitivo trabalho. Assim como os demais, nenhum deles me notou, nem perguntaram se eu queria alguma coisa. Limpavam peixes, organizavam caixas e o que seria exposto pela vitrine dos balcões. O cheiro dos frutos das águas se misturava a um potente odor de urina. Os mercados em todos os lugares eram assim. Alta concentração de pessoas, higienes duvidosas.

Descobri uma fonte de pedra que me pareceu o marco zero daquela praça antiga. Sentei-me junto à escultura. Encontrei um bom encosto em degrau que levava à estátua. Ela despejava um pouco de água, mas os jatos escorriam lateralmente a mim, sem me molhar. O cheiro da urina era muito forte, pensei que podia estar exposto aos esgotos. Estava perplexo, congelado, não conseguia me mexer. Meus olhos, estes sim, percorriam toda a paisagem urbana como me era possível. Mochilas e mais mochilas nas costas daqueles cidadãos em idades plenamente estudantis. Adolescentes de um lado para o outro. Nenhum sinal ainda de Azocar e nenhum sinal da moça local. Quando consegui reagir, me levantei e segui reto o máximo que pude, por uma avenida de calçadas preenchidas por vendedores e suas mercadorias, areias por trás deles e novamente a água completando o panorama ao fundo. No lado oposto à essa calçada, uma avenida e as casas e pequenos comércios no meio ainda urbano. De fato, era uma praia, de lago, de baía, de enseada, mas uma praia.

Azocar veio acompanhado do grande amigo dele, Gustavo. Eles, viajantes em outros tempos pela Europa, esses dois reunidos pela Bolívia ou onde fosse, na mesma época em que eu. Sem combinarmos. Eu permanecia abismado por essas coincidências. A última o caso de Azocar me reencontrar, nós sem nos comunicarmos, nada de ligações celulares, meu celular que seguia à segurança de meu bolso, inutilizável, que código de área seria aquele? Conversei rapidamente com os rapazes, que agora me direcionavam, pareciam saber para onde ir. Fui seguindo os passos deles, brevemente à minha frente, ditando o ritmo e a orientação. Em poucas frases, me confessaram estarem de saída daquela Bolívia (será a Bolívia que todos conhecem pelo mapa, pelas viagens? ou só a Bolívia confusa de meus sonhos?), estavam voltando para casa ou seguindo a trouxa de pertences para outro lugar. Viraram beduínos, por acaso?

Eu me sentia como recém-chegado. Fui aturdido por aquela coleção de imagens, fui viajado, estava distante de casa, aparentemente despreparado, com minha pequena mochila às costas, o que me assemelhava ao leque de estudantes que transitavam naquela praia. Logo no começo de minhas reflexões, estourou o conflito que me derrubou os sentidos, salvo por Azocar ou quem quer que fosse, talvez até pela mágica anfitriã daquele dia seguinte. Não sabia onde dormi, não sabia onde eu dormiria. Procurei pela minha carteira, tirei-a do bolso pela primeira vez ao que havia me lembrado, remexi na memória procurando algo sobre tirar passaporte para aquela viagem, conferi alguns reais junto aos meus documentos, possuía dois cartões de crédito, mas ambos brasileiros. Eu precisava, urgentemente, visitar uma casa de câmbio. Sonhava uma liberdade minha naquela Bolívia não liberta.