Não sei dançar. Não sei dançar o tango para o qual sou convidado. Só poderia ser com a morte. Falei dela e esperei sua visita durante muitos anos. Mas na hora derradeira, temo. Jogo o esperado xadrez com a mesma. Sinto alterações na coluna. Um líquido passa de cima a baixo de mim, de baixo a cima. Como um elevador sem marcação de andares. Comecei com alterações e perda de sensibilidade nos meus genitais. Pênis e testículos. Subiu para a coluna. Hoje temos a dúvida. Baixou da coluna para os genitais. Ou subiu dos genitais para o começo da coluna, próximo ao membros inferiores? E segue se movimentando e segue subindo. E não temos resposta. Farei exame daqui a um dia e meio. Aguentarei até o exame? Descobrirei o resultado daqui a mais quatro dias úteis após o exame. Prazo de uma semana, pelo visto. Foi o mais depressa e melhor custo-benefício, raro aspecto de mãos dadas, que encontramos.
Antes da coluna havia sentido mudança na pressão sobre meu ânus. E meu pênis passou a ignorar meus desejos. Uma possível lesão e seus agravamentos. Agora não só pelas ereções, mas temo pela minha coluna e pela minha vida. Ainda produzo material para o jornal, mesmo à distância. Fui convidado para narrar futebol na principal rádio esportiva da minha cidade e região. Talvez a segunda maior do interior do estado. Ou maior? Não importa. Fui convidado, mas dificilmente conseguirei aceitar. Conciliar. Entre a rotina já pré-disposta de estudante e futuro dono de casa? E a minha saúde.
Vou e volto ao aspecto da saúde. Aspecto, segundo o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, principal condição para a vida humana. Essencial para desfrutar-se algo. E aqui estou, meses de transtornos mentais, de consultas inúteis, de agravamentos silenciosos, semana de conflito, de insegurança, de medo, de desilusões, de aceitações.
Muitas vezes briguei com Deus. Dificultoso com autoridades, tratei-o como um irmão muitas vezes. Um irmão que xingo e brigo. Um irmão que recorro. Que recordo. Um irmão que invoquei em horas difíceis, geralmente com resultados positivos, mas que também, ao menos em curto prazo, creio que eu tenha conseguido prestar certo agradecimento. Mas um ser que já pensei partir a garrafadas. Como uma briga de bar. Eu contra ele. Poucas ou muitas testemunhas. Tanto faz. Frente a frente. Quebro uma garrafa de vidro no balcão. Tenho minhas armas. Ele ri. Sempre riu. A cada desgraça ou derrota que sofri - e não foram poucas, ele riu. Inclinou a cabeça. Brindou com apóstolos. Fez gargarejos. Deu gargalhadas. No todo, minha vida foi muito tranquila. Acima da média. Boa condição de vida. Dentro do Brasil e creio do mundo. Mais temi do que me ocorreu. Violência urbana. Problemas médicos - alguns que se confirmaram - como este está se confirmando.
Acredito mesmo assim que ele pode ser sádico. Não consigo explicar, caso exista além de meus sonhos, como permite a Síria, a Palestina, como permitiu a Arábia Saudita, o holocausto dos anos 40. Como permite execuções precipitadas pela Indonésia e pelo mundo. Como permite a venda indiscriminada de armas e o silencioso genocídio negro que apenas ecoa gritos e depois sossega, restrito ao choro despaginado das periferias que raramente são tema dos jornais.
Me pergunto como pode tudo isso ser permitido. Os estupros, os problemas de saúde. As mães que choram por suas crianças.
Minha mãe está preocupada com meu problema de saúde. Mas penso nas que enterraram soldados por tantas guerras. Nas mães da Plaza de Mayo em Buenos Aires, que choram por seus filhos desaparecidos em ditadura. E tantas outras assim, em lutos e lutas mais ressentidos, com mais ou com menos organização social. Lamento por minha mãe e seu parto surpresa e de risco. Minha cesariana. 11 de setembro. Data estranha. Palco de tantas tragédias quando o sol surgia nessa página do calendário. Desde pequeno acumulei chances de morrer. Do parto de risco de minha mãe de passados 40 anos até uma aventura infantil. Mal caminhava, mal corria. Corri dos fundos de nosso pátio rumo ao portão aberto. Do portão aberto para cruzar a avenida de trânsito hoje muito pesado, defronte nossa antiga casa. Se fosse o trânsito de hoje naquela época, nos anos 90, era mais do que possível: era provável ter morrido.
Alguns problemas de saúde. Acho que os exagerei na época, mas realmente, ao surgirem, muito me preocupavam. Como estou preocupado hoje. Tanto convoquei e conversei com a morte que ela tem me chamado de volta. Justo quando encontrei um amor correspondido. Quando estava com possibilidades para viver com algum salário e opções de cidade. Na boa negociação de meus pais rumo a Santa Catarina. A morte no caminho a espreitar.
Além dos problemas de saúde, arrisquei minha vida cruzando cidades grandes pela madrugada estando bêbado. Cruzei com ninguém que executasse, no sentido de findar essa tola ideia. Uma vez um perseguiu meu amigo e eu, mas tudo isso no trajeto para, depois de uma quadra, nos desejar um feliz dia dos pais, pois era fim de semana de agosto.
Ao sentir o estranhamento, a alteração no chamado cóccix, lembrei de quando Eduardo e eu saltavamos batendo palmas nas costas e deixavamos nossos corpos caírem de mau jeito contra o solo. Batíamos as costas no cimento. Nosso falecido professor de educação física se apavorou com a brincadeira esquisita daquelas crianças de 10 anos na época. Eduardo seguiu infantil, mas hoje é pai e instrutor de educação física. Suas costas acho que funcionou. Passou de gordo para detentor de certos músculos em evidência, embora nunca tenha deixado de ser gordo, conforme este até foi seu apelido em alguns clubes onde jogou handebol. Sua outra paixão era o basquete. Manjava do jogo, do contato, mas acreditava eu ter melhor arremesso quando com espaço.
Lembrei dos arremessos de basquete em outro momento nesta odisseia pela saúde. Ao urinar, com dificuldade, pensei em relatar o esforço da seguinte forma. Preciso me concentrar como se fosse cobrar um lance livre para meu pênis me obedecer. Esta é a atual situação. Preocupante. Sintomas que se dobram e desdobram-se.
Repenso minha vida. Minha saúde, minhas disposições, minhas opções. Aguardo pelos exames. Esta semana inacabável, este suor frio que me escorre. Essas fisgadas pelo corpo. Pelos músculos flácidos e enfraquecidos das pernas. Meu estado quase vegetativo. Minto, mas muito restrito. Minha condição penosa. Meus inchaços nas extremidades. Os arroxados e as ameaças de uma trombose ou de uma necrose violenta. Tudo da minha cabeça? Talvez. Mas suspeitas existem. Antes de diagnosticarmos o problema crescente e alternante na perigosa coluna, passei por ao menos três médicos, eles de diferentes idades e formações, para tentarem me tranquilizar que os sintomas e problemas acumulados eram somente mentais, psicológicos.
Hoje é com desdém, incredulidade, desprezo que repenso essas ideias. Posso ser quase ou até louco para algumas situações, mas conheço meu organismo. Me estabeleço dentro dele há quase 27. Não é só psicológico. Meus músculos flácidos, meu pulsar distinto, minha pressão e palpitação sobre os genitais. Desconfortos. O elevador indecifrável a persistir na coluna. Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Longa semana, se me permitida for, pela frente. Se Deus me perdoar, tentarei de novo. De novo agradecer pelo perdão a esta ovelha assustada e antes desgarrada de seu imenso rebanho. Agradecer por nova oportunidade se me for dada. Mesmo entendendo que, com a minha idade, muitos seres mais corretos, úteis e talentosos já se foram. Soldados, meninas estupradas, meninas esturpradas por soldados, doentes crônicos, doentes terminais. Mães que choram filhos. Mães que choraram filhos até o último dia que produziram lágrimas.
Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Tive bons momentos. Agradecido por eles. Incrédulo ainda com tanta coisa negativa que se sabe sobre o mundo. Pelas notícias e pelos olhares in loco. Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Não sei dançar. O derradeiro tango da morte. Mas ela me olha em alguns momentos em que fecho os olhos, nem pensando em escapá-la, pensando em nada, mas ela está lá. E tem o dedo comprido, pontiagudo, indicador das inevitáveis coisas. É como nos desenhos animados. Mas não estou animado. Apenas satisfeito nessas descrições. Porque, é como eu disse, hoje estou aqui. Amanhã não.