24 de fevereiro de 2022

Posso ir mais longe

Agora eu volto

Por onde eu vim

Capaz que eu fique tonto 

Olhando minha sombra

Távola não é redonda

Nas fábulas

As maçãs comem anacondas


Agora eu volto

Por onde eu vim

Capaz que eu fique tonto

Vendo minha própria sombra

Posso ir mais longe

Que as sondas lunares

Bombas nucleares 

Conversas de bares

Incidente em Antares 

Gabriel García, o Márquez

O mais alto dos andares

O nomadismo e os lares

Posso ir 

A muitos lugares


As ondas do mar

Fazem a mente viajar

Por aí pelos ares

A te conectares 

A se conectar 

22 de fevereiro de 2022

O que me dirá essa canção

Que nada me dizia?

Será que eu mudei?

Será só mais um dia?

Casa em frente ao mar

Uma casa sendo construída em frente ao mar. Ela não está pronta, está sendo erguida. Será um sobrado, o que bloqueia mais a minha vista para o mar naquela direção. Estamos na quadra de trás. Nosso prédio não tem obstáculo imediatamente à frente. À frente está um terreno baldio bastante largo, onde três éguas pastam com uma deliciosa missão de evitar um crescimento desordenado de mato e arbustos. Elas têm se saído bem. Se imediatamente à frente não temos obstáculo que obstrua a visão marítima, para os lados temos a vista de casas erguidas. Erguidas de frente para o mar.

Este sobrado está com o formato pronto. Faltam os acabamentos, como é de se esperar. Do contrário seria só um esqueleto acinzentado. Varios homens estão responsáveis pela obra. O responsável maior, digamos, é um engenheiro de meu sobrenome. Estranha coincidência por estas bandas. Para alguns operários, talvez a maior oportunidade para estar próximo do mar, nesse contato que tantas energias nos despertam. Podem ter vindo de longe, do interior. Podem estar ocupados o suficiente em outras chances, não tendo um fim de semana digno para contemplação, visitação e acolhimento junto às salgadas águas. Uma visão um pouco dramática de minha parte. Porém, não deixo de pensar nesses homens que ouvem, veem, mas estão impedidos de sentir o mar, ali defronte. Trabalham sol a sol, mormaço a mormaço, bronzeiam suas peles, mas não sobre a areia. Remexem o cimento e pavimentam a escada de ligação deste sobrado. Calçadas e concretos.

Do alto de nossa sacada, nem tão alta, segundo andar, os observo sem a definitiva atenção que os pudesse identificá-los ao longe ou ao perto, sem ser o único atrativo, porque realmente mais tempo eu passo olhando diretamente o mar. Mas eles não podem sequer parar muito a obra para apreciar a vista. Precisam cuidar dos materiais, do cimento no ponto certo, da colocação austera. Fico entristecido pelo tão perto tão longe de suas rotinas. Por legislação, parece que nada os impede de terminarem o turno e pularem direto na água, em um fim de tarde/ início de noite. Mas não os vejo nem consigo imaginá-los muito nesse desfecho. Devem direto às casas, direto aos banhos. De chuveiro.

É como se a praia, de construção tão rica, em frente ao mar, fosse restrita aos mais endinheirados. Não sei se é esse o código de conduta. Provavelmente não é. Provavelmente só eu demore tanto tempo a devorar essas questões, que na verdade elas me devoram. Meu pai encerraria esse monólogo todo de uma forma bastante simples.

"Melhor estarem ali trabalhando de frente para o mar do que não estarem trabalhando" - falaria com a experiência de quem já trabalhou e de quem já ficou sem emprego. Com essa frase dele, sem mais delongas, aqui encerro.

18 de fevereiro de 2022

Trabalhos Ocasionais de uma Escrava (1973)

Acabo de assistir ao ótimo filme "Trabalhos Ocasionais de uma Escrava", que começa a se destacar logo na escolha do título. Obra do alemão Alexander Kluge, diretor que empregava sua irmã Alexandra Kluge nos papéis principais. E acertadamente. Neste drama de cunho social como não deixaria de ser no cinema alemão de 1973, várias questões atuais são abordadas mesmo aos pés dos 50 anos depois.

A obra começa a abordar o papel da mulher na família. Casada com um marido despreocupado, egocêntrico e frustrado, a Sra. Bronski precisa se desdobrar entre o papel de mãe, logo cuidadora das crianças, e sustentadora financeira da casa, através de um emprego irregular pela sociedade alemã da época: abortista. Ela era uma espécie de enfermeira ou intermediária também para tomar conhecimento dos casos das mulheres necessitadas, repassando os chamados ora para um médico, ora para uma médica. Como qualquer atividade ilegal, ela possui dificuldades para receber o dinheiro. Várias passagens do filme são elucidativas, nas escolhas minuciosas, detalhistas e sensatas dos Kluge.

Um exemplo sobre o pagamento é o médico abortista dizer que a Sra. Bronski receberia nada na ocasião, pois só estava encaminhando pacientes que nem um tostão tinham para ajudar na clínica. Outra questão da ilegalidade são os subornos e as denúncias de irregularidades. Àquela altura a vida da Sra. Bronski já estava fadada ao ilegal, ao rasgo das leis. Imagens fortes como as de uma operação de aborto abrem o filme para ditar o tom da trama desde o começo.

Chama a atenção o aspecto contraditório de que a Sra. Bronski trabalha em/para clínicas clandestinas de aborto mas possui vários filhos, que, boa casa em que o espeto do marido ferreiro seria de pau, são cuidados pela amiga Sylvia, personagem secundária da trama, amiga fiel que acompanha a Sra. Bronski até onde lhe é possível (saberão ou não porquê).

Eis que com o fechamento desse ramo ilegal de abortos, as contas familiares na Alemanha setentista permanecem a chegar e algo precisa ser feito. O Sr. Bronski se emprega em uma indústria para a qual trabalha em sua especialidade: a química. O eixo do filme, que segue destacando o protagonismo ou a ausência de das mulheres na sociedade, migra para a luta sindical, já que a fábrica para onde trabalha o Sr. Bronski vai se mudar da Alemanha para a mão de obra mais barata e periférica de Portugal. Além de abre aspas expandir negócios, é a forma de contornar leis trabalhistas e as pressões sindicais em voga na Alemanha, representadas na luta austera e incessante da combatente Sra. Bronski, visto que seu marido era, conforme relatado, um verdadeiro frouxo.

Acompanhada de Sylvia, Roswitha Bronski busca mobilizar essa luta sindical, procurando ajuda nos meios de comunicação, onde encontra também dificuldades. Tanto do ponto de vista operário para a luta vigente, quanto de comunicação com os galhofeiros jornalistas dos periódicos. Mas ela não desiste de sua marcha e procura alternativas para driblar essa imposição de fechamento de vagas de emprego, o que prejudicaria rudemente sua família. É interessante analisar que a obra perpassa diferentes movimentos sociais, de algo mais puramente feminista ao movimento operário em si, mas sempre com a ênfase do papel possível atribuído à mulher, personagem principal Roswitha Bronski na película.

Nesse emaranhado proposto, a figura das crianças vai se perdendo e a personagem que inicia mãe preocupada logo está de corpo e alma vestindo seu papel de mobilizadora das massas, através da conversa, de reuniões secretas e produção de panfletos, obviamente contestados pelas autoridades fabris.

Uma grande obra naquele agradável e por vezes descontraído clima crítico das Nouvelle Vagues que ditaram o melhor do cinema europeu na década passada, os anos 1960. É a segunda obra que confiro de Alexander Kluge, ao passo que a primeira, Despedida de Ontem (1966) também emprestava protagonismo à sua irmã no papel de uma andarilha perdida entre vidas, identidades e empregos, em meio à clandestinidade, à burocracia, os preconceitos e as dificuldades de impor-se mulher em uma sociedade onde os homens criam, adulteram e regem as leis. Nessa toada, nos sete anos que separam os dois filmes, vemos um Alexander Kluge sem medo de posicionar sindicalmente, com mensagens abertas da causa socialista e anti-patronal.

17 de fevereiro de 2022

Melhor por escrito

Acho que gosto de escrever também porque, oralmente, nunca gostei de ser interrompido. Pavor de começar a falar e ter de repetir ou começar de novo por interrupções ou porque os outros julgam ter coisas mais importantes para fazer. Assim também sempre detestei terminar algum causo, alguma história e notar o semblante decepcionado ou pouco animado (ou pouco atormentado, dependendo o efeito desejado), indiferente, semblante de pouca relevância ao recém ouvido por meus interlocutores. Dessa maneira, a escrita me parece uma forma mais indireta para tratar com as coisas, mesmo as do cotidiano. Você que está lendo essa divulgação que em seguida irei publicar, não sei se você está interessado ou desinteressado. Não sei se está gostando ou não está. A escrita, em cartas, em blogs, em textos publicados fica assim, mais impessoal. Não sei a reação de quem está do outro lado do texto. Não sei a reação de vocês.

Outra questão muito mais abordada por nós tímidos, por nós antigos ou nós desconfiados, é o poder seletivo, na escolha de palavras para compor um texto escrito, diferente do discurso falado. Também aproveito para confessar que muitas vezes apenas cuspo meus textos, sem um planejamento prévio, sem uma organização anteposta das ideias. É tudo mais interposto. Sendo construído, literalmente, ao gerúndio.

E muitas vezes não gosto de planejar minhas caminhadas, ou ao menos gosto de mudá-las a gosto, à escolha da hora. Várias são as situações da vida que encaro e procuro resolver dessa forma. Acredito na força dos improvisos, creio na variedade, na fuga das mesmices e engessamentos que todos enfrentamos. Me senti a própria Martha Medeiros ao percorrer essas últimas linhas. No disparo improvisado, obviamente. É que também confesso ter lido materiais, livro dela. São coisas da vida, como o nome da obra sugere.

De minha parte, a escolha das palavras certas quase sempre não é problema. Procuro formular essa teia elaborada com precisão. Agora o efeito que causará no interlocutor, se causará indiferença, decepção ou até irritabilidade, prefiro deixar para o trabalho escrito, porque frente a frente, ao vivo, sobre um palco onde ouvem-se vaias, ou até a internet, palco de feedbacks muitas vezes maldosos, prefiro evitar de absorver. No cotidiano, no trabalho, em atendimentos feitos ou recebidos, onde a possibilidade de nos atrapalharmos e ouvirmos queixas é grande, a crítica negativa faz-me mal. Pelos meus escritos também, e é por isso que prefiro manter certa cautela, certa distância, certa ponderação e preocupação. Seleciono melhor meu público leitor e para quem conto um conto, como pergunta uma canção da banda uruguaia La Vela Puerca.

Ainda não cheguei à (agradável?) idade de não me importar com as críticas e me desligar mais do que pensem. Enquanto isso, procuro interligar e agradar. Espero um dia chegar mais no que vendem ser a arte sutil ou não de arremessar o dane-se. Mas não pretendo ler o livro esse. Enquanto isso, permaneço seletivo.

16 de fevereiro de 2022

Captar

Meus olhos captam

Imagens falsas

Porque eles estão aptos

Para captar

As águas vivas

As águas vivas

Elas são nativas

Do oceaaaanooo

Nós é que não sooomos

Nós é que não sooomos


Caminhar pelo mar

Sempre me deixa desperto

Caminhar pelo mar

O mar sempre inquieto

Caminhar pelo mar

O mar sempre incerto

O mar sempre certo

O mar sempre discreto

Se não prestamo atenção

No volume de água

Naquela imensidão

Naquela e mansidão


As águas vivas

Elas são olgivas

Que nadam graciosas

Que nadam bem altivas

Transparentes e rosas

Pelos fundos do mar

Criaturas esquivas

Tentáculos, ventosas

E as belas águas vivas

E as belas águas vivas



15 de fevereiro de 2022

Crônica sobre os Gabriel

Eram dois Gabriel. Mas eram muito diferentes. Processo amplamente descritivo. Um Gabriel estava sempre asseado, como se diz. Vivia limpo, de prazo cumprido com o banho. O outro Gabriel podia utilizar a mesma camisa vários dias da semana, não se preocupava muito com essa aparência ou imagem.

Um Gabriel não tinha pelos. Nem se pode dizer que era barbeado, porque a barba não lhe brotava em qualquer daqueles anos de ensino médio e mesmo no início da idade adulta. Gabriel apenas olhava e invejava o bigode, a barba que os companheiros tinham a surgir, mesmo aqueles que estavam no seu time, abandonavam o barco e pulavam para o outro lado, nem que fossem penugens, pequenas barbichas que brotavam. O outro Gabriel era o chefe do barco para o qual muitos chegavam. O outro Gabriel era barbudo, barba cerrada, disfarce de boa porcentagem de seu rosto encoberto por pelos grossos.

Um Gabriel era o filhinho da mamãe. Sua mãe estava sempre presente. Para buscar boletins, para conversar com professores, para auxiliar alguma coisa, para preparar um sanduíche, para perguntar como ele estava, para saber com quem andava, para tratar um machucado, físico ou espiritual. A mãe do Gabriel estava sempre lá. O outro Gabriel era o contrário. Um fujão. Chegou a fugir de casa duas vezes. Pulava o muro e ia curtir a noite. Voltava dois ou três dias depois. Os pais cansaram do Gabriel, até porque cansavam rápido. Suas fugas não eram mais acompanhadas de preocupação. Deixa que se divertisse, não perderiam mais noites de sono por ele, que perdia noites de sono nas fanfarras em que se metia. Até que os pais viajaram para não mais voltar e ele se emancipou, mesmo menor de idade. Era referência para os demais, descolando bebidas e cigarros.

Nisso obviamente também se difereciavam. O primeiro Gabriel era totalmente abstêmio. Era inclusive menino de igreja. Sempre bem vestido, predominantemente com roupas claras, com peças brancas. Grupo Jovem da igreja, violão e louvor ao Senhor. Bochechas cumprimentadas por velhinhas. Hóstia em dia a cada domingo. Missas de salmos cantados. O outro Gabriel também era músico. O outro pegava o violão e improvisava algum rock. O primeiro Gabriel até gostava de rock, mas era mais dos antigos brasileiros das décadas de 1980, no máximo respingos dos anos 90. O outro Gabriel também bebia dos clássicos, mas puxava para o satânico. Gostava do punk rock também e gostava de todas as quebras de paradigma, nem que fosse o grupo Queen com Bohemian Rhapsody, burlando com a indústria musical que tinha a toada por músicas curtas, de tamanhos comerciais para programação de rádio.

O primeiro Gabriel ouvia rádio. Comentários políticos, muitas vezes conservadores, pois era rapaz de igreja. Partidos do centro para direita. O outro Gabriel gostava de rádio pirata, de programação com linguagem chula, de palavrões à reviria. Mas também gostava de políticos conservadores. No caso os que aprovavam porte de arma, que este, o 'outro Gabriel' gostava ter consigo para se proteger. O pai esqueceu uma das armas na mudança. Levou uma, deixou outra. O Gabriel tinha ela no armário. Era ouvir barulho estranho - ou mais estranho que o habitual de noite - que o Gabriel já se direcionava para esse armário para ver qual que era. Nunca havia usado, mas exibição aos amigos era constante. Esse era o Gabriel.

O Gabriel da arma tinha mais amigos para mostrar a arma. O primeiro Gabriel era reservado. Andava no máximo com os amigos do Grupo Jovem. E não andava muito. Era tomar um sorvete, uma ida à biblioteca. Uma tarde para comer algum lanche na casa de amigo. Passar alguma tarde quente de sol. O Gabriel armado era mais amado também. Atraía a atenção de algumas gurias, mas na base da insistência, porque bonito não era. Tinha o nariz quebrado de uma briga que se meteu na infância. Cicatriz permanente. O resto do rosto escondido na barba. As camisas de bandas de rock se repetiam. As más influências, ou mesmo era ele próprio que já influenciava os outros. O álcool e depois as primeiras drogas. Da inofensiva maconha à coisas mais pesadas.

O Gabriel abstêmio mantinha-se na dele. Um refrigerante, para ele, já era droga o suficiente. Já estava se passando nos cuidados com o próprio corpo, tão cultuado e citado nas palestras da Igreja. A fortaleza, o campo de resistência, a estrutura pela qual se protegia o bem estar da mente. Enquanto isso o outro Gabriel virava noites, orgnizava festas, cruzava a cidade rumo a outros bairros. Escapava de consertarem-lhe o nariz.

O primeiro Gabriel tinha boas notas. Desde os primeiros anos de escola, sempre se manteve entre os primeiros, inclusive no Instituto Federal, onde ambos haviam passado. Gabriel poderia ser considerado um dos melhores alunos do Instituto, e, por se tratar de uma instituição que acolhia alunos da cidade e da região por conta do bom ensino gratuito, era um dos melhores alunos de toda aquela regionalidade. O outro Gabriel até poderia ter boa cabeça para estudar, mas, para ele, sem os pais em cima, tanto faz. Começou bem, na época em que passou na prova ainda se debruçava por vezes sobre os cadernos, mas foi abandonando este hábito. As notas piorando, a frequência mais ainda do que elas. Sumia do IF por semana. Os professores, assim como os pais dele, desistiam de perguntar.

O primeiro Gabriel passou a gostar um pouco disso, embora não confessasse ou mal tivesse a quem confessar. É porque, apesar de tantas mudanças, de tantas diferenças, de tão pouca semelhança, eles ainda se confundiam quando, vez ou outra, um professor desatento ignorava a presença do sobrenome: Gabriel! - os adultos chamavam - e ambos respondiam: - Eu?? 

Quadrinhas

Há várias formas de dizer/escrever
Sem estar errado
Mas qual a melhor forma
Pro interlocutor do outro lado?

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Faça umas quadrinhas 
Junte tudo num quarteto
Assim como a hipotenusa
É formada pelos catetos

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Ai ai
Tristeza profunda
A água recebe a merda
Só herda o que é da bunda

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Ai ai 
Poesia de banheiro 
Só assim eu passaria
O tempo de um dia inteiro

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14 de fevereiro de 2022

Manoéis de Barros

De Barros, Manoel

Lápis e papel 

E novos mundos

Absurdo é alguém

Não gostar de ti

Manoel de Barros

E seu sorriso guri


Manoel de Barros 

Manoelmente 

Escreve em seus cadernos

Que se multiplicam 

Aos montes

Pedaços que são eternos


Poeta da palavra

As larvas são mais rurais 

Manoel também dos bairros 

De barro seus ancestrais


Manoel de Barros



















Manoel de Barros

Enrola e desenrola

Nos vicia

E não é cigarro


Manoel, ao contrário,

Não procurava o céu 

Tinha o chão, o solo

Como destinatário


Manoel de Barros

Do Pantanal, do Mato Grosso

Fazia poesia de qualquer

Inseto que sobe fosso

Manoel pode

E eu posso?


Manoel que nunca para

Eu paro para Manoel

Que escreve sem manual

Nada igual aos ditos seus

Na palha de um chapéu 

Num canavial

Nas falhas do Português 

Nas fendas de um Portunhel 

Trabalhos como os de renda

Escritos em Manoês


10 de fevereiro de 2022

Caveirinha

Duas da manhã e sinto dores

Que iluminam a paranoia: refletores

Ao ataque ao ler Olavo, o Bilac

Componho versos fáceis, ao trabalho

Temo encontrar no exercício dessa práxis

o homônimo Olavo de Carvalho

💀💀💀


Do dito "filósofo" que virou caveirinha

Confesso dele nunca aproveitei alguma linha

Mais valem as piadas de sua morte, do mau gosto

Que qualquer merda que escreveu e que seu rosto

💀💀💀


Meu caro, que composição abjeta 

Pode ser que não seja a coisa certa 😔😔

Mas quando o poder do verso me espeta 

Só me acalmo quando fecho a versão beta

Minha fazedora de versos

O limite da minha prosa é teu encontro

Quando frente a frente com teus olhos me defronto 

De onde mal percebo o verso pronto

Logo quero a ver-te de novo fazer outro

9 de fevereiro de 2022

O tango da morte

Não sei dançar. Não sei dançar o tango para o qual sou convidado. Só poderia ser com a morte. Falei dela e esperei sua visita durante muitos anos. Mas na hora derradeira, temo. Jogo o esperado xadrez com a mesma. Sinto alterações na coluna. Um líquido passa de cima a baixo de mim, de baixo a cima. Como um elevador sem marcação de andares. Comecei com alterações e perda de sensibilidade nos meus genitais. Pênis e testículos. Subiu para a coluna. Hoje temos a dúvida. Baixou da coluna para os genitais. Ou subiu dos genitais para o começo da coluna, próximo ao membros inferiores? E segue se movimentando e segue subindo. E não temos resposta. Farei exame daqui a um dia e meio. Aguentarei até o exame? Descobrirei o resultado daqui a mais quatro dias úteis após o exame. Prazo de uma semana, pelo visto. Foi o mais depressa e melhor custo-benefício, raro aspecto de mãos dadas, que encontramos.

Antes da coluna havia sentido mudança na pressão sobre meu ânus. E meu pênis passou a ignorar meus desejos. Uma possível lesão e seus agravamentos. Agora não só pelas ereções, mas temo pela minha coluna e pela minha vida. Ainda produzo material para o jornal, mesmo à distância. Fui convidado para narrar futebol na principal rádio esportiva da minha cidade e região. Talvez a segunda maior do interior do estado. Ou maior? Não importa. Fui convidado, mas dificilmente conseguirei aceitar. Conciliar. Entre a rotina já pré-disposta de estudante e futuro dono de casa? E a minha saúde.

Vou e volto ao aspecto da saúde. Aspecto, segundo o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, principal condição para a vida humana. Essencial para desfrutar-se algo. E aqui estou, meses de transtornos mentais, de consultas inúteis, de agravamentos silenciosos, semana de conflito, de insegurança, de medo, de desilusões, de aceitações. 

Muitas vezes briguei com Deus. Dificultoso com autoridades, tratei-o como um irmão muitas vezes. Um irmão que xingo e brigo. Um irmão que recorro. Que recordo. Um irmão que invoquei em horas difíceis, geralmente com resultados positivos, mas que também, ao menos em curto prazo, creio que eu tenha conseguido prestar certo agradecimento. Mas um ser que já pensei partir a garrafadas. Como uma briga de bar. Eu contra ele. Poucas ou muitas testemunhas. Tanto faz. Frente a frente. Quebro uma garrafa de vidro no balcão. Tenho minhas armas. Ele ri. Sempre riu. A cada desgraça ou derrota que sofri - e não foram poucas, ele riu. Inclinou a cabeça. Brindou com apóstolos. Fez gargarejos. Deu gargalhadas. No todo, minha vida foi muito tranquila. Acima da média. Boa condição de vida. Dentro do Brasil e creio do mundo. Mais temi do que me ocorreu. Violência urbana. Problemas médicos  - alguns que se confirmaram  - como este está se confirmando.

Acredito mesmo assim que ele pode ser sádico. Não consigo explicar, caso exista além de meus sonhos, como permite a Síria, a Palestina, como permitiu a Arábia Saudita, o holocausto dos anos 40. Como permite execuções precipitadas pela Indonésia e pelo mundo. Como permite a venda indiscriminada de armas e o silencioso genocídio negro que apenas ecoa gritos e depois sossega, restrito ao choro despaginado das periferias que raramente são tema dos jornais.

Me pergunto como pode tudo isso ser permitido. Os estupros, os problemas de saúde. As mães que choram por suas crianças.

Minha mãe está preocupada com meu problema de saúde. Mas penso nas que enterraram soldados por tantas guerras. Nas mães da Plaza de Mayo em Buenos Aires, que choram por seus filhos desaparecidos em ditadura. E tantas outras assim, em lutos e lutas mais ressentidos, com mais ou com menos organização social. Lamento por minha mãe e seu parto surpresa e de risco. Minha cesariana. 11 de setembro. Data estranha. Palco de tantas tragédias quando o sol surgia nessa página do calendário. Desde pequeno acumulei chances de morrer. Do parto de risco de minha mãe de passados 40 anos até uma aventura infantil. Mal caminhava, mal corria. Corri dos fundos de nosso pátio rumo ao portão aberto. Do portão aberto para cruzar a avenida de trânsito hoje muito pesado, defronte nossa antiga casa. Se fosse o trânsito de hoje naquela época, nos anos 90, era mais do que possível: era provável ter morrido.

Alguns problemas de saúde. Acho que os exagerei na época, mas realmente, ao surgirem, muito me preocupavam. Como estou preocupado hoje. Tanto convoquei e conversei com a morte que ela tem me chamado de volta. Justo quando encontrei um amor correspondido. Quando estava com possibilidades para viver com algum salário e opções de cidade. Na boa negociação de meus pais rumo a Santa Catarina. A morte no caminho a espreitar.

Além dos problemas de saúde, arrisquei minha vida cruzando cidades grandes pela madrugada estando bêbado. Cruzei com ninguém que executasse, no sentido de findar essa tola ideia. Uma vez um perseguiu meu amigo e eu, mas tudo isso no trajeto para, depois de uma quadra, nos desejar um feliz dia dos pais, pois era fim de semana de agosto.

Ao sentir o estranhamento, a alteração no chamado cóccix, lembrei de quando Eduardo e eu saltavamos batendo palmas nas costas e deixavamos nossos corpos caírem de mau jeito contra o solo. Batíamos as costas no cimento. Nosso falecido professor de educação física se apavorou com a brincadeira esquisita daquelas crianças de 10 anos na época. Eduardo seguiu infantil, mas hoje é pai e instrutor de educação física. Suas costas acho que funcionou. Passou de gordo para detentor de certos músculos em evidência, embora nunca tenha deixado de ser gordo, conforme este até foi seu apelido em alguns clubes onde jogou handebol. Sua outra paixão era o basquete. Manjava do jogo, do contato, mas acreditava eu ter melhor arremesso quando com espaço.

Lembrei dos arremessos de basquete em outro momento nesta odisseia pela saúde. Ao urinar, com dificuldade, pensei em relatar o esforço da seguinte forma. Preciso me concentrar como se fosse cobrar um lance livre para meu pênis me obedecer. Esta é a atual situação. Preocupante. Sintomas que se dobram e desdobram-se.

Repenso minha vida. Minha saúde, minhas disposições, minhas opções. Aguardo pelos exames. Esta semana inacabável, este suor frio que me escorre. Essas fisgadas pelo corpo. Pelos músculos flácidos e enfraquecidos das pernas. Meu estado quase vegetativo. Minto, mas muito restrito. Minha condição penosa. Meus inchaços nas extremidades. Os arroxados e as ameaças de uma trombose ou de uma necrose violenta. Tudo da minha cabeça? Talvez. Mas suspeitas existem. Antes de diagnosticarmos o problema crescente e alternante na perigosa coluna, passei por ao menos três médicos, eles de diferentes idades e formações, para tentarem me tranquilizar que os sintomas e problemas acumulados eram somente mentais, psicológicos. 

Hoje é com desdém, incredulidade, desprezo que repenso essas ideias. Posso ser quase ou até louco para algumas situações, mas conheço meu organismo. Me estabeleço dentro dele há quase 27. Não é só psicológico. Meus músculos flácidos, meu pulsar distinto, minha pressão e palpitação sobre os genitais. Desconfortos. O elevador indecifrável a persistir na coluna. Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Longa semana, se me permitida for, pela frente. Se Deus me perdoar, tentarei de novo. De novo agradecer pelo perdão a esta ovelha assustada e antes desgarrada de seu imenso rebanho. Agradecer por nova oportunidade se me for dada. Mesmo entendendo que, com a minha idade, muitos  seres mais corretos, úteis e talentosos já se foram. Soldados, meninas estupradas, meninas esturpradas por soldados, doentes crônicos, doentes terminais. Mães que choram filhos. Mães que choraram filhos até o último dia que produziram lágrimas.

Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Tive bons momentos. Agradecido por eles. Incrédulo ainda com tanta coisa negativa que se sabe sobre o mundo. Pelas notícias e pelos olhares in loco. Hoje estou aqui. Amanhã não sei. Não sei dançar. O derradeiro tango da morte. Mas ela me olha em alguns momentos em que fecho os olhos, nem pensando em escapá-la, pensando em nada, mas ela está lá. E tem o dedo comprido, pontiagudo, indicador das inevitáveis coisas. É como nos desenhos animados. Mas não estou animado. Apenas satisfeito nessas descrições. Porque, é como eu disse, hoje estou aqui. Amanhã não.

8 de fevereiro de 2022

Paisagens são como rostos - disse um filme de Godard

Paradas em uma paisagem da praia de Laguna, as pedras me traziam a alegria imensurável de poder vê-las e apreciá-las, mas também sentia a tristeza por elas nunca mudarem. Talvez esteja em Raul Seixas a tristeza das pedras que choram sozinhas em um mesmo lugar. Talvez tenha nada a ver com pedras esse discurso todo. Mas quando eu estava em Laguna, era visualizar as pedras, pensar na paisagem que eu queria capturar para sempre em minha vista. Era revê-las alguns anos depois sabendo que estariam lá. E minha tia que lá morava não estaria mais, porque faleceu. E a casa dela foi rapidamente demolida sem negociarem uma possível venda e divisão da obra sobre o terreno. E no bairro em volta, ao invés de demolirem, casas eram construídas. E tudo mudava, menos as pedras. E a tristeza pela imobilidade das pedras fixadas há séculos sobre o declive dos morros dava lugar à tristeza pelas mudanças bruscas em algo que eu também tive como familiar. Porque passei verões entre as belezas naturais e a ansiedade, a incompatibilidade que sentia ao contato humano. A solidão adolescente de estar apenas com meus pais e conhecer mais nenhum jovem daquela região. Meu próprio primo, com o qual o pequeno contato que tive sempre foi positivo, mas hoje envelhecemos, sou adulto e ele mais ainda, pois mais velho, com esposa e filha pequena. Filha dele sem avó, porque minha tia faleceu. E sua casa, nossa casa por alguns dias, sumiu. E o cachorro manco. E o pequeno garotinho gago o qual ensinei um pouco de palavras cruzadas. Não sei se aprendeu, mas espero que esteja alfabetizado. Já deve ser um adolescente. Talvez da minha altura. Ele bebia coca-cola com suco de uva e eu pensava que alguém deveria detê-lo. Mas eu era responsável pelo gurizinho apenas por minutos, talvez nem horas, pois logo esgotada minha bateria social. Um amigo da família ia para lá. Morava de favor, ajudava a cuidar os doentes que foram nos deixando. E ele, homossexual que teve aids quando era jovem adulto, também já partiu. Tinha as bochechas vastas como se fosse o personagem Quico (ou Kiko?) do seriado mexicano Chaves. Me mostrou suas fotos quando era maquiador do sistema brasileiro de televisão, popular SBT. Isto foi antes de eu entrar no Jornalismo.

A Laguna e a casa de minha tia naquela praia acompanharam diferentes verões e períodos da minha vida. Infelizmente era um tempo de somente semana a cada verão. Não conhecia outros jovens, sobretudo outras jovens com os quais eu poderia me divertir. Mas sempre foram períodos muito reflexivos e que recordo até hoje, como o degenerar alcoólico de minha tia, o cachorro manco, o menino gago, o calor do morro que bloqueava o escoamento do vento, as baratas que brotavam pelo solo. As vizinhas, senhoras fofoqueiras, o filho especial de uma que não sabia se comunicar direito, mas tocava violão e era atendido em um centro para crianças apesar de seus quase 2 metros de desengonçada altura. Tudo isso me recordo, enquanto minha vida muda e as pedras da Laguna permanecem solitárias e acompanhadas umas pelas outras no mesmo lugar em que a mente armazena a cena.