14 de janeiro de 2017

Eu Admiro o Senhor, Seu Flávio

Era noite em Pelotas e muitas histórias da noite em Pelotas ocorrem no Bar do Zé. O encontro das ruas Álvaro Chaves e Conde de Porto Alegre abriga um dos locais em que o pessoal vai para colocar cerveja para dentro e papo para fora.

Quando meus amigos e eu estávamos em pé na exata esquina, uma voz se aproxima da gente: "Por que tu usa essa barba?". Percebo que a pergunta é endereçada para mim e começo a catar palavras que sirvam de resposta. Não conheço o sujeito de barba muito maior do que a minha (o que não é difícil ter). Não sei se trata de humor ou faz um sério questionamento.

"É que ela cresce assim", respondo. "Não", ele me diz, "é porque ela é tua". Minha ficha cai no estalo de segundo seguinte e logo nos colocamos a rir. Após uma breve apresentação no estilo excêntrico do senhor de aparência no entorno de 50 e poucos anos, ele dirige outra pergunta do mesmo naipe, desta vez para meu amigo.

"E por que estás com as mãos no bolso?... Porque tu tem bolsos." Pelo menos não fez a piada com 'porque tu tens mãos'. E com as mãos que seu Flávio tem, ele junta latinhas e copos plásticos nas imediações. É muito material e logo o saco preto que ele carrega já fica cheio. No breve espaço de noite que convivemos naquele sábado, percebo o jeito dele como cordial, com um sorriso, mesmo distante da aparência das propagandas de odontologia, a se abrir.

Meu amigo me contou na semana seguinte que o seu Flávio já era conhecido de lá. Contou que uma vez conseguiu a brincadeira com sua namorada. "E por que estás sorrindo?..." Ela, conhecedora das anedotas, respondeu: "Porque tenho dentes". "Porque estás feliz", ele completou.

Seu Flávio nos deixou feliz na breve conversa. Contador de histórias. Ele tem dois filhos. Duas filhas, se não me engano, para ser mais preciso. E duas netas. Mora ali para trás daquele final de centro e pleno bairro Porto. Bairro Porto de raiz. Das primeiras ruas, casas e casarões da cidade de Pelotas. Da proximidade imediata com o canal São Gonçalo. Ali pertinho mora seu Flávio, que aponta para a última quadra da Álvaro Chaves.

Resgata da memória boas lembranças, que devem contemplar a mais ouvintes atentos. Oferece histórias de quem vive muito pelas ruas e tem a situação de casa como sinônimo de teto para dormir. É difícil calcular sua idade, pela tamanha barba e pela pele judiada de sol e serviço. Seu Flávio relembra suas histórias com ícones da música e do cinema brasileiro.

A pelotense Glória Menezes. Um show recente do músico Zé Ramalho, que ele comenta ser fã. Queria muito assistir e se colocou próximo ao Theatro Guarany. Espiou e ouviu o que deu pelo lado de fora. Na saída, conseguiu apertar a mão de Zé Ramalho. Comentamos sua aparência. Também excêntrico e com suas genialidades. Tal qual nosso personagem principal da narrativa.

Uma das histórias que ele não esquece é com Rita Lee. Há muitos anos, a cantora esteve em Pelotas. Seu Flávio gostava da música, gostava muito de Os Mutantes, grupo a que ela pertencia. Se pendurou no ônibus, chamou a atenção, mas dessa não conseguiu maior contato. Conseguiu mais uma de suas inúmeras histórias. Um Indiana Jones a desbravar e conseguir aventuras na pequena selva de pedra pelotense.

Ele destaca que, para conseguir contato com esses famosos, não é necessário uma roupa melhor. Ele se mostra simples e humilde. Destaca que não pode é estar com muitos bolsos, com atitude suspeita, por exemplo. Daí os seguranças desconfiariam e não o deixaram se aproximar.

Carismático que é, na facilidade de puxar assunto e trazer suas histórias pelotenses e portuárias, seu Flávio deve conseguir as funções de aproximação para saciar esse desejos com maestria. Lá pelas tantas, saca um pouco de bebida alcoólica de sua garrafinha. Naquela noite, diferente de quando se aproxima de celebridades, estava com muitos bolsos.

Nos surpreende, bebe um gole e logo tem mais histórias. Também acende um cigarro adiante. Não com isqueiro, mas com uma caixinha de fósforos que guarda, a revelar mais um mistério consigo. Confesso que foi uma das primeiras vezes que vi um cigarro ser aceso com fósforos, tão comum é presenciar com o isqueiro.

Por baixo do agasalho vermelho da noite, é revelada uma camisa do Grêmio Atlético Farroupilha, o clube mais querido da cidade, o primeiro time de poucos e o segundo de quase os outros todos. Seu Flávio a exibe com orgulho após eu apoiar sua decisão de usá-la. Conversamos um pouco sobre. Em outra noite que o encontrei, novamente estava com a camisa. Como era mais próximo do verão, a camisa já estava mais à vista. Somente na terceira noite que nos falamos é que não estava com ela. Foi nessa, justamente, que revela ter brigado com o presidente de quase todas as épocas recentes, coronel Poeta. Revela ter se afastado.

Conto sobre como sou torcedor do Grêmio e ele também se aponta gremista. E traz mais histórias, dessa vez sobre a final da Copa Libertadores da América de 1995. Disse que esteve lá na capital gaúcha, em Porto Alegre. Foi na vitória do jogo da ida, com o placar de 3 a 1 para o Grêmio no estádio Olímpico. Aventuras de nosso Jones por uma selva maior e pela rodoviária da mesma.

Sem medir esforços, seu Flávio perambula entre esses arredores de sua casa e do bar do Zé, a caminhar e juntar o lixo reciclável para trocá-los pelo sustento. Para suas refeições, para mais força para suas histórias e para reabastecer o combustível escondido em garrafa estranha. Ele conta que já ofereceram água para ele, para aumentar a quantidade de líquido na garrafa. "Mas não é água. É a minha bebida", ele ri.

Piadista e aventureiro, seu Flávio segue marcando história em Pelotas e no bairro Porto. Às vezes, vai às imediações da Universidade Católica para outros movimentos. Os cabelos meio grisalhos e meio pretos, a barba a esconder o gogó. Uma boina na cabeça para assemelhá-lo ao recentemente falecido Fidel Castro. Se parece bastante com Fidel, ao menos no estilo e talvez em pontos políticos de quem enfrenta a vida na condição de minoria.

Quando digo que prefiro a bebida nos copos de vidro aos plásticos, ele defende um ponto positivo. Além de sabermos que o bar teria prejuízo com copos de vidro, pois poderiam ser furtados no ir e vir de pessoas ou quebrados pelos desastrados bêbados, seu Flávio destaca que o vidro, principalmente se fossem fornecidas as garrafas aos visitantes, torna-se uma arma. A voz da experiência de nosso velho lobo. Um sujeito que não teme as agressões e relata algumas histórias e casos de violência presenciadas. Se não me engano, uma facada que levou no bairro Fragata há muitos anos.

Por fim, ao chegar janeiro, ele diz que busca rumar ao Laranjal, praia com o maior movimento na cidade. Fico intrigado se ele faria o ir e vir de lá até sua casa no Porto. Ele conta que não, que busca montar um abrigo para ele na própria praia. Faz amizade com um ou outro da guarda municipal e consegue montar acampamento em uma praça. Muitos podem vê-lo e associá-lo à imagem de sujeira, mal sabendo que é ele quem inicia a limpeza do Porto e da praia.

Por conta de todas essas histórias de um personagem excêntrico, experiente, mas sobretudo divertido e simpático, seu Flávio coleciona conversas e sorrisos das pessoas que param para escutá-lo, sem preconceitos. Sorrisos não somente porque as pessoas têm dentes. Não. Sorrisos porque ele deixa as pessoas felizes.

13 de janeiro de 2017

Litoral Norte - Setembro

Foto: Henrique König






Foto: Henrique König

Foto: Henrique König


Foto: Henrique König


Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

8 de janeiro de 2017

Uma história de morte com roteiro

Bia comanda a cerimônia, como em um casarão ou uma área de um shopping, que possui lance de escadas em caracol. Comanda como se o seu aniversário, recém passado, se estendesse nesse mês de janeiro. Há mais pessoas, mas ela dá atenção e me recomenda visitar o quarto de dois bebês. Eles são gêmeos, ambos meninos. Encontro a sala correta em uma das passagens pelas portas de um determinado andar. Uma senhora mais velha está propondo arrumações, em um ar experiente de governanta, podendo se tratar de uma empregada ou avó. Pergunto sobre os bebês e ela inicia a história deles sem deixar de lado os serviços de limpeza e organização.

Me teletransporto para dentro de um carro, como se fosse um flashback. No carro, meu pai dirige, minha irmã ao banco da frente, à sua direita, comigo e minha mãe no banco de trás. Passamos por ruas do centro da cidade e temos uma discussão fervorosa, com insultos. Minha irmã pergunta qual a utilidade que tenho com ela. Sinto o tema da discussão e digo para minha mãe que vou me matar. O clima é tenso com o carro em movimento, até ele não estar mais.

Me vejo fora do carro e o vejo sendo colidido lateralmente, com tudo, por outra camionete. A colisão faz chacoalhar o veículo, com alguns vidros saindo e se despedaçando. Perda total no veículo. Relaciono o acidente com Zidezine Zidane e não entendo o porquê. O local é como em um parque ou estacionamento repleto de grama. Os policiais imediatamente aparecem no local e encontro dificuldades em circular entre eles, procurando a cena do crime. Eles parecem não estar interessados e, após uma dificuldade em caminhar entre eles, me apontam o local estimado da procura.

Chego ao lugar apontado, mas já não há mais a família. O flashback se encerra e estou de volta ao cômodo do casarão com lance de escadas. Pergunto sobre como vê-los. Como ver a família? A governanta demonstra pesares e responde com o ar de quem já havia desembrulhado tal resposta outras vezes. Ela avisa simplesmente que: "o impacto foi forte demais...".

Percebo então que todos morreram. Começa a cair a ficha. Na hora, separo um gêmeo dos irmãos para cada um dos pais, entre pai e mãe. É tudo muito doloroso em lembrança e raciocínio e a própria Bia parece não saber lidar, como se ainda os mantivesse vivos na imaginação, conforme ela solicitou para eu visitá-los. O que encontro se mistura entre um berço azul e uma lápide, em uma história que me fez acordar pavoroso.

7 de janeiro de 2017

Fim de Ano - Últimas de 2016

Foto: Henrique König


Foto; Henrique König



Foto: Henrique König



Foto: Henrique König

Foto: Henrique König