25 de dezembro de 2020

Se Chamava Antônio

Ele suspirou, respirou fundo, parou o carro e puderam saltar os três. Ele era o pai, acompanhado da esposa e do filho estudante de alguma engenharia, pelo segundo semestre, mas com noções imobiliárias, metido que era naquela missão. O financiamento era do casal. Pararam naquela rua de aspecto pacato, um bairro de residências antigas, algumas quase centenárias e o prédio, de quatro andares, cada qual com um apartamento. Era ali o destino da família.

Conforme dito, desafivelaram os cintos, destravaram as portas e pousaram-se à beirada da rua, para acionar a calçada. Voltaram a lacrar as portas e o pai deixou em alerta o alarme. Embora nenhum transeunte passasse por ali. Provavelmente menos de um para cada 10 minutos. Nem os cachorros da vizinhança se manifestavam naquele final de tarde. O sol se declinava por sobre os telhados da via. Os únicos pets a darem sinal de vida eram os gatos da proprietária do apartamento em questão, o que motivava a visita. Os felinos botaram a cabeça por entre as grades de uma das sacadas acima.

Tocaram o interruptor e ela demorou quase dois minutos para descer daquele terceiro andar. Se identificaram como os interessados em adquirir o imóvel. Subiram pela escada íngreme de degraus perigosos. Se espantaram por aquela senhora subir e descer tamanha dificuldade diariamente. Seria um ponto para pressionar caso ela não cedesse à oferta.

Chegaram defronte à porta do apartamento do terceiro andar, em um inexplicável molho de chaves, a velhinha se perdia para saber qual a correspondente daquela específica fechadura. Na terceira tentativa, talvez nervosa por receber visitantes depois de tanto tempo, acertou. Abriu, arredou-se para dentro do vestíbulo e convidou os interessados. A sala era contígua à cozinha. Havia um sofá de uso limitado para dois assentos, além de cadeiras de madeira, revestidas com assentos de tecido. O filho e a mãe se acomodaram nas cadeiras essas. O pai optou por um banquinho, também de madeira, com um estofado um pouco mais confortável, aparentemente, embora sem encosto. A senhora, acariciando um gato na almofada conseguinte, voltou-se para o sofá, que ela de pronto respondeu ter recém adquirido pelo preço de 180 reais: - uma pechincha!

O marido sorriu e concordou. A esposa parecia impaciente, tentou esboçar uma reação semelhante, mas lhe soou toda falsa e logo desistiu, sem completar um segundo para seu infeliz movimento de boca.

- 180... Precisamente. - Emendou o marido para quebrar o silêncio. - Esse é o valor que logo chegaríamos. - Ele resolveu não perder tempo na negociata.
- O que quer dizer? - Rebateu a velha residente.
- É o valor de minha oferta.
- Não querem um chazinho? Já estava fazendo para mim. - Mudou de assunto a dona do gato.
- Obrigado. Recém tomamos café.

O filho até faria menção de aceitar, mas desistiu com a tomada de dianteira feita por seu pai. Engoliu em seco e sacou o celular do bolso. Estaria atento à conversa se precisasse ou considerasse necessário interferir.

O pai começou a tamborilar com os dedos sobre a mesa e até ameaçou evocar a mão fechada contra os lábios para simular um instrumento de sopro, hábito que sua mulher odiava. Ao aproximar a mão da boca, ela lhe surpreendeu com um olhar inquisidor e ele logo desistiu. Voltou a tamborilar com a outra mão enquanto a velha se deslocava alguns passos do centro da sala para o hemisfério da cozinha.

- Conhecem o apartamento? - Perguntou a velha, esquentando a água do dito chá.
- Sim - Prontificou o marido.
- Ainda não vimos, apenas as fotos. Você veio antes aqui, Antônio?
- Ah, sim, sim, por supuesto, as fotos.
- Antônio é arquiteto. É muito imaginativo.
- Me encanta a arquitetura do edifício.
- É só um prédio velho - interveio a velha.

Voltou-se profundamente o silêncio. O filho percebeu e retirou qualquer ruído do teclar do celular, que estava em volume baixo, mas ainda audível. Era tamanho o silêncio.

- Enquanto ferve a água, podemos dar uma olhada, o corredor desagua nas peças todas. Isso vocês devem saber. E não há muito o que se ver. As fotos na imobiliária estão com minhas poucas coisas que acumulei. Sou uma senhora muito sozinha.
- Deve dar trabalho um apartamento desses só para a senhora.
- Uma diarista me visita quinzenalmente. E ainda adianto trabalhos para ela. Não duvidem de mim.
A mulher tentou melhorar o sorriso. Foi melhor do que a primeira tentativa, de fato.

- São bonitas suas estantes. - Emendou a esposa, já desmanchando o movimento anterior na face, dessa vez nem se esforçando por repor.
- O principal são os conteúdos nelas. Os quadros, as lembranças...
- Entendo. - Apenas assentiu o marido.
- Já enterrei minha família - Dizia a velha, que na verdade nem tão velha era, apenas com idade para ser mãe do casal, avó do menino, que até seguiu pelo corredor, mas à essa altura sem desgrudar do celular.
- O revestimento das paredes é muito bom - se manifestou Antônio.
- Parece que sim - Concordou o filho.
- Certeza que é - reiterou o Antônio
- Isto é - se limitou a mais velha.

Ela caminhava com alguma dificuldade, após uma sequência de passos, apoiando-se com a mão na parede. Antônio ficava cada vez mais amargurado, angustiado com a situação.

- Dona...
- Nilza.
- Dona Nilza... Averiguamos o bairro... A área total, em metros quadrados, excelente... O revestimento, os parquês, embora alguns fora de lugar, naturalmente, sem problema. O acabamento das paredes, o das lajotas nos banheiros, acabo de ver... Em ordem para o que procuramos... 180.
- O anúncio é de 190.
- 180. Em mãos. À vista.
- Conheço seu perfil, Antônio.
Ele engoliu em seco.
- Conheço seu perfil - ela repetiu, abusando de embrenhar-se como a voz da experiência ali presente.
Antônio, que havia voltado ao ponto zero, seu banquinho ligado à mesa, a de refeições, leitura e o que mais a senhora pudesse fazer, repetia o tamborilar de dedos. Nervoso. Quase elencou o instrumento de sopro improvisado com a outra mão para a sua orquestra.

- Tem aparecido clientes, dona Nilza?
- De fato não têm vindo.
- 180 em mãos é uma belíssima oferta.
- Os materiais de construção subiram de preço. Estava pensando mesmo em valorizar mais meu apartamento.
- Mais do que 190?! Estaria disposta a 200?
- 200 é fora de questão - interrompeu Suzana, esposa de Antônio.
O marido abriu as mãos como em um gesto de complacência, de concordância pela opinião emitida pela esposa. Não disse palavra.
- Sim, sim... 200.
- Mas a senhora acaba de dizer que não procuram sequer pelos 180!
- O que não muda o fato de que os materiais de construção subiram, seu Antônio... Conheço seu tipo e você não conhece o meu... Leio jornais e vejo televisão. Só não estou tão inteirada quanto o menino.

Fez um gesto de cabeça em direção a Luis Otávio, que repentinamente elevou o rosto que estava direcionado à tela do celular. Alçou as sobrancelhas decretando sua parcial derrota e voltou a seus interesses no dispositivo que por ora gastava os dados móveis, pois não teria a cara de pau de pedir o wi-fi da senhora. Se é que ela tinha.

- É, não tanto quanto ele, Antônio.
A água ferveu.
Fervia também a paciência do Antônio, que tinha trabalhos atrasados de sua agência, mas, mesmo assim, encaixotado pela sua ansiedade e por alguma pressão de Suzana, resolvera usufruir do sábado para estar ali, disposto a resolver o dilema do apartamento naquela outra região da capital.

- 195 - disparou.
- Antônio!
- Pai!
- Shhhh. 195, dona Nilza. Veja bem, viemos com a sabedoria dos 190, nem ideia que a senhora aumentaria. É dinheiro à vista, é pegar ou largar.
- Vocês têm cachorro?
- Temos - disse Luis.
- Não é um bom apartamento para criar cachorros. - Disse, acariciando o gato imóvel no sofá, alheio ao tom intempestivo da conversa. - Nunca criamos cachorros aqui.
- Até parece que esse seu gato já nasceu aqui.
- O avô dele era daqui.
Para Antônio era como se fossem o mesmo.

- Há outras casas no bairro, apartamento é somente este. Vocês precisam de uma casa, sr. arquiteto - Insistiu a senhora. - Só está à venda este andar porque minha filha, que mora longe, quer me levar com ela. Ela sabe de nada. Não sabe o que é melhor para mim. Quero continuar bem aqui. Respeite uma anciã como eu.
- Conheço o perfil. - Apenas disse Antônio, reticente. - Nós voltaremos. Poderia falar com sua filha sobre o apartamento?
- Não poderia.
- Tudo bem, daremos um jeito.... Nem que seja por 200.
- Antônio!
- Pai!
Antônio se levantou, retirando da gola rumo ao rosto seus óculos escuros. Tentou fazer cara de mal, mas não parece ter levado muito jeito para isso. Parou de súbito, antes que a senhora lhes abrisse a porta, diante da estante tão elogiada anteriormente. Um retrato em específico lhe concentrava a atenção. O rosto esmoreceu por baixo dos óculos escuros, rugas estranhas tornaram sinuosa sua fronte. Ele engoliu em seco, respirou fundo e retirou-se ofegante, ainda dirigindo, por baixo dos óculos escuros, um olhar suplicante para a senhora, que quase o entendeu, que também se tornou vacilante, mas deixou-o ir. Sem mais delongas sobre a conturbada negociação infrutífera.

Cada passo no lance de escadas o levava de volta a 20 anos atrás. Ele segurou as lágrimas. Amava uma das filhas da senhora, teria que negociar com a outra, mas não poderia, seria prontamente reconhecido. Foi naquele apartamento sua noite mais marcante. Naquele apartamento, inclusive, começaria a ser gerado seu primeiro filho. Mas Luísa, a filha da senhora, que estava em férias então com o marido, ela nunca contou de quem era aquele princípio de gravidez. Antônio não tinha emprego, não estudava, não se sentia confiante para assumir tudo o que viesse. Luísa certa vez entrou em ebulição com a família, não resistiria mais ali, estava disposta, com duas bolsas, a sumir de casa, a procurar Antônio, a ver o que poderiam fazer. A pressioná-lo a fazer algo. Ele, que se culpava, mas não se movia.

Ela saiu de carro, parou no primeiro orelhão, telefonou para a casa de Antônio, chamou-o de voz angustiada. A mãe de Antônio atendeu, se preocupou, mas passou-o ainda fora do gancho. Ela contou tudo no tom de urgência. Antônio petrificado novamente. Mas cedeu, disse que ela viesse, que tentariam resolver o que fazer. Mais dois segundos e conseguiu gaguejar para que não fizesse bobagens. Ele poderia buscá-la. Ela insistiu que dirigiria até a casa de Antônio, que a família poderia caçá-la pela fuga inesperada. Olhava para os lados enquanto usava o orelhão e não demorou mais, queria voltar para o carro e não só ouvir, como ver Antônio.

Em um cruzamento, tudo acabou. Uma colisão direto na porta da motorista. Do carro e da jovem pouco sobrou. Luísa recém havia saído de seu bairro, mirando o carro em direção ao outro lado da cidade, para o bairro e a casa do Antônio. Ele estranhava e se desesperava pela sua demora. Resolveu, após uma hora, refazer o caminho que ela faria. Quanto mais corria, mais se esforçava, maior era o desespero. Demorou uma hora e meia para chegar ao local do acidente. Estavam finalmente recolhendo o carro. Apesar do impacto do acidente fatal, Antônio reconheceu o carro de Luísa. Ainda havia sangue no asfalto. Luísa e do que viria a ser o bebê, Antônio nunca mais viu.

Chegou a ir para o hospital, só não entrar no IML. Reconheceu, ao longe, a família de Luísa. Teria medo de ser reconhecido por amigos mais próximos dela. Quando viu alguns se aproximarem da família, fugiu. Sem estudos e sem empregos até então, foi direto para sua casa. Avisou a mãe aos prantos que precisava partir. Arrumou sua mala. Disse que não era culpado de crime, mas poderia ser apontado por gente influente que lhe manchariam a já desgraçada vida. Beijou a mãe e procurou pelo primeiro ônibus.

Os amigos de Luísa tinham dúvidas, assim como os pais da jovem. Ela era bem requisitada e o Antônio, daquela festa, era um possível palpite, mas o com menos pinta de assumir a paternidade. Para o comentário para aqueles lados da sociedade, para os donos daquele prédio inteiro de quatro andares, estava no final da fila. Mas Luísa não contava quem era o pai da criança e as suspeitas começavam a ficar mais fortes. Apenas duas amigas de Luísa sabiam. Ela havia confessado para Manuela e Lissandra. Com a súbita morte da amiga, em que a família confessou o desespero todo da situação do dia, foram ao encalço do tal Antônio, que nem costumava frequentar os mesmos círculos de amizade.

A irmã mais velha de Luísa trabalhava fora, mas em cidade próxima. Tinha sido informada de toda a fatalidade e pegou o primeiro ônibus. Quando chegou na cidade, Antônio, azarado de tantos azares, ainda estava aguardando que o seu partisse. Ele havia perdido o anterior por cerca de três minutos. Após quase hora por ali, o ônibus da irmã de Luísa havia chegado. Ela desceu, ele iria subir. A instantes, a metros da porta, trocaram longos olhares. Antônio achou que já estava era vendo fantasma. Não bastasse, a jovem talvez tivesse gosto semelhante da irmã falecida. O olhar entre os dois demorou o equivalente a séculos, naquele conta-gotas de segundos. Ele finalmente embarcou. Ela botou na cabeça a tragédia toda que teria que enfrentar e seguiu, tão atônita como qualquer outro envolvido na trama familiar, embora não fosse exatamente a pessoa mais próxima da irmã.

A família entrou em desespero, culpou indiretamente o pai da criança que nunca nasceu, pela morte da jovem Luísa. Afinal de contas, o motorista do carro que colidiu com Luísa também havia falecido. Não poderiam culpar outro morto. Poderiam, sim, mas procuravam pelo vivo. Aliás, a confusão no hospital que salvou Antônio foi pela quantidade de parentes do outro condutor e, no calor daquele dia, quase que as reuniões de pessoas pelos motoristas opostos que se fecharam naquele cruzamento termina em briga na porta do hospital. Ficaram no quase.

Quanto à família, não podiam criminalizar de botar cartaz de procurado contra Antônio, mas Manuela e Lissandra, que sabiam dele, informaram a irmã. Ela reconheceria. O contato visual foi tão forte que Antônio nunca esqueceu. Voltou a ver a Maurília, irmã de Luísa, na televisão, chorando pelo falecimento da irmã. Ele entendeu toda a cena da rodoviária. Queria distância dela... E conseguiu. 18 anos morando longe, morando fora, esperando todas as poeiras possíveis baixarem.

Reconstituiu a vida. Teve um outro filho, com a Suzana, com quem se acertou. Nunca esqueceu Luísa, muito menos a trágica história. Voltou à cidade com a desculpa de retornar para onde nasceu. Ele já havia perdido a mãe. Ela e os irmãos com quem nunca mais teve contato. Era um foragido daquela catástrofe. Foi morar para outro lado, mas viu pelas ofertas um apartamento à venda. A família de Luísa, que era dona de todo aquele prédio importante, agora tinha apenas um apartamento. O pai de Luísa morreu, muito pelo desgosto, resumiria. A velha se mantinha forte sozinha, ou quase isso, capenga por aqueles degraus e longo corredor, cada vez mais longo, pelo túnel do tempo e por conviver sozinha com o avançar da idade. A Maurília, que começou a se tornar cada vez mais durona como rocha, apenas queria que a mãe vendesse de uma vez o andar em que vivia e fosse adiante. O prédio era decadente, mas a velha senhora, dona Nilza, queria continuar vivendo por ali.

Mãe nunca esquece e o nome Antônio também não seria esquecido. De tão comum, deve ter culpado uns quatro ou cinco por pura paranoia naqueles anos todos. Os Tonis e Toninhos e Tonhões que se cuidassem. Nenhum chegaria perto de Maurília. Ela estranhou a procura daquele apartamento velho em zona pouco comercial, pouco industrial da cidade, embora pacata, uma família, gente ainda no ápice por viver e se socar por ali. Imaginou a briga daquele Antônio com a tal Suzana para forçar a mulher a dar as caras por naquele imóvel. Antônio, outro cabelo, outra barba, o mesmo nome.

Por precaução, por instinto maternal, por suspeita aguçada, telefonou para Maurília.
- Acho que o encontramos.

19 de dezembro de 2020

Crônica insaciada

Acabo de ler Dostoievski apresentar sua argumentação em Notas do Subsolo sobre a vontade humana se sobrepor aos padrões racionais. A vontade, o desejo daquilo que ainda não se tem, daquilo que se quer, isso supera as leis racionais da busca pelo bem-estar, pela aparente tranquilidade. Há sempre algo em nós que nos coloca em movimento, caso contrário é a morte. Não há dúvida. Ele compara a conta de dois+dois serem quatro como uma matemática, aritmética racional, mas que independe de nossas vontades. A lógica, as leis de sustentação, o cálculo de uma viga de 10 metros (obrigado, Vitória Moraes) podem estar corretos, mas independem do nosso desejo para estarem ou não. São coisas que podem ser tabeladas, podem ser definidas por fórmulas e cálculos repetitivos. De uma vez que se atinjam os resultados nas tabelas de senos, cossenos e tangentes, nada mais pode ser extraído dali.

Não venha ao caso a beleza que a arquitetura pode proporcionar e amplificar a gama de significados. Não é isso. É apenas a superação do modelo matemático para as questões vigentes do homem. Muitas vezes podem ser desenvolvidas associações entre um campo e outro, do subjetivo para o matemático, mas a lógica não responderá tudo, porque o homem quer se esquivar das questões certeiras e esgueirar-se pelo parapeito das incertezas. O ser humano procura os caminhos sinuosos para tentar quitar as dívidas com seu espírito aventureiro, descobridor dos sete mares.

Iria apenas salientar a questão que o escritor russo Dostoievski aponta que as formigas são operárias, são utilitárias, mas saem do ponto de partida de construir e sustentar um formigueiro e, séculos se passem, ainda estarão lutando pelo mesmo formigueiro. É a fórmula, é a matemática desses seres, cujos indivíduos podem ser atingidos por predadores, sucumbir pela chuva, pelos raios, por inseticidas da ação humana, mas a prole continuará de pé dia após dia lutando pelo formigueiro, por esse todo que ele representa. Já o ser humano, através de sua consciência, estará na luta por questões subjetivas, por vontades que muitas vezes independem do senso racional, se dissipam da ideia de bem-estar, questões que se tornam contrárias às vantagens que ele obteria ficando quieto, não indo à luta. Em resumo, a humanidade está fadada a seus indivíduos buscarem o algo a mais.

Esses dias estive pensando em uma metáfora de filosofia africana (de localização imprecisa no continente, me perdoem) que apareceu em filme sul-coreano. As duas fomes, a básica, por alimentação, pelas necessidades fisiológicas e a grande fome, a busca incessante do conhecimento, das descobertas, das experiências próprias, daquilo que não podemos absorver também pura e simplesmente nos livros, nos catálogos de viagem, nos atlas, nas telas do cinema ou do celular. A busca pelo prazer das incertezas, pelo prazer das conquistas e - apoiando-se novamente em Dostoievski - conquistas que nem sempre significam pelo que são, mas significam pelo fato de as atingirmos, pelo senso de conquistador, pelo sentimento de dever cumprido. Tão logo estaremos com a posse em mãos e nosso âmago sentirá novamente a grande fome, nos pondo novamente em alto mar para novas descobertas. São desejos intrínsecos à humanidade, em cada indivíduo. É bem verdade que o sistema, a sociedade oprimem à população para lançarem-se 24 horas, ou o maior tempo possível diário, para saciar somente a pequena fome, mas que grande fome proporcionalmente pode surgir conforme avançamos em outros terrenos. A grande fome, esta que é insaciável.

E penso em minha gata, a Melissa, deitada em sua cadeira, dorme várias horas por dia, sabe-se lá com o que e se é que sonha, mas vive pela alimentação e um pouco de entretenimento, que ela busca através da caça ou de passeios noturnos pelo jardim, ou como fazia em nossa outra casa pelos fundos do bairro. Esta é a Melissa, essas anteriormente apresentadas eram, são e serão as formigas, serão assim as outras Melissas e os gatinhos do terreno baldio aqui logo adiante, mas eu, mas meu amigo Alan Matheus, mas meus outros camaradas, que há de sermos? De querermos? De lutarmos além das questões racionais mais atadas e obedientes. Seremos insaciados por gerações.

11 de dezembro de 2020

Adriane

Adriane tinha 22 anos. A conheci por ela ser torcedora do Sport Club Internacional, embora eu seja gremista. Mas fiquei sabendo de todos seus acontecimentos. Era bonita, uma moça que chamava a atenção, mesmo que sua autoestima fosse baixa. Era morena de cabelo e mesmo com a pele pouco bronzeada se sentia no direito de me chamar de branquelo.

Ela havia terminado o ensino médio e, por influências dos demais e necessidades que ela mesmo imputava, começara a trabalhar cedo, tão logo se formara. A escassez de locais para estudar na sua cidade, no norte do Rio Grande do Sul, e na região, em geral, fizeram com que preferisse o trabalho e o dinheiro imediato. Queria também ajudar a mãe e, afinal de contas,  a irmã era mais nova. Não muito, mas era. Eram até parecidas, mas eu nunca as confundira.

O pai havia partido ainda na sua infância. Deixou como legado a oportunidade de torcer para o Internacional, que vinha forte naquela década, levando tremenda vantagem sobre seu maior rival, o Grêmio. Mas aos poucos as conquistas se tornaram apenas estaduais e depois nem isso. O pai não voltou. Na velha metáfora de que saiu para comprar cigarros e nunca mais deu as caras. Talvez tivesse cruzado a fronteira em direção à Argentina ou mais provavelmente até ao Paraguai. Mesmo que o norte da Argentina também fosse uma opção plausível para planos desconhecidos de distanciamento. A família agora era composta por ela, sua mãe e sua irmã mais jovem, esta já também encerrando os estudos do nível médio.

Adriane iniciou sua vida sexual rapidamente. Após anos apenas ouvindo relatos das amigas, quando teve a oportunidade, não parou. Isto por um determinado tempo. Logo ela perdeu o interesse naqueles despropositados. Em cidade pequena, quis evitar a má fama que, embora não combine com os tempos progressistas a que nos propomos, ela existe, vocês queiram, concordem ou não. Então, ela parou. Mas podemos afirmar que o ocorrido se sucedera por experiência e vontade próprias. Ela já não sentia essa atração em que iniciara por influência de terceiros e que depois persistia pelo gozo pujante das primeiras tentativas. Foram alguns êxitos, outras decepções, nada demais a salientar nesse ponto.

No fim das contas, nossa heroína se estabeleceu com um rapaz alto, de meio bigode, olhos semicerrados e meios cabelos, daqueles nem longos nem curtos. Ela afirmava que eu parecia com ele. Não lhe dou nem retiro o diabo da razão nessa comparação. Entre idas e vindas, não moravam na mesma cidade, eram dois interioranos, ou seja, necessitavam da estrada para encontros em finais de semana que se apimentassem, mas mantinham a relação que lhes era benéfica. Ele precisava dela, pois enxergava em Adriane o potencial de inteligência atrelado ao sentimentalismo. Ela, embora ocultasse esse coração escorregadio, se interessava por ele e encontrava o lapso da proteção em meio a um mundo despedaçado, que cedia, que perdia centímetros de altura na areia movediça e sugadora chamada humanidade. O planeta, e sobretudo o país daquelas decisões políticas dantescas, se recolhia à mediocridade enquanto ela tentava meios de sobreviver. Precisava superar a ausência do pai, aconselhar e ficar feliz pelos acertos da irmã, sobremaneira procurar seus próprios acertos, dos quais ela se convencia de que o gremista de bigodinho estava de bom tamanho para suas ambições presentes.

O trabalho. Adriane tinha experiências profissionais. À essa altura em que parou de conhecer pessoas e manteve-se com o gremista de nome e sobrenome estranhos, podemos afirmar que Drica (para variar os termos) possuía mais histórias sobre seus encargos trabalhistas do que sexualmente ativa. O simples fato de levantar pelas manhãs - com sorte antes do almoço para labutar turnos da tarde - fazia com que ela nunca soubesse o que esperar quando cruzava a catraca, batia o ponto, realizava suas tarefas. Companheiros de trabalho malucos, chefes inconvenientes, clientes propriamente sem noção, lunáticos à solta desde que botava o pé para fora de casa, até girar a chave com o tempo anoitecendo no final de cada expediente. Era uma rotina que testava suas habilidades mentais nos campos da sobrevivência.

Voltava a questão à tona de que Adriane era, sim, muito bonita, caso não tenha ficado claro no começo dessa explanação. Novamente quer vocês concordem ou não, isso atrai os mais diversos tipos perversos. Alguns talvez a perguntar o que estou fazendo aqui. Ora pois, de imediato sou apenas o narrador. Além do mais, convinha a ela que eu fosse algum braço da segurança necessária quando me relatava os diversos episódicos amalucados aos quais ela era submetida e precisava sair pelas tangenciais, escapar das garras daquele averso e nefando dia a dia.

Para se entender Adriane... considero impossível. Não serei eu, à distância, que relatarei os pormenores que lhe passavam na mente. Ela própria, controladora ou controlada pela própria mente, não conseguiria definições plenamente satisfatórias, por estar tudo em fase de ensaio, sem conclusões. Além do mais, mesmo com o fechamento de capítulos, ela observando em um degrau diferente da altura do acontecimento, seja qual for, nem ela própria conseguiria manifestar e julgar suas decisões como acertadas ou errôneas, suficientes ou insuficientes, necessárias ou inventadas, fantasiosas ou inevitáveis. Desculpem o excesso de pares, em vista que justamente desistimos de enumerá-los e apontá-los entre uma coluna ou outra. Em casos específicos, traremos situações  em que ela usufruiu de uma distante noção de felicidade, que conseguiu aninhar-se junto a momentos alegres, válvulas de escape a uma rotina tão implacável, intervalos do cômico-trágico que ela vivenciava. Faço relatos por admiração a Adriane, por sua perseverança, por acreditar que no fundo era uma boa alma, uma alma necessária ao encontro do que eu procurava, uma pessoa normal e miraculosa, exagerada pelas minhas hipérboles e diminuta pelo relógio e pelas paredes do tempo-espaço em geral. Em resumo, Adriane era jovem, sentimental, embora com todos seus motivos para não gostar transparecer, aparentar que fosse sentimentalista. Era colorada e bonita. De forma e alma.

4 de dezembro de 2020

Verbas

Verbas aos "Vermes"

É o que o governo

A cada inverno serve

Entre parapeitos e soleiras

Longe das estufas e lareiras

E os juízes e seus auxílios

Em seus corruptíveis exílios

Champanhe aos chefes

Tribunais e seus blefes

Siglas terminadas em Efes

Federais

Ai Ai Ai

Ai Ai

Os bingos clandestinos

E os destinos oficiais

O que segue funcionando

E o que se esconde pelas capitais

Ai Ai Ai

Ai Ai

Amortiguar

A morte nos converge
E nos converte
Verte sobre o coração
Inerte

3 de dezembro de 2020

Só a luz no fim do túnel para nos salvar do invisível

Quem já teve o privilégio ou sacrifício (ou mesmo sacrilégio!) de conversar comigo sabe como gosto de alterar (e alternar) os assuntos rapidamente. Uma troca de marchas sem pisar na embreagem, uma arrancada rumo a outro pensamento sem ligar a seta para o lado que estamos nos deslocando. Eu troco constantemente de assunto e arrisquei minutos antes a propor alguns tópicos para a discussão de hoje.

A ideia, esse conceito abstrato de pandemia ao qual vamos nos adaptando em 2020 me traz em dezembro definições entre as tantas indefinições que estamos vivendo. Seguidamente em casa, com a minha família, debatemos sobre as incertezas do personagem do ano, o - novo - coronavírus. Invisível a olho nu, microscópico e somente podendo ser visualizado através daqueles microscópios eletrônicos, das últimas gerações científicas. Ou seja, nada de saber onde ele está, pelas superfícies, produtos de supermercados e armazéns, corrimãos, bancos de praça, frutas e demais artigos de feiras, obras de arte, mãos amigas, mãos inimigas, mãos desconhecidas, nossos próprios parentes. No ar. Não sabemos onde o coronavírus está.

Depois, outro debate que temos seguidamente em casa é sobre os sintomas. A incerteza de quais os sintomas gerados por essa doença nova, a covid-19, em adultos e crianças. Na semana, o que tem chamado atenção da mídia é a possibilidade da covid causar posteriormente uma síndrome inflamatória multissistêmica. E a mortalidade dela, que tem sido comum em crianças e jovens em geral, é maior do que a taxa da covid-19. Isso desperta a revolta de professores e familiares quanto à abertura das escolas, determinada em portarias pelos estados de nosso Brasil. Para completar a confusão, o Ministério da Educação ainda assinou pela volta das universidades a partir da virada do ano, no primeiro andar do janeiro de 2021. Os reitores são totalmente contrários e classificam incluso como absurda a decisão governamental.

Estava falando dos sintomas biológicos e intrometi o diabo da política. Queria me referir à incerteza dos sintomas provocados pela covid-19. A paranoia dessa pandemia nos faz pensar que qualquer dor pode sim ser a doença. E devemos tomar todos os cuidados para não estarmos com ela em sintomas brandos e acabarmos infectando outras pessoas. Um problemão. Problemas na garganta, difculdades respiratórias, dores de cabeça, a dor no corpo que tive no início da pandemia e que não sabemos o que pode ter ocasionado, eu que nunca tive dor no corpo anteriormente. Mas era recém o começo da pandemia, os casos na cidade eram abaixo dos 500 (no nosso universo de mais de 300 mil pessoas), eu já não saía de casa desde o cancelamento das aulas da universidade, fazendo meu trabalho em home office. A possibilidade de eu ter sido atingido pela pandemia global era diminuta. Mas não impossível, portanto não sabemos.

Ok, caso eu tenha tido, ou meus pais tenham tido, ou minha irmã, que chegou a realizar teste por apresentar sintomas, mas obteve resultado negativo, caso ela tenha tido, ainda existe o raio da possibilidade da reinfecção. Possuir a doença, curar-se, isso não te livra de readquiri-la, ou seja, mais pitadas de paranoia na nossa conturbada receita. Inclusive, na carência de estudos mais detalhados acerca de tão nova doença, alguns companheiros haviam questionado sobre a taxa de reinfecção no Brasil parecer bastante alta em relação ao que se comenta e se traz de notícias de outras partes do mundo. Ou seja, além do Brasil ser um dos países com maiores taxas de contaminação, com a ainda segunda maior mortalidade do mundo (deve ser ultrapassado em seguida pela Índia), ainda convivemos com a possibilidade de, mesmo se livrando da doença uma vez, pegarmos novamente a dita cuja.

Como não sabemos onde está o coronavírus, não temos a garantia de encontros em segurança com parentes, amigos, nem demais encontros afetivos. A possibilidade de respirar o vírus, emergido por meio da fala, da saliva, impossibilita essas reuniões presenciais. Ao menos manteremos essa logística para o mês com a chegada das festas de final de ano. Seremos apenas nós os quatro em casa e os demais familiares em suas residências (e resistências). Em meu círculo de familiares, obtiveram a doença minha prima, após muitos testes negativos e com sequelas graves, as quais ela segue combatendo, meu padrinho, irmão da mesma prima, mas que foi confirmado com a doença tempos depois, por alguma saída ou mesmo no serviço presencial que ele continuou executando na central de alarmes para casas ou veículos automotivos. E para completar as ameaças à minha avó, matriarca hoje da família aos 87 anos, a vizinha de prédio delas, justamente a responsável por um dia alugarem endereço no final do centro, a Dona F. acabou adquirindo a doença e passou pelo período de total isolamento, tendo se recuperado, apesar de sua idade considerável para torná-la grupo de risco e demais doenças que poderiam acometê-la. O pior é que terminar esse longo parágrafo em nada nos submete a garantia de que o pior, antes das vacinas devidamente virem, principalmente para nossos velhos de grupo de risco, nada garante que o pior já tenha sido ultrapassado. Tanto minha prima segue em recuperação de seus sintomas e debilidades mais graves, quanto a cada dia, a cada semana, a cada mês voltamos às atenções à luta para não cruzar com o vírus sem eliminá-lo por meio do álcool em gel ou da lavagem muito bem executada com sabão neutro e água corrente.

Alheio e ao mesmo tempo intrínseco a isso temos nossas batalhas psicológicas, nossa relação com o distanciamento e isolamento sociais. Nosso afastamento de procedimentos rotineiros, cotidianos que gostaríamos de realizar. Pessoas que gostaríamos de rever, outras que gostaríamos de conhecer, atividades físicas negligenciadas pelo risco de contaminação, como nos desportos coletivos, nos passeios em grupo, nas festas, nos cortejos de formaturas, aniversários e outras realizações. Tudo isso em que estamos impedidos. A espera pela vacina dita o ritmo dos próximos passos e, retomando rapidamente o despertar político que ora me surgiu, que Ministério genocida nenhum intervenha no que hoje seria uma vitória calamitosa em favor do vírus. Sigamos em nossas batalhas, unidos pelo distanciamento até que a luz do fim do túnel seja uma agulha em nossos braços com princípios ativos corretos pela imunidade comprovada. Até lá, continuaremos nos esbarrando nesses assuntos e desviando deles com distrações que nos façam bem. Exatamente agora me deu saudade de perder no Scrabble pra ela.