31 de janeiro de 2018

pecar de olhos

no pecar de olhos
o que a boca confessa
logo é desmentido
no pecar de olhos
 
logo é demitido
o autor dessa promessa
dessa farsa, dessa peça
dessa troça sem sentido

demitido
frágil como vidro
no pecar de olhos
 

pregar de olhos

num pregar de olhos
tudo se transforma
um pegar de olhos
esquecer tudo à sua volta
cessar o combate
conter a revolta

num pregar de olhos
o mundo agora é outro
dura pouco a moleza
dura muito o sufoco
dura pouco a certeza
permanece o duvidoso

22 de janeiro de 2018

"As pessoas vivem muito no automático. Em vários âmbitos da vida se exige apenas resultado e só querem saber de resultado. A caminhada, com seus altos e baixos, quase nunca é considerada. A vicissitude do cotidiano que faz a vida valer a pena. Sou relativista. Toda generalização é burra. Cada ser humano é um estranho ímpar e suas experiências seriam igualmente ímpares." 

Carla de Pieri

19 de janeiro de 2018

Floyd Explica

A maioria de meus textos mais crônicos surge em caminhadas. A maioria de meus sintomas mais crônicos é amenizado caminhando. Não dirijo, mas creio que a atenção exigida ao volante reduza a quantidade de observações, sempre cruciais para a elaboração dessas linhas.

Foi a pé que eu precisava aproveitar aquela última manhã. A praia disponível a todos que nela conseguissem chegar. A praia indisponível ao estado de estar a sós. O sol a brilhar forte desde o asfalto e as calçadas. Cada sombra alcançada em avanço a ser comemorada e valorizada. Como deve ser a vida, com cada vitória, cada pequeno triunfo, pequeno refresco, alívio de dor e intervalo de sofrimento a celebrar. Celebrar para sobreviver, na canção da banda uruguaia La Vela Puerca.

Sotaque argentino pela praia. Transformando a praia em playa. Um casal deles me perguntou informações outro dia. Sobre a rua 601. Os respondi em espanhol para que pensem que também sou um deles. E por que deixaria de ser?

Com um pouco mais de noção das ruas do que dias atrás, caminhei em direção à praia. Grande momento, ápice das voltas quando um cara de uns 30 anos carrega sobre seus ombros largos um aparelho de som que exibe música para a rua inteira. Animador daquele já ensolarado dia. Cruza por mim durante a execução de How I Wish You Here da banda Pink Floyd. Mas não é a versão original dos britânicos e sim uma canção em reggae. Eu elogio o som e ele me responde com voz cavernosa com gírias em um equivalente de "é, não é mesmo?".

Segue sua galopante empreitada de rumo que, em rua próxima à praia se dissolve, se dissipa do meu. Some tão repentinamente quanto surgiu. Volto a prestar atenção nos altos prédios e nas distintas pessoas ao redor. Os prédios se parecem mais uns com os outros. As pessoas são muito variadas entre magras e gordas, novas e velhas. Pela alta temporada e badalação da praia, devem se aproximar em aspectos econômicos que ali nada me interessam.



Quando chego à avenida de nome referente ao oceano que banha suas areias logo abaixo dos concretos, encontro o maior movimento de transeuntes. Revezo minha atenção para desviar fisicamente meu corpo dos que caminham em direção contrária. Ao mesmo tempo, tento pousar meus olhos nas diferentes formas de vida ali presentes. Fotografo alguns instantes sem que me torne intrometido ou invasivo contra os reféns das lentes.

Me chamam atenção os senhores de idade com suas latas de cerveja de marcas muitas delas reprovadas por mim. Ao mesmo tempo, crio uma identificação com esses seres que muito podem se assemelhar a mim, caso eu chegue em suas não referidas idades. Outros deles estão concentrados esportivamente. O dominó é a modalidade da vez. Nas disputadas areias da praia, não há muita área disponível para prática esportiva que denota dessas condições espaciais. Nada de vôlei ou futebol e, talvez com muita habilidade para não incomodar os numerosos vizinhos, um pouco de frescobol poderia estar ocorrendo por detrás de tantos guarda-sóis fincados no terreno arenoso.

São muitos argentinos, como exaustivamente ouvi desde os noticiários até os comentários virtuais ou de quem ali mora, e inclusive passei a repetir essa verdade tida por nós. Alguns identificados em seus aspectos. Homens de pele muita clara, mulheres de rostos tristes. Mas havia, sem dúvida, uma variedade antropológica inestimável, nas ressalvas de diferentes idades e tamanhos. Biosfera pulsante. Migratórios convergentes. Ver gente. Ver gente. Vertentes.

Uns se protegiam nos guarda-sóis. Outros matavam a sede em quiosques. Uns conversavam animados. Os salva-vidas cumprimentavam outros salva-vidas que passavam sob os seus postos. Uns poucos se aventuravam na água, que não é considerada própria para banho em todos os pontos. Outros observavam solitários, como solitário eu estava nessa caminhada.

A polícia sobrevoava a praia lotada de helicóptero. Por vezes, viaturas cruzavam o asfalto no mesmo sentido dos turistas sobre rodas. Motos e carros que ora respeitavam a travessia dos andarilhos, ora ignoravam a sinalização. Cadeiras de praia espalhadas pelas areias e pelas calçadas. A luta incessante por uma vaga debaixo do escoar das águas nos chuveiros públicos. Filas de gente interessada em se refrescar ou em tirar os grãos que sempre estiveram na praia, ou ao menos seus parentes de composição química. Antes do ser humano levantar propriedades, muros, grades, cercas e prédios com 30 andares.

Garçons procurando formar clientes para os restaurantes do outro lado da rua. Importunadores com gritos e tentativas de roubar a atenção. Um método pouco eficiente para me convencer a provar seus pratos especializados, mas método que cavou um lugar neste parágrafo, a título de curiosidade. Pessoas tentando ver pessoas ou tentando ver a paisagem escondida atrás dos prédios ou das demais pessoas. Pessoas que estavam ali, nem fazem muita ideia, nem sabem bem o porquê. Pessoas com tão pouco objetivo quanto os grãos de areia que se escondem entre espigas de milho verde, entre calçados e calções.

Muitos praticavam esporte pelo asfalto. Na pista compartilhada, ciclistas, corredores, skatistas. Uma ou outra pessoa atravessa as faixas de pedestre trajando terno. Vendedores ambulantes. De artesanatos alternativos aos jogos de loteria. Uns praticam esporte preocupados com a forma física. Gente moldada claramente na academia, outros procurando perder calorias. E nada retira a concentração dos jogadores de dominó. E nada retira a tua concentração que costurou lotes em meu peito e reinstituiu ocupações em minha mente.
How I wish you here.

18 de janeiro de 2018

BR-116

Calor no carro. O ar condicionado dele não vence. Abrir as janelas seria o recurso se a velocidade na estrada não disparasse um barulho maldito aos ouvidos, ensurdecendo a ponto de não ouvirmos os próprios pensamentos.

A rodovia, que era duplicada, já não é mais. Não entendam errado. Não é uma rodovia duplicada que voltou a ser de mão única. Me refiro ao fato de que trechos mais ao norte foram duplicados e quando os veículos escoam suas presenças ao sul, encontram novamente uma estrada de via única. Aquelas em que é preciso adentrar ao espaço da contramão para realizar uma ultrapassagem.

A infraestrutura é melhor lá ao norte, conforme os pedágios são mais baratos. Novamente, não entendam errado. Isto mesmo. Os pedágios mais caros são os da rodovia de mão única. Uma boa investigação sobre prestação de contas poderia trazer magníficos esclarecimentos a respeito.

Não à toa foi um post que partiu da cidade de Pelotas que tomou rumos nacionais e milhares, talvez milhões, de compartilhamentos, a respeito de uma especialista em Direito que afirmava serem irregulares as praças de pedágio. Com uma boa argumentação e o respaldo da lei seria possível driblar esses cobradores. Era o resumo do post que circulou e ainda deve circular na internet. Pois estamos tratando de algo com milhares, talvez milhões, de compartilhamentos.

Sobre os rumos ao sul pela BR de número 116, nesta quase rima de nenhuma graça, as paisagens que ilustram o texto começam a se moldar fortemente após a passagem pela região metropolitana de Porto Alegre, abaixo de Guaíba. Abaixo no sentido dos pontos cardeais ao se observar um mapa. Em outro sentido geográfico, o pampa se estende até onde os olhos se possibilitam ver. Ou seja, não há abaixo. É tudo plano. Em maior parte, a regra é uma estrada reta. Infinita highway.

Qualidades de vida de América Central. Confusas. A estrada que passa Guaíba e tem como destinos possíveis Barra do Ribeiro ou Tapes do Sul. Vegetação de árvores à beira da rodovia. Alguma sensação de sufocamento pela impossibilidade de conferência do horizonte. Curvas. Curvas apontadas em placas e que trazem o desconhecido logo a seguir. O asfalto já não é dos melhores, visualmente remendado. Os acostamentos não são os mais seguros e aconchegantes para abrigar paradas. Breves, que sejam.

Pontos de ônibus. Alguns veículos estão encarcerados como ao inferno de repetir esse trajeto. Lembro a história de um conhecido da família de minha tia, o motorista de ambulância que fazia sempre o trajeto de Santa Vitória do Palmar (o extremo sul do extremo sul) até Porto Alegre. Dias e noites na monotonia que, não bastasse o tédio, ainda reserva os perigos das rodovias brasileiras. Mas um trabalho assaz digno, necessário no abastecimento de saúde à população necessitada em rumar para os maiores centros, ao encontro da medicina.

Mas os pontos de ônibus fadados à condição de celas. Alguns pichados como tais. Só os falta que marquem e contem os dias de cativeiro neles. Mas seria demais na hipérbole dessa exaltação bucólica. Um artista inovou trechos da rodovia próximos à Camaquã com a aparição de gatos grafitados em pequenas obras abandonadas ou mesmo nos pontos de parada dos coletivos. Uma diferenciação que faz o antes imutável respirar novas cores, mesmo artificiais.

As casas de campanha são distantes umas das outras, um panorama muito distinto das acumulações de moradores e empresas, empresas e moradores nos trechos mais ao norte. Ao norte do Rio Grande do Sul, ao sul de Santa Catarina ou ao norte de Santa Catarina. As casas de campanha em suas simplicidades, algumas muito antigas. Algumas imitam em menor tamanho o estilo da construção que se convencionou chamar de parque de Bento Gonçalves, que foi uma das residências do protagonista na Guerra Farroupilha. A famosa estrutura que pinta no horizonte está em área pertencente ao município de Cristal.

Casas simples. Muitas carentes de pintura. Armazéns, borracharias, mecânicas. Casas com suas janelas voltadas para rodovia. Intenso tráfego de carros que devem ouvir. Caso a duplicação chegue até ali, muitos serão indenizados e pedidos para se retirar, como já ocorreu em alguns trechos. Outros vão conviver com o som e o impacto dos pesados veículos, principalmente caminhões, mais próximos do lugar onde dormem, onde fazem as refeições, onde vivem. Complicações do que um dia foi uma vida muito mais pacata.

A violência na região aumentou estratosfericamente. Retratos de um Brasil desigual, desempregado e, quando empregado, mal empregado. Mal formado e mal formando na formação de estudantes, trabalhadores e cidadãos. Um país conivente com os tantos crimes, que acentua a metáfora das prisões das estradas e dos pontos de ônibus, nesse inferno de inevitáveis incertezas quanto ao próximo dia.

Uma estrada de maior volume de caminhões que as vozes mais experientes logo associam com a aproximação do porto de Rio Grande. À essa altura, a rodovia está mais reta do que as curvas anteriores nas proximidades de Barra do Ribeiro e Tapes. Camaquã é um brinco, mas somente um brinco. Como se um ponto luminoso na orelha, como é luminosa nas noites de rodovia, fosse resolver o problema de um organismo problemático. Camaquã deu alguns sinais de desenvolvimento. Mas não por muito tempo. Um prédio colossal posto à beira da rodovia, próximo da entrada da cidade, perdurou anos de contemplação sem que os viajantes soubessem seu destino final. Acabou lacrado nas vastas fachadas que estavam prontas. Faltou verba ou mudança radical de planos.

Não bastasse os problemas e bucolismos apresentados, o preço da gasolina é dos mais altos do país. Eis uma região que ficou para trás historicamente e talvez mais acentuadamente na contemporaneidade e que apresenta pedágios caros, valores de transporte público caros, como o caso de Pelotas, e preço de gasolina caro. Ao menos mais caro que norte do Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina. Mais uma vez caminha-se ao encontro da metáfora do inferno. Um lugar de calor nos verões mais asfaltados e com menos saídas.

Uma das saídas, orgulho dos outdoors exibidos ao longo do trajeto, seja a praia em São Lourenço do Sul. Se Camaquã foi aqui posta como um mero brinco, talvez São Lourenço possa ser um oásis. Cidade pacata e que apresenta essas atrações turísticas, com boa gastronomia e opções para refrescar o verão em praias cada vez mais procuradas. Uma ameaça à eterna tranquilidade do inferno, mas uma possibilidade de renda e desenvolvimento com o turismo.

Os outdoors são uma das poucas formas de romper a paisagem incessantemente descrita. Além dos vastos pampas e campos intermináveis após o trecho mais cerrado em árvores, além das poucas casas de campanha. Além dos poucos armazéns, borracharias e mecânicas. Os outdoors contrastam o fato de que é muito mais fácil vê-los do que ver uma verdadeira empresa empregadora. Sinais de o desenvolvimento está distante como a propaganda e o marketing estão distantes da realidade. Cada nova mentira da publicidade é uma confissão de sua mentira anterior, destacaria nosso falecido francês, Guy Debord.

Entre ultrapassagens perigosas e novamente a sonolenta estrada de pampas aos arredores, os funcionários da empresa administradora da rodovia aparecem cada vez em menor número. Se concentram mais ao trecho próximo da região metropolitana de Porto Alegre, bem sabe-se o porquê. A segurança consiste em raros e esvaziados postos de Brigada Militar, entidade de tantas dificuldades financeiras, a exemplo do estado, além dos mais modelados e equipados santuários azuis e amarelos da Polícia Rodoviária Federal.

As opções de diversão são os chamados bailões. Alguns são fortemente anunciados nas pinturas, atrativos para buscar clientes, mesmo que de passagem. Outros são mais reservados, pelas opções ilegais que variam de jogos de azar à prostituição nas casas noturnas. Talvez grande parte das comunidades prefira os almoços e festas de igreja, os bingos de domingo e talvez seja um grande erro unir essas duas formas de diversão no mesmo parágrafo, mas agora foi.

Um dos prazeres da região se estende para gastronomia de cucas, salames, chimia, doces de Pelotas e agriculturas familiares, cada vez menos livres dos agrotóxicos. Plantações de eucaliptos que se enfileiram militarmente à espera de seus cortes e aproveitamentos para os produtos derivados que ocuparão as prateleiras dos supermercados, enquanto os moradores locais reclamam que esse tipo de plantio prejudica o solo pela eternidade de suas vidas. Infernos.

Pessoas que esperam. Esperam a chuva na horta. Esperam a chuva para amenizar o mormaço. Esperam um novo amor nessas cidades escassas. Esperam o cão ou o gato que fugiu, como costumavam fazer, mas demoraram uns dias a mais para voltar. Esperam o marido voltar com o jantar. Esperam a chefia da família voltar da ida à cidade. Esperam a correspondência e as contas a pagar. Esperam a música certa da bandinha alemã na rádio. Esperam clientela no pacato armazém de letreiro apagado pela poeira e o tempo. Pelo tempo e o vento. Esperam que a duplicação ocorra ou não ocorra. Melhorias para região ou malefícios para suas propriedades?

Pessoas que pedalam bicicletas tentando manter o ritmo entre o deslocamento do horário e o poupar o físico contra o forte calor de janeiro. Pessoas com largas abas em chapéus contra o poderoso sol do estado brasileiro mais castigado pelo buraco na camada de Ozônio, que alguns estudiosos dizem estar finalmente diminuindo. Assim como diminuindo, mais comprovadamente, está a natalidade do Rio Grande do Sul. Pessoas que esperam os ônibus nas paradas. Pessoas com o chimarrão na frente de suas pequenas casas. Pessoas saudosas de bailões fechados, de gente que já morreu. Pessoas saudosas dos filhos que buscaram os maiores centros e visitam cada vez menos nessa corrida vida. Pela dificuldade de liberação do trabalho ou pela falta de saco para encarar essa rodovia de mão única. De mão única com o diabo no inferno.

três e quarenta e dois

três e quarenta e dois
começo a escrever
sem saber
até quando vai
o depois
o depois do escrever
o depois do viver
o depois dos verbos
dos versos que vão
sobreviver

6 de janeiro de 2018

Outubro em Imagens

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Porto Alegre (Foto: Henrique König)

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Filosofia (Foto: Henrique König)

Por de Porto Alegre (Foto: Henrique König)

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Rodovia (Foto: Henrique König)

Smiley (Foto: Henrique König)

Foto: Henrique König

Morro dos Conventos (Foto: Henrique König)

Torres (Foto: Henrique König)

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

Foto: Henrique König

"Com um verso eu faço um grito, com um poema pronto encontro o verdadeiro silêncio."
Pâmela Filipini

2 de janeiro de 2018

pantanal

quero arrancar-te o grito mais gutural
o prazer que te prende à garganta
o regozijo mais natural
o visceral germinar de uma planta

quero eclodir-te a fluir-te o canal
o terminal que a espera era tanta
afrodite, meu manancial
da matinal à vesperal janta

1 de janeiro de 2018

Aforismos

  • fazer uma caneca com os dizeres: odeio canecas.
  • posso transformar minha bobeira em insônia e minha insônia em bobeira.
  • escolher marca de cerveja é igual orientação sexual, cada um escolhe o que quiser.

Entre o uniforme e nudez

Acordo cedo e parto em viagem. Sei que é bastante cedo porque não há pessoas acordadas em casa e é assim que me agrada. A escuridão espessa da noite comprime-se agora em tons acinzentados, coloco o que considero essencial corriqueiramente na mochila e tomo meu rumo ao estado vizinho em trajeto percorrido por ônibus.

A viagem era para durar muitas horas, mas aparentemente chego em poucas. Não somente pela impressão que me é passada, mas pelo horário de chegada sendo constatado. Sou recepcionado não sei bem como. Sigo uma caravana em procissão, guiado por quem conhece os caminhos.

Por entre meados de uma zona asfáltica, ingressamos em um prédio absolutamente moderno, com uma arquitetura interessante, formatos distintos nas sacadas, fazendo cada andar assemelhar-se a um iate. Na entrada do prédio, um dispositivo automático libera a passagem da catraca para as pessoas através de um cartão magnético. As demais pessoas, por ali morarem ou estarem acostumadas a visitar, possuem o cartão. Eu, visitante de primeira viagem a esse destino, não possuo. Os olhares de quem passou sem dificuldades voltam-se para trás em impaciência à minha demora. Não sem antes eu tentar pechinchar meu ingresso com a mulher fiscalizadora da portaria, finalmente a moradora do prédio libera a minha entrada.

Ao caminhar por entre os corredores internos, em direção à subida até o iate, digo, até o andar derradeiro, percebo que estou usando apenas uma bermuda e estou sem camisa, como se recém houvesse acordado, como as horas anteriores à viagem em que levantava cedo e preparava-me para aventura. Em um dia de verão, obviamente. Ao caminhar, constato que é possível estar perdendo as bermudas utilizadas. Mais passos adiante e visto na verdade um pequeno calção cinza, reconhecido por mim como um pijama. Não me apavoraria recordar que somente uma cueca me separaria da nudez em momentos posteriores.

Questionado pela minha aproximação com a nudez, embora minha mente já se recolhesse à vergonha de estar assim, realmente começo a perguntar-me pelos meus pertences. Despojado da presença de mais roupas, noto de minha posse somente uma conhecida e pequena mochila vazia. Acerco-me do desespero por estar em uma cidade distante, exposto ao ridículo e sem grandes possibilidades de sair dessa situação.

A caravana de acompanhantes era composta por mulheres, as quais, após me dirigirem o olhar de reprovação pela demora em liberarem a minha entrada no dispositivo de catraca do cartão magnético, comentavam umas com as outras ao considerarem a procissão como "um veleiro", em referência às velas que poderiam ser acesas caso me unisse nos deleites íntimos com a moradora do prédio, minha convidadora, anfitriã e potencial agraciante e agraciada nisso tudo.

Mas de volta ao drama da situação matinal, em meio ao turvo mar desesperador, não encontro saídas desse vexame. Onde estão minhas roupas e dinheiro? Surge entre as pessoas um rapaz que eu logo assimilo como uma possibilidade. Precipitadamente afirmo que esqueci os pertences em seu carro na vinda para cá. Ele me confirma com um olhar duro de "porra, agora temos que ir lá pegar suas tralhas", seja lá onde estava o carro.

De certa forma resplandece um alívio multiplicado, que parte inicialmente de recuperar meus pertences e possibilidades de estadia, com a obrigatoriedade de portar roupas e dinheiro; em seguida, alívio de deixar a caravana de olhares inquisidores e concentrar somente que o cara me ajude. Despeço-me da moça com um até breve, na esperança de voltar o mais rápido possível para continuar os planos, seja qual forem.

Coberto pela sombra dicotômica que anuncia: estás com a melhor ou com nenhuma.