Estava inquieto para escrever. Meu cérebro geralmente está assim. Mas não sabia exatamente o que colocar no papel. Cronologicamente estamos no feriado de carnaval durante a pandemia. O primeiro carnaval evidentemente pandêmico, embora muitas pessoas ignorem esses sinais, alertas e riscos. Tentam uma normalidade inexistente. Pouco mais de 2% da população foi vacinada, uma para cada 50 pessoas. Mesmo assim, festas clandestinas em diferentes locais, sobretudo ao litoral.
Creio que minha mãe perdeu parte do gosto pelas praias ao ver imagens na televisão. Ela quer se mudar para perto do oceano, mas acaba balançando suas estimativas a partir desses contratempos. Meu pai recebe SMS da irmã dele, geralmente com agradecimentos por depósitos feitos ou informando sobre a saúde dos demais irmãos. Não é boa a situação dos tios. Receio que a continuidade dos fatos estremeça a relação positivista com que meu pai sempre encarou a vida e eu discordava. Mas é complicado discordarmos sem entendermos o que move e dá forças aos demais continuarem. Enquanto me blindo em pleno pessimismo e tentando assimilar os assustadores realismos que nos cercam, meu pai talvez se feche em pensamentos otimistas que o mantenham íntegro, com força para comprar algo na padaria, abastecer o carro e fazer serviços manuais, sejam mais ou sejam menos urgentes.
Eu estava refletindo sobre minha necessidade de estar sempre refletindo. Sou assaltado constantemente por pensamentos insólitos, transfigurados, adjacentes, entrecruzantes, enviesados. Mudo de assunto com rapidez. Crio uma ilusão de que minhas reflexões são mais importantes do que outras coisas. Passo-as ao papel no ritmo voraz da urgência. Na verdade, desabafo com menos funcionalidade e interferência ao mundo externo do que qualquer mascote ou palhaço fantasiado em frente a farmácias econômicas, anunciando descontos e tentando convergir clientes ao local. Qualquer vendedor de vale-transporte ou de equipamentos para bolhas de sabão, na luta diária pela sobrevivência, está mais interagido com o mundo.
Mas talvez esse seja o meu modo de lidar com as situações. Muito mais introspectivo e criativo textual do que os demais habitantes. Compartilhei uma campanha para ajudar um cão atropelado. Chamada vaquinha virtual. Para além de auxiliar esse pobre indivíduo, pensamos nos todos recolhidos e amparados pelas mais diversas ONGs, em parceria ou não com os poderes executivos municipais ou estaduais. Cães, gatos e outros animais, os outros que podemos comer à mesa. Socialmente aceito.
Outro dia eu caminhava pela avenida mais badalada da cidade, com os melhores imóveis, modernidades, novidades, gente se exercitando, carros à mostra, exibicionismos, restaurantes mais caros, inclusive um constatado que filava energia elétrica. Roubo. Bom, por ali eu me deslocava e reconheci um senhor de meia-idade que, na dificuldade do alto índice de desemprego, empunha um cartaz em busca encarecidamente de moedas, dinheiro para se alimentar e cruzar o facho de mais um dia. Parei diante dele, me atrapalhando com as palavras para informar que já o conhecia de ali passar outras vezes e que dessa vez iria ajudá-lo. Remexi meus bolsos, enrolado junto com minha língua que não pronunciava as melhores palavras para ocasião, acrescentado o efeito de estar por trás da máscara de tecido pela prevenção do vírus pandêmico. Ele também estava assim. Consegui sacar os dois reais que pretendia contribuir com o dia daquele cidadão. Não ganho para estar distribuindo mais do que isso. Tenho receio de meu próprio futuro. Tenho total desacostume com a rotina laboriosa. Fui criado dessa forma, infelizmente. Em uma aparente tranquilidade que de modo nenhum combina com a sociedade brasileira. A luta é diária. O lutar é exaustivo. É preciso seguir de algum jeito.
Me blindar com o pessimismo nem sempre vai resolver, é necessário interagir com as batalhas. Com os demais humanos e, nisso tudo, agraciar aos bichinhos. Os que não comemos. É duro tentar fugir da hipocrisia. Ela nos persegue. Pensei nessa frase anteriormente: enquanto buscamos o elixir máximo e inalcançável da justiça, nos persegue o bafejar constante e irrequieto da hipocrisia. Somos todos hipócritas. É muito difícil, senão impossível, escapar do aprisionamento da contradição.
Meu pai, ao contrário, se blinda em um otimismo que também nada combina com a sociedade brasileira. A cada SMS que recebe, informes de piora da saúde familiar, a televisão desde suas manchetes e complementos reportagens de que as coisas pioram. Desemprego, saúde, aumento da miséria, violência urbana, racismo combatido, racismo que combate, fascistas e antifascistas e antifascistas facistas. Tudo isso nos cerca.
No caos total, provavelmente meus julgamentos são muito duros. Às vezes com os outros e constantemente comigo mesmo. Já esperávamos pouco, mas permanece seguidamente a sensação de que podíamos mais. Correndo atrás da desabalada carreira da justiça, tentando vencer, ficar à frente da hipocrisia, mas lado a lado com ela.