31 de agosto de 2020

Machado de Assis chorava

Machado de Assis dizia
que vertia lágrimas aos pares
nessa comunhão de jorrares
lágrimas ao fim dos dias
nos declínios solares
lágrimas e melancolia
a encherem chão dos lares

Machado de Assis dizia
que vertia lágrimas aos pares
será que refere como cairia
lágrimas a cada duas
formam pares
ou será que se referia
a chorar com quem casares
fica a dúvida que se debata
dúvida que não se debita
e que habita nesses mares

28 de agosto de 2020

O Cãomício de Wolf

Era uma época de simulacros. Estavam por toda parte. Desde a dissimulação necessária nos meios políticos, entre os doutores, deputados, juízes, desembargadores, promotores, oficiais dos mais diversos cargos, até os astros esportivos, simuladores de falta de ataque no basquete, de pênaltis no futebol, de bloqueadores no vôlei que nunca encostavam na bola que ia direto pra fora. Alguns desses casos esclarecidos pelo salvo conduto garantido pelas imagens da arbitragem de vídeo. Nos casos políticos, vocês sabem, a dificuldade era maior de conseguir flagrantes e respectivos aprisionamentos previstos nas legislações.

Havia também os simuladores conjugais, maridos e esposas dissimulados para suas fugidias galanteadoras. Rompedores do fastio diário que acometia dois a cada três casais, sendo eu bastante bondoso ao inventar tal estatística. Tudo para facilitar a compreensiva esperança que vocês querem alimentar. Mas esse caso a seguir desafia a lógica do pensamento humano, uma intervenção divina da natureza em uma época em que tanto objetificamos pessoas. O caso referido é da personificação animalesca, que também não é o maior absurdo que vocês já ouviram sobre. Provavelmente conhecem ou até são os donos (pais) de pet que humanizam ao máximo seus queridos mascotes.

Parece que a dona tinha a grafia para as idas ao veterinário como Wolf, o legítimo lobo alemão. Mas aqui escreveremos Rolf, que era como a dita cuja mãe de pet pronunciava. O Rolf era um cão sabujo criado em um quintal meio triste, de concreto, mas a Alessandra garantia que assim era mais fácil de limpar suas fezes. Começando a descrição me vem à mente o filme Roma, do nosso querido mexicano Alfonso Cuarón. Parece que ele quis ilustrar da forma mais direta possível que é pra pensarmos na merda que é a vida. Enfim, a do Rolf não era tão ruim assim, porque ele dispunha do seu espaço, embora concretado em suma. Havia para ele umas proibidas hortinhas nos cantos do pátio. O cão era esperto e subia ao canteirinho de tijolos quando Alessandra ou seu marido Vinicius não estavam de olho.

Ademais do espaço, o sabujo contava com brinquedos de borracha e tempo para curtir a companhia humana, agitando seu rabinho como comprovação de lhe apetecer esse período. As refeições eram o principal caso em questão. O Rolf se alimentava, sim, pelo menos duas vezes ao dia garantidamente, mas mesmo assim não parecia contente com os horários e se fazia de louco.

O almoço de Alessandra era pontual, ao meio-dia. Vinicius nem sempre voltava em casa para almoçar, atarefado que era. Mas afirmamos o compromisso com a inocência do Vini quanto ao matrimônio, sendo o caso discutido do simulacro o do cão do casal. À essa altura, na descoberta protestante de Rolf, os dois humanos já haviam procriado, um pequeno cabeçudo com a alcunha de Francisco, o Chico. O Chico era uma verdadeira comemoração virtuosa de Alessandra e Vinicius porque era muito comportado, nada manhoso, respeitador dentro do possível para uma criança de três anos.

Eis que surgiu o problema em quatro patas. O Rolf almoçava cinco minutos antes da Alessandra servir o que ela e Chiquinho (e/ou mais Vini) iriam comer a cada metade de dia de cada dia. Mas o aventureiro sabujo percebia que o estômago lhe advertia antes das 11h55, então por que esperar? Rolf emitia um latido enjoado, manhoso, ardiloso em busca de atenção. No primeiro dia foi às 11h50.

Rolf manteve sua postura austera nos dois almoços seguintes, mas tornou a latir, já em curtas ondas sonoras de formato uivante, isso às 11h45. O prognóstico foi piorando para a cada vez mais escabelada Alessandra. Dali uns dias, às 11 e trinta já estava composto o solo canino do sabujo. Um espetáculo apreciado por exatamente ninguém da vizinhança. Vinicius esteve presente nesse almoço embrulhado após a irrupção ousada do quatro patas.

- Mas que diabos esse cachorro tá querendo?! - perguntava o inocente mediante a primeira vez que presenciava tal fastigante cena.

Como afirmado, era um espetáculo apreciado por ninguém da vizinhança. Ninguém humano, porque o complô canino prestava atenção na atuação simulacra de Rolf, que já nem mais tinha fome naquele horário matinal, mas gostava de gozar seus adiantamentos. Os cachorros vizinhos, inclusive, estes almoçavam era mais tarde, só a sobra dos adultos donos. Mesmo que implorassem à volta da mesa, eram convidados a se retirarem, esperavam de estômagos roncos até alguma sobrinha, um osso bastante desgastado em seu conteúdo em volta, uma sobrinha de arroz no carreteiro e coisas do tipo. O Rolf era o espertalhão daquela turma separada por grades.

Certa noite, eles foram até a divisa máxima, cabeça para o lado de fora, posição favorita para tentar morder o homem de azul e amarelo, o carteiro.

- Rolf, seu arruaceiro. - Liderava o grupo do bairro um esquisito bull terrier.

- Fui criado em casa desde nascença.

- Você é um fingido. Tem dado certo seu plano?

- Indubitavelmente. Eles me servem porque os chateio o bastante. E Alessandra sempre foi querida.

- Raios que os nossos nos fazem esperar a cada pecador dia.

- E por que não tentam como eu faço? Comecem um pouco mais cedo que o horário habitual. Nem perceberão.

No dia seguinte mandaram brasa e arrebataram um bife mais cedo do que sonhavam. A eficácia era comprovada de forma ligeira. O recado era passado de grade em grade, percorrendo como corrente elétrica o bairro adiante. O alarido no horário de almoço, ou melhor, pelas manhãs, estava acabando com qualquer concentração filial para dever de casa, adulta para home office e até dizem para a concentração dos próprios cozinheiros e cozinheiras para as requeridas refeições. A cachorrada ficou ensandecida.

Um vizinho, disposto a dar um basta na estonteante situação, chamou Alessandra e Vinicius de lado para conversar. Falaram na calçada, em direção ao centro da pouca movimentada rua, porque não queriam que os cachorros ouvissem.

- Sei que o seu, o tal Rolf começou a rebelião.

- A rebelião?

- Não se façam de bobos. Ele era quieto, nem dávamos por sua presença e de mês para cá começou a invocar esses satânicos rituais que embriagam nossos descontados ouvidos. Estou fazendo projetos para o filho do prefeito e mais dois vereadores e não posso me concentrar com essa balbúrdia diariamente.

- O Rolf até que anda quieto. Não tem nos incomodado... não tão cedo.

- O problema é que esse sabujo de uma figa plantou a semente nas cabeças terroristas. Agora o bairro inteiro reivindica o direito a almoço e antes mesmo da gente! Vou denunciá-los por perturbações à ordem, percebam que para mim, arquiteto renomado, é fácil que colha assinaturas dos mais diversos para encurralar vocês. Queridos, vocês não têm escolhas, ouviram?!

- O que quer que façamos?

- Livrem-se do líder do bando. Isso vai acalmar a revolta dos demais.

Alessandra ficou sem chão enquanto Vinicius era a própria expressão reflexiva. Com o dedo indicador ainda em riste, o vizinho arquiteto renomado, amigo de prefeito e vereadores e juízes, desembargadores, com e sem vergonhas retirou-se. De costas para o casal, ele ainda falava sozinho mas isto porque era meio amalucado das ideias.

À noite, os cães se reuniram, até onde poderiam se reunir, lembrando episódios de passagens históricas em que presidiários se comunicavam com outras celas em códigos, principalmente os presos políticos em suas acomodações denominadas solitárias. Mas no caso o código dos cães eram os latidos que os donos entendiam nada, embora eles sim entendiam o legítimo português (brasileiro) praticado em oratória por seus donos.

- Ouvimos que você será removido, Rolf. É um ultimato.

- Como sabem? Estive dormindo boa parte do dia.

- Eles ignoram nossos ouvidos hipersensíveis - gabava-se o mesmo bull terrier da outra vez. Por ser o futuro assumidor da chapa, será idenficado aqui. Chamava-se Sam.

- Iremos dar uma trégua? - Perguntava uma poodle aqui não identificada, porque tanto faz a raça, naquela lei canina eram todos iguais.

- Não daremos. Mesmo que me custe a remoção dessa casa, senhoras e senhores, vocês devem continuar lutando por seus direitos. Peço somente que não percam a razão em atos descambados em violência, mas usem-a a seus favores se forem ameaçados, como provavelmente serei, conforme me dizem. Estarei preparado para o que der e vier.

- Nunca o esqueceremos, capitão.

- Você nos ensinou lições incríveis - reforçavam outras vozes caninas de casas adiante.

A verdade é que aquele coro, o falatório que avançava madrugada foi o estopim para que o arquiteto, com a cabeça pressionada pelo travesseiro, tentando ouvir seus próprios pensamentos, agir. No dia seguinte começou a protocolar o ato contrário ao sabujo Rolf, pela perturbação da ordem alheia. Nem três dias depois, foi de casa em casa, para o desconhecimento de Alessandra e Vinicius, e colheu assinaturas contrárias ao líder da gangue. Apenas a senhora dona da poodle não assinou, mas dizem que ela é meio surda mesmo. Os pais de pet na categoria gato assinaram todos. Eterna rivalidade.

Com um mandato em mãos, a famosa carrocinha dos desenhos apareceu naquela pacata rua e para os que presenciaram, foi a maior batalha campal de todo ano, em que, ao final dele, pelas épocas natalinas, os vizinhos comemoravam o fato de não haver roubos, assaltos e coisa pior naquela temporada. Mas a remoção de Rolf foi uma trabalheira poucas vezes vista para aqueles fiscais da prefeitura, que perderam quase hora inteira naquela humilde casa de chão concretado. Com muita relutância, Rolf subiu na carroceria do veículo e com um aceno de pata e longos uivos periclitantes, despediu-se de seus saudosos companheiros.

Os dias seguintes foram de tranquilidade, mas não demorou para Sam e seus capangas recomeçarem a exigência de comida o quanto mais cedo fosse possível. Entre as assinaturas caninas em um documento passado de boca em boca, de grade em grade, com a marca da pata carimbada de cada um, queriam o almoço antes dos humanos, mínimo de duas refeições diárias a todos os companheiros, água trocada diariamente e limpeza diária dos resíduos, que eles, coitados não tinham culpa ou opção melhor, diferente dos gatos e suas caixinhas de areia (que também precisam ser sempre higienizadas).

Sobre este último fato, Alessandra, em entrevista, garante que até dessas coletas escatológicas sente falta e tenta reaver na Justiça a guarda de seu querido Rolf, hoje já se encaminhando para uma idade respectivamente idosa entre os cães. Os colegas o aguardam de patas abertas para uma saraivada de uivos. A prática na luta pelos seus direitos passou de grade em grade e percorreu do bairro para o sentido centro da cidade. Vinicius já nem consegue se concentrar direito no trabalho, porque os cães centrais do município já lhe perturbam em função do processo iniciado, mal sabe ele, na sua própria casa.

- Mas que diabos esses cachorros estão querendo?! - Brada o Vinicius, repetitivo e infortunado enquanto produz bolinhas de papel que são sempre arremessadas contra sua lixeira no canto do escritório (ele nem sempre acerta).

As reuniões caninas, que são combinadas entre meia-noite e 1h30 da manhã, que também não é para abusar do sono dos seus donos, que ainda os alimentam apesar das represálias, as reuniões agora são para debater o futuro dos cães de rua, circundantes das casas em busca da sobra dos almoços dos gradeados. Sam é contrário a fornecer comida para esses ditos por ele vagabundos, mas Diva, uma jovem sem raça identificada, acolhida por um outro casal e que dá muito valor a seu novo lar, sabendo das dificuldades de ser órfã nas ruas, está disposta a aplicar um golpe no bull terrier. Ela quer se candidatar no próximo pleito. Os debates caninos, esses ainda vão longe. Enquanto isso, os "pais de pet" da cidade entendem cada vez menos o que está acontecendo.