30 de janeiro de 2020

motoristas

O motorista do aplicativo uber que me levou tinha mais ou menos a minha idade. O penteado com bastante precisão, raspado dos lados com um topete, uma elevação ao centro, moda das baladas sertanejas ou de outras festas. As bochechas salientes, os dentes frontais adiantados de maneira a quase escaparem da boca, tornando seu aspecto mais infantil. Os olhos idem, confirmavam, animaram-se com minhas puxadas de assunto.

O motorista do aplicativo uber da ida era gaúcho de Flores da Cunha, cidade à qual ele não sabia situar exatamente ao mapa ou indicar a região pertencente. Tentei auxiliá-lo com meus conhecimentos geográficos. A verdade é que havia ido embora cedo da região e há algum tempo se dedicava na função de transportar passageiros pelo meio tecnológico de chamada. Dissertamos sobre a qualidade de vida local e como o nosso estado era violento em demasia se feita a comparação com o roteiro turístico onde estávamos. Apesar disso, ele relatou experiências de assalto sofridas por ali mesmo. Ambas enquanto se deslocava a pé, sem o fiel companheiro das viagens atuais. O celular, entretanto, ficou pelo caminho nas jornadas que narrou-me. Também dividi meus casos como se estivéssemos a abrir potes e sacarmos sanduíches para o desfrute de um piquenique sobre um gramado e uma quadriculada toalha qualquer.

Perguntou se eu gostava de música eletrônica. Eu neguei e meio que entendi qual era a dele. Tocou Gorillaz - Feel Good Inc e gostamos. Ele aumentou o som e elogiou a música do projeto do ex-vocalista do Blur, Damon Albarn. Os motoristas por ali são bem agradáveis no sentido de instruir os turistas e demonstrarem que as opções de lazer noturno são bem variáveis de uma maneira eclética, um cardápio multiplicado às diferentes preferências.

Enquanto falava na variedade de pessoas possíveis e na ascensão total do número de argentinos na localidade, relatou ter aceito uma chamada de um passageiro do país islã ou algo assim. Refutei a hipótese pois islã não é um país. Ele disse que era tipo islã. Islã é a religião, conforme eu expliquei para ele. Nisso, resolvi chutar alguns nomes de países do Oriente Médio e predominância do islamismo na fé de suas populações. Era nenhum desses, ele negava ocultando os dentinhos que lhe davam um aspecto juvenil. Lá pelas tantas, pela associação do começo das palavras, perguntei se não era Israel. Isso! Era Israel. Justo o país que não tinha o islã em predominância, mas sim o judaísmo, na fundação após a segunda guerra mundial. Mancada dele. Espero que tenha aprendido essa.

Apesar dos deslizes, fez por merecer as cinco estrelas de avaliação para mantê-lo com uma nota bastante satisfatória, próxima do topo. Gremista, bastante atencioso, ele me deixou no local em que uma rápida subida na íngreme rua estreita me levava ao destino na praia.

Durante a noite, o motorista do aplicativo uber que me levou tinha mais ou menos a minha idade. O cabelo também curto, como era escassez de cabeludos nas localidades, muito em função dos argentinos terem totalmente abortado essa ideia nos últimos anos, passando de geração para geração dos nucas descobertas. Eu contrastando. Este tinha olhos espertos, mas tranquilidade para encarar o pesado trânsito em que mal nos movíamos. Isso resultou em um assunto bem desenvolvido. Ele gostava de falar, então usei a tática de deixá-lo em seguida assumir o controle da conversa.

Talvez tenha sido algo que eu disse sobre ostentação. Como as pessoas estão dependentes das redes sociais para tudo, mesmo nos momentos de aproveitar ao ar livre, diante de belas pessoas ou paisagens. Estamos para dentro do mundo virtual, fotos, legendas, fiscais da vida alheia, stalkers dos outros ou de nós mesmos. Obviamente não elevei tanto o papo a esse ponto, mas fiz sim a minha crítica a respeito e ele fisgou a pescaria.

Este era gaúcho de Porto Alegre e vivia ali há alguns anos. Pai médico e ele também com a vida sendo ganha a partir de hospitais, mas em outra função. Relatou a chegada dele ao paraíso, meses torrando a grana que tinha, podendo dispor do que de melhor tem os destinos de festas e rotas locais. Só teu Deus pode saber o que tanto pode ter aprontado, ainda mais relatando que não viera só e outros companheiros estavam pelo espaço, desbravando experiências e novidades. Só as portas cerradas das noites para o interior das entranhas no que as paredes viram e muitos certamente esqueceram. Outras coisas se lembra e não se esquece jamais.

Demoramos para sair rumo à estrada mais movimentada. Uma infinidade de carros por todos os lados. Vertigem aos desacostumados. Loucura aos sãos, sanidade aos loucos. Ele repetiu o trecho de que ali se encontrava diversão para todas as tribos e a diferença e os rótulos não combinavam muito. Falou por sua preferência de música nacional, do samba ao sertanejo, mas que assistiu a showzinhos de rock em outra noite e curtiu pra caramba. Falou que a tal da ostentação vinha de fora para ali e poderia morrer em alguma barreira. O povo local já estava acostumando, tinha seu próprio modo de vida. Uns se escondendo, outros se mostrando naturalmente, assim são as pessoas. Algumas aparecem demais e outras querem apenas fugir dos holofotes, agora eu quem concluo.

Escondido por trás dos vidros com insufilm, mãos aos volantes e identidade desconhecida. Ao longe, somente o brilho dos faróis na dificuldade para se identificar com qual carro ele dirigia naquela escuridão das noites, nosso motorista aqui falou e falou sobre sua vida. Contou sobre as experiências de chegar ali, achar que tinha certo domínio, que possuía alguma coisam seja conhecimento ou materiais, mas, do lado de fora dessas portas de vai-e-vem da chamada vida, estar sempre em descoberta e em constante aprendizado.

Viu gente muito mais endinheirada do que ele, nenhuma surpresa para mim ele se tocar disso, tamanha a ostentação que nos aparecia ao redor. Relatou, na parte mais surpreendente da conversa, sobre uma garota com quem saía e se dava bem, que os amigos dela tinham muita grana. Possivelmente ele se deparou com outras vertigens, com outras inseguranças, com outras incertezas, com os mesmos enjoos nos sintomas que conheço. Que um desses amigos dela, vejam só, ganhou um posto de gasolina para administrar de presente aos 18 anos. Você aí brigando contra os centavos do litro de derivado do petróleo que não para de subir em preço e o cabeça lá virando de adolescente para adolescente mais velho com o domínio de uma instituição que te vende isso e fatura e lucra e tem de tudo na vida, tão fácil e tão cedo. Influência dos pais, fator de herança, desmonte aos teorizadores das oportunidades iguais e da meritocracia.

Ele disse que, apesar de ter as coisas em casa (e aqui se constata que nada deveria faltar para ele), as constantes broncas da família impulsionaram ele a "trampar", como repetia, e buscar o seu próprio espaço e os seus próprios ganhos; isso o felicitava. O trabalho dele no hospital rendia o suficiente para dividir casa com amigos e ir levando; ter o carro e o carro gerar mais esses trocos nas corridas de uber, três ou quatro corridas por noite e cofrinho e caixa 2 para farrear quando bem entendesse. Um bom método de vida, assimilei. Boa sorte a ele.

As ostentações locais ele minimizou, daí o que considerei que era fácil para ele, na sua classe sempre média para alta deparando-se somente com a alta condição de vida. Moleza para ele estar à vontade nesse universo, redoma de vidro. Convivendo ou buscando conviver somente com a high society para aliviar a loucura cercadora, porque a pobreza ainda se esconde por esses becos e pelos vendedores ambulantes e caroneiros e pedintes oprimidos por olhares ou pelas mais severas forças resguardadoras policiais. Gente que nem uma corrida de uber conseguiria bancar. E celular com internet para isso, será? Só teriam acesso ao ônibus dos quase cinco reais para rodar terminais e tentar vender a arte ou convencer turistas de que um almoço pode sim ser necessário e imprescindível. Convencer de que a fome existe, não importa onde, que os estômagos vão roncar caso não comam. Parece incrível que isso aconteça ainda aqui, não é mesmo? Mas acontece.

Outra parte surpreendente foi o motorista revelar seu método de poupança, afirmando que tem em casa uma corrente de ouro, que, sempre que pode, vai aumentando sua massa com mais peças, valorizadas pelo mercado e pela eminente raridade do visado elemento da tabela periódica. Mantém ela trancada e quieta por lá e com ele carrega apenas uma correntinha ao pescoço. Discreta, pouco chamativa mesmo.

Mas novamente ocorria o deparar com a tal da ostentação capital. Mudam as capitais, algumas coisas mudam e outras não. Ao terminar minha viagem com o motorista da volta, entrei para os terminais e catei o ônibus indicado rumo ao centro. Ao conseguir uma boa vaga para ir sentado, o trajeto foi preenchido com as palavras de um outro condutor, que tinha mais ou menos a minha idade. Este não dirigia, andava de ônibus com um violão nas mãos e covers na cabeça para atrair a atenção de um disperso e variado público, entre as pessoas muitos idosos. No repertório dele estavam Djavan, Tim Maia e um bem recebido, requisitado e aplaudido poema do gaúcho alegretense Mário Quintana, que me tornou reflexivo o suficiente para quase chorar já sem o filtro de meus óculos escuros entre meus olhos e a janela do ônibus.

A menina ruiva impecavelmente bonita na poltrona à minha direita também não ajudava, inacessível de tantas formas nas nossas diferentes e imaginárias redomas de vidro. Uma Titi Müller em beleza com seus amplos fones de ouvido e um mundo a ser desbravado por outro alguém em outra oportunidade. Falou com uma senhora que talvez sua mãe, talvez sua tia, talvez sua amiga mais velha. Será que prestou atenção nas canções do cara do transporte coletivo, este trabalhador tão jovem e com duas filhas para sustentar?

Será que ela convive se esquivando dos às vezes diferentes às vezes iguais motoristas de uber? Será que a ela nada disso interessa? Só ela sabe o que passava dos seus grandes fones pretos para dentro da cabeça, por baixo dos balizados cabelos ruivos. Eu mal via seu rosto refletido pelos reflexos da noite nas janelas do ônibus. Havia as luzes da cidade no alto dos apartamentos ou nas propagandas fluorescentes pelo shopping; shopping onde aquela vez estivemos, eu e outra distante, e depois daquela vez eu soube da morbidez das pessoas que lá se suicidavam. E isso me deixava confuso como confusos já eram meus sentimentos antes desse acréscimo de informações sobre o ponto de encontro na praça dos consumos. Na avenida/estrada que seguíamos eram carros, carros e mais carros ao redor, acrescendo e fomentando o resplandecer cego daquelas luzes todas. Loucura aos sãos e sanidade aos loucos. Quais enquadrados ao primeiro caso e quais enquadrados ao segundo? Juntos e misturados no iluminódromo delirante.

Quando chegamos ao destino final da trajetória programada do ônibus, as mulheres à minha volta agarraram-se às sacolas e não perderam tempo refletindo sobre tudo aquilo. Zarparam porta afora. Enquanto isso, o músico estava satisfeito com os trocos recebidos naquela viagem, uma em quantas que ele fazia em único dia? Tinha as filhas para sustentar. Guardara o chapéu e se deslocava pelo terminal rumo ao próximo ônibus, sem dúvida, voz e violão em prontidão para buscar o ganha-pão daquela oportunidade. Mensagens positivas de suas frases para aproveitar o que temos. E eu saí daquilo tudo, próximo do destino final da rodoviária com tempo de sobra e falta de opções para encerrar o dia. Fiscalizei as redes sociais, que eu criticava mas não necessariamente desgrudava delas naquele retorno. Esperei partir o próximo ônibus dos mochileiros e sacoleiros à minha volta para finalmente deixar o terminal. Pedi uma ou outra informação e rodei a catraca para fora.

Caminhei cabisbaixo, mas não o bastante para evitar a visão: diante de mim estava o amigo que não consegui encontrar antes naquela noite, pois ambos ficamos presos no trânsito e no horário. O destino quis que nos víssemos antes de minha partida derradeira na rodoviária. Ele, que morava próximo àquele centro, reconheceu-me, nos reconhecemos e convidou-me para aproveitar aquela hora. Fomos à cerveja mais próxima. Era a ostentação que ali eu precisava. Dependente de outros transportes, era esse o combustível para eu ir além.

28 de janeiro de 2020

ainda não

Foi um erro grotesco de planejamento. Na hora poderia usar um termo mais amigável como equívoco, mas de fato foi um erro dos mais graves. Deixamos o local da hospedagem e rumamos para onde não sabíamos exatamente. O periódico ser de férias e a então não exigência de cumprir horários nos davam a liberdade de escolha a seguir relatada.

Apesar disso, minhas ideias não estavam sendo acatadas pelos demais ocupantes do carro, meus familiares. Meu pai ao volante com minha irmã como co-pilota à frente. Eu ia com minha mãe no banco de trás, em uma representação de família norte-americana, quase de propaganda de margarina, caso fôssemos um pouco de cada mais bonitos para os rígidos padrões televisivos. Mas éramos uma família em viagem, em deslocamento pelo Sul brasileiro. Voltar algumas cidades parecia tarefa fácil, mas a escassez de lugares para almoçar foi se tornando um verdadeiro tormento aos irritadiços passageiros.

Nunca aprendemos a ficar calados quando deveríamos. Nem o apresentador de tv e ex-jogador do Corinthians Neto pôde ajudar na hora. Ele que, com um vídeo inesperado, como a maioria dos seus que acabam viralizando na internet, havia comentado emocionado sobre a morte do astro do basquete, o nascido na Filadélfia, Kobe Bryant. Ele falava da relação entre os familiares e que o pior, nessa ocasião trágica de morte, era estarem brigados. Isso fazia um dia. Nem 24 horas, o vídeo eu divulguei aos demais familiares na noite passada. José Ferreira Neto concluía sua oratória com pena era da menina menor, sobrevivente por não estar no helicóptero. "Os vivos é que sofrem".

Nossas discussões ao longo da estrada se acentuaram, cada qual com sua versão, todos mais importados em falar do que ouvir aos outros. Juízos diferentes do que seria melhor para o almoço, se a quilometragem estava ok para ser atingida ou nós não daríamos conta de tamanha espera. Se precisavam ir ao banheiro ou suportariam mais tempo de rodovia até o inalcançável almoço. O que iniciava como um acoplado de sugestões se tornou incompreensível e descontrolado. Debate acalorado e sem precedentes. Vozes elevadas, desrespeito. A indecisão de meu pai ao volante, como costuma dizer que não pode dirigir e cuidar as placas todas, mas, quando fortemente questionado, afirmava que era ele quem estava ao comando. A contradição fez com que errasse uma ou outra rótula, com que entrasse em uma das saídas e só depois perguntasse a opinião dos outros. Isso foi o estopim do que desencadeou o maior desentendimento. Não rolou prosseguir assim. Atacamos o que de defeito havia nos outros, esporte em que sou medalhista, digno de vergonhoso pódio. Diga-me um defeito e observadoramente te darei três. Palavras machucam. Palavras contam muito, diferente do que alguns insistem em dizer que apenas gestos, pura baboseira. Palavras ficam ruminantes na mente, em inesquecível momento de como e por quem foram pronunciadas e com qual objetivo e a dúvida se foi somente um instante de cabeça quente ou uma verdade antes guardada a sete chaves e que termina por emergir como uma erupção vulcânica, imparável, aceleradamente devastadora no corroer o que está pelo caminho.

Descemos em uma opção, mas estava lotado de caminhões em frente ao restaurante. Não sem antes percorrer mais muitos quilômetros, descemos em outra opção, mas, apenas após o mau humor das batidas de portas, verificamos que era buffet livre em valores que pagaríamos nem em dois dias de buffet na balança, um prejuízo ao bom senso financeiro. Minha irmã foi a mais irritada e bateu rudemente a porta na volta, ameaçou ficar pela estrada. Discuti que ela queria se aparecer com tal ideia idiota. Todos ameaçamos não irmos mais nessas improvisadas viagens de férias, refutando as virtudes e escancarando os defeitos alheios. Só vendo o lado negativo desses tempos em família.

Após muito bate-boca, o silêncio reflexivo nos atingiu de forma até então inesperada. Isso sim parecia fora do extenuante planejamento. Cada qual dos ocupantes ocupados para dentro de suas mentes. Minha irmã esteve a fingir ou até conseguir o sono com a cabeça encostada ao duro banco da frente do carro. Meu pai com as mãos firmes ao volante, sem querer mais opiniões externas, mas sem dúvida estava pensando algo além das formas de ultrapassar e manter-se na estrada rumo a algum lugar para o ainda inconcebível almoço. Minha mãe talvez novamente era quem estava na maior sintonia com minhas ideias, embora nessas horas nós ajamos diferentes. Ela muito querendo impor suas opiniões e eu tentando o equilíbrio, mas me descontrolando quando meu apaziguar e minhas soluções - as que considero bem fundadas - não resolvem. Respiro para dentro de minha mente, o oceano que estava em maremoto. A mente produtora e reprodutora de confusões e agressividades erigidas.

Enquanto meu pai manobrava um de seus retornos, engata ré, desengata ré nessas paradas inúteis, pensei que tamanha confusão dentro de um carro em meio a um trânsito tão agressivo e a se depender dos motoristas de fora, tudo isso formava uma receita mortificante. Em alguns momentos anteriores da viagem, me deparava com a presença apressada e ansiosa da tal da morte, a encapuzada constante. Isso seja pela tia alcoólatra ou pelo tio diabético que sofre já a cegueira de um dos olhos e luta em saídas do interior rumo à capital para combater a falta de visão do globo ocular que lhe resta. A morte se desenha sempre sinuosa, é como algumas das estradas que enfrentamos. Estradas que não sabemos enfrentar. Somos despreparados em agressividade contra nossos habituais escudos, que nos protegem afetiva e financeiramente no dia a dia. Somos estúpidos com eles. Pecado esse que qualquer religião ou mesmo quem tenha religião nenhuma está para julgar. É a autossabotagem - palavra da moda - humana contra si mesmo. É a bituca de cigarro que polui em dezenas de milhares de unidades os litorais por Brasil e mundo. É o uso indevido da água. É esquecer o protetor solar. É esquecer de nossos protetores. É esquecer do vídeo do ex-jogador corintiano José Ferreira Neto, natural da paulista Santo Antônio da Posse, apresentador da rede Bandeirantes.

Não estamos de posse, não entendemos. Nem a posse da verdade definitiva, nem a posse propositiva sobre a opinião do outro. Não estamos. Ao findar esta viagem, tento esquecer como as minhas ideias foram negadas, negligenciadas nos acontecimentos entre aportar aqui ou ali, almoçar lá ou acolá, fazer ou não fazer algo por falta do tempo que nos escorre entre os dedos, tal qual a música Depois de Nós, do acústico 2004 dos Engenheiros do Hawaii. Lá se vão 16 anos deste álbum. Lá se vai outro dia deste dia que aqui conto.

Naquele silêncio reflexivo com um gosto mortuário na boca, traço uma análise do que cada um de nós podia esperar. Pensei que não seríamos, nenhum de nós, as mais lamentáveis vítimas de um acidente, isso perante os nossos objetivos restantes nessa passagem - chamada vida.

Meu pai que perde irmãos, minha mãe que só tem uma irmã e mãe a dela - minha avó - que já está próxima de partir em função da idade avançada. Os quase 40 anos de casados deles, meus pais, uma marca impressionante. Trata-se aqui de pessoas muito úteis nos afazeres uma com a outra, que se completam de trazer a comida a quem cozinha, de quem pega no volante a quem lava as roupas, de quem espera o fechamento da refeição à mesa para atracar o barco da louça pelas cubas do refeitório. Eles se completam e, ao que parece, estão com missões parcialmente concluídas por aqui. Senhores avanços e aprendizados em suas personalidades, apesar de muito se comportarem como meras crianças em muitas das vezes. Dos humores às partes sérias. Como seriedade e rigidez eram os tons naquele funesto momento.

Minha irmã, assim como eu, nunca se envergonhava em recitar seus descontentamentos com a vida e teria nenhum problema em sepultá-la logo ali que fosse. Voltar para nossa cidadezinha cada vez mais detestável era uma ideia que a ela mortificava em tese. Uma verdadeira droga depreciativa pelos quilômetros que nos separavam do retorno às avenidas com buracos, casas antigas e pórticos do que não queríamos ler. Ela artista, ilustradora, de capacidades intelectuais das mais elevadas para uma média nacional e mundial, ela que pouco interesse tinha em nutrir maiores participações em nosso belo quadro social, como nos agraciaria em versos o músico Raul dos Seixas.

Permanecia eu entre essas pessoas que não seriam a maior tragédia se irem dessa forma, unidas na desunião que nos separava mentalmente, cada um no sub-mundo de suas turvas e submergidas ideias, uma forma irônica de despedida pra quem convive, planeja e des-planeja tudo em conjunto. De minha parte, para que juntasse os nossos cacos como restos comuns, nada me agravava naquele momento pensar em partida definitiva. Eu com razoáveis escritos, uns publicados, uns manuais, uns por pouco visível e desconhecido blog, um ano de publicações em jornal impresso, o duplicar e o rumo a triplicar a centena de jogos de futebol transmitido pelas ondas do rádio na amplitude modulada ou na internet. O poder que aos jovens fúnebres é concedido por meio de homenagens e interesses pelas peças que até ali puderam ser construídas, pelo que era prodígio e esgotou-se e acabou-se. Uma das maneiras de manter-me fora desses pensamentos mais negativos, do fim da linha, do fim da estrada, da luz do fim do túnel, que pode ser muito bem um caminhão na nossa contramão, 22,5 metros, veículo longo, placa de aviso na traseira, caveira da morte pendurada no espelho retrovisor central, uma das maneiras é pensar na fonte longe ainda abundante do desenvolvimento das mais estapafúrdias, maleáveis, irretocáveis ou irreconhecidas ideias, o brotamento do inédito, o desenvolver do excêntrico, o colorido das novas perspectivas surgidas dos confins do inexplicável menu da mente.

Assim, torci para nos mantermos sempre ao lado direito da pista que avançávamos e para não nos chocarmos com a contramão, com algum caminhão ou mesmo que fosse um veículo leve acelerado, daqueles que nos cortavam o som nas rápidas passagens à nossa esquerda. Torci para a iluminação não estar somente nos braços de meu compenetrado pai, mas nas mãos firmes de tantos e tantas heterogêneos motoristas, nossos desconhecidos pelas estradas. Torci para o asfalto nos conduzir a outros lugares, para, em algum lugar ao Sul, o almoço daquela terça-feira esquisita. Me deparava precisamente na imprecisão daquele gosto de 'quero mais nada', mas de 'quero mais', de logo adiante, de fundo de poço mas luz por cima. Aquele gosto de luz do sol para clarear pensamentos e não de caminhões na contramão nos trevosos túneis. No fundo daquele poço, que não é o definitivo rebaixamento dos poços por ora escavados, só havia o caminho de escalar para a ribanceira do sequenciar. Não era nosso fim de estrada.

21 de janeiro de 2020

horas de ócio

Necessitava a operação de transferência bancária e as agências, as contas eram de bancos diferentes. Por sorte ou não, o capitalismo agia ali com as concorrências frente a frente, como muito ocorre em zonas gastronômicas ou boêmias. Para uma economia de 10 reais, supostos 10 reais pelos cálculos ligeiros, nas transações, preferi atravessar a movimentada avenida de entrada da cidade para acessar as entranhas da concorrência vermelha e branca. Notemos aqui que não havia uma mísera apagada faixa de pedestre para os tantos idosos que para ali se dirigiam nesse ir e vir, às vezes estacionando de um lado da via e tendo que se deslocar ao outro lado. Nem uma esquecida pelo tempo e removida pela durabilidade ineficaz das tintas faixa de pedestre. Para inaugurar as frustrações por vir.

A preocupação com os itens metálicos dessa vez não se fez obrigatória. Entretanto, havia deixado o celular e os óculos escuros no porta-luvas do carro como precaução a esse momento desagradável, a separação dos imprescindíveis objetos por alguns segundos da eternidade do atravessar da porta-giratória. Melhor ficar minutos longe deles do que aqueles impassáveis segundos de tensão mediante o olhar implacável do segurança do banco, vestido em trajes policiais estrangeiros. Um azul mais para os Estados Unidos com calças também azuis, mas mais escuras. Um colete à prova de balas e um rádio comunicador sabe-se lá com quem das ordens superiores, inferiores somente a Deus, que está acima de tudo, assim como o país na vigência governamental. Mas o uniforme, dentre outras coisas, são, sim, subordinadas aos United States of America.

O totem de senhas é o nervosismo impossível de ser driblado, após a travessia graciosa pela porta-giratória da agência. Você continua como o protagonista, para os olhos dos entediados clientes esperantes e sedentos por novidades, por exemplo, o número da ficha que retiraram. Eles ficam como animais enclausurados a mirar sua destreza de operar a máquina digital e sacar o papelzinho comprovante para a indeterminada hora que for chamado. Logo você será um deles, não esquente.

Lembrei-me da ocasião em que um sujeito se revoltou com a porta-giratória e o detector de metais e foi sacando o que tinha dos bolsos e sabe-se lá mais onde, até que resolveu sacar sua calça jeans para provar que queria apenas acessar o banco para seguir sua vida. Na hora nem me dei por conta do exagero do episódio, passado há anos, mas que felizmente jamais se repetiu. Não a esse tom.

Dessa vez, em seguida ao me dirigir ao lugar de espera que, em uma rápida busca em olhar teleférico panorâmico pela sala, considerei mais agradável e apropriado, ocorreu outra ocasião dessas, mas em um episódio evidentemente mais brando, ainda bem. Antes é necessário frisar que a escolha pela poltrona lá ao canto foi equivocada, pois haviam limpado o banheiro e me remeteram às limpezas feitas por meu pai em casa, quando exagerava consideravelmente na quantidade dos produtos de limpeza e faziam o odor do banheiro limpo se sobressair ao anterior sujo. Detalhes que muito afetaram minhas recordações olfativas, tanto em casa quanto neste infeliz e transitório episódio bancário.

Enfim, dessa vez ninguém cometeu atentado ao pudor ficando apenas de roupas íntimas perante os demais, mas um cabeludo parcialmente desarrumado das vestes aos capilares, entrou meio perdido, provavelmente, assim como eu, sem ser cliente daquela instituição; se deparou com muita má vontade diante do totem de senhas, resmungou balbucios com o segurança e um dos poucos atendentes, o mais próximo, e saiu com mais impropérios. "Vou depositar é porra nenhuma" e provavelmente mandou alguma abstração divina se fuder ao sair da agência pela mesma porta-giratória que há segundos o havia introduzido para aquelas entranhas exageradamente limpas e polidas e regradas. Isso mesmo, inclusive com o cheiro permanente e nauseante dos produtos de limpeza com as melhores falsidades cítricas do mercado alvejante.

Observei de minha poltrona (que senhor elogio chamar aquelas cadeiras parcialmente desconfortáveis de poltronas!) o ritmo crescente e exponencial do número de carecas à minha frente. Nesse fenômeno, os velados assuntos predominantes nas esquerdas brasileiras: o machismo e o racismo. Havia, sim, uma funcionária ali - ao passo que depois descobri mais duas no corredor interno para meu depósito - e havia somente uma cliente senhora de meia idade. Depois brotaram outras madames de idades avantajadas, mas o pleno predomínio era de homens. Homens velhos vítimas mais cedo ou mais tarde da diaba calvície que neles fazia moradia em processo erosivo. Me senti jovem, embora agora relatando saiba que logo serei eu ali, assim como me tornei uma das bestas a observar como os demais usavam o maldito totem de senhas. Aquele totem que, não obstante sua utilização assustadora para nos permitir processos que nem bem entendemos, ainda por cima vibrava, se balançava ao ser tateado, como uma criatura debochante e apenas cravada ao chão, mas não totalmente fixa. Se assemelhava assim em algo como um joão bobo ou bonecão de posto de gasolina. Fiquei a mirar e porque não torcendo para alguém virá-lo em um desastre constrangedor a todo mundo, dos funcionários aos clientes, entre sorrisos amarelos, voluntários para reerguê-lo e chamem o gerente.

O gerente devia estar com os minutos contados para cair fora dali, porque o horário avançava e a tarde logo se encaminharia ao final dos atendimentos. E nada de mim, um dos últimos ali da turma da minha "primeira chamada". Agora a absoluta maioria das carecas depositadas à minha frente, nos diferentes formatos de nucas, a maioria grisalhando-se, era dos que chegaram mais tarde do que eu ao banco. Umas poucas senhoras em seus vestidinhos também marcavam presença, embora em minoria. Uma delas vestindo-se suavemente em traje para o elevado bafo de verão que fazia do lado oposto ao uso do ar condicionado, muito se assemelhava com uma camisola, um pijaminha azul.

Um senhor de chapéu foi atendido por um funcionário mais velho do que o anterior, que era um moreno de aspecto indiano. O velho de chapéu e o atendente se cumprimentaram efusivamente, repetindo saudações de como era prazeroso e satisfatório se verem de novo. Era enojador como uma troca, um cambio financeiro entre o funcionário efetivado e do, quem sabe, proprietário rural, ou aposentado em casarão em bairro escondido às margens do arroio? Enfim, isso, essa relação os fazia muito bem. Era prazeroso e satisfatório, como faziam questão de recordar e transmitir a todo àquele ambiente estapafúrdio. Com cheiro de alvejante sanitário.

Após essas calorosas saudações, baixaram o tom da voz para falar do que realmente o levava até a agência e daí passaram a não querer que as demais pessoas ouvissem. Sensatos, apropriados, diriam. Deixei-os para além da existência e passei a me concentrar a outros grupos um tanto quanto irritantes. Os seguranças que nada faziam paravam a conversar com um ou outro uniformizado que adentrara o recinto. Sorrisos e tonterias que contrastavam com a angústia da impaciente espera dos portados nas "poltronas".

Esperava mais algum aguardante rebentar-se assim como o do "vou depositar porra nenhuma". Algo que tornasse toda aquela inação em um formato mais cômico. Talvez só para maldosamente estragar o sorriso debochado dos uniformizados. Aqueles que adjacentes ao vestíbulo de nossas dores estavam externos, alheios, nem aí aos nossos inquietantes sofrimentos. Não fosse o ar condicionado estaríamos subindo nas cadeiras como chimpanzés ou talvez mesmo arremessando-as loucamente.

O tempo se arrastava em gestos de impaciência, que ilustravam melhor do que qualquer caminhar vagaroso dos cíclicos ponteiros. Um dos carecas coçava sua parte superior desprovida de pelos. Uma senhora com um lenço contra a testa para enxugar alguma possível teimosa gota de suor, apesar da refrigeração ambiental ajustada. Uma ou outra síndrome de pernas inquietas. Um pé que calçava e se descalçava para evitar cãibras. Um dos seguranças, afastado ao animado papo de colegas, mudando a posição de onde dirigia a visão, cruzando e descruzando o par de braços. Quem levou o celular como fiel companheiro, olhando alguma novidade na tela de desbloqueio, talvez nem desbloqueando, apenas para conferir as horas ou alguma notificação. Outro, mais antigo, da ampla velha guarda presente, estendendo elegantemente o braço esquerdo e pousando olhar no pulso coberto por um relógio ajustado ao seu manequim. Como um pássaro que virava e desvirava os olhos, eu estava ali, por vezes querendo atrair alguma atenção. Espreguiçar sem abrir completamente a envergadura dos braços. Pequeno bocejo que acompanha o ato. Conferir e des-conferir a senha, 8004, enquanto outras unidades acompanhadas de zeros faziam a transição na tela em led.

Quando finalmente fui chamado, não pude deixar de notar como os olhares voltavam-se a mim. Como na vez em que defendi tiros livres em conquista no futsal municipal. Como na vez em que passei em vestibular e, na chamada oral, desci arquibancadas rumo às mesas centrais para prestar a inscrição na Universidade. Foi como nesses vezes, mas o meu prêmio era ser atendido, economizar 10 reais, pelo ligeiro cálculo, em relação à transação direta por caixa eletrônico. Esses 10 reais economizados me custaram hora descrita de abismante espera.

Ali estava eu conferindo pela última vez aquele pedaço de papel cuspido automaticamente pelo velho totem eletrônico, que ninguém derrubou, para minha pena. Era o 8004. Oito mil e quatro. Sim, era. Levantei-me. Até meio desengonçado nessas horas, sempre quero ir o mais rápido possível, para evitar invejosos de minha obstinada e chegada e derradeira hora. Como nas inúmeras vezes em que é minha vez no banheiro de festas ou bares, quando muitos ébrios estão quase fazendo o que estão loucos para fazer. Caminhei trocando as pernas, quase desaprendido e desgarrado de como se deve caminhar, tamanha a milenar demora que me separava de meu santo atendimento. O oásis, a conversa com a devota monja que me atendeu rapidamente. Durou menos de dois minutos o efetuar do depósito, sem a mínima dúvida. Estava pago o frete que eu devia na loja virtual. Quase dois meses depois. Quase duas horas depois do início dessa odisseia, do atravessar da movimentada avenida, que nada tem de faixa de pedestre diante dos movimentados bancos, em que pessoas vão umas quase diariamente, outros, pelas idades, pelos chapéus, pelas mãos enrugadas, pela quantidade de remédios que tomam, pelos nomes em desuso atualmente, que são motivo de deboche pelos jovens, pelas carecas, sim, as carecas que se multiplicavam, esses deviam ser mais respeitados. Uma faixa de pedestre me bastava para retornar ao meu carro e cair fora dali. Do outro lado da avenida, uma mísera faixa, pintura em branco naquele acromático asfalto. Nem precisava de uma banda tocando instrumentos de sopro, clarinetes e saxofones e trambones, bastaria uma faixa de pedestre sob meus desgastados sapatos; nem necessitava ser um tapete vermelho digno das passarelas mais fotografadas e replicadas em portais em todo o planeta, nada disso. Nada disso.

Uma faixa de pedestres após toda essa inércia e obviamente eu não pararia outra hora, quase duas, para descrever o aprisionamento pontual e diário dos bancos pelo país.

Amadrugada

A madrugada agrada as prostitutas, poetas e taxistas. Na solidão a dois, na solidão completa ou nos fins de festa.

A madrugada sagrada ao sono
Para ocupação do trono
Que não temos na vida real
A madrugada de quem tem insônia
Que ainda dá audiência
E ocupa as linhas telefônicas
A madrugada da cidade que não para
Fluxo nas ruas e estradas
Grafiteiros e seguidores de Che Guevara

A madrugada quando o sol se escondeu
Mas os postes mantém a rua iluminada
Para segurança de quem não se escondeu
Dentro do apartamento no abrigo protegido
Por uma grande grade galvanizada


registros retrô
versos antigos

quase tudo imperfeito

A poesia
Rima com quase tudo imperfeito
Eu já sabia
Eu só aceito

o abraço ao mundo

abro meu abraço
e teus braços não tenho
teorizam que eu queria o mundo
não só isso refuto como informo
que quanto a isso não faltou empenho

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abro meu abraço
e não tenho o teu dorso
teorizam que eu queria o mundo
não só isso refuto como informo
que quanto a isso não faltou esforço

18 de janeiro de 2020

pegasus supremo

pelas obscuridades da noite
vieste, foste e tornas-te minha maior punhalada
pegasus supremo, imaculada figura
idolatrada por minha mente
sorridente ao hall horripilante, desastroso
tenebroso e deprimente

pelas obscuridades da noite
teu semblante se resvala
confuso de ser identificado
mas minha voz que não cala
é fácil e nítida e principia
o fim a ser declamado

pelas obscuridades da noite
a claridade é um raio do raio
da vontade, que corta o céu
em um clarão monumental
fantasmagórico em uma arquitetura
imponentemente gótica
caótica na fluidez dos sentimentos

-------------------------------------------------------

o tormento
com base de uma tormenta
o torquato
neto do neto, geracional
o cimento
com base se assenta
o assentamento
de quem procura pela terra
quer a terra, sabe onde está
a terra
sabe que gira e não é plana
não se engana
sabe quem são
os donos do orvalho
que olham de lado
e gritam de cima
para baixo
filósofos do ralo
ralo conhecimento
para o ralo seus
pensamentos
o lavo e sai o superficial
sobra nada

caixa de notas mentais

desistir é mais fácil, mas mais sem graça

(dependendo nem é opção)

sombras de dúvidas

as dúvidas são sombras
que permitem ver filetes de sol
mas continuam a produzir sombras

como um mar que produz ondas
sem querê-las
com quimeras
que se escondem por onde
sei que tu sondas

as dúvidas são sombras
que permitem o girar do farol
que ilumina a produzir sombras

como um mosteiro que produz monges
onde? logo aqui ou lá longe
no fim do arco-íris
ou no início da linha de um bonde
onde indianas, indiana jones
sherlock holmes, agatha christie
ou james bond se escondem

as dúvidas são sombras
necessárias às faces do mistério
os clérigos gostam chamá-la de fé
onde será o café da manhã
quando se passa o adultério
entusiasta do homo homérico
sem sorrir, sem ficar sério
intercalando-se, alternância
finda-te ao que funde-se e funda-se
o elegante mistério

17 de janeiro de 2020

o céu de Galeano

a utopia de Galeano é distante
minha miopia desgastante
que só financia desgaste
nessa gestante

a utopia de Galeano é distante
minha miopia desgastante
caminho pelas trevas
nessa minerva fria e equidistante

caminho aos caminhos
e não chego
não enxergo
mais do que enxergava antes

mas cedo, de ceder
que o céu de Galeano
tem mais poesia
que o de Ícaro e o de Galileu

rosas do povo II

a rosa é só uma rosa
chorosa
pendular do existir das estações
encontra abrigo aqui
neste poema
serão dignos meus ditos
para essa natureza efêmera?

o povo é tanto, o povo
choroso
pendular do existir nas estações
encontra amigo aqui
nesta cerveja
será digno o lúpulo
para essa embriaguez serena?

a rosa é só uma rosa
aquosa
a solução, uma benção
bebível pelas raízes
invisíveis sob a terra
mantém a cor maravilhosa
que embriaga os olhos
de quem olha ela

o povo é tanto, o povo
velho e novo
milenar, recém-nascido
espetacular, miraculoso, metido
raízes, roots, nativo
diurno e notívago
que embriaga os olhos
em deslocantes zumbidos

rosas do povo

o povo ansioso espera
uma singela composição cor de rosa
que bonito o vestido da baiana
rosa do povo!
um sanduíche de tomate
um copo de suco
rosa do povo!
a gravidade tomba o abacate
rosa do povo!
a esquina une as placas
rosa do povo!
o movimento circular do farol
rosa do povo!
o gato sonha e mexe as patas
rosa do povo!
a chaleira cachimba a água fervente
é a rosa do povo!
amuleto da sorte no espelho retrovisor
rosa do povo!
o boa tarde que é só do porteiro e do locutor
rosa do povo!
as mãos do pescador limpando as entranhas
rosa do povo!
as boas vindas estão apenas no tapete
rosa do povo!
a folhagem da parreira é o coador da chuva
rosa do povo!
tapetes persas e o povo se dispersa ao fim do cinema
rosa do povo!

rostos se misturam, maximizam e miniaturam
nas lembranças dessa terra, megera miscelânea
sobre e subcutânea que floresce
a rosa do povo

tempo hall

o tempo anda
o tempo ainda
a demanda
vem, te brinda
o tempo umbanda
o galo cinza
o tempo manda
tu visualiza
e não responde
o tempo onde
o tempo urge
em toda parte
onde te esconde
no estandarte
o tempo canta
o público levanta
ou não
tanto faz
ninguém te manda
levantar mais
para o tempo
suas absorções
e seus absolvimentos
tem tempo
há tempo
não atendo
os lamentos
do tempo
ao microfone
o tempo some
e se devora
e se devolve
e te envolve
e se demora
o tempo
tão verbal
quanto nominal-
mente o tempo
daqui pra frente
alguém,
não lembro quem
te disse:
é diferente

tie-break

Nadal versus Federer
Chuva versus sol
Tempo que passa
Em alternância
Não se fixa
Ora espanhol
Ora suíço
Nem por isso guardo
o guarda-chuva
ou o guarda-sol

12 de janeiro de 2020

alguém espera

em Pelotas, minha cidade, um trapiche fechado para visitação na praia do Laranjal, por falta de manutenção e reparos e amparos, deu luz a uma foto de por de sol que ganhou destacada premiação internacional.

um amontoado de estatuetas de pedra em uma espécie de depósito de esculturas e enfeites exposto aos transeuntes em um dos finais da avenida mais movimentada do centro da cidade, deu origem à capa de álbum de um dos, se não for o, artista local mais importante e influente Brasil e América Latina adiante.

muitas vezes, de onde não se espera, alguém espera e consegue.

o que temos coragem de jogar fora nessa vida sem uma outra olhada?

com certeza, a partir dessa pergunta, encontraremos respostas diferentes entre a minha (que não sei, mas poderia formular ou tentar formular), a tua, a do terceiro, a da quarta e assim sucessivamente.

fotografia, assim como muitas das questões da vida, são questões de angulações e posicionamentos. ou a hora certa, quando o sol na descendente se encaixar entre os corrimãos da travessia sobre as águas.

boa semana.

ao brinde

entre as fraquezas e os fracassos
fazem-se os laços
entre as riquezas e promessas
e pobrezas de pobres espantalhos
entre a certeza de que se puderem
recorrerão aos atalhos
não importando por quantos
percalços de passar por cima
[dos outros]
e a porta elevada e sublime
rumo ao cadafalso
por onde sobem prefeitos, deputados
suspeitos, inventos de bálsamos
degraus da política liberal
que os alça
em bolsos fundos, dinheiros
imundos nos sulcos das calças
oradores e decoradores
roedores e impostores
do coro parlamentar
elementar, meu excelentíssimo
vírgulas e vírgulas no púlpito
meu caro solícito
pronomes de tratamento
entre nós e a eles
excremento
do primeiro ao último
momento, no intento, entretanto
não é para tanto, veja bem
nos pormenores desde acá
ao acolá mais além
por este ponto de vista
que se visita com a ponta da caneta
no contrato e que essa cláusula
aqui, esta, sim, seja revista
façamos mais uma emenda, que remenda
e permita um grão a mais em cada merenda
um metro a mais no vestido de seda
uma unidade a mais na subida da renda
e um zero a mais nos hectares de nossa
fazenda
segue tua senda
querido, honorário, irmão, chapa
cuida-te que os demais são vigários
são, são, sim, todos larápios
levam consigo até o que está por baixo
das lápides, pedintes de tantos itens
fazem até sumário
com essa gama de requintes
acrescem de tudo e nada de serem
contribuintes
mundo pagão, fila do pão
e outros limites
ordem no horário que logo
formemos uma nova constituinte
tintim - ao brinde

fraco hoje

estou fraco hoje para assuntar
e besuntar nossas conversas
estou fraco hoje para escutar
e prestar atenção em suas palestras
estou fraco hoje, galho que se parte
fraco hoje, qualquer adversário
é Napoleão Bonaparte
fraco hoje, incapaz de minhas artes
nem com as melhores telas e pincéis
nem com o melhor pagamento em libras
dólares, cruzeiros e réis
estou fraco hoje, já disse
uma duas três quatro seis
vezes que estou fraco como hoje
propenso ao nada se o nada existisse
e me fosse opção
disposto para nada
se nada fosse uma religião
a verdade é que estou fraco hoje
mais do que todos os homens
e mulheres e seres
silvestres, agrestes, rupestres
ruptura nos meus dias
melancolia vazia que preenche
carrega e descarrega e depois carrega
o pente
me invade pelo coldre e me leva
ao nada que me leva a estar
fraco e maltrapilho hoje
pilho nada, tudo é
empecilho
aqui diante de meus cílios
nada posso para ajudar aos sírios
nada pude pós um voto em Ciro
nada que sirva de pretexto
a executar-se um martírio
e para quê?
se o nada que governa
essa paciência suave e terna
que veste-me como um terno
no dia de hoje faz-se eterno
me põe a dormir, hiberno
libidinoso, nem isso, quieto
hoje? hoje estou fraco, veto
nada de ato, nada certo
o certo é que estou fraco hoje
zigoto logo mais feto
da vontade que vai raiar amanhã
manta adiposa, cobertura, lã
para os dias mais invernos
água, cristalina, capa fina
suavidade de maçã
para os dias mais que verões
espada, última saída à cilada
da cova dos leões
vontade vagarosa em aparecer
como o brotar de uma rosa
vem crescer, vem-me ser
vem vencer-me em ser
vem me ver
que horários podes
amanhã?


inspirado ao ler Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade

11 de janeiro de 2020

e mais nada

despenca a bateria de meu celular
vai voltar amanhã quando eu carregar
estará carregada e mais nada
a noite obscurece tudo
e logo a madrugada trará a manhã
repito: são ciclos e mais nada
titãs com ou sem paulo miklos
trânsito em transe
calmo ou com seus picos
palavras se vão sem alguém copiar
o que eu havia dito
mas as situações voltarão
claro que sim
uns ousam que não
repito: são ciclos e mais nada

o inverno e a lufada de ar frio
o borrifar das nuvens
o correr dos rios
tu não sei se vens
apostaria que sim
uns ousam que não
repito: são ciclos e mais nada

o êxodo que é rural
canal do século passado
gente em cana em canal televisionado
o carnaval canibal
e os herbívoros da marijuana
a espera compulsória dos finais
de semana
a alegria todavia não sei
quem vendia
naquela esquina, beco ou
quitanda 
tu vens a mim
será que sim
será que não
espirro em ebulição
aaaa
aaaa
atchim


e mais nada

perfil

Ela havia terminado com ele. As fotos na internet eram sempre deles juntos. Eram poucas fotos, é bem verdade, mas as existentes eram em dupla. O casal em aniversários, um ou outro casamento, em passeios dominicais ou até antes das atividades que praticavam clandestinamente pela cidade. Apesar dela ter tomado a iniciativa, sentiu o duro golpe da separação. Algum fio de cabelo ou perfume em roupa de inverno sempre ficam de heranças remotas.

Mesmo algum escrito ou principalmente nas redes sociais, essas metamorfoses ambulatórias e compulsivas. Tentou apagar o máximo possível. Como se fosse retroceder os passos e passasse um delicado pincel ou escovinha sobre as pegadas desenhadas. Serviço demorado, que no computador soa mais rápido em um alerta de mensagem se deseja mesmo excluir e mandos para a cada vez mais abarrotada lixeira. Mentalmente ainda estava distante de se livrar, mas os traços eram apagados para os demais por meio dos cliques.

Só que havia a dúvida de qual foto repor, ao menos no perfil principal de troca de mensagens, entre amigos e quem sabe alguma futura criatura para desenvolverem-se a dois. Ela não sabia qual colocar. Namorou as fotos dela própria em vestidos negros ou vermelhos. Arrumações, maquiagens e penteados que não eram habituais. Sentiu tudo muito aquém ou além do que ela realmente era, flor complexa. Mesmo os mais estudiosos não nomeariam tantos detalhes físicos e psicológicos daquela espécie. Não sentia confiança de se separar oficialmente, no que se referia àquelas imagens. Não se via só muito bem nas fotos e permaneceu ainda mais solitária não tendo sequer sua imagem de solteira resgatada. Tentou se fotografar com webcam, celular, câmera digital e nada satisfazia. Nem ângulos, nem sorrisos, nem roupas, nem cabelo para um lado, nem para o outro.

Resolveu deixar a foto para o outro dia. E do dia seguinte adiava para o posterior. E do posterior para mais adiante. E assim sucessivamente. Foi deixando passar e logo não notou diferença, era ela ali em carne e osso a falar, mandar mensagens, nada havia mudado. As amigas e amigos haviam, sim estranhado, sentiam falta de algo mais humano a conversar do outro lado da tela. Afinal, aquela ausência de foto representava uma figura neutra e automática da rede social. Um contorno de semblante, sem penteado, sem cabelos específicos, sem diretrizes de nariz e olhos, sem a boca, sem pintas no rosto, sem um tamanho de orelhas, sem o abrir de um sorriso ou a expressão pensativa de uma testa franzida.

Aquela era ela, ao menos nas redes. Um perfil inexpressivo, ainda alimentando sonhos, pensamentos, opiniões, criando piadas, respondendo de bom ou mau humor, a variar da noite para as cansativas manhãs, mas ela não tinha face por ali. Foi de uma atividade notívaga bem humorada que desligou o notebook e deitou-se, escorando delicadamente a cabeça ao travesseiro. Virou-se de lado e encontrou o mundo irreal dos sonhos. Ao acordar, repetiu os hábitos e foi ao banheiro onde se deparou com o espelho estranhando-o. Podia ser por recém ter acordado, mas achou seu cabelo mais reduzido em relação ao jeito que ela gostava. Quando foi maquiar-se, sentiu o nariz menor, apalpou-o e, como fazia em relação a ausência de foto, deixou para lá.

No café com as amigas, elas quase não a viram chegar. A moça logo notou que elas haviam notado algo também. Mas todas deixaram para lá. Ao menos ali. Se fofocaram depois, ela, obviamente, não ficaria sabendo. Naquela noite, ao finalizar as conversas nas redes, outra vez olhou para sua foto de perfil vazia e inexistente. Talvez amanhã preencheria.

Acordou no outro dia com calor. E foi a única coisa que sentia. Nem sono, nem fome. Estranhou. Foi ao espelho para os hábitos de higiene, como escovar os dentes. Pensou em prender o cabelo para encarar o dia caliente, mas ao tentar segurá-lo para tal armação, notou que o cabelo estava muito curto. Estaria perdendo? Seria fruto do estresse da separação? Do trabalho, dos últimos dias? Do que seria? Foi até o travesseiro e nenhum sinal. De repente estava alucinando, estava imaginando coisas, talvez com a terapeuta podia ver o que seria melhor para reorganizar as ideias.

A consulta era mesmo naquele dia, pensou com alívio. Se dirigiu para lá e aguardou por alguns minutos na salinha de espera até o seu horário. Viu o seu rosto de relance no retrovisor enquanto transitava para lá e, na sala, conferiu de relance no galão de água que refletia sua expressão cada vez mais atônita e preocupada no reflexo trêmulo do plástico e do que ela beberia. Não se reconhecia, de fato.

A psicóloga chamou por seu nome e a própria mulher, poço de sensatez e calmaria durante os dois anos em que se consultavam, tomou um senhor susto. Não a reconhecia. Tentou manter a compostura e perguntou o que ela havia feito no cabelo, mesmo notando que não era apenas isso que mudara. A jovem sorriu torto e tentou explicar também mentindo. Ao voltar para casa, vinha pensando que nunca mentia à psicóloga, mas estava tão forânea que não viu mal agir assim. Percebeu que a própria profissional, figura de sua absoluta confiança anteriormente, agia diferente com ela. Ela havia mudado ou fora o mundo todo?

Nisso tudo, inclusive tinha compromisso com as amigas, mas lembrava e remoía a expressão delas, como se a não conhecessem e resolveu não ir. Se trancafiava em casa. Só faltou jogar a chave fora. Quando o próprio cachorro, que ela alimentava sempre antes de sair de casa, não obedecia seus chamados, viu que a gravidade era sem precedentes. Não aguentaria esse ritmo. Teve vontade de dormir o máximo possível. Dormir até ter sua vida de volta, como era, com ela sabendo quem era e com os outros a tratando como sempre a trataram.

No outro dia, ao acordar, entrou em pleno pânico. Não tinha mais cabelo, era uma careca à sua volta, mas, após a percepção inicial pelo tato das mãos contra o agora inexistente couro cabeludo, a surpresa maior, o fatality veio diante do espelho. Aquele reflexo do banheiro contínuo ao quarto que quase sempre a iluminava, deixava radiante e preparada para encarar a vida do lado de fora, agora mostrava o equivalente ao nada: o nada que esperava tradução na música de Humberto Gessinger era a ausência de perfil nela. Nem olhos, nem boca, nem nariz, nem volume como maçãs do rosto. Ela nunca havia presenciado algo semelhante e o que era pior: se tratava dela própria.

Naquilo tudo, ainda teve tempo para pensar que não sabia como continuava enxergando, pela ausência de olhos na sua face. Apenas uma silhueta que dava indícios de que ali se formava uma cabeça e nela deveria haver um rosto. O rosto ela não sabia onde estava. A voz, ao chamar o cachorro, percebeu que estava no lugar. Parecia mais uma escassez de sanidade psicológica do que qualquer outro tormento.

Tentou tomar remédios, mesmo engolindo junto e podendo ter uma overdose. Curiosa pela experiência macabra que estava a seguir, tomou pelas mãos os comprimidos com água e, bem diante do espelho, levou-os ao que antes era sua boca. Conseguia engolir, sim e a imagem transpassada no espelho era apenas do sumiço dos comprimidos e daquela água. Nada daquilo parecia possível ou que alguém iria crer, caso contasse. Pensou para quem contar, mas quem haveria de querer saber e lhe dar crédito? A psicóloga que tão estranho agia, as amigas tão vagas e que davam a impressão de abandoná-la...

Tratou de manter fechadas todas as janelas da casa, em total reclusão daquele dia. Ligaram do trabalho e não atendeu. Deixou cair para as caixas de mensagem e enfrentava uma verdadeira resistência dela mesma com a internet. Não sabia se saía para espantar o mundo e ser internada ou fundia mais alguns comprimidos e esperava a ação que só poderia ser uma: a morte.

Mas com o passar das horas e nada mudando, antes da decisão final, resolveu, naquela sequência que parecia inacabável e que a afastava incluso de sua própria memória, anexar uma foto, qualquer que fosse, dela mesma no computador.

Que ao menos então os amigos, a psicóloga, os ex, quem quer que fosse, lembrasse dela, de forma póstuma, com uma imagem digna. Ela que se considerava bonita, ela que antes não tinha problemas de confiança, ela que tinha dificuldades, mas passava por cima de muita coisa. Ela filha, ela mulher, ela irmã, ela amiga, ela profissional, ela estudiosa, ela batalhadora, ela tal qual era. Sacou uma foto sem muita demora e anexou. Anexou na rede de conversas, na rede de posts, na rede de fotos. Morreria, mas morreria com essa última dignidade, porque não havia passado a senha para nenhuma amizade e talvez demorassem tempos e mais tempos a excluir aquelas contas. Assim se despedia.

Em um ato com tons de espetáculo macabro, ela gostou de tomar o comprimido na boca inexistente em frente ao espelho. Separou mais alguns, mas quando parou diante da estrutura de vidro, a surpresa. O cabelo estava voltando, os olhos ao menos tinham formato e já se fazia sentido em poder enxergar, o que antes não acontecia. A boca estava novamente carnuda, os dentes em seus lugares, o sentir o gosto, o respirar aquele cheiro mais de limpeza do que de banheiro. Tudo estava voltando. Levou a mão às faces e as acariciou. E se sentiu. E desafogou as mágoas que fechavam sua garganta. Largou os comprimidos, deixou-os cair. E que caíssem para longe, não importando se no ralo. Ela havia voltado.

Prometeu que lembraria desse momento e não se deixaria abater dessa mesma insegurança. Sairia para respirar melhor, saindo do aperto daquela tresloucada passagem e para testar a sua sobrevivência. Não perderia seu perfil. Ela, através das fotos, dos escritos e de tudo o que sabia já ter passado, não se esqueceria de quem era.

6 de janeiro de 2020

capitães e marujos

subindo em barcas
com sons de naufrágio
não adianta ser ágil
se não souber onde pisar

(não quero pisar em alguém)

pisar pelas cascas
escorregadia de banana
frágil é a de ovo
a gente tenta e se engana
se engana e se engana
de novo

subindo em barcos
mais uns passos nesse estágio
trajetórias que formam arcos
indesejáveis
invejáveis
de longe
e de perto na pele
indesejáveis

pisar pelos cascos
nos ascos desses navios
o pavio em contato
o barco todo por um fio
explosões
bombas colocadas
nos porões
trombas d'água
tempestades e clarões
que cegam
que recolham as velas
e deixem passar as chuvas
que extraiam dela
as lições
dessas águas turvas
desse céu escuro
antes dos paredões
e muros
no futuro serem um céu
de aquarela

vão passar
as ordens dos capitães
cujos papagaios até fugiram
capitães de leilões
com marujos desprotegidos
e inseguros
justos inimigos desses capitães
sem os pães de cada dia
sem os pagos, com atrasos
e sem juros
atrasam salários
salafrários e são duros
nas ordens que lhes convém
e os marujos
sobre as palavras e o chão
tão sujos
a improvisar palavrões
e impropérios apropriados
contra os capitães desgraçados
moídos como guisados
nos motins mentais
sob o sol, sobre os sais
daquela água marítima
e que ritma para lá e pra cá
até o ancoradouro dos cais
esses abatedouros mortais
que um dia
um dia menos navios
de castro alves
mais gente a salvo
mais gente com a chave
menos gente alvo
e o alvejante sob o sol ardente
os capitães na prancha
até ficar rente
se não com a vingança
ao menos com a justiça

3 de janeiro de 2020

o lapso duradouro

Deixava para as últimas horas para resolver o que iria fazer. Ninguém mudava esse seu jeito. Nem os pais, nem os amigos, nem as com quem conviveu, nem a com quem viveu. A noite do 31 de dezembro estava mais fria do que supõe o verão em andamento. Dentro dele também. Não combinou maiores eventos, com a família já longe e facilmente desistindo da insistência nas ligações para ele dar um pulo até lá, que dariam jeito nas passagens e que podia aproveitar esse recesso. Nada disso.

Conferiu os cigarros no bolso da jaqueta mais fina que vestiu por cima e saiu para as ruas. Não gostava desde jovem daquele ambiente de virada de ano pelas ruas que ele tanto apreciava. Eram muitos motoristas imprudentes e maníacos aproveitando a data para suas pirotecnias desvairadas. Mas, a pé, em uma falsa sensação de segurança que resolveu experimentar, sentia-se bem. Caminhadas solitárias apeteciam seu espírito e não ligou para ser um momento em que a maioria passaria em família do jeito que se esforçavam por estreitar relações e ignorar as inúmeras diferenças em cada casa. Ao invés de branco, também vestia preto com a jaqueta jeans por cima. Quando deu-se por conta disso, abriu um de seus raros sorrisos naquela noite.

Observava que a cidade tinha prédios amarelos demais. Notou que havia lixo de menos. Os grandes produtores disso em larga escala haviam se deslocado ao litoral, obviamente. Educação e consciência ambiental é que não seriam a bola da vez por ali. Na maioria das quadras pelas quais caminhou sentiu falta daquela bola de feno ou seja lá o que fosse que rodava pelos faroestes dos desenhos animados e nos filmes de bang bang. Seus pais gostavam muito de bang bang e desatinando, desenrolando o novelo de lã dos pensamentos lembrou-se deles distantes. Foi o mais perto de vibrar trêmulo o lábio e segurar lágrimas naquela noite.

Passou pelas casas e apartamentos de uma ou outra e lembrou da canção el viejo, dos uruguaios da la vela puerca, a banda amiga que aguantaba el corazón, que de fato estava com ele, tenha ou não razão. Pensou nas que foram da cidade e nas que ainda estavam, mas já não estavam e não conseguiu decidir qual situação era mais triste.

Pensou nos churrascos e reuniões que ele não tinha saco para. O próprio gosto musical excêntrico e pouco acompanhado e o tédio que lhe consumia a alma pautavam a desistência e a resistência a tais convites, às vezes cedendo, em um sentimento de obrigação, como quem leva o lixo para a calçada com o intuito do recolhimento e da renovação dos cestos, nas segundas, quartas ou sextas. Além dessas tarefas ainda socializava o multitarefas em questão.

As pessoas não estavam naquela zona antiquada e decrépita da cidade, mas isso não impediu que ele formulasse como elas se apossavam das ruas cada vez menos. As ruas que ele tanto gostava. Os paralelepípedos tão velhos no calçar das travessias que faziam ele exercitar os conhecimentos, ou a falta deles, em História para imaginar se aqueles tinham resistido às patas galopantes das cavalarias ou já seriam dos bondes em diante, renovados ou apenas assentados quando pareciam muito deslocados. E pensou que ele talvez fosse uma daquelas pedras que havia saído do lugar e substituída. Questionou se aquilo era natural e comum e quantos poderiam se sentir assim.

Sabia que aquela época do ano era complicada para muita gente, mas ele estava anestesiado. Gostava muito do termo anestesia. E pensou que poderia estar fantasiado como um tresloucado e ninguém daria bola na solidão daquelas ruas, as ruas que ele tanto gozava. E fez trocadilhos e brincou com essas informações todas. Os trocadilhos que ele tanto criava.

Cruzou pelos poucos posseiros daquelas calçadas, esticados em suas cadeiras de praia, pés para fora dos sapatos, celulares em mãos, desatenção constante ao que acontecia em volta e foco no que as redes sociais ou qualquer outra diversão online ofereciam. Estavam a milhas e milhas daquilo tudo, querendo ou não. Saudosos de banhos de mar nos litorais, ou de pessoas que para lá foram ou apenas passatempo melhor do que conversar com aquela tia ou com mesmo com os familiares mais próximos que já haviam esgotado os assuntos durante o café da tarde e a janta era exigência extenuante àquele frágil conector.

Cumprimentou àquelas pessoas que retribuíram um olhar certeiro. Lembrou-se de sua crescente miopia, ou seria astigmatismo? Não entendi muito dessas coisas e faltavam-lhe experiências anteriores para confirmar a resposta. Enfim, turvava-se em visão reconhecer rostos ou mesmo reconhecer o que aqueles rostos representavam, se amistosos, notando-lhe amigavelmente ou nada disso. Saía com a impressão de saudar menos pessoas do que poderia e tentava se livrar desse pensamento, entre tantos outros, por no fundo não ligar para essas opiniões passageiras como sacolas plásticas ao vento. Ou no fundo é que ligaria? Diabos, era como naquele jogo que viu em alguns filmes, que os jogadores de beisebol eram tarados. Agarravam o taco do jogo e quem ficasse com a mão no topo vencia. Era um Pernalonga versus Patolino se ligava para aquilo ou nem. Se ligava para o que ligassem, se é que ligavam.

Pensou na distância da sacola plástica que migrava ao sabor dos ventos daquela noite fria. Friorenta para o padrão da estação. E era pouco lixo que circundava aquela região semi-portuária. "Apenas eu à deriva", e sacou o penúltimo sorriso. Ou antepenúltimo, porque a cena das ruas limpas, as ruas que ele tanto gostava, lhe enchiam o tórax em sentimento positivo. Irrigava as ideias com a ilusão de um menor consumo na sociedade e de uma maior consciência ambiental. Depois prontamente ocultou o sorriso, posicionou uma cancela de trem, alterando os cantos da boca para a mesma tradicional expressão séria, porque lembrava que aqueles moradores filhos da puta apenas estavam no litoral. Sujariam o mar, o que é o tanto quanto pior. Gostava das tartarugas, se sentimentalizava com elas rumando vagarosas nas areias. E os peixes tão toscos, sempre fisgados e o maldito ministro que falou que eles desviavam do óleo nos oceanos. O animal da vez era o jumento, sem dúvida. Devia ser o ano novo do horóscopo dos chineses, o ano dos jumentos, dos jegues, se é que chineses sabiam bem que animais eram aqueles. Desejou que não soubesse. Ao menos nem conhecessem mediante as relações diplomáticas entre os países de economias emergentes. Ao menos a da China era, a do Brasil vá saber que bicho ia dar com tantos jumentos.

Naquelas cenas de poucos resíduos pelos meios fios e cantos e esquinas e embaixo das luzes dos vacilantes postes da região semi-portuária, viu alguns catadores. Aqueles sim se multiplicavam ao longo do ano. Ou já seria um biênio? Tri, se contar após a meia-noite, que se aproximava. O tempo passa. A vida era difícil. Não descartava acabar assim. Ou acabar recolhido por algum caminhão ou catador de carrinho, lixo que poeticamente se sentiu. Não pensava que era um lixo, mas pensou que estava na moda entre os jovens se imaginarem assim, em sacos plásticos impermeáveis, à espera do serviço público urbano para os homens de uniformes fluorescentes para não serem atropelados ou esquecidos pelo camioneiro responsável por dirigir aquele trambolho. Ele já nem tão jovem. Nem tão apto fisicamente para apostar corrida com aqueles heróis do dia a dia que não usavam capas, mas alaranjados trajes.

Quando achou que nada mais tinha para ver e que voltaria pela casa igual e sem renovações para o ano que vinha, apareceu um velho amigo. O Seu Flávio.
Flávio era também um catador de recicláveis, mas muito além disso, tinha grande coração e sabedoria e experiências e conhecimentos ao todo. Estava longe por quase duas quadras, mas sua visão ficou bastante nítida, como em um milagre ainda natalino, como se voltasse ao tempo que enxergava sem qualquer necessidade de lentes, mas além disso a esperança e o otimismo a olho nu. Flávio, apesar daquele serviço desgastante em que inclusive deveria estar se dedicando até aquele fechamento, estava em postura bastante ereta da coluna e demonstrava vigor físico. Devia ter uns 50 anos.

Aquilo o reanimou. O brilho de cds velhos ou plásticos ou alumínios refletiu pela esquina antes de Flávio dobrar, provavelmente rumo à sua casa, no fim daquele nostálgico e pesaroso bairro. A luz formulada por aqueles materiais irradiou-o, chocou-o em cheio, atingiu-o certeiro. Foi como um feroz sorriso. Ou, ao contrário de feroz, era como o mais amigável convite para continuar. Pensou em visitar Flávio outro dia, o quanto antes naquele ano que se iniciava com a meia-noite. Mudou rapidamente de ideia e correu as quadras que faltavam. Correu como não havia corrido naquela noite. Correu como planejava ser necessário apenas se viessem para assaltá-lo sob aquele luar tímido entre as nuvens, o que não ocorreu. Correu jovem e esperançoso e otimista e cheio de si para passar mensagens positivas ao velho lobo do mar Flávio sabe-se-lá o sobrenome.

Ao chegar na derradeira esquina, não mais o viu. Fuçou olhares, não fixou, ficou como um átomo gasoso em desespero, no seu processo de ionização não achou Flávio. Onde se escondera? Teve vontade de gritar, mas achou que estava imaginando coisas. As alucinações auditivas viraram visuais. Nem enxerga mais tão bem para ver Flávio e seu saco de trabalho tão nítidos a tamanha distância. Delírios. Mas gostou e mentalizou aquilo como um sonho acordado dos mais belos, apesar da contestável aparência do velho herói. Não ligava para isso. O coração dele fazia valer. Decidiu que o procuraria no próximo ano e cumpriria promessas. Eram absolutamente necessárias.

Como um cão de rua, refez seus passos em direção à proteção contra os fogos de artifício. O mais luminoso e duradouro estava de novo com ele.