25 de julho de 2023

Portugal em "Frágil como o Mundo"

É um filme da diretora Rita Azevedo Gomes. A película portuguesa conta a história de dois adolescentes que, apaixonados, resolvem fugir do mundo que os cerca, mas, assim, enfrentarão novos perigos. Os incomodados Romeu e Julieta portugueses chamam-se João e Vera.

A mostra explora uma situação de Portugal rural, afastado, longe das maiores cidades do país, Lisboa e Porto. A falta de perspectiva é evidente no contexto dos jovens. Sem muitas alternativas, a saída das asas da família poderia ser uma solução. Mas, mal planejados, o destino é trágico aos novos pombos.

O filme perpassa diálogos filosóficos, ouvidos com intensidade, sem o intermédio usual de trilhas sonoras que muitas vezes tornam-se ruídos na comunicação. A palavra buscando ser sábia dos mais velhos. A palavra sonhadora e esperançosa da juventude. Ascensão e queda sendo construídos na simplicidade de um filme que desempenha uma narrativa feijão com arroz.

A melancolia de um povo português assentado após o tempo das grandes navegações e conquistas. Um Portugal que deixou Ásia, deixou América e deixou África. Um Portugal que mais lamenta a diminuição de seu poderio do que faz um minha culpa por tudo que ocasionou negativo a outros povos. Melancólico, refugiado nas entranhas de seu próprio país de atrasos e de agros campos distantes. Um preto e branco bucólico na tela de quase a totalidade do filme. Portugueses que já não mais guerreiros, mas mais recolhidos, resignados, observadores e maleados pelos campos, não mais enfrentando a severidade alentadora e destemida dos mares mundanos.

Um Portugal que se fecha e compõe músicas tristes. Sente saudades, aproveitando o bom Português, de quem não está mais, do que não é e nunca mais será. Fados contra os fardos do mundo. Portugal da narrativa de um Frágil como o Mundo, mas também como dica um filme mais antigo, em formato de imagens-documentário, o Movimento das Coisas, se não me engano, de 1985.

5 de julho de 2023

Touki Bouki e Vidas Secas - Semelhanças e Diferenças

Touki Bouki foi apresentado recentemente por este escriba. Um filme que se passa em Senegal, retratando um jovem casal que sonha em deixar o país e suas mazelas, para uma vida melhor na Europa, desejando Paris. Em Vidas Secas, aqui se tratando do filme de 1963, com direção de Nelson Pereira dos Santos, inspirado diretamente na obra Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos, o casal também almeja uma vida melhor, tentando fugir dos rincões mais escassos de despovoado Nordeste.

Enquanto o casal em Touki Bouki - A Viagem da Hiena - é mais jovem, sem filhos e, portanto, com menos compromisso, os nordestinos brasileiros carregam consigo duas crianças, sendo dois meninos, e mais o cachorro da família, ironicamente chamado de Baleia, visto que a comida geralmente era escassa para todos os envolvidos.

No filme senegalês outrora apresentado, o casal discute seus sonhos à beira do mar, sonhando com outro continente. Estão dispostos a viver à margem da lei, aplicando golpes seja em quem for: autoridades, pessoas ricas ou mesmo artistas de rua. Como fuga, possuem uma motocicleta adaptada em que se destaca um dos símbolos máximos do filme: o crânio de boi - visto que são feitas várias metáforas entre a vida de gado dos humanos senegaleses e a vida dos bichos sendo ancorados rumo aos abatedouros. 

O casal brasileiro, Fabiano e Sinha Vitória, procuram viver dentro do que é possível nas agrestes terras. Eles conseguem um lar temporário, mas precisam trabalhar para o dono das secas pastagens, mais um jagunço que tenta passá-los para trás, depositando menos dinheiro do que o prometido, com a desculpa de que estão descontados os juros pelo 'empréstimo' de ter onde morar. Além do mais, Fabiano é analfabeto, jamais frequentou a escola, cena evidente quando defronta-se com o patrão, alegando que o dinheiro está a menos. O patrão mantém sua posição inflexível, reiterando que a soma está correta. Fabiano abaixa a cabeça, pede perdão e lamenta que a esposa, espécie de financeira da dupla, tenha feito conta que não devia. "Não é necessário barulho", se desculpa o peão vaqueiro.

Ainda dentro das regras de injusto jogo, o casal não consegue vender sua pouca produção de carne animal sem escapar de rigorosos impostos cobrados por prefeitura de pequena cidade - concentração de casas e gente. Fabiano é perseguido pelas autoridades, pois um metido oficial se envolve com a vida do vaqueiro, lamentando que ele tenha pulado fora em um jogo de cartas em que eram dupla. Assim, Fabiano perde o dinheiro, que a mulher acredita tenha sido desperdiçado em apostas, sem saber das injustiças que sofria com as corruputas autoridades locais. O jagunço sofre chibatadas, é vítima do abuso policial.

Na história senegalesa, a dupla vai conseguindo conquistar seus objetivos, almejando algo maior do que o Senegal recém independente após século de colonização francesa sobre aquelas africanas terras. Enquando Vidas Secas é rodado em uma espécie de conto cíclico, em que trilha sonora e paisagens iniciais e finais do filme se misturam, existe alguma perspectiva a mais na surrealista França imaginada pela jovem chamada Anta, no filme de África. Entretanto, o cíclico também está presente em Touki Bouki, pois o jovem Mori é vítima da vida emboscada em que são cercados os bois rumo ao matadouro.

Os bois. São figuras traçadas em ambos os filmes. As terras secas, o trabalho repetitivo e atencioso dos grosseiros vaqueiros em ambos os continentes. Semelhanças que aproximam um Brasil e um Senegal rurais, em épocas parecidas, sendo os filmes rodados com distância de exata década, o brasileiro em 1963, o senegalês lançado em 1973.

Em comparação, para finalizar breve análise, os pôsteres dos filmes em que as duplas protagonistas se destacam contra paisagem seca.




3 de julho de 2023

Y apareci en un barrio del que no puedo salir

Era um show de rock, mas eu não havia definido ainda se tratava-se de um teatro, do ginásio Gigantinho ou outra acomodação. Fato é que a plateia se desenhava abaixo de uma espécie de mesanino (palavra a qual detesto) sobre o qual estávamos. O mesanino, na verdade, era um bar totalmente decadente, com um atendimento lixo, com um suposto dono da espelunca em aspecto carrancudo, ao mesmo tempo que pouquíssimo interessado nos acontecimentos que o rodeavam. Tão pouco se importou que os simulacros de brigas que ocorriam eram ignorados. Eu lembro de discutir com ela ou por causa dela, e assim arremessei meus óculos no chão, pela primeira vez, nesses três anos, destruídos, com um rompimento impossível de encaixar na lente.

Os óculos dispensados ao solo seriam somente meu primeiro problema naquela noite maluca. Meus familiares também se desenharam por ali, de uma forma bastante surpresa fiquei, porque não era costume deles aparecerem em qualquer evento noturno, naquela espécie de casa noturna recebendo um show uruguaio de rock, em que eu imaginei primeiro Cuarteto de Nos, mas descobri tratar-se de Attaque 77. Meu primeiro seguidor desconhecido em internet, ao menos na rede social que mais usei nessa vida, Diego Antônio - ou Diego Lokura - estava lá para setenciar que, sim, tratava-se da banda argentina Attaque 77, da qual ele era exímio fã. Éramos minoria naquela noite, pois os torcedores de bandeiras e camisas vermelhas estavam abaixo do pobre mesanino. As tribunas não estavam cheias, evidenciando um insucesso nas vendas ou divulgações, ou vendas e divulgações. Um show em casa noturna incompleta, com espaços para assistir, com bandeiras em vermelho e branco que tremulavam, tremulavam, e eu brinquei que levaria algumas daquelas para o maior colorado do mundo, o Hercílio Luz da cidade de Tubarão, cidade de meu pai.

Eu, bêbado, gritava impropérios que logo causariam algum simulacro de briga. Gritava que nunca havia visto tantos torcedores da Croácia ou do Hercílio Luz. Só faltou citar o Náutico para provocar ainda mais o pobre lado vermelho porto-alegrense. Cruzei com algumas figuras, pois lá estava o Lucas Pacheco, hoje dentista, com a mesma cara de quando o conheci na escola e um relógio de pulso que deveria custar mais do que meus futuros salários. Qual não foi minha surpresa quando pintou o aparecimento de meu colega Matheus, que havia sido agredido com um chute. Isto foi o que ele contou enquanto mancava. Eu pensei que tratava-se de uma brincadeira, ele praticamente imitando o mascote deles, um saci. Mas baixou um pouco a lateral de sua calça para constatar um tremendo roxão no quadril, algo que recorria a urgência da procura de um hospital na equipada capital gaúcha. Ofereci ajuda nos cuidados, o que ele negou e logo prosseguiu sabe-se lá para onde. Nisso tudo, eu precisava carregar a bateria do meu celular naquela casa noturna putrefata. Novamente surpreendido eu fui, pois haviam muitas tomadas, nos mais diversos formatos e posições daquelas paredes mal pintadas. Tentei plugar o aparelho com meu carregador desmanchando-se, o que em realidade assim está, bem ocorre, tive insucesso nas primeiras tentativas, mas logo consegui uma posição exata e delicada em que a barra de bateria poderia subir para meus gracejos.

Deixei o celular ali depositado sobre uma cadeira no canto do bar improvisado sobre o putrefato mesanino. Continuava a checar o movimento, sem prestar atenção se o esperado show havia começado, ou, se já começado, prosseguia, sem reparar mais na quantidade de camisas coloradas, muito menos nas bandeiras. O mesanino parecia uma espécie de mundo à parte, um espelho da desgraça, independente do que ocorreria no palco. As mesas eram poucas, os móveis velhos, sujos ou estragados. O horário da noite avançava sem maiores incidentes, quando eu percebi que amanhecia e precisava dar o fora dali, sem perder o que fosse: a carona da minha família ou o ônibus de excursão.

Percebi que meu celular faltava, pois havia só a cadeira branca, de madeira mal pintada, e, sobre ela, o velho carregador em frangalhos. Onde estaria o aparelho? Surgia assim meu segundo grande problema, o terceiro, se contar o coitado que levou o suposto chute que lhe causou tremendo roxão. Recolhi o carregador branco que tinha certeza ser o meu, sem nem pista do aparelho que alguém, naquela espelunca, havia roubado, obviamente sem sinal do enxugador de pratos ter presenciado o ato. Sem óculos, sem celular me dirigia para o lado de fora, quando avistei um casal que achei ser o de meus colegas de jornalismo, Wagner e Vitória, belos nomes quando posicionados juntos, diga-se de passagem. Comentei com uma terceira pessoa que achava que se tratava do Wagner, mas que na verdade era até uma mulher quem acompanhava a suposta Vitória. Erro meu.

Ao mesmo tempo reacendia a dúvida de que eram Wagner e Vitória lado a lado na porta de saída, pois Larissa, também do jornalismo, me puxou de vez para fora do estabelecimento, para uma noite que virava dia. As pessoas dispersavam-se em seus rumos, trôpegos bêbados, alguns motoristas, intactos ou não, eu ainda em busca de encontrar minha família ou o coletivo que me trouxera, eu pouco sabendo como. Larissa queria me mostrar seu filho pequeno, que brincava inocentemente na rua, alheio ao desconvidativo horário e a todos os demais acontecimentos.

Cheguei sim a reconectar-me com minha família, mesmo sem o melhor dos sentidos da visão na ausência de meus óculos, aproveitando o novo dia que raiava, feliz por encontrar meus pais. Mas logo os perdi novamente de vista, com o agravante de agora não contar mais com o celular para comunicações. Meu pai não sabe usar o whatsapp, minha mãe sabe, mas eu precisaria do quê? Pedir algum aparelho emprestado, encontrar o mito do orelhão de rua? De um posto de gasolina eles partiram sem mim, ou seria que em um posto desses me esperariam? Fato é que não encontrava mais o tal posto. Encontrei postos abandonados, casas abandonadas, todo o panorama de bairros pobres e sem-teto nos Estados Unidos, seja em Detroit, Cleveland, Baltimore, Nova Orleans ou algum recanto da Califórnia. Eram rincões do mundo ou da própria Porto Alegre que eu não conhecia. Nem seguidores perdidos da internet, nem ex-colegas de jornalismo, nem amigos agraciados com chutes, ninguém mais me libertava desse labirinto enquanto o dia, veloz, caminhava para novo anoitecer.

 Quantos edifícios Gagarine não estão nos cines?

Touki Bouki (1973)

A Viagem da Hiena. Filme senegalês do diretor Djibril Diop Mambéty. Exibido no Festival de Cinema de Cannes de 1973 e no 8º Festival Internacional de Cinema de Moscou. O filme foi restaurado em 2008 na Cineteca di Bologna, para registros de fichamento.

A história é de dois jovens revoltados com o descaso e a situação de seu país natal (Senegal) e que sonham uma vida de luxo em Paris. Eles desconhecem outras realidades, mas têm o sonho. O Senegal agrário e de paisagens desérticas é evidenciado. É impossível não capturar a força das imagens iniciais e finais da trama. A figura dos bois em última luta nos abatedouros. Sangria. Morte com o animal ainda em vida. Se debater. Morrer. Uma esteira de mortes, um chão de sangue. A crueldade humana, que em seguida é praticamente absolvida ao vermos como é o modo de vida do cidadão senegalês nas favelas, em meio ao lixo. As crianças correm atrás da moto do personagem principal Mori, interpretado pelo ator Magaye Niang. O veículo chama a atenção por possuir um crânio de boi depositado na frente. Sua companheira se chama Anta, interpretada pela atriz Miriam Niang.

Em rápida pesquisa, observamos que o filme é referência no cinema experimental africano. É uma produção bastante marcante, também se pensarmos que considerável dos países em África recém viviam o processo de independência. Senegal, em relação à sonhada França, não era diferente. As cenas urbanas e rurais povoam a obra clássica, que mostra a escassez de qualidade de vida na grande Dakar e suas imediações.

A dupla de protagonistas parte em uma jornada arriscada, roubando dinheiro ora de um golpista de rua, ora de uma arena que recebe combates corpo a corpo. O filme a todo instante mostra um país em dificuldade de progredir, de romper com seus traços mais violentos. O casal precisa driblar os moradores que também os roubariam, driblar a polícia, driblar um curioso taxista, driblar um rico idiota e conseguir embarcar em um navio que os levaria de Senegal a partir de Dakar. A conexão das cenas às vezes deixa a desejar sobre o plano lógico dos acontecimentos. É difícil entender como Mori e Anta não foram capturados no início de tão ousada fuga.

É mais fácil entender que os fugitivos tinham lá suas razões. Rebeldia, descontentamento, falta de perspectiva, ambições. O final é surpreendente, embora também nos deixe reflexivos do porquê tenha ocorrido assim.

A Viagem da Hiena é um retrato importante para registro histórico das cenas de um Senegal setentista. A independência do país em questão recém havia ocorrido em 1969. As marcas de século de colonização francesa estão grifadas durante toda a obra de Diop Mambéty. As citações, a irrupção casando ou colidindo com a ancestralidade africana, o sonho dos jovens. Um Senegal que ainda tenta(va) se encontrar e uma França mais pintada surrealista do que existente.

O ser humano em sua viagem de sonhos que muitas vezes morrem como um boi em um abatedouro.

⭐⭐⭐⭐