27 de julho de 2022

Pensamentos soltos e talvez vagos

Ano pra cá tenho me sentido muito perto da morte. Se não estamos dançando tango juntos, estamos no mínimo no mesmo salão.


Tenho a tarefa de solitariamente trazer o que não querem ouvir. Não querem ouvir porque

A) Está errado. É mentira. Ninguém quer ouvir o que está errado. E é mentira.

B) Está certo. É verdade. Ninguém quer ouvir certas coisas certas. E é verdade.


Os insetos tilintam pelas minhas apagadas lâmpadas. Se não são eles, são os espíritos. Veja só. 


Penso que algumas obras escrotas são enaltecidas como geniais. Foram imortalizadas. Embora haja críticas, não retrocedem desse status fantásticos. Muitos desses gênios foram excessivamente escrotos, como ora invejo, ora abomino ser como eles. Penso em cenas em que pesam a mão sobre alguns valores ou realidades. E quando narram ou descrevem um estupro. Espero nunca em minha literatura narrar ou descrever um estupro. Fatalmente são episódios da realidade, mas não gostaria que existissem sequer na ficção. São o que representam de mais abjeto na sociedade humana. Portanto, prefiro ignorá-los e não trazê-los em minha literatura, mesmo que fosse para uma reviravolta de luta e combate a isso. Creio que uma vez cometido, o chão se abre, a dignidade esconde-se a sete chaves, o perdão torna-se o mais inativo e sedentário dos seres, porque o perdão não se exercita nesses casos. Dito isso, espero nunca confrontar-me com tal abjeta descrição. E do fundo de um coração que é fundo desejar que a maior das forças de recuperação para quem um dia passou por isso.


Para ser um gênio incompreendido varia a porcentagem do quanto se está sendo gênio e o quanto se está sendo incompreendido. Fico cauteloso sobre os entendidos por todos. Porque a capacidade de interpretação desse todo é muito limitada, então talvez estejam deixando passar pontos importantes. Ou essa minha analogia do incompreendido é apenas puramente incompreensão. Nada genial. Existe essa chance. Muito mais incompreensão do que genialidade. A capacidade de ser compreendido por todos é genial? Ou é apenas ser compreendido? A capacidade de ser incompreendido é genial? Ou é apenas ser incompreendido? Qual a balança que equilibra esses termos? Qual a receita? Qual a porcentagem? Qual a quantidade?

... E trazia consigo o olhar de quem viu muitas decepções e não teria tempo de revertê-las em agradabilidades ...

25 de julho de 2022

Violência 1x0 Esporte

Produzo o jornalismo local do esporte para o segundo jornal da região. Visto que a vizinha cidade de Rio Grande também fechou seus departamentos impressos, Pelotas concentra os jornais mais afamados do extremo sul. Com muita tristeza, além de meu deteriorado estado físico, produzi a página para terça-feira, 26 de julho de 2022. Não temos mais edição impressa de domingo para segunda-feira, de modo que as informações do fim de semana concentram-se em nosso cardápio apenas para edição de terça. Vamos ao que ocorreu. Os dois times locais em campo perderam. O Grêmio Esportivo Brasil praticamente deu adeus para Série C. Precisa de 100% de aproveitamento nas últimas três rodadas para manter-se vivo na terceira divisão nacional e não se preocupar em ter onde cair morto. O Farroupilha, por sua vez, jogou a primeira em casa no estádio Nicolau Fico e perdeu a primeira em casa, ao ser superado pelo Riograndense por 2x1, com o gol da vitória, que desequilibrou o Grupo da competição contra o Farrapo, marcado aos 48 minutos do segundo tempo. Com o resultado, o Fantasma tem um ponto em três jogos e um Grupo com quatro equipes que duelam em turno e returno, dentro e fora. Passada metade das partidas, nenhuma vitória e a necessidade, também, de algo próximo aos 100% de aproveitamento nos jogos que restam. Praticamente sem chance.

Dados os apitos finais ou do lado de fora ou ainda do lado de dentro dos gramados, os motivos que completam a melancolia. O Farroupilha em briga campal, como se fossem garotos de rua brigando. Chutes, socos, violência gratuito aos olhos das crianças ou idosos que foram ao estádio. O Farroupilha quase não tem mais torcedores. Eles encolhem em número a cada ano. Muitos dos mais idosos já faleceram, ainda mais agora com a situação de pandemia da Covid-19. Outras, as crianças, dificilmente serão capitaneadas a torcer para um clube de Terceira Divisão Gaúcha. Ver a equipe perder em campo já atinge, demonstrar violência gratuita acresce em nada. Tristeza marca o fim de semana no estádio Nicolau Fico no bairro Fragata. Detalhes ainda que somente eu percebo. O patrocínio no centro da histórica camisa tricolor é um desenho animado. Como combina o desenho animado (uma raposa ou animal assim?) com as cenas de brutalidade entre os atletas. Uma imagem que poderia acrescer leveza ao ambiente contrasta com os socos e chutes trocados pelos ditos atletas. O Farroupilha perdido no futebol e eticamente.

No Xavante, a única diferença é o nível da competição. Joga a terceira divisão nacional, mas o vexame se repete. Jogou em casa e diante de um público histórico, acima das 8 mil pessoas. Não sei se tão histórico, mas mediante a diminuição da capacidade dos estádios, a falta de procura dos torcedores aos jogos, foi sim um público histórico, contextualizado pela situação na tabela de classificação. O Brasil era (e ainda é) o último colocado na competição. Ficou com 14 pontos através de 16 jogos disputados. Nos últimos três precisa de um aproveitamento de campeão. De lanterna a campeão, penso aqui que pode se tornar uma manchete caso milagres aconteçam.

Após a derrota em campo, onde até houve polêmico, mas definitivos acertos de arbitragem, um pênalti bem marcado no primeiro tempo e um gol bem validado para Aparecidense no segundo, a confusão decorreu na saída do improvisado túnel visitante. E novamente chamo atenção para cena que poderia acrescer alguma leveza e sai justamente o tiro pela culatra, a situação pela tangente. O túnel inflável encobriu imagens da briga entre atletas e comissão técnica. Como se não bastasse, torcedores organizados adentraram com suas jaquetas e calças brancas, roupas que para alguns permanecem na moda. A cena dantesca desta vez foi corretamente estancada pelos seguranças mas principalmente pela Brigada Militar. A mesma Brigada Militar, em outros batalhões evidentemente, que atacou gratuitamente o rapaz Rai Duarte em Porto Alegre, após a partida entre São José e Brasil pelotense pelo mesmo campeonato. Rai Duarte foi retirado de dentro do seu ônibus, foi levado pelas mãos militares, por essas mãos foi covardemente agredido. Desta vez, nenhum torcedor que estava dentro de campo detinha a razão.

Eis que o Brasil na mesma Série C teve casos de briga entre torcidas, com o São José, em Porto Alegre, denúncia de caso de racismo por parte de um lateral, Zé Carlos, do Atlético Cearense (e pasmem, em jogo que o Brasil ganhou de goleada, qual a necessidade se ocorreu isso?), e finalmente o caso da briga após o jogo com Aparecidense, com o mau exemplo vindo institucional de empregados do clube até o torcedor que, num volume de mais de 8 mil torcedores em torcida do interior, era evidente que alguma situação ruim poderia ser gerada a partir da derrota, da confirmação da lanterna na rodada e, pelo calor do momento, a insatisfação com o rendimento e a derrota.

Me atento ao caso do sofrido e quase falecido na ocasião Rai Duarte. Não participou de briga, mas só foi vistoriado o ônibus pelos incidentes anteriores. Só foi confrontado em função do que outros provocaram antes. Óbvio, mas óbvio, torcedor, que a polícia não tem um pingo de razão nisso tudo. Não tem. Nunca teve. Jamais vai ter. Mas Rai foi vítima da sequência dos fatos e sobrou para ele. Não adiantam campanhas pela paz nos estádios, faixas, balões brancos e frases bonitas, cartazes e campanhas de conscientização se jogos depois não houver o exemplo sendo seguido. As campanhas e as frases mergulham num abismo e são soterradas. É para torcida, para sociedade entender que não pode abrir precedentes, não pode dar margem, tem que fugir dessas temáticas, diminuir as margens errôneas. A polícia é truculenta e logo pode ocorrer um novo caso. Pode sobrar para quem fez algo, o que é mais comum, ou pode sobrar para um inocente vimitado pela violência que nos cerca. Termino essas linhas em reflexão e apenas tentando me livrar da tristeza que me somatizou durante o dia. Respira também por aparelhos o esporte e a ética na cidade pelotense.


22 de julho de 2022

Café com Cebola

- Acredito que meus personagens devem conversar mais entre eles.

- Sim, também acredito.

- Assim trazer a pluralidade de ideias entre eles, não só a minha voz solitária.

- Sim, também acredito.

- Assim a literatura conversa entre si, deixando-me mais mudo. Os personagens que falem.

- Sim, os personagens.

- Apesar de aqui eu fomentar um eco, nem sempre concordo com o que eu acabo de falar.

- Nem sempre.

Tudo que eu poderia escrever nessa vida, o catarinense Manoel Carlos Karam já havia transcendido com o livro Cebola em 1995. E ainda nem li todo o livro Cebola. Nem metade da Cebola. Pode ter revolucionado minha escrita ou pode significar nada.

- Pode significar nada.

- Até porque tudo que eu possa escrever a partir disso pode soar somente como uma cópia.

- Só como uma cópia.

- Mas para quem não leu Manoel Carlos Karam, que deveria ter o nome ilustradíssimo nas principais galerias literárias, para quem não o leu, acredito eu que a maioiria das pessoas não o leu, não soaria como cópia.

- Definitivamente não.

- Porque só identificariam como cópia algo que eles conhecessem primeiramente.

- E se não conhecem...

- E se não conhecem não identificam. Manoel Carlos Karam, citar seus três nomes de uma vez e sempre soa numa seriedade avassaladora. Me lembra o nome dos árbitros, geralmente os quais não gosto por colecionarem erros arbitrais contra meus times.

- Mais de um time?

- Meus times... Não sou monogâmico de time como minha namorada.

- Infelizmente na linha abaixo da linha abaixo da qual a cito, preciso mencionar alguns como Sandro Meira Ricci e Héber Roberto Lopes.

- Justamente. Identificados por três nomes.

- Mas a literatura que parte de Manoel Carlos Karam é formidável. Aos menos dessas menos de 100 páginas às quais já me dediquei a conhecê-lo. Parece que as vozes de minha cabeça conversam entre elas.

- E isso é literatura?

- Pois veja que a partir disso posso distribuí-la por personagens. Os personagens os mais diversos. Ou talvez muito semelhantes.

- Ou muito semelhantes.

- De qualquer forma acho cômico que podem acrescentar algo ou somente fazer eco.

- Ou só fazer eco.

- Você gostava de bordões ou quando os filmes ou séries repetiam a mesma piada? Veja bem, às vezes nem chegava a ser uma piada, apenas ganhava força pela repetição.

- Sim, pela repetição.

- É uma forma de estruturarmos o texto, a distribuição do diálogo ou mesmo do monólogo.

- Diálogo ou monólogo.

- No caso entre nós um diálogo, embora eu esteja falando bem mais do que você.

- Bem mais.

- De qualquer forma você gosta dessa estrutura?

- Gosto dessa estrutura.

- Também tenho apreço e assim percebo que continuo.

- De fato continua.

- Peça mais dois cafés ou duas cervejas para gente. Não sei o que estamos bebendo.

- Você está pilotando.

- Pilotando esse diálogo, de modo que posso pedir duas cervejas se assim o quisermos. E você tem concordado comigo.

- Tenho concordado contigo.

- E gostaria de dois cafés ou duas cervejas?

- Compartilho consigo a dúvida.

- A dúvida que eu esperava que você quebrasse.

- Suplantar uma dúvida exige uma camada de certeza ou somente a mudança de assunto?

- Assim você está tomando o meu lugar de jogar os dados dessa conversa.

- Já percebeu que nas metáforas da vida pode-se jogar os dados ou os dardos? São jogos diferentes, mas metaforicamente se assemelham. Embora os dados parecem trazer a sorte de forma mais absoluta, enquanto os dardos podem definir o destino a partir de uma maior ou menor precisão.

- Assumiu meu posto.

- Portanto você quer dois cafés ou duas cervejas?

- Assumiu inclusive a minha dúvida.

- E tomarei a dianteira de assumir a resposta. São dois cafés.

- Então são dois cafés.

- Você também assumiu o meu posto.

- Assumi o seu posto.

- Diria que trocamos de lugar?

- Trocamos.

- Então venha se sentar aqui.

- Se assim o queres.

E trocaram de lugar, interveio o narrador. O narrador está acostumado a comandar as ações desses pequenos contos ou crônicas. Dessa vez ele também trocou de lugar e terá apenas essa pequena intervenção. Passou a intervenção.

- Já trocamos de lugar.

- Trocamos.

- E o narrador já fez a intervenção dele.

- O que está feito está feito.

- Só nos falta o recebimento do café.

- Café que você decidiu.

- Café que eu decidi. Embora quem nos ouça agora pode estar um pouquinho confuso.

- Um pouco confusos, com cacofonia e tudo.

- Eu sou o que originalmente concordava.

- Originalmente você concordava.

- Mas agora é você quem concorda.

- Eu quem concordo.

- Pois trocamos de lugares.

- O que acha do seu lugar?

- Quer reassumir o seu primeiro posto?

- Quero reassumir.

- Então troquemos novamente de lugar.

Eles trocaram novamente de lugar.

- E lá estão vindo nossos cafés.

- Estão vindo.

- Daqui a 5 segundos chegam aqui.

- Esperarei chegarem para concordar.

- Chegaram.

- Chegaram, sim.

- Estou vendo só um saquinho de açúcar caso você queira.

- Pois é.

- Vou pegar da outra mesa para que você apenas se restrinja a concordar.

- Concordo.

- Então estamos tomando nossos cafés com açúcar.

- Com.

- E eu falava anteriormente sobre a literatura.

- Sobre.

- Acha possível responder a todas essas frases somente com uma preposição?

- Em.

- Em ou hein?

- Em.

- 'Em' de fato é mais uma preposição. 

- ...

- Agora você não conseguiu nova preposição.

- ...

- Tudo bem pode parar com esse jogo.

- Com.

- Muito bem, mas você discordou de mim porque eu pedia para você parar.

- Para.

- 'Para' também é uma preposição.

Sorvendo o café.

- Você é um maníaco, se fosse um jogo, você ganharia.

- Se.

- Mas aí você perderia, pois 'se' é conjunção.

- Pois.

- 'Pois' também é conjunção.

- Pois.

- Estou deixando esfriar o meu café.

- Eu também.

- Assim será inútil ter pego o açúcar da outra mesa.

- Me sinto meio desconfortável com o que as mesas possuem ou não nos cafés e restaurantes.

- Está em pensamento por si próprio, devemos trocar de lugar.

- Devemos.

- Se vai concordar comigo pode ficar aí.

- Fico.

- Embora devêssemos trocar de lugar para eu concordar com você, concordo com esse desconforto causado nos restaurantes. Primeiro escolhemos as mesas e depois conferimos o que há nela, sobre condimentos, guardanapos, palitos de dente.

- Concordo com sua concordância.

- E sobre a literatura?

- O que tem?

- Concorda sobre investirmos mais em diálogos?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não sei.

- Por que não sabe?

- Você também não sabe. Nos põe em dúvida.

- Me senti meio despreparado para esse começo.

- Acha que nos revolucionou a escrita?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não sei.

- Por que não sabe?

- Você também não sabe. Os põe em dúvida sobre quem é quem agora.

- Eu sou o que pergunta.

- Eu sou o que responde.

- Concordo.

- Isso.

- Beba. Está esfriando o seu café.

13 de julho de 2022

Mais um dia em Florianópolis

Há milhões de formas de escrever um texto. O que será abordado e como será abordado. Tenho feito minhas consultas e exames em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Na última manhã dessas missões, quis aproveitar o fato da pluralidade de oportunidades de compra de uma capital para substanciar minha pequena coleção de livros. Para isso, procurei por sebos em Florianópolis e a rua com mais resultados foi a rua João Pinto, no final do centro, já próxima da Avenida Beira-Mar. O plano de sair um pouco mais cedo de casa não se concretizou e, pelo caminho, a tormenta de nebulosidade e muito vento formava um cenário antagônico para a travessia que me era necessária. O carro foi deixado no mesmo estacionamento de sempre, um pouco mais barato e com certa proximidade da consulta médica que eu deveria realizar na avenida Rio Branco, uma das cortantes do centro florianopolitano.

Do estacionamento em direção à rua dos sebos, um caminho guiado por GPS, que indicava o trajeto farovável aos carros, me fazendo quebrar por ruas em que não haveria necessidade. Perdendo no quesito de economia do tempo, consegui chegar com tempo hábil para conferir alguns resultados de compras. Antes disso, havia cruzado a famosa Praça 15 em que se ajuntavam jovens e velhos possivelmente bêbados, emendadores de uma noite de folia ou que haviam caprichado no despejo da pinga logo no café da manhã, visto que se tratava do meio para o final da manhã. Eles riam, gargalhavam e gritavam, provavelmente improbidades de quando em vez. Passei rapidamente pelo contorno da praça sem me ater às barbaridades que eram ditas. O cheiro da urina também se apresentava por algumas travessas e calçadas, das quais eu até preferir trafegar pelo meio das ruas em que isso era possível pela não-vinda de veículos. Trajeto feito no calculado tempo de 12 minutos desde o início do tracejar, consegui chegar até a um bar de esquina na baixada da praça e confirmei com um senhor que ali se tratava no que eu imaginava ser a João Pinto. ELe me confirmou com um breve movimento afirmativo com a cabeça, sem esboçar a mínima reação. Pela Rua João Pinto, alguns poucos desocupados, outros transeuntes apressados, aproveitadores e sacanas, trabalhadores e mensageiros, poucas pessoas por aquela travessa fria que pouco recebia sol, aparentava total aspecto de umidade e acinzentamento. Aquela travessa não permitia carros, mudando minha expectativa inicial de tratar de uma rua de calçamento antigo, estreita, mas que pudessem passar ao menos um veículo de cada vez. Não era o caso. Apenas pedestres eram permitidos, eu sendo um deles por ali pela primeira vez. Não tinha tempo a perder e adentrei ao primeiro sebo que se apresentou à minha vista, fato que comemorei silenciosamente com meus botões. Já havia passado por lojas de artigos de surf, locais para lanche, artigos de limpeza e manutenção, mas visualizar o meu destino, um sebo, foi a primeira vez.

O senhor dono daquele espaço me recepcionou e foi logo perguntando qual era o meu desejo, como se eu, apenas por ser levemente jovem, não conhecesse o funcionamento das lojas daqueles artigos. Eu conhecia a distribuição das prateleiras. Ou julgava conhecer. Confesso que a ajuda prestada por ele me direcionou mais diretamente a meu esperado destino. Alguns espaços ainda não haviam sido etiquetados, o que ele logo confessou se tratar de uma loja nova que havia posicionado. Confesso também nesse processo que essa afirmação me fez engolir em seco, pensando se ali se tratava do mais digno dos sebos que eu poderia adentrar. Um recém erguido em suas gôndolas poderia representar uma limitação de títulos que eu não desejava deparar-me. Afinal de contas, vindo de Pelotas e morador temporário de Imbituba, esperava encontrar em Florianópolis velhas novidades as quais eu não veria facilmente pelas gôndolas pelotenses. Mas ali estava no sebo do senhor que mais tarde naquele episódio conheci pelo nome de Marcos.

Fui diretamente aos títulos internacionais, perguntei mais uma vez por títulos do escritor Bolaño e não obtive sucesso. Esse insucesso tenho conquistado desde outras oportunidades. Os sebos não estão com os lançamentos até considerados recentes desse afamado escritor. Adio a leitura dele. Encontrei um volume grosso e russo, não de velharia, russo de origem, da literatura russa. Separei-o em um espaço sobre uma das prateleiras, que me permitiam criar breve pilha de meus destinados novos velhos livros. Depois dos russos avancei para um título que me trouxe curiosidade, sobre Cebola. O título de Cebola é de um escritor catarinense, mesclando contos e outras situações. Achei a descrição interessante e acolhi em minha improvisada pilha.

Ainda por aquele espaço, na prateleira mais para o fundo da loja, me deparei com os títulos de filosofia e encontrei o velho conhecido Erasmo de Rotterdam e seu Elogio da Loucura, que já comecei a folhar quando ora escrevo essas palavras. Erasmo compara a Loucura a uma poderosa deusa, influente sobre os homens e sobre os diferentes deuses. Ela está por toda parte, mesmo naqueles que mais querem reprimi-la e ignorá-la. Parece que não conseguiram nem a séculos anteriors ao século XVI de Erasmo, nem nos conseguintes nos quais ora estamos. A loucura, elogiada por Erasmo, como ele promete no título, é realmente poderosa.

E poderosa é porque assomou-se à minha pilha de libretos. O senhor Marcos andava de um lado para o outro, me deixando um pouco nervoso, mas provavelmente em sua tarefa destinada da organização de mais volumes. Minha mãe que atrasada chegava aos meus apressados passos, chegou à livraria e também procurou por títulos que a interessassem. Minha mãe é assídua leitora e consegue devorar livros a uma velocidade que eu somente invejo. Mas seus gostos duvidáveis a levaram para seção espírita, onde encontrou um volume com o nome de Como Vivem os Espíritos. Torci silenciosamente o nariz para aquele título, mas deixei que ela assomasse à nossa agora conjunta obra arquitetônica, a pilha de livros sobre a estante. Ela procurou mais alguns nos clássicos nacionais, despendendo crítica ao escritor José de Alencar, segundo ela, um dos mais chatos que ela poderia ter lido desde os tempos de escola. Concordei mesmo sem acompanhar a obra do antigo autor brasileiro. Também comentou sobre a demora nas descrições de Euclides da Cunha na conhecida obra dos Sertões. Me referi aos Sertões como importante processo geográfico e descritivo, situação de novidade pois não haviam livros escolares como as crianças carregam hoje em suas mochilas. Ou seja, ele possuía seu valor histórico, sem dúvida alguma.

Ainda fui para o lado oposto da loja, prateleira à esquerda, procurar por discos que ali se distribuíam. Muitos títulos conhecidos do pop e rock internacional, dos quais garanti finalmente uma edição da banda Counting Crows, os "Contando Corvos", que ainda não escutei em meu notebook, único dispotivo que por ora posso utilizar para ouvir esses compactos discos antigos. O senhor Marcos mais uma vez se demonstrou totalmente prestativo, oferecendo ajuda para ver se escolhi a melhor edição do Counting Crows, ou se haveria um melhor nas fileiras. Comparou que um estava mais inteiro a 15 reais e o outro um mais deteriorado a 10 reais. Aceitei o de 15 reais pelo aspecto inteiro. Comentei que já havia visto aquele CD em outros lugares, mas sempre com caixas arranhadas, não bem conservadas como as dele. Passei por outras bandas até tentadoras, mas economizei nesse aspecto, pois, como disse, estou apenas com o notebook para essa degustação com os ouvidos.

Pois bem, com o horário apertado, minha mãe já havia chamado atenção para nossa necessidade de retorno à Avenida Rio Branco, subindo aquele Centro, me encaminhei para a frente da loja. Havia ali uma mulher para trabalhar no caixa eletrônico, caixa este que na verdade consistia na calculadora do celular de Marcos. A negra mulher seria sua esposa? Me ficou essa dúvida. Parecia apenas um pouco mais jovem que o senhor de protagonismo em nossa narrativa. Ela retirou-se do espaço destinado ao caixa e o próprio Marcos tomou a dianteira para fechar a compra. Minha mãe nesse espaço de tempo procurou e encontrou um disco em capa com azul e preto de Nei Matogrosso, seu cantor favorito, e um dos, se não O, de minha irmã. Com a aproximação do aniversário de minha irmã em agosto, estaria feita importante compra para satisfazer os vinis colecionados brevemente por ela.

Marcos novamente prestativo tomou a dianteira, elogiou o disco como um dos melhores da música brasileira e somou no celular mais o preço dele, estimado em 30 reais. Um bom vinil, bem conservado, capa impecável. A princípio me assustei com o preço, mas logo também entendi que a maioria dos vinis que procurava por Pelotas eram de capas rasgadas e estados duvidáveis, inclusive para quando se encontrassem com a definitiva agulha de suas funções audíveis. Pois bem. Também aqui rememoro que os discos de vinil possuem em suas capas verdadeiras obras de arte a serem apreciadas. Diferente dos discos compactos, os CDs que eu coleciono, os vinis são maiores e suas capas e contracapas representam praticamente quadros a serem expostos nas paredes. Ou seja, uma capa bem conservada tem também um tremendo valor. Logo, 30 reais que agora me parecem mais bem pagos.

Do saldo dessa aventura, o horário me apertava os calcanhares, precisando eu praticamente correr na companhia de meus pais para voltar à avenida Rio Branco. Sim, meu pai, de tão pouco interesse pelos livros também estava na livraria, puxando assuntos com a mulher sobre o tempo e sobre a estrada necessária a nós até chegar a Florianópolis. Pois dessa mesma estrada percorre-se o assunto de que Marcos gostou muito de nossa compra, ofereceu um desconto que eu não esperava, finalizando aquela nossa velha pilha, o CD de Counting Crows e o disco de Nei Matogrosso por um total de 100 reais, os quais paguei no cartão em débito. Ofereceu um papel impresso com seus dados, o número do celular e a proposta de receber doações e trocas, de livros, DVDs, CDs, Gibis e Discos. O número é (48) 98449-0737, atendendo Florianópolis e região. E região eu que digo e assim espero, porque ele foi tão entusiasmado, enfático de que poderíamos voltar e tratar de negócios futuros que me entristeceu o coração lembrar que não era de Florianópolis, que era de Imbituba, havendo aí distância impermissiva de negócios recorrentes e, mais do que isso, que eu voltaria a Pelotas para ajudar, é claro, outros livreiros de minha região.

Mas o olhar apaziguador dele, a simpatia com que nos recebeu realmente me entristece. Aqui chego a um dos clímax dessa narrativa, perceber que, nesse mundo de tantos problemas, de tanta violência, de desocupados e agredidos pelo sistema nas ruas, poder desfrutar de uma boa recepção, de uma simpática conversa, de cordialidade e bom humor, isso me enche o coração de esperanças, mas ao mesmo tempo me vejo desviado dos rumos da vida, onde, tão logo, não tenho dúvida em meu pessimismo, seremos novamente jogados ao mau humor, ao desprezo, ao destrato, ao tanto faz do anonimato das ruas. Serei novamente endereçado àquela próxima esquina na travessa João Pinto a senhores bêbados que se expressam sem a mínima vontade ou emoção, ou pior, poder ser golpeado por camelôs, compradores de ouro, moradores de rua ou trabalhadores desprezados por antigas obras, ou pessoas afortunadas esnobes, que se acham melhores do que todas as outras, pessoas que andam de nariz empinado contra o que representar classe abaixo delas. A violência urbana é uma constante, está presente de rua a rua. E bastava eu, apressado, conduzir passo pelo mesmo caminho naquela travessa central da João Pinto, para encontrar um catador a fuçar uma lixeira e afirmar para sua provável companheira que "isso vem desde a escravidão pelos brancos safados", afirmação da qual minha mãe e eu tiramos concordância. Seja qual fosse o tema que ele, conhecedor básico da História, afirmava relutar desde a escravidão, provavelmente teria razão, pois este é o Brasil, o país dos processos mal-resolvidos. Da escravidão, da ditadura e da reabertura democrática, que encontra tantos limitadores em nossa frágil democracia.

Democracia. Espero ser esta senhora, no Brasil com idades questionáveis até anterior a núpcias, respeitada pelo meu bom vendedor. Penso no antagônico que é trabalhar com a venda de livros e de repente ser um cidadão não só de direita, mas de extrema direita. É claro que há muitos volumes e até bons deles, como os do peruano Mario Vargas Llosa, escritos por pessoas afinadas com o discurso à direita. Mas não deixo de pensar que é curioso, triste até, que pessoas ligadas aos livros possam replicar ideias até da extrema direita, como é a situação vivida no Brasil nos últimos anos. O bolsonarismo tão forte no estado de Santa Catarina pode encontrar replique nas palavras de meus escolhidos escritores locais ou mesmo nos gaúchos - ou de outros estados brasileiros. Pesquisa recente aponta que somente o Nordeste enquanto região já confirmou votação maioritária a Lula na próxima eleição. As demais regiões brasileiras, nas quais se encontra o Sul, estão indefinidas. Mas Sudeste, Centro Oeste e Norte não escapam desse paradigma. Pois bem, fico matutando sobre a possibilidade de meu nobre senhor conversador da rua João Pinto ser um bolsonarista. Espero que não. O Portal do Saber, nome que ele estampa em seus folhetos, e provalvemente em algo que chame atenção em frente à sua loja, não combina com o portal das censuras, dos dissabores democráticos, das desgraças oferecidas pelo desgoverno atual, que completará seu ciclo ao final de 2022.

Além do mais, fixou-me também a dúvida sobre a mulher que lhe acompanhara ser sua companheira ou apenas funcionária. Inclinaria meu palpite para primeira opção, assim ganhando força minha tese de que ali, naquele cordial senhor de encantadores e aprazíveis modos, não está representada a figura do bolsonarismo. Já não posso mensurar o tamanho de minha infelicidade em descobrir, caso um dia descubra, que ali conversava e fazia negócio com um bolsonarista, pois muitos daquela porta para fora assim são. Mas aí novamente estou relegado, labirintado com minhas expectativas, embolando-me em campos distintos da ciência e da comprovação. Sem saber a verdade - e no que me interessa? - crio expectativas que podem não ser correspondidas com a realidade. Espero realmente não ser tomado de assalto com o dissabor de uma descoberta de mais um bolsonarista em nosso cotidiano. Procurei afastar-me de todos quanto possível, mas é óbvio que convivemos com eles diariamente. Acontece, volto a ressaltar, que aquele senhor de aspecto tão amigável, acessível e desembaraçado em ajudar, me decepcionaria em muito caso confirme um bolsonarismo convicto. Assim torcerei eternamente, enquanto me perdurar essa dúvida, que ali não se tratava de um eleitor do pior de todos.

E eles estão por toda parte, como é fácil ver através das manifestações de bandeiras brasileiras pelas sacadas enriquecidas dos prédios que contornam o fluxo constante da Avenida Beira-Mar. Bandeiras do Brasil hasteadas, nesses tempos, e em outros tempos do 'ame-o ou deixe-o' representando apoio aos mandatários de instituições militares ou ligadas ao militarismo. Olho para elas, mas vejo o sol hasteado no lado oposto da avenida, sobre as águas, desbotando-as e me tecendo a certeza de que tão logo eles serão derrotados eleitoralmente. Mas, como constato em mais um dia em Florianópolis, não será fácil derrotar esses safados - alguns de resultados expressivos desde a escravidão.


Apêndices

Percebi o que me encabula de um bom atendimento. Estou acostumado a somente resolver as questões comerciais ou empregatícias a que me disponho e logo me livrar das pessoas, porque sou tímido e naturalmente encabulado. Um bom atendimento, uma boa explicação, muitas vezes sem que eu a peça, isso acaba me pegando desprevinido. Fico levemente constrangido e ao mesmo tempo agradecido pelo interesse o qual a pessoa me presta. Me sinto bem atendido, bem acolhido, bem tratado, o que, volto a dizer, não é a dinâmica do mundo, não em seu cotidiano, não nas grandes cidades.

Assim fiquei pensando naquele senhor de atitudes tão amáveis e como será que constitui lucro naquela venda de produtos antigos, em que a maioiria dos jovens se desinteressa por livros, CDs e DVDs. Espero que obtenha sucesso, mas situação que ponho em crescente dúvida, pois aquela travessa de tão poucos transeuntes, aquele espaço acinzentando de pouca recepção solar (ou será porque aquele dia estava nublado?), tudo isso vai em direção a pensar que a recepção de haver público não é muito animadora. Espero também que o preço do aluguel não seja muito, assim facilitando a obtenção de crédito com a loja.