Há milhões de formas de escrever um texto. O que será abordado e como será abordado. Tenho feito minhas consultas e exames em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Na última manhã dessas missões, quis aproveitar o fato da pluralidade de oportunidades de compra de uma capital para substanciar minha pequena coleção de livros. Para isso, procurei por sebos em Florianópolis e a rua com mais resultados foi a rua João Pinto, no final do centro, já próxima da Avenida Beira-Mar. O plano de sair um pouco mais cedo de casa não se concretizou e, pelo caminho, a tormenta de nebulosidade e muito vento formava um cenário antagônico para a travessia que me era necessária. O carro foi deixado no mesmo estacionamento de sempre, um pouco mais barato e com certa proximidade da consulta médica que eu deveria realizar na avenida Rio Branco, uma das cortantes do centro florianopolitano.
Do estacionamento em direção à rua dos sebos, um caminho guiado por GPS, que indicava o trajeto farovável aos carros, me fazendo quebrar por ruas em que não haveria necessidade. Perdendo no quesito de economia do tempo, consegui chegar com tempo hábil para conferir alguns resultados de compras. Antes disso, havia cruzado a famosa Praça 15 em que se ajuntavam jovens e velhos possivelmente bêbados, emendadores de uma noite de folia ou que haviam caprichado no despejo da pinga logo no café da manhã, visto que se tratava do meio para o final da manhã. Eles riam, gargalhavam e gritavam, provavelmente improbidades de quando em vez. Passei rapidamente pelo contorno da praça sem me ater às barbaridades que eram ditas. O cheiro da urina também se apresentava por algumas travessas e calçadas, das quais eu até preferir trafegar pelo meio das ruas em que isso era possível pela não-vinda de veículos. Trajeto feito no calculado tempo de 12 minutos desde o início do tracejar, consegui chegar até a um bar de esquina na baixada da praça e confirmei com um senhor que ali se tratava no que eu imaginava ser a João Pinto. ELe me confirmou com um breve movimento afirmativo com a cabeça, sem esboçar a mínima reação. Pela Rua João Pinto, alguns poucos desocupados, outros transeuntes apressados, aproveitadores e sacanas, trabalhadores e mensageiros, poucas pessoas por aquela travessa fria que pouco recebia sol, aparentava total aspecto de umidade e acinzentamento. Aquela travessa não permitia carros, mudando minha expectativa inicial de tratar de uma rua de calçamento antigo, estreita, mas que pudessem passar ao menos um veículo de cada vez. Não era o caso. Apenas pedestres eram permitidos, eu sendo um deles por ali pela primeira vez. Não tinha tempo a perder e adentrei ao primeiro sebo que se apresentou à minha vista, fato que comemorei silenciosamente com meus botões. Já havia passado por lojas de artigos de surf, locais para lanche, artigos de limpeza e manutenção, mas visualizar o meu destino, um sebo, foi a primeira vez.
O senhor dono daquele espaço me recepcionou e foi logo perguntando qual era o meu desejo, como se eu, apenas por ser levemente jovem, não conhecesse o funcionamento das lojas daqueles artigos. Eu conhecia a distribuição das prateleiras. Ou julgava conhecer. Confesso que a ajuda prestada por ele me direcionou mais diretamente a meu esperado destino. Alguns espaços ainda não haviam sido etiquetados, o que ele logo confessou se tratar de uma loja nova que havia posicionado. Confesso também nesse processo que essa afirmação me fez engolir em seco, pensando se ali se tratava do mais digno dos sebos que eu poderia adentrar. Um recém erguido em suas gôndolas poderia representar uma limitação de títulos que eu não desejava deparar-me. Afinal de contas, vindo de Pelotas e morador temporário de Imbituba, esperava encontrar em Florianópolis velhas novidades as quais eu não veria facilmente pelas gôndolas pelotenses. Mas ali estava no sebo do senhor que mais tarde naquele episódio conheci pelo nome de Marcos.
Fui diretamente aos títulos internacionais, perguntei mais uma vez por títulos do escritor Bolaño e não obtive sucesso. Esse insucesso tenho conquistado desde outras oportunidades. Os sebos não estão com os lançamentos até considerados recentes desse afamado escritor. Adio a leitura dele. Encontrei um volume grosso e russo, não de velharia, russo de origem, da literatura russa. Separei-o em um espaço sobre uma das prateleiras, que me permitiam criar breve pilha de meus destinados novos velhos livros. Depois dos russos avancei para um título que me trouxe curiosidade, sobre Cebola. O título de Cebola é de um escritor catarinense, mesclando contos e outras situações. Achei a descrição interessante e acolhi em minha improvisada pilha.
Ainda por aquele espaço, na prateleira mais para o fundo da loja, me deparei com os títulos de filosofia e encontrei o velho conhecido Erasmo de Rotterdam e seu Elogio da Loucura, que já comecei a folhar quando ora escrevo essas palavras. Erasmo compara a Loucura a uma poderosa deusa, influente sobre os homens e sobre os diferentes deuses. Ela está por toda parte, mesmo naqueles que mais querem reprimi-la e ignorá-la. Parece que não conseguiram nem a séculos anteriors ao século XVI de Erasmo, nem nos conseguintes nos quais ora estamos. A loucura, elogiada por Erasmo, como ele promete no título, é realmente poderosa.
E poderosa é porque assomou-se à minha pilha de libretos. O senhor Marcos andava de um lado para o outro, me deixando um pouco nervoso, mas provavelmente em sua tarefa destinada da organização de mais volumes. Minha mãe que atrasada chegava aos meus apressados passos, chegou à livraria e também procurou por títulos que a interessassem. Minha mãe é assídua leitora e consegue devorar livros a uma velocidade que eu somente invejo. Mas seus gostos duvidáveis a levaram para seção espírita, onde encontrou um volume com o nome de Como Vivem os Espíritos. Torci silenciosamente o nariz para aquele título, mas deixei que ela assomasse à nossa agora conjunta obra arquitetônica, a pilha de livros sobre a estante. Ela procurou mais alguns nos clássicos nacionais, despendendo crítica ao escritor José de Alencar, segundo ela, um dos mais chatos que ela poderia ter lido desde os tempos de escola. Concordei mesmo sem acompanhar a obra do antigo autor brasileiro. Também comentou sobre a demora nas descrições de Euclides da Cunha na conhecida obra dos Sertões. Me referi aos Sertões como importante processo geográfico e descritivo, situação de novidade pois não haviam livros escolares como as crianças carregam hoje em suas mochilas. Ou seja, ele possuía seu valor histórico, sem dúvida alguma.
Ainda fui para o lado oposto da loja, prateleira à esquerda, procurar por discos que ali se distribuíam. Muitos títulos conhecidos do pop e rock internacional, dos quais garanti finalmente uma edição da banda Counting Crows, os "Contando Corvos", que ainda não escutei em meu notebook, único dispotivo que por ora posso utilizar para ouvir esses compactos discos antigos. O senhor Marcos mais uma vez se demonstrou totalmente prestativo, oferecendo ajuda para ver se escolhi a melhor edição do Counting Crows, ou se haveria um melhor nas fileiras. Comparou que um estava mais inteiro a 15 reais e o outro um mais deteriorado a 10 reais. Aceitei o de 15 reais pelo aspecto inteiro. Comentei que já havia visto aquele CD em outros lugares, mas sempre com caixas arranhadas, não bem conservadas como as dele. Passei por outras bandas até tentadoras, mas economizei nesse aspecto, pois, como disse, estou apenas com o notebook para essa degustação com os ouvidos.
Pois bem, com o horário apertado, minha mãe já havia chamado atenção para nossa necessidade de retorno à Avenida Rio Branco, subindo aquele Centro, me encaminhei para a frente da loja. Havia ali uma mulher para trabalhar no caixa eletrônico, caixa este que na verdade consistia na calculadora do celular de Marcos. A negra mulher seria sua esposa? Me ficou essa dúvida. Parecia apenas um pouco mais jovem que o senhor de protagonismo em nossa narrativa. Ela retirou-se do espaço destinado ao caixa e o próprio Marcos tomou a dianteira para fechar a compra. Minha mãe nesse espaço de tempo procurou e encontrou um disco em capa com azul e preto de Nei Matogrosso, seu cantor favorito, e um dos, se não O, de minha irmã. Com a aproximação do aniversário de minha irmã em agosto, estaria feita importante compra para satisfazer os vinis colecionados brevemente por ela.
Marcos novamente prestativo tomou a dianteira, elogiou o disco como um dos melhores da música brasileira e somou no celular mais o preço dele, estimado em 30 reais. Um bom vinil, bem conservado, capa impecável. A princípio me assustei com o preço, mas logo também entendi que a maioria dos vinis que procurava por Pelotas eram de capas rasgadas e estados duvidáveis, inclusive para quando se encontrassem com a definitiva agulha de suas funções audíveis. Pois bem. Também aqui rememoro que os discos de vinil possuem em suas capas verdadeiras obras de arte a serem apreciadas. Diferente dos discos compactos, os CDs que eu coleciono, os vinis são maiores e suas capas e contracapas representam praticamente quadros a serem expostos nas paredes. Ou seja, uma capa bem conservada tem também um tremendo valor. Logo, 30 reais que agora me parecem mais bem pagos.
Do saldo dessa aventura, o horário me apertava os calcanhares, precisando eu praticamente correr na companhia de meus pais para voltar à avenida Rio Branco. Sim, meu pai, de tão pouco interesse pelos livros também estava na livraria, puxando assuntos com a mulher sobre o tempo e sobre a estrada necessária a nós até chegar a Florianópolis. Pois dessa mesma estrada percorre-se o assunto de que Marcos gostou muito de nossa compra, ofereceu um desconto que eu não esperava, finalizando aquela nossa velha pilha, o CD de Counting Crows e o disco de Nei Matogrosso por um total de 100 reais, os quais paguei no cartão em débito. Ofereceu um papel impresso com seus dados, o número do celular e a proposta de receber doações e trocas, de livros, DVDs, CDs, Gibis e Discos. O número é (48) 98449-0737, atendendo Florianópolis e região. E região eu que digo e assim espero, porque ele foi tão entusiasmado, enfático de que poderíamos voltar e tratar de negócios futuros que me entristeceu o coração lembrar que não era de Florianópolis, que era de Imbituba, havendo aí distância impermissiva de negócios recorrentes e, mais do que isso, que eu voltaria a Pelotas para ajudar, é claro, outros livreiros de minha região.
Mas o olhar apaziguador dele, a simpatia com que nos recebeu realmente me entristece. Aqui chego a um dos clímax dessa narrativa, perceber que, nesse mundo de tantos problemas, de tanta violência, de desocupados e agredidos pelo sistema nas ruas, poder desfrutar de uma boa recepção, de uma simpática conversa, de cordialidade e bom humor, isso me enche o coração de esperanças, mas ao mesmo tempo me vejo desviado dos rumos da vida, onde, tão logo, não tenho dúvida em meu pessimismo, seremos novamente jogados ao mau humor, ao desprezo, ao destrato, ao tanto faz do anonimato das ruas. Serei novamente endereçado àquela próxima esquina na travessa João Pinto a senhores bêbados que se expressam sem a mínima vontade ou emoção, ou pior, poder ser golpeado por camelôs, compradores de ouro, moradores de rua ou trabalhadores desprezados por antigas obras, ou pessoas afortunadas esnobes, que se acham melhores do que todas as outras, pessoas que andam de nariz empinado contra o que representar classe abaixo delas. A violência urbana é uma constante, está presente de rua a rua. E bastava eu, apressado, conduzir passo pelo mesmo caminho naquela travessa central da João Pinto, para encontrar um catador a fuçar uma lixeira e afirmar para sua provável companheira que "isso vem desde a escravidão pelos brancos safados", afirmação da qual minha mãe e eu tiramos concordância. Seja qual fosse o tema que ele, conhecedor básico da História, afirmava relutar desde a escravidão, provavelmente teria razão, pois este é o Brasil, o país dos processos mal-resolvidos. Da escravidão, da ditadura e da reabertura democrática, que encontra tantos limitadores em nossa frágil democracia.
Democracia. Espero ser esta senhora, no Brasil com idades questionáveis até anterior a núpcias, respeitada pelo meu bom vendedor. Penso no antagônico que é trabalhar com a venda de livros e de repente ser um cidadão não só de direita, mas de extrema direita. É claro que há muitos volumes e até bons deles, como os do peruano Mario Vargas Llosa, escritos por pessoas afinadas com o discurso à direita. Mas não deixo de pensar que é curioso, triste até, que pessoas ligadas aos livros possam replicar ideias até da extrema direita, como é a situação vivida no Brasil nos últimos anos. O bolsonarismo tão forte no estado de Santa Catarina pode encontrar replique nas palavras de meus escolhidos escritores locais ou mesmo nos gaúchos - ou de outros estados brasileiros. Pesquisa recente aponta que somente o Nordeste enquanto região já confirmou votação maioritária a Lula na próxima eleição. As demais regiões brasileiras, nas quais se encontra o Sul, estão indefinidas. Mas Sudeste, Centro Oeste e Norte não escapam desse paradigma. Pois bem, fico matutando sobre a possibilidade de meu nobre senhor conversador da rua João Pinto ser um bolsonarista. Espero que não. O Portal do Saber, nome que ele estampa em seus folhetos, e provalvemente em algo que chame atenção em frente à sua loja, não combina com o portal das censuras, dos dissabores democráticos, das desgraças oferecidas pelo desgoverno atual, que completará seu ciclo ao final de 2022.
Além do mais, fixou-me também a dúvida sobre a mulher que lhe acompanhara ser sua companheira ou apenas funcionária. Inclinaria meu palpite para primeira opção, assim ganhando força minha tese de que ali, naquele cordial senhor de encantadores e aprazíveis modos, não está representada a figura do bolsonarismo. Já não posso mensurar o tamanho de minha infelicidade em descobrir, caso um dia descubra, que ali conversava e fazia negócio com um bolsonarista, pois muitos daquela porta para fora assim são. Mas aí novamente estou relegado, labirintado com minhas expectativas, embolando-me em campos distintos da ciência e da comprovação. Sem saber a verdade - e no que me interessa? - crio expectativas que podem não ser correspondidas com a realidade. Espero realmente não ser tomado de assalto com o dissabor de uma descoberta de mais um bolsonarista em nosso cotidiano. Procurei afastar-me de todos quanto possível, mas é óbvio que convivemos com eles diariamente. Acontece, volto a ressaltar, que aquele senhor de aspecto tão amigável, acessível e desembaraçado em ajudar, me decepcionaria em muito caso confirme um bolsonarismo convicto. Assim torcerei eternamente, enquanto me perdurar essa dúvida, que ali não se tratava de um eleitor do pior de todos.
E eles estão por toda parte, como é fácil ver através das manifestações de bandeiras brasileiras pelas sacadas enriquecidas dos prédios que contornam o fluxo constante da Avenida Beira-Mar. Bandeiras do Brasil hasteadas, nesses tempos, e em outros tempos do 'ame-o ou deixe-o' representando apoio aos mandatários de instituições militares ou ligadas ao militarismo. Olho para elas, mas vejo o sol hasteado no lado oposto da avenida, sobre as águas, desbotando-as e me tecendo a certeza de que tão logo eles serão derrotados eleitoralmente. Mas, como constato em mais um dia em Florianópolis, não será fácil derrotar esses safados - alguns de resultados expressivos desde a escravidão.
Apêndices
Percebi o que me encabula de um bom atendimento. Estou acostumado a somente resolver as questões comerciais ou empregatícias a que me disponho e logo me livrar das pessoas, porque sou tímido e naturalmente encabulado. Um bom atendimento, uma boa explicação, muitas vezes sem que eu a peça, isso acaba me pegando desprevinido. Fico levemente constrangido e ao mesmo tempo agradecido pelo interesse o qual a pessoa me presta. Me sinto bem atendido, bem acolhido, bem tratado, o que, volto a dizer, não é a dinâmica do mundo, não em seu cotidiano, não nas grandes cidades.
Assim fiquei pensando naquele senhor de atitudes tão amáveis e como será que constitui lucro naquela venda de produtos antigos, em que a maioiria dos jovens se desinteressa por livros, CDs e DVDs. Espero que obtenha sucesso, mas situação que ponho em crescente dúvida, pois aquela travessa de tão poucos transeuntes, aquele espaço acinzentando de pouca recepção solar (ou será porque aquele dia estava nublado?), tudo isso vai em direção a pensar que a recepção de haver público não é muito animadora. Espero também que o preço do aluguel não seja muito, assim facilitando a obtenção de crédito com a loja.