19 de julho de 2019

livro das ruas

Volta e meia ainda recordo as palavras do diretor Nogueira no IF-Sul pelotense, então durante sua campanha para, de professor, chegar ao cargo da direção. Dizia ele que "as pessoas não são máquinas em que você briga com elas e elas funcionam". Pessoas têm sentimentos, particularidades, lado humano. O tapa para funcionar é no controle remoto da tv, no celular ou no computador travados. Ele repetia isso ao entrar nas salas de aula para defender sua chapa em candidatura. Nos discursos, idem. Palavras que marcaram por significado e repetição. E nota-se que até um pensamento bastante simplório para um professor de eletrônica no alto da experiência, referir-se assim de forma categórica e objetiva sobre as máquinas, para que não haja a mínima sombra de dúvida, uma fala ao meio-dia, quando não se gera o sombreado.

Tenho lido bastante o livro das ruas. Escrito por cada um a cada dia. Em minhas caminhadas pelas mesmas ou diferentes ruas, notando os problemas de calçadas, o que os cães ou humanos tratados como cães deixaram para trás. Mais desviando de pessoas do que as vendo desviar de mim pelo caminho para não trombarmos. Questão de demasiada cortesia.

As pessoas se diferem entre elas aos mínimos detalhes, ao observamos as chamadas entrelinhas. Os carros se assemelham muito mais, apesar dos mais aficionados pelo assunto veicular estarem bufando como dragões ao lerem esse último rascunho dado por minha pessoa. Os pratas, pretos, brancos e vermelhos se arrancam ao abrir da sinaleira em cor verde. Esses dias cruzei por um motoqueiro com o visor completamente escuro, nada se podia observar da pessoa sobre a moto, nem de tamanho do cabelo ou se não havia capilares e nem qualquer condição de seu rosto, se era narigudo, tinha algum sinal de nascença e se tinha dois olhos por dentro do capacete. Muito menos a cor das íris.

A pegada destas linhas repete-se a outras em que eu os informava do aumento dos catadores de papel, materiais plásticos e recicláveis em geral. Uns cantando, outros brabos, revoltados com a pouca condição que a vida lhes forneceu e segue fornecendo em pão velho e mastigado a cada dia. Por outro lado, conforme noticiei certa vez na companhia do narrador e não o cantor Eduardo Costa, o dia de hoje estava florido. As mais belas figuras partiram em direção às linhas do livro das trajetórias das ruas. Uma média excelente de quase uma por quadra ou a cada duas quadras, um rico de um dia. Parte-me o coração cruzar-me com uma e, tão logo ao fim da quadra na Andrade Neves, mesma rua em que confidenciei esse raciocínio florido a Eduardo, está uma senhora maltratando seus joelhos em posição de revirar e recolher conteúdos de sacolas antes utilizadas. Ela não tem a dentição completa e sua boca fica solta em uma expressão que a torna rude à primeira olhada. Ela interrompe minha sequência de suspiros internos e retoma o questionamento sobre as páginas manchadas do livro das ruas.

Assim vamos convivendo entre os espaços e ambientes mais floridos, entre banhos bem tomados e perfumes em excesso e entre quem sobrevive das sobras, do fuçar plásticos ora mais e ora menos limpos. Entre barracos em frente aos condomínios, entre pessoas que dormem em calçadas frias enquanto há tantos e tantos quartos e garagens vagas em espaços internos. Entre pessoas que por ora amolecem o coração ao final desse tricô e outras que, se isto estivesse num campo impresso de papel, já teria amassado e jogado fora. Ou mais: chamado-me aos berros em tons insultantes de: - comunista!

Entre cartazes de shows passados, fotos desbotadas neles nas ações de sol e/ou chuva, remamos nosso barquinho de papel, com as bases molhadas mas tentando nos acomodar do melhor modo possível, antes que a destruição de um naufrágio inevitável nos carregue.

16 de julho de 2019

visão seletiva

barracos na frente dos condomínios
domínios privados e fechados
considerados fracos
não tem vez

morador de rua
na calçada fria e crua
hoje era eclipse da lua
não ficou sabendo por aplicativo
viu ao vivo
e ninguém ali viu
que vivia um ser vivo

mas é difícil que seja visto
tipo foto da lua com teu celular antigo
enquanto eu passo por aquele cidadão
colecionante de moedas para um pouco de pão
enquanto isso duas senhoras
pelas grades do condomínio
acionam a tela do celular
dispositivo
da oi, da claro ou até da vivo
estão em outro lugar
que não aqui
e nunca que vão ver
aquilo que eu vi
nunca que vão saber
aquilo que exige
um pouco mais de compaixão
um olhar pro outro
ali deitado no chão
com menos dignidade que um cão
vestido contra o frio
e cagando calçada, cagando outra morada
antes de voltar pro aconchego da sua casa

olhando pra rico com indiferença
título nenhum vai te trazer onipresença 
nem imortalidade
tua boca cheia de formiga
quando bater alguma idade
aquilo que tu fazia com alguma amiga
tá distante esse dia
te sobrou só a saudade
no amarelo do costado da fotografia
e um álbum inteiro de incapacidade
de se repetir
tua grana evita dramas
mas não esse aí

15 de julho de 2019

que seja

coração abatido na outra rede
na sede do que a tecnologia fornece em menu
e acerta a mão que se dirigia à bandeja
então alivia as dores na cerveja
que seja
olha ali
nunca que vou chegar naquela mesa
um metro e noventa ou quase isso
que aquela moça tem de altura
uma escultura francesa
ou de outro povo europeu, sei lá
com certeza
e eu delgado na minha estrutura
fora de combate, surta ou atura
e a bateria do meu celular
acabando, veja só, foi-se a cura
loucura insistir nessa advertência
600 ml por mais de 10 conto
sacou a inflação da referência?
se eu prejudicar o bolso até melhoro
se eu melhoro eu prejudico o bolso
política é outra aventura, não mistura
tua taça com a garrafa do vinho de vovó
ela trouxe de casa pra se aquecer
deixa fazer o que quiser, quase 86, pensando o quê
e eu com pouco mais de quarto da sua idade
com menos do que um quarto pra sobreviver
o que é meu é muito pouco por mérito
de todos aqueles anos de estudo, érico
e querendo hoje mudar o sistema público de ensino
e quieto no meu canto ao mesmo tempo como um pino
esperando a bola de boliche
se eu tiver um quarto é uma cama de beliche
do pagamento de um hostel
que vai me atarefar no que pra mim é alto
preço de aluguel
e eu pensando um bom nome de motel
pra te levar
e querendo parecer mais natural
do que vai soar
a campainha de outro dia
da ressaca de ontem à noite
um açoite é o frio do inverno
no cobertor que me protege do matadouro
entre meus dramas e meus pijamas
antes de me enfiar na jaqueta de couro
bora pra mais um
sem arco íris e nem pote de ouro