28 de março de 2021

Madrugadas

Racionalmente, diversas vozes me soam, me assopram, me dizem: não tem porquê apostar nela.

Mas, em contraponto, pela aventura de estar vivo: as vozes, como uma locomotiva desgovernada: sísísísísísísísísí.

Imagino que ela vai me machucar mais do que qualquer experiência anterior, porque ela não se importa. Ou, caso se importe, logo vai esquecer, porque ela tem mais o que fazer.

Mas continuaria a achar que é extraordinária a possibilidade, o investimento, o empreendimento, como se empreender fosse uma palavra que eu gostasse. Mas o risco é algo que tu ouves valer a pena e constantemente te mandam arriscar. Estaria aí teu risco, para longe dos protocolos de segurança. Eis o teu aéreo risco. Ao som da chuva da madrugada, caso prefiras assim. E preferes.

E tu sabes, nas entrelinhas, te avisam: não vale a pena.

20 de março de 2021

Rascunho Publicado para Mim Mesmo

até 2014 ou 2015, eu era mais alegre porque era mais inocente de mundo.

aí em 2016 ou 2017, eu era mais alegre porque o Grêmio jogava o fino da bola.

DOS ACONTECIMENTOS de 2018 pra cá é só tristeza. sei que o mundo aí fora é horrível, mas eu posso e devo reagir melhor.

19 de março de 2021

Farmácias e Falácias

Entre farmácias e falácias

Remédios sem eficácia

Entre farmácias e falácias

Curas cada vez mais escassas


Pastas de ministérios

Ministros nada sérios

Basta! Basta disso

Chega de desserviço


Entre farmácias e falácias

Remédios sem eficácia

Entre farmácias e falácias

Curas cada vez mais escassas


Medicamentos implantados

Compras super faturadas

Corridas ao lado errado

E a barca naufragada


E a frota que se volta

Pela impopularidade

E o nível de rejeição

Sem mais governabilidade


Entre farmácias e falácias

Remédios sem eficácia

Entre farmácias e falácias

Curas cada vez mais escassas


Entre farmácias e falácias

Pessoas perdem máscaras

Pessoas pedem máscara

E o araque é desmascarado


Pablos Picassos

Remedios Varos

Bombardeios

Cenários raros

Remédios cada vez mais caros

Cigarros contra a ansiedade

E o preço do combustível

Dos carros pela cidade

Noites de fusível desligado

Não acende mais o botijão

Em função dos preço disparado


Entre farmácias e falácias

Glóbulos brancos a perigo

Testes contra o inimigo

E recontagem das hemácias


Entre farmácias e falácias

Remédios sem eficácia

Entre farmácias e falácias

Curas cada vez mais escassas

18 de março de 2021

Notas após o filme A Noite

Não odeio o que admiro.

No máximo, invejo.

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Te amar desde antes de te conhecer é o clichê que mais dói.

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### Notas após o filme A Noite ###

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"Típico de um intelectual. Egoístas mas cheios de piedade."

"Os jovens são ridículos em sua arrogância, como se nada fosse acabar."

16 de março de 2021

Costa Rica

Era uma viagem de férias, porque ela merecia. Afinal, foi um ano difícil, de atrasos salariais, de ameaças de cortes, com sua renda sem garantias. Como conseguiu manter-se em meio à pandemia mundial, preferiu seguir seus dias de descanso rumo a um país em que os casos estavam muito mais controlados. Não faria mal. Tirar férias do Brasil também seria importante, um distanciamento de verdade das pessoas que a sufocavam e das próprias atrocidades governistas.

A professora de faculdade foi para Costa Rica, o que chamou a atenção dos amigos, porque viajar neste período muitos fizeram, mas para a confusa América Central ela era a única. Mas única ela queria ser, porque cercada de gente que ela considerava brega já se sentia. Questionava aquelas formações familiares forçadas e casas em bairro burguês de breguice exagerada. "Bem fazia pegar as bagagens e ir adiante, conhecer o mundo e, pior do que estava no Brasil, não poderia ficar."

Os dias de trilhas e calor intenso na Costa Rica foram maravilhosos. Chegava exausta na volta das viagens internas em fascinante país, mas para ela tudo valia a pena. O aprendizado, o olhar simples no semblante da população, encarar a precariedade mesmo dos serviços de transporte fazia parte do desafio. Novas realidades a serem exploradas, praias e paisagens magníficas, conciliadas com aquele sentimento ainda positivo de distância de casa, de dar um tempo de brasilis. Esses dias lhe encantavam, mas no fundo ela sabia valorizar sua própria terra. Conhecia o valor de seu povo, acolhedor e animado quando isso era tudo o que se precisava. Esse aspecto ressaltava pontos em comum com aquela cultura de país colonizado pelos hispânicos.

Seu passatempo era viajar, aproveitar para registros oculares e alguns fotográficos. Aguçar os sentidos, sentir na pele aquela outra parte do mundo, capturar olhares, sons e cheiros, da terra, das ondas, dos verdes e tons pastéis tropicais. Dessa maneira, não ficava muito assentada no hostel, que ela teve considerada sorte em conseguir uma satisfatória estadia. Não se sentiu importunada, nada além dos acostumes. Havia mesmo um grande grupo de turistas argentinos, este povo cisplatino que se espalha aventureiro com tamanha facilidade. Mesmo com população em tão menor número do que os brasileiros, as menores barreiras de idioma, ao menos pelas Américas e mesmo para o Sul da Europa, condições financeiras percentualmente melhores de boa parte daquele país e um espírito mais nômade garantiam que nossa companheira cruzasse por pampeanos do país vizinho. E eles falavam e gesticulavam e incomodaram a leitura; ela intercalava o cansaço físico com o exercício para a mente, aprendendo mais de seu ofício, mas principalmente distraindo as ideias com temas avulsos, de romances, a contos e poesia. E os argentos também queriam dar palpite em seus poemas escolhidos. Uns traziam dicas para somar, enquanto outros somente aporrinhavam aquele momento introspectivo da viajante.

Como escapulia do país de forma solitária, vários dos momentos eram dela combinar planos com ela mesma, mas as intervenções até eram positivas, com exceção de se meterem no que ela já havia proposto. As demais dicas, quando realmente precisava, quando se sentia perdida, muitas vezes equilibravam a boa tomada de decisões. Aceitava sugestões de onde seria o melhor restaurante, em qual ponto turístico poderia comparecer, embora não se apegasse muito aos pontos mais conhecidos sempre que viajava. Não queria ter as mesmas fotos que todos os turistas já têm. Para muitos casos, bastava que comprasse um cartão postal da reverenciada imagem e sairia resoluta da situação.

Foram quase três semanas conclusas de rotina que combinava as condições positivas fisicamente atribuídas à atividade esportiva. O corpo passava por experiências que exigiam esforço, mas o resultado final era reconfortante, era apaziguador. Facilitava a interrupção da malfadada insônia que a perseguia, fosse no extremo sul brasileiro ou no país em que estivesse, ela com viagens realizadas para diferentes cantos do mundo.

O exame

Quase no dia do retorno, passagem já comprada, itinerário produzido e revisto, nossa professora Gisele descobriu que necessitava certificar um exame negativo para a doença pandêmica para voltar ao território nacional. O chão abriu-se, era ela a cair. Como poderia naquele mês a situação de aeroportos e controle do tráfego de pessoas ter mudado tão significativamente? Ela até torcia por essa rigidez, mas que viesse acompanhada de um impeachment no desgovernante do país. Ela que viajou tão tranquilamente - isto é, tranquilamente em ritmo para deixar o país e aproveitar o pouco que fosse de suas férias de verão; e isto ela fez - mas agora necessitava correr atrás do exame, do resultado, da logística mantida porque não queria perder ou passar pelos perrengues de tentar cartear a mudança de sua passagem para outra data. Estava tudo certo e passara um vendaval por aquele fim de viagem.

Agora ela, que encontrava refúgio da pandemia naquele país de exatos 5 milhões de habitantes na América Central, menos da metade do Rio Grande do Sul dela, se via contra as paredes da legislação de portarias contra a pandemia. A exigência do teste, que ela conseguiu providenciar em um hospital já na capital San Jose, de prontidão para o reembarque. Havia se deslocado do litoral da Costa Rica para a capital para facilitar seu acesso ao aeroporto no dia derradeiro. Ela realizou o teste e precisava aguardar mais 24 horas na esperança de obter o resultado definitivo na noite anterior de sua viagem. Dramática sua vida naquele instante.

Se acusou e se chibatou pela proposta de tão pitoresca viagem em meio ao caos global, mas de uma coisa não havia errado, a circulação do vírus era menor no país caribenho. Se sentia mais segura e não foi mal acolhida nem pela gerência do hostel, nem por demais visitantes, nem pelas últimas atividades de obrigatoriedade em passar pelos controles estatais. Conseguiu realizar o teste de saúde, foi bem encaminhada e aguardava ansiosa o resultado do teste para deixar aquele novo hostel, o da capital, para chegar cedo ao aeroporto para a viagem de regresso.

Cerrada dos compromissos de viajar fisicamente pelo país, ingressara então em uma viagem mental entre o sentimento de culpa, o desespero, alcançando índices de paranoia. Só faltava pensar que havia uma conspiração para mantê-la presa na América Central. Uma refém brasileira, uma negociação com as embaixadas, a exigência de um resgate, as notícias no telejornal, a família sem comunicação de sua baixa. Não. Era apenas o resultado do teste contra a doença da vez. Mas foi assaltada pelo sentimento de culpa de que não teria a necessidade de se embrenhar em tão distante local, ela que possuía sim a reserva financeira necessária para mais uns dias, mas pensando em no máximo três ou quatro, não uma quarentena caso fosse detectada a doença. E precisaria armar um plano junto ao hostel ou a outro hostel para ser aceita na quarentena. Ou ser aceita em um hospital, em qualquer abrigo em que estivesse a salvo naqueles dias e ao mesmo tempo não comprometesse a saúde de mais gente com o vírus em vigência na sua circulação pelo corpo.

Então era isso. O possível resultado positivo no teste aplicaria sanções financeiras para o seu planejamento, pediria transferências bancárias com a família ou amigos. Precisaria de um local para passar aquele inferno de mais dias, ela já um pouco deteriorada de tamanho calor naquela região absolutamente tropical. Ela já um pouco enjoada do sotaque acentuado dos caribenhos, com um espanhol que nos primeiros dias lhe soava divertido, mas ao final incomodava seus ouvidos, para desembaralhar palavras adjuntas, como o povo local se pronuncia mais rápido - despacito, por favor, señor - e com o aditivo de gírias que nem sempre ela capturava no ar como uma esvoaçante borboleta contra a rede de caça. Era um turbilhão de pensamentos sobre as punições de ousado plano de descanso e de aventura; que se tornava, ao menos ao estresse imediato da incerteza da situação, um plano mais de aventura, sem dúvida. O descanso, se ela podia praticar agora para o corpo, após tantas trilhas, viagens internas na Costa Rica e com uma alimentação diferente da que estava acostumada, a mente não a deixava na esperada paz.

A ansiedade aí não escolhe vítimas de quem já sofra desse mal precocemente. Não adianta. Nos coloquemos na situação de Gisele. Solitária naquele país distante, com a companhia mais próxima de onde nasceu sendo um bando de argentinos ostentadores e falantes aos cotovelos. Aliás, erro nosso, porque o grupo de argentinos e argentinas havia ficado para trás, no litoral, ela estava era trancafiada em San José. Gisele que não conseguia mais sequer se concentrar nas leituras. E era apenas um dia o aguardado pela espera. Encontrou companhia no atendente do hostel, embora, pelo revezamento dos turnos, ele estaria com ela a parlar somente durante seis horas. Diminutas horas porque ele atendia a chamadas telefônicas, informações de alguns poucos clientes e urgências de manunteção da limpeza, como se deslocou para passar um pano em um dos banheiros da casa.

Gisele torcia para o hostel não receber mais gente naquela noite, porque assim possivelmente teria um quarto inteiro à disposição para ela, não precisaria "ser expulsa" ou "convidada a se retirar" da habitação caso fosse positivada de covid. Mas e nos demais dias? E a exigência do hostel? O atendente procurava tranquilizá-la de que não costumam receber tantos visitantes. É um hostel mais de passagem, porque a capital não concentrava tantas visitas quanto os que ela havia conhecido no litoral. Ela recordou das lotações maiores, do grupo de argentinos, sorriu e concordou. Ela estaria próxima de um hospital caso houvesse alguma complicação e teria um quarto reservado para si, o máximo de tempo possível, com demais clientes a chegar sendo organizados em outros pontos. A grande confusão é que não havia organização anterior por causa da covid. Ela mesmo pensava: "se peguei a doença, pode ter sido em algum dos outros hostel". E aí recordou dos passeios de ônibus, restaurantes, comércios e todas essas situações em que estava exposta de alguma forma. Mas também equilibrava a disputa no campo de guerra da mente lembrando de que a Costa Rica era muito menos atingida do que o Brasil, à essa altura. "E qual país não era?", se perguntava.

Conferiu em noticiário mais uma vez e constatou que a média de casos e mortes na Costa Rica seria cerca de um terço do seu Rio Grande do Sul. Ou menos, que ela também não era especialista na matemática. Mas de fato eram números significativamente inferiores ao que estaria exposta em outros locais. Tentava reduzir sua penalidade aflitiva com aquele incerto desfecho da viagem.

Após conversarem bastante naquele turno da tarde, o atendente, don Juan, ou ao menos deste nome sim, Juan, prometeu que voltaria na manhã seguinte, trocaria de turno com o outro funcionário se fosse preciso. Queria se despedir dela. Gisele agradeceu a gentileza pela conversa, pela redução de seus impulsos nervosos que a martirizavam naquele momento. Evitou roer as unhas e tentou folhear mais um pouco de seus livros. Ameaçou caminhar um pouco, mas a chuva a surpreendeu. Havia pego tempo bom durante quase toda a viagem, rompendo com quase nenhum plano anterior. Achava ela que a chuva àquela altura era mau indício. Mas também sabia que estava procurando chifres em cabeça de cavalo. Acabou mesmo trancando seus pertences no sistema mundial de armarinhos em hostel e foi para o banho de chuva, a ajudaria com as ideias, hábito que ela sempre curtiu, mesmo na sua cidade gaúcha, um pouco de água pluvial para reerguer os ânimos, prepará-la para aquela última batalha, saber o resultado.

Andou algumas quadras, cuidou atentamente os sinais de trânsito, publicidades e tudo que poderia ajudá-la a recordar com precisão o caminho de volta, já que não levava o celular para a aventura na chuva. Estaria alheia aos mapas virtuais. Pensou na imprudência de sair a caminhar com a água lavando as calçadas, vai que tivesse positivado para a doença e uma chuva daquelas comprometesse seu geralmente bem comportado e triunfante sistema imunológico. Mas de onde que seria derrubada pelos pingos em um calor fascinante daqueles? Estava era novamente procurando ovos no ninho errado.

Foi para espairecer que tomou o rumo das ruas, mas continuava concentrada no processamento dos resultados do exame. Para ela, parecia que cada passo que se adiantava poderia alterar alguma coisa na logística dos laboratórios costa-riquenhos. Pensou quantos testes estariam em processamento naquele instante, será que já o dela? Prometeram para a noite. 24 horas... Mas 24 horas deveria ser o prazo máximo, o estendido, ou seja, poderia sair o resultado a qualquer momento. Pediu para que entregassem o resultado no número do hostel, ou por papel no pequeno saguão - mais para sala de estar - ou que telefonassem e anunciassem o resultado final. Pensou em todos os exames que já feito ao longo da vida. Quando quis doar sangue. Deu certo e retornou mais cinco vezes ao hemocentro. Exames para detectar gravidez, todos negativos, ela bem comemorava. Esperava manter esse ótimo índice de aproveitamento. Sempre estivera apta para a doação de sangue, nunca caiu no indesejado oblíquo de adquirir filhos. Pensou que nas bem-feitorias da doação de sangue estava em crédito, em saldo positivo com as entidades reguladoras sobre a face da Terra. Os costa-riquenhos, assim como os brasileiros, em geral apostam na igreja católica, por tantos motivos de suas colonizações, mas ela não sabia ao certo quais eram. Apenas esperava estar em sintonia, do mesmo lado dos sobrepujantes e onipresentes. Queria acreditar que daria tudo certo.

Quando chegou ao hostel, após a caminhada de mais de duas horas, aliviada e reanimada pela liberação dos hormônios na atividade física, tentava manter o otimismo atingido durante as últimas quadras. Mas, ao portão e hall de entrada, já vinha tomada pela ânsia de perguntar ao novo funcionário, substituto de Juan, se havia chegado o resultado do teste. Não havia. Murchou um pouco o resfolegar de suas pétalas. Deixou-se cair sobre uma poltrona e ali passou mais duas horas, após ter pego o celular em meio a seus pertences. Percebeu que as 24 horas haviam sido expiradas. Quase chorou.

O funcionário foi atencioso. Ligou para a clinicagem dos resultados. Ele cobrou, percebeu-se seu tom acentuado na voz, com aspereza para conduzir a chamada telefônica. Gisele achou graça. Mas riu de nervosa. Pensou que o novo funcionário, um tal de Yeferson, estava fazendo mais do que a parte dele, mas lembrou como com Juan pareciam que as coisas estavam fadadas a dar certo. Enquanto rolava as timelines no celular, pensou que Juan daria um jeito, como em um toque de mágica.

Eis que naquela sala de recepção surgiu um vulto pelas portas envidraçadas da entrada, tendo já rompido a primeira grade protetora do prédio. Pela agilidade e precisão dos movimentos logo se viu que não era um cliente comum para o hostel. Ensopado pela chuva que havia apertado e caía torrencialmente nos últimos minutos, o homem retirou o capuz. Era Juan. Trazia consigo uma pasta no interior das roupas.

Cumprimentou rapidamente a Yeferson. Estendeu a misteriosa pasta na direção de Gisele: - Seus exames. Não queriam ceder, mas me identifiquei como sendo do hostel e perceberam que és brasileira. Portanto, aqui está.

Gisele estava muito surpresa com aquela sucessão de acontecimentos nos últimos segundos. Tremeu um pouco o lábio e não menos as mãos para alcançar os papéis que recheavam a pasta. - Não se preocupe. Teste negativo - garantiu Juan, cada vez mais Don.

- Mas não poderemos deixar que passe a noite aqui no hostel. - Novamente ela ficou sem entender. Yeferson também franziu a testa, desentendido. Mas aí olhou melhor para Gisele, custou meio segundo para entender. Tirou a prova real ao voltar os olhos para o colega. Juan também já entregava as pistas todas.

- Pode ir para minha casa. Fica por minha conta. - Ele tranquilizou-a. Gisele uniu o alívio instantâneo do resultado negativo do teste com a nova possibilidade em sua vida. Ao fundo tocava a música Incendiémonos, da banda La Beriso.

Enquanto sua mente seguia a divagar, juntava sua bagagem para deixar o quartinho dos últimos tempos. Sorria sozinha e prestou atenção na letra, enquanto Juan dirigia o carro que buscou a algumas quadras dali. No rádio se fazia audível a música No Necesito Nada, do grupo uruguaio No Te Va Gustar, alcançando a América Central na hora exata em que poderia ser convocado por vontade própria. Assim se desenhava o melhor dos seus dias na Costa Rica, embora justamente fosse o último, pois a passagem de avião a chamava e Juan não conseguiria bancar mais do que a noite no seu próprio hostel, o melhor desconto que poderiam oferecer em seu salário.

Renovados de ânimo e de esperança, separaram-se para seguirem suas vidas. Logicamente ficava no ar e nas palavras de Juan o convite para o retorno. Era nisso que ela pensava quando terminava de gravar suas videoaulas. Dava tchau para aquela invasora câmera, baixava o notebook em um gesto decisivo e alçava o olhar para o céu azul ou cinzento (muitas vezes cinzento), sonhando seu retorno à Costa Rica, longe daquelas obrigações de um país que lhe devia tanto.

E lembrava da canção do No Te Va Gustar - Na na na na na...

11 de março de 2021

Esperanças Recônditas

Não, saí para respirar um pouco e estava a pensar que nem tudo que penso ou escrevo será aproveitado. Não, não na questão se vão ler e utilizar de alguma forma intelectual ou mais prática na vida. Questão de que nem tudo vai prestar. Deve ser comum para várias profissões, inclusive, como cozinheiros ou cabeleireiros. Não se acerta sempre. Talvez ainda sirva de aprendizado. Talvez.

Obviamente, o tempo útil de um texto também pode ser duramente afetado. A efemeridade. De repente, o que pensei ou teci por agora, de nada vai valer daqui a uns anos, daqui a uns dias, ou mesmo daqui a umas horas. O jornalismo impresso, gravado na pedra, está com o tempo como inimigo nos últimos tempos. As opções digitais podem ser facilmente alteradas. Marca-se (ou não) a data e horário da alteração e segue-se o baile. No impresso não, estará lá computado para registros póstumos.

Muitas vezes escrevemos por impulso ou por desabafo momentâneo. É geralmente nesses indutos que acabo escrevendo muita coisa. Será que minha racionalidade irracional ou irracionalidade racional terá fins positivos futuramente? Me importa que no momento em que foram escritas me valeram. Às vezes penso onde elas podem chegar. Velha metáfora da cartinha enrolada em garrafa em alto mar. Que os piratas possam surrupiar.

Erro muitas previsões, naturalmente, mas esses dias constatei que acertei sobre Flamengo e Palmeiras alternarem títulos de 2018 em diante. Realmente foram os únicos campeões de Campeonato Brasileiro até 2020. Flamengo ainda faturou Libertadores em 2019 e o Palmeiras a seguinte, em 2020. Monopólio do futebol nacional. Mas errei previsão, sim, pois acrescentei a esses dois clubes, o triunvirato do Corinthians, que tem ficado fora das disputas desde o seu título brasileiro de 2017. Tem contraído dívidas e não tem encontrado o seu melhor futebol em desempenho nas últimas temporadas. Devolvam o Luan ao Sul. Devolver o Luan seria um erro que eu estaria disposto a correr.

Vi uma dessas mensagens reduzidas em microblog - Twitter - garantindo a importância do amor e que deve-se apostar nele. Concordo, deve-se valer o risco. Mas fui ver quem havia curtido essa mensagem. Somente pessoas com namoro ou casamento adiantado. Talvez uma dessas pessoas não, mas na esperança. Pensei: assim fica fácil. As pessoas utilizam as suas vivências e experiências práticas como verdades absolutas. Não é bem dessa forma que a banda toca. Mas ok, admirável otimismo de vocês. All you need, etc.

E realmente é muito importante isso do amor. Do se sentir amado. Desperdicei algumas formas dele, reconheço. Talvez não tenham sido poucas vezes. Mas também imagino e reconheço que não o aproveitaria da melhor forma. Tenho meus impropérios (sentido 2º: censura injuriosa; repreensão) e minhas dificuldades para lidar com isso. Certa vez escrevi meio poema, meio aproveitamento aqui em prosa: saber lidar é o bastante. Como lidar é a questão.

Minha real preocupação antes de vir aqui são os cenários políticos. A polarização novamente está formada, Grêmio, eu te dou a vida, por esta jornada. Não, os cenários políticos. O otimismo total da liberação eleitoral para Luiz Inácio e seus discursos iniciais preponderantes. É uma luz, como foi classificado. O atual desgoverno inclusive passou a, vejam só, usar máscara na pandemia. Altamente radical. Lula é efusivo. Falou em ser radical para atacar as raízes dos problemas nacionais. Frase de persuasão e impacto. O Brasil era muito melhor no tempo do Partido dos Trabalhadores. Nas oportunidades, na renda, no controle da economia, que chegou a uma das melhores do mundo. Nas vagas universitárias e de ensino profissionalizante, nos auxílios desde a profissão de serviços domésticos até a quem estudava e procurava primeira oportunidade no mercado de trabalho. Auxílios para moradias, financiamentos, respeito internacional, comitivas bem recebidas e recebendo bem. Política participativa. Tanta coisa era melhor e foi sendo desmanchada desde o golpe de 2016. É completamente injusto comparar o governo anterior ao atual desgoverno. Não são duas faces da mesma moeda. Não são farinhas do mesmo saco. Não é uma escolha difícil, como pode sugerir o editorial de grandes jornais. Será que um dia esqueceremos esse editorial criminoso, que empurra o Brasil para uma das piores, se não a pior, gestão de pandemia no planeta? De um "líder" que não utilizava máscaras até Luiz Inácio ser liberado com seus direitos políticos a, quem sabe, se as coisas derem certo, concorrer. De um ignorante das questões sanitárias e de saúde. De um verdadeiro genocídio, pois que outro nome dar às vésperas das 300 mil mortes no país? Qual outro nome, vos pergunto?

Não é meu campo, não tenho formações em ciência política, então procuro absorver de outros especialistas, mas, irrequieto, também arrisco meus pitacos. É facilmente para registros póstumos que podemos afirmar que Lula é muito superior a Bolsonaro. Talvez sejam, inclusive, as extremas, as oposições, os que se diferem demasiadamente. O Brasil do PT da melhor economia, do Bolsa Família, do Fome Zero, dos programas sociais elogiados mundo afora, por ONU e outras entidades, pelos ensinos técnicos, profissionalizantes e universitários, pelas vagas ofertadas, pelos ataques que a grande mídia descarregava furiosamente, criminosamente com capas de revistas, com editoriais de jornais. E o Brasil atual de nenhuma responsabilidade social - já dizia o companheiro Marroni para outros - do colapso da saúde, porque as soluções anteriores ofertadas não foram procuradas. Porque as vacinas não vieram, demoraram a vir, passou-se todo o 2020 e precisou-se organizar mórbidos containers para arrecadar os corpos já sem vida. Vidas que não voltam mais. A economia ainda poderá voltar - mas digo, não com eles. O combustível vai seguir subindo, o gás de cozinha vai seguir subindo, os alimentos nas bancadas e estantes continuarão a subir em preço, ao menos enquanto o mesmo ministro da economia permanecer. Ele não sabe gerir, não sabe gerir para o povo, não sabe controlar a alta dos preços, vai desvalorizar a moeda real até os seus confins, vergonha internacional, mais uma a ser sentida, para as mais diversas críticas da imprensa de outros países.

Nem tudo que eu escrever ou pensar será aproveitado, mas novamente me encontro ao tentar alinhar os desabafos. Na certeza que o pior ainda não passou, mas pode passar. Na certeza que a saúde e a economia ainda descambarão suas tragédias em um tango longe de seu findar. Não há piloto, há cortinas de fumaça, mas o antigo piloto deu as caras. Pode retornar. Ou não. É o país das surpresas, das reviravoltas, da Justiça com suas injustiças. Ficou claro que ele poderia concorrer em 2018. Que sua sucessora foi deposta em golpe em 2016. Disso não há dúvida. Disso já sabíamos. Já deveríamos saber, embora muitos ignorem. E, na minha concepção, erre ou acerte, acredito na vontade popular de que ainda há possibilidade dele voltar a vencer. Mas são muitos fatores na tortuosa estrada. Se estará elegível ou não, na reabertura de processos judiciais e novo resultado de absolvição ou condenação. A depender de como será a futura campanha políticas. As futuras alianças a serem desbravadas. Sozinho, no campo de esquerda? Não há como. Mas seu vice anterior era José Alencar e houve o episódio mais do que conhecido com Michel Temer, além de José Sarney, Renan Calheiros e outros. Não há como acreditar na pureza, somente da boca para fora. Mas como serão as campanhas políticas em um país movido nas últimas temporadas a ódio? Altamente arriscado. A proximidade física, o aproximar com o povo, o corpo a corpo, ou manter-se a cautela para evitar uma catástrofe, uma tragédia, como já houve ataques violentos a tiro na fronteira do Rio Grande do Sul e como houve (ou não) o incidente que afastou candidato de debates em 2018. E pensar que hoje em dia quase tudo é no modo digital, nas câmeras, nos aplicativos zoom, nas aulas online, nos ambientes virtuais e na época ninguém obrigou a ocorrência de debate, mesmo à distância. Frouxidão e desgoverno, lado a lado.

Encerro por aqui sem a certeza dos acertos, mas com a consciência em alinhamento com o dever cumprido novamente, pelos meus impulsos para a presente época. Espero que os mais otimistas estejam certos com essa volta, pelo menos na semana, triunfal e rejuvenescedora. Mas entendo o processo como um caminho muito longo a ser caminhado. Tudo está distante do rompimento com as nebulosidades que ascenderam nos últimos tempos. Eles ainda têm o controle, o poder, as tentativas de veto, as tentativas de censura, as intimações, as armas na mão - como abordou Luis Fernando Verissimo. Eles ainda têm a gestão desregulada e imprópria da saúde e do combate à pandemia, tudo muito lento, muito devagar para haver a devida massa popular às ruas pelos direitos a serem mantidos, conquistados ou reconquistados. É necessário caminhar com os passos que nos forem possíveis. Sem a esperança intacta - pois já foi muito apedrejada e afetada - sem a ideia de pureza política e ideológica, sem pensar que o livramento das sombras será fácil, mas que ainda ali, em canto recôndito, ainda é possível arrumar boa parte da casa.

7 de março de 2021

tiracolo

há conselhos

e há consolos

e há certezas carregadas

somente para fora

a tiracolo

A Última Dança

Após a última dança, o corpo se desconecta aos poucos do transe em que se encontrava. Como uma carroça que frea, como um ventilador que se desliga e segue girando em rotações cada vez mais lentas. Como um sonho que termina, mas permanece em fragmentos que se esfumaçam à medida que acordamos.

A última dança vem na última música. Quando o silêncio vem crescendo, interrompendo a canção final. Os músicos terminam seu trabalho, sem soar, mas com os instrumentos ainda em mãos ou próximos do soprar da boca. O microfone ainda plugado. Se for eletrônica a música, o eco parte em desmanche até abandonar nosso interior auricular. Ressoa sobre a mente ainda o findar. Propagam-se as ondas que se reduzem.

A última dança tem o sabor nela mesma, em busca da lembrança, da memória, da eternidade. Mas nada se garante. Ela deve apenas ser dançada. Dá-se o máximo naquele gozo de minutos, talvez últimos segundos. Pois é a última dança.

Após a última dança, os pensamentos pertencentes à dança se diluem, pois não há mais dança, foi a última. O que se pensava, ou deixava-se de se pensar, fica para trás. A realidade é um silêncio em espiral crescente, encobridor, uma pressão sobre os ouvidos, um par de luzes ligadas para sinalizar que, sim, acabou a música, acabou-se a última dança. As luzes que mexem, diferem o tamanho das pupilas, o antes e o depois, o clima ajustado para a última das danças e o posterior fim de festa, o término maltrapilho, a maquiagem que foi maquiada, sobrepujada pelo instinto, pelo suor, pelo desembaraço, pelo colidir de corpos e rostos, pelo resfolegar zombeteiro. Os pés cansados das danças até a última delas, os sapatos deixados para trás, os brilhos gastos, os pés descalços, o perigo de serem pisoteados, dos corpos, das massas ocuparem o mesmo espaço, não respeitando ao dito científico da física; o chão do salão e seus restos e as bebidas jogadas fora, e os copos descartáveis, e papéis e serpetinas e confetes e demais adereços a depender da festividade em questão - até a última dança.

A última dança reserva vestimentas que eram muito aguardadas por utilizar. Aquele terno, peça mais cara, ou ao menos de maior destaque no guarda roupa. Ele termina amarrotado, manchado, talvez de bebida, talvez agredido pelas glândulas sudoríparas contra o dorso, com manchas nas axilas, com um lenço para fora, com a companheira gravata solta pela festa. Um smoking, um colete perdido pelo encosto de alguma cadeira, a ser retomado ao final da última dança, pois na rua estará frio. Alguns ficam esquecidos pelos encostos ou nos trocados das chapelarias. É possível errar de paletó quando mal identificado. Os vestidos das mulheres, alugados, escolhidos a dedo, moldados, pré-moldados, cosidos, descosidos, apertados, soltos, desbaratados ou de missões cumpridas. Terminam suas passagens pelos salões para ir de encontro às bolsas, largadas às mesas, cuidadas ou descuidadas enquanto tentavam aproveitar a última dança.

Na última dança reside o alívio de quem não dançava nem iria dançar, só queria ir embora. Esperava carona. Esperava um aviso, um sobreaviso, um sinal... um final. E houve, pois foi a última dança. As luzes se acendem, os rostos se procuram ou se escondem. Se descobrem pessoas, posturas, casais feitos ou desfeitos, virtudes ou defeitos, penteados arrumados ou bagunçados, gel e coques que abandonaram seus donos. Brilhantina não mais brilhante, instante que desenha outra realidade, mais ou menos alternativa. A última música devora a festa, é o gran finale, é o c'est fini, a rodada derradeira, a tomada de cena decisiva, o epílogo de cada um. Na última dança, pode-se congelar as pupilas de uma maneira depois apenas imaginária, uma repetição das contracenas, apenas para dentro da mente. Se só existe o presente, não existe mais a última dança, apenas sua lembrança, no cárcere da memória, no imaterial, na invalidez, no campo quimérico.

Na última dança, cada movimento é decisivo, cada balé é bem traçado, ou mesmo desajeitado, já do cansaço redigido ao longo de atmosférica noite, ambiental contemplante, ambiental contemplado. Ambiental que desaparece para o valsar da última dança, mais tardiamente, mais derradeira caso seja a última noite. Às vezes é a última e jamais saberemos antes da última esperança - esperança de que não seja a última noite.

Na última dança, quando acende-se as luzes sobre o baile, sobre a festa, quando apagam-se as luzes sobre o palco, outras serestas, tudo indica o final dos tempos - ao menos daqueles ali depositados em um cheque sem fundos, chamado última dança. Aquela que prometia, aquela que surpreende, caso se espera mais alguma para fechar a noite. Mas a aragem, o aspecto, o tempo suspenso no ar indicavam que era a última - a última dança. O teatro das marionetes a fechar as cortinas, as máscaras a debruçarem-se, encuralarem-se, saltarem para fora dos rostos. Nada mais poderia ser feito, pois era o último gingado, os últimos passos, requebrados, swings, para quem gosta assim chamar, dos sultões, das baronesas, dos escalados, das preferidas, dos guerreiros e guerreiras, lutadores contra a própria sorte e sorte alheia, em um canavial, ritmo carnaval de última dança.

Como uma vela soprada, com um passista solitário, como um artista de rua, como um volante que atua sem a bola, como um jogador em findar de carreira, um capitão temido e representante de sua esquadra, um capitão de navio no púlpito diante de seus serviçais, operários e seus chefes, mordomos, mordomias e seus amos, cargos de equidade, tudo ali, junto e misturado, na última dança. O artista, a artista, seja quem for, se abaixam, apanham o chapéu, dos trocados que o preencheram e vão para guaiaca antes do adereço da cabeça voltar ou não para cobrir o couro cabeludo ou então a careca. O número de circo encerrado, a praça desconjuntada, os pedestres a dispersarem, os músicos a se aliviarem, dos instrumentos de sopro, dos dedos calejados contra os instrumentos de cordas, a garganta que ora respira, os pés que reconhecem que tiveram trabalho e agora descansam, doem, sentem, contraem-se, espicham-se e sabem que a última dança foi tarefa executada, ato de ata assinada. Quem sabe em uma próxima voltem todos para mais um capítulo da última dança, mesmo que, para tantos, esta tenha sido a última. Até a próxima.

Casar contigo

Eu pensei que ia casar contigo

Assistindo a um filme de Godard

Mas você terminou comigo

Antes da gente chegar lá


Eu pensei em casar contigo

Assistindo aos casais de lá

Mas você terminou comigo

Antes da gente ter nosso lar


Impostos, taxas de condomínio

A mobília da sala de estar

A TV, nitidez e brilho

E os domingos a passear


Eu pensei em casar contigo

Sem saber os riscos de casar

Escovas de dente, figos de cera

Maçãs e peras

As chaves onde vou pendurar?


Pensei completar a cartela do bingo

Quando a gente se casar

Eu pensei em casar contigo

Mas sozinho eu vou ficar


Eu pensei e pensei comigo

Que contigo posso me casar

Mas casar pode ser um perigo

E sozinho e eu vou ficar

6 de março de 2021

Velas que não se apagam

Madrugada em que sonhamos com os mortos. Ou com os vivos conhecendo seus futuros. Foi o curioso caso que aconteceu com minha irmã.

Um céu cinzento, o alto mar, as velas embandeiras, bem tecidas, perigosamente estiradas contra o resfolegar do vento. O barco em deslocamento sobre o sofregar do ir e vir das ondas. O olhar dianteiro tentando antecipar as desventuras que nos apareceriam. Minha irmã toma a frente apoiando sua cintura contra a proa da embarcação. Estende o braço adiante como que para indicar a batida frase de terra à vista.

A ilha é um isolamento de tal modo que o barco não tem muito onde acostar-se. Começa a brecar nos inevitáveis bancos de areia, defesa impenetrável. Os solavancos nos preparam para a descida. Minha irmã é a protagonista, embora as palavras aqui sejam narradas por mim. Contra a vegetação altiva de coqueiros e outras árvores, os pássaros voam ora em círculos sobre nossas cabeças, ora de maneira desordenada e atônitos por tão bela vista, ao mesmo tempo temos que sincronizar nossas energias na real missão e também torcer para que não nos acertem com seus dejetos.

Na ausência de habitações na encosta, ao menos às nossas vistas, rumamos direto para um objetivo fúnebre: o cemitério local, que comporta, já visualizados ao longe, mais lápides do que provavelmente haja habitantes na ilha. A formação insular, também observamos, não tem embarcações companheiras em nosso retiro. Recordo que quando passava pelo cemitério da cidade, próximo a meu clube e local de trabalho, eu notava sempre a lista de velórios e enterros do dia, constatando os dias de mais ou de menos infortúnios na vida de nossos concidadãos. Se a missão até a distante ilha era conhecer o vasto cemitério, tivemos uma distinta exclusividade em relação às demais pessoas. Onde estariam os demais? Por que encarregavam os mortos a tão distante localidade? As perguntas surgiam aos montes enquanto as formas humanas eram limitadas a nossos passos que constituíam as mais novas pegadas naquele solo arenoso recém aparado pelas ondas marítimas.

Minha irmã guiava a breve caravana, constituída mais por mim e por poucos passageiros. Caminhamos em sentido íngreme para subir a encosta rochosa que levaria até ao cemitério. De uma coisa não havia sombra de dúvida: a pousada definitiva dos mortos contava com uma vista privilegiada que animava a nós, ainda vivos, em uma afanada instantânea do fôlego. Minha irmã estabeleceu contato com uma local que agora terminava o trajeto, já tecendo a voz baixa, exclusiva para nossa líder, sobre o lugar em que estávamos conhecendo. Provavelmente minha irmã passaria as informações para os demais tão logo pudesse conferir-lhe a oportunidade de transmitir.

Seguia a procissão de passos certeiros, agora sobre o chão rochoso, não mais de areia como no desembarque e primeiras centenas de metros. O silêncio combinava com a garoa que ora nos pingava a roupa já transpirada, ora vacilava em cair. O abafamento lembrava a alternância do clima da cidade em que crescemos. Nem o vento litoral dava conta de livrar-nos do peso que já era parte de nossas mentes. A protuberância do cemitério era impressionante. Tentei observar o semblante dos acompanhantes e todos eram inexpressivos, como se aceites de tal destino definitivo. Me perguntei se eu também estaria em estada definida ou teria o poder ou qualquer chance de apelar para a persuasão diante daquele juízo final.

Em uma casa de guarita ao portão de entrada, a guia espiritual curvou-se para dentro da casinha não sem antes gesticular a todos que esperassem pelo seu regresso para prosseguirmos. Um a um, ela se aproximava e cedia uma vela praticamente intacta. Poderíamos considerá-las recém acesas. Ela tinha determinante destreza e habilidade para se encarregar da tarefa. Com agilidade, ia e voltava com os candelabros a servir-nos. Pensei prontamente: repetição e competência. Mais repetição fabril do que qualquer habilidade sobrehumana.

Estremeci quando percebi chegar minha vez de receber o presente. Tentei agradecer, mas minha voz estava entrecortada. Eu seguia a observar a frente da procissão a uma certa distância, pois logo percebi que apenas duas pessoas, provavelmente um casal, estava atrás de mim na breve fila. A mulher com um aspecto cortez de freira novamente posicionou-se diante de todos para, com um gesticular tímido, como quase tudo que fazia, indicar o prosseguimento da jornada, já adentrando aos portões do cemitério.

Percorreu-me a impressão que essa quietude seria apenas para o caminho de ida e não haveria volta. Se houvesse, precisaria ser em uma tremenda batalha. Todos permaneciam muito calados, sem emitir sons, sequer grunhidos e com os rostos perfeitamente intactos quanto aos efeitos de tão lúgubre e macabra aventura. A quietude era cortante, o espaço para elaboração dos pensamentos quase formavam eco de tão alto que meu cérebro raciocinava aquele impressionismo todo.

Tentei ler as lápides, mas meus olhos desviavam de uns túmulos para os outros, os globos oculares pareciam que ardiam, parecia que as letras me escapuliam, me fugia a interpretação de nosso simples idioma. Em outras, a sopa de letrinhas se embaçava, minha visão piorava e eu não sabia como contornar esse problema incipiente e a curiosidade mórbida de meus pensamentos. Fui desistindo dessa ineficaz tentativa e voltei a atenção para meus trôpegos passos, para evitar maiores acidentes com a vela em mãos. Cheguei a segurar-me o riso porque, dentro de um cemitério vazio de almas vivas, as consequências de um incêndio seriam mínimas. Mas tão logo me apresentou essa ideia, formei o raciocínio de que os pingos da garoa deveriam dar conta de apagar nossas velas rapidamente. Não era o que acontecia. As chamas permaneciam sua dança, seu acovardado rebolar de maneira íntegra. Era impossível. Os pingos até apertavam, eram um bombardeio que não deixariam chances para o fogo sobreviver sobre essas condições. Insano.

E as pedras não pareciam ser afetadas pela umidade crescente. O que estava acontecendo? O que parecia somente um cemitério de encosta, ao sopé de uma montanha, um morro ainda maior, mas acima dos efeitos da ressaca marítima, agora era um caminho sem fim. De repente, nossa procissão parou e a mulher voltou a falar baixo, de maneira que o fim da fila, onde eu estava, não conseguia ouvir. Novamente circundei minha visão para os demais e, para minha surpresa, todos pareciam concordar, com um leve acenar afirmativo de cabeça. O único olhar atônito e a única testa franzida deveriam me pertencer naquele momento. Minha irmã cedeu passagem e não foi a primeira a receber uma espécie de benção, uma oração ao pé do ouvido. A mulher passava instruções precisas e as pessoas, sem pestanejar, apenas assentindo, prosseguiam suas diretrizes cemitério adiante - ainda havia uma eternidade de lápides até onde a vista alcançava. O sopé da montanha já ganhava proporções de ser a própria montanha. Provavelmente subimos de uma maneira tão menos inclinada após a primeira formação rochosa que agora nem percebíamos a intermitente subida que se desenhava. O mar se arremessava contra as areias muito abaixo, visível, mas não mais audível, pelo incrível que fosse.

Minha irmã foi a terceira, após ceder as primeiras vagas, embora não demonstrasse nervosismo, nada de mãos suadas, como eu podia observar, uma de suas marcas registradas, o brilho do suor não lhe brotava das extremidades. O rosto tão impassível quanto as faces dos demais. Era tudo inacreditável. Após receber o palavrear da discursante guia, ela pediu uma licença com um movimento de cabeça semelhante aos cumprimentos do povo oriental asiático e abriu passos em minha direção. Contou-me.

- Chegou minha vez. Fico por aqui. Queria me despedir.

- Mas o que está dizendo?!

- Você não percebeu?

- Eu... - Me sumiu a voz outra vez, como quando fui agradecer à espécie de freira.

- Não estaremos mais juntos. Eu vinha te avisando nos últimos dias, não vinha?

Permaneci emudecido.

- Agora preciso ir, estão me esperando.

Ela girou para retornar sua posição à frente da fileira, mas puxei-a rapidamente pelo braço. Instruí minha força como pude, mas ela reagiu de forma surpreendente, demonstrando precisão para escapar da investida.

- Preciso ir. - Reiterou.

Percebi que minha luta era absolutamente solitária. Enquanto tentava agarrá-la de volta para sairmos daquela insanidade, ela, além de disposta a obedecer seja lá o que lhe disseram, me vi envolto dos demais pares de braço que agora tentavam me conter, por, obviamente, estar atrapalhando o objetivo daquela derradeira jornada. Me senti completamente intruso, como já parecia desde os rumos do barco e do desembarque nas areias, mas agora com certezas.

Enquanto me esquivava dos braços peludos, magros, gordos, flácidos, de unhas vermelhas, sem esmalte, roídas ou escuras mãos trabalhadoras daquele grupo heterogêneo, levantei a vista ainda para deparar-me com o olhar fulminante da guardiã da casa dos mortos. Não menos horripilante - pelo contrário - foi perceber que da terra sulcada erguiam-se novos pares de braço. Primeiro um. Um direito, o esquerdo. Um esquerdo, o direito. E cabeças desfiguradas com o topo do couro cabeludo incompleto, com o crânio à vista, com um olho sim, outro não, com a falta da mandíbula, com os ombros deslocados, com relógios de pulso sobre ossos e não mais músculos e pele. Todo tipo de aparência daqueles porteiros se metiam a nosso encontro.

Cambaleei alguns passos, praticamente caí de costas, observando aquela cena inacreditável, aqueles olhares dos humanos que permaneciam aceitadores e inexpressivos, minha irmã que não batalhou comigo, mas ficou a assistir aquele inevitável desfecho. Os mortos, a meu nível estive próximo de tocar completamente o solo, esses de aspecto mais sedento, mas talvez fosse apenas a força de sua decomposição contra meu olhar aturdido.

Corri praticamente em linha reta naquele mar de túmulos que havíamos transpassado e eu não os conseguia ler no momento anterior. Novos grupos de cadáveres lutavam para alcançar meus passos cada vez mais ligeiros rumo a uma tentativa de libertação. Quando avistei a guarita e os portões ainda abertos, percebi a iminente oportunidade de fuga. A corrida me custava um esforço danado sobre as pernas, um suador contínuo e o abafamento da respiração naquele tempo absolutamente cinzento. Parei quase defronte à guarita de onde a mulher sacara as velas. Percebi dois funcionários de rosto em começo de estado de putrefação. As mãos do rosto não só não estavam coradas, como sediam rugas, afundadas, para dentro, uma pele que facilmente seria desmanchada até com uma colher.

- Você?! - A sua já está acesa. - Disse, apontando para uma vela. Outras tantas estavam sendo acendidas aos fundos, em uma peça como uma capela ou, no mínimo, gruta. Novamente não pude fazer melhor julgamento pois a visão estava turva.

Segui correndo, aproveitando aqueles últimos segundos antes de aparecerem novos "funcionários" para cerrarem os portões. Ainda pensei em minha irmã por lapsos de segundo, mas percebendo que não havia como salvá-la e talvez até minha primogênita tentativa seria rechaçada. A encosta abaixo, agora parecia bem mais alta, corria praticamente como se estivesse a saltar degraus de uma imensa escadaria. Tropecei, virei cambalhota, ralei os joelhos e cotovelos, mas não me importava com a dor, desde que a continuasse a senti-la. O que não queria era cair no ostracismo da dor nenhuma, ou o que fosse acontecer com os outros dos portões para lá. Alguns já cambaleavam a me seguir, mas tive a suposição de que não poderiam romper aquelas barreiras imaginárias, desse mundo completamente quimérico e ilusório.

Procurei pelo barco e, cada vez mais desesperado, não o encontrava. Apenas areia e águas. Pensei em me arremessar na água, me livrando das calças para maior agilidade sobre as águas. De repente, senti um toque no ombro. Parei. Congelei. Senti o coração prestar um solavanco como se quisesse romper qualquer barreira do pescoço. Pensei no lapso: "Agora que vou parar lá dentro, com vela, com tudo". No outro segundo, estava minha irmã a me encarar sem entender.

- Por que está tirando as calças?

- O quê?!

Me deparei com um píer de pesca. Algumas pessoas me olhando. Uma criança de uns cinco anos me apontando o dedo. Sua mãe ou tia a repreendendo, ao mesmo tempo que segurava o riso.

- Vista isso aí...

Subi as calças, conforme a ordem de minha irmã. Fechei a braguilha com os dedos nervosos, demorando segundos que jamais havia me custado.

- Não se preocupe - ela concluiu. - Você escapou. Dessa vez.



Uni-vos

P**** ******
bicho desgraçado
vai ser enforcado
aqui na nossa sede




3 de março de 2021

Testemunhas oculares em mundo parcialmente cego

Tenho lido um dos gênios peruanos, Mario Vargas Llosa. É polêmico, é denso, é intenso. É do gênero humano. Personagens que transitam entre fazer o mal, o mal e até o bem. Creio que foi em filme do não menos polêmico sueco Ingmar Bergman que um personagem se refere que não havia o certo ou o errado, somente a ocasião e como agir nela. Instintos. Autopreservação. Sobrevivência. Vantagem própria. Situações.

Estava justamente pensando com o agravamento da pandemia e como penso na irredutível proteção a meus pais e demais parentes. Ao passo que me recordo de todos os amigos dependentes financeiramente dos mais velhos. A incerteza da pandemia de covid-19 sobre nossas vidas. Efeitos e consequências que podem ser devastadores. O amanhã que se molda completamente incerto. Escrevo do alto do fundo do poço. O pior momento pandêmico, o colapso, o agravamento total da falta de leitos, de vagas e de material humano: faltam profissionais inteiros física e mentalmente para combater os inacabáveis casos de covid. Os médicos, enfermeiros e demais deslocados, funcionários para atendimentos não aguentam mais a rotina extenuante, extremamente desgastante nos seus dia a dia.

Mas ao passo que penso primeiramente na proteção de meu círculo, meu grupo de proteção afetiva e financeira, e somo a esses restritos nomes um par de amigos próximos e mais os amigos menos próximos e mais os amigos de amigos, quem sobram como inevitáveis vítimas?

Escrevo isso do alto do fundo do poço, porque no dia anterior foram mais de 1700 mortes causadas pela doença. É o assunto que nos enquadra, sumariamente mortifica, nos põe contra a parede. Nos apunhala como se fôssemos alvos de um poderoso taco de beisebol. Direto na nossa fronte. No dia anterior aos mais de 1700 óbitos, mais de 1600 óbitos. E quantos serão mais? Diariamente, chegarão a ser mais de duas mil perdas? Apesar da crescente em ritmo vagaroso campanha de vacinação ainda se crê em alguma melhoria. Mas até lá será tarde demais para muita gente. E para quem? Dos nossos seres amados a demais conhecidos até a incrível massa, nuvem dos números mortíferos de cada dia.

O país definha e a população aceita o capitão do navio exterminar com todos como no clássico da literatura e cinema, Moby Dick. Ao invés de afundarmos com uma baleia branca nos oceanos terrestres, a criatura-besta-maior está no comando. Posturas imagináveis para o que sempre demonstrou ser em sua carreira política, compatíveis com o esperado, mas ainda inimagináveis, pelo contexto ampliado de pandemia. Tudo isso parece um pesadelo de alucinação coletiva. Estamos cataratas a baixo. Estamos naufragando. Estamos morrendo sem ar. Sem reação. Derrotados no calvário de cada dia que nos dai hoje. Perdoai-nos o voto de 2018, porque eu não consigo perdoar. Queria, mas jamais olharei para a humanidade da mesma forma. Perante todas as horripilantes questões recorrentes. Não consigo mais.

Professores e líderes da docência, do estudo e da ciência (re)começaram a ser importunados em processos abertos pela sindicância do governo da República. No Sul, observo em imagens veiculadas nomes conhecidos, como o idealizador do rugby em ensino Federal e o maior nome, referência acadêmica nas pesquisas de combate à covid-19. São estes educadores, são estes profissionais da educação que estão sofrendo ataques. Estão atacados por atacar. Por atacar a doença, por combater a pandemia, com a luz da ciência, do caráter operacional pesquisador, com a tentativa do êxito em um país fadado ao fracasso dos últimos anos e pela próxima década.

Estamos envoltos em um literato Mar Morto, onde a salinidade não nos permite fluir, avançar, respirar e progredir. As impecáveis trevas. A educação sofre constantes ataques, inclusive apoiada por aqueles que nunca quiseram prestar aumentos salariais aos educadores, aqueles que sucateiam a máquina pública. Aqueles que sabotam a vida da população, principalmente a mais pobre. Esses falsários, que hoje verbalizam pela execrável abertura das escolas no pior momento da pandemia, esses verdadeiros criminosos deveriam ser derrubados e impugnados, defenestrados de seus cargos hoje, porém, diante da tão pouca, escorregadia e sumida esperança, que ao menos as páginas da História futura saibam onde posicioná-los. Imputá-los em um papel, em um protagonismo negativo, como pivôs de um destaque que nunca mereceram ter, mas já que os holofotes estão neles por ditarem as regras, que sejam cercados pelos currais da desgraça. São culpados e jamais os esqueceremos.

Desde 2018 estou intalado com eles. Meu sorriso nunca mais se abre, a não ser por mero descuido e ocasião de segundos. Conseguiram. Se comecei esse breve relato enaltecendo os complexos e demasiado humanos personagens de Vargas Llosa, brilhante peruano, termino ainda incrédulo com a falta de humanismo, empatia e responsabilidade de nossos desgovernantes e não rara parcela da população. São unilaterais. São unicamente ruins. Desprezíveis.

Se chegaram até o final dessas linhas, estou, do alto do então fundo do poço (eles têm as pás em mãos a cavá-lo entusiasmantes a cada dia), estou na torcida por vocês. Isso e o que mais me restar à disposição. Como afirma Igor Natusch, minhas caras testemunhas oculares do fim do mundo.