Era uma viagem de férias, porque ela merecia. Afinal, foi um ano difícil, de atrasos salariais, de ameaças de cortes, com sua renda sem garantias. Como conseguiu manter-se em meio à pandemia mundial, preferiu seguir seus dias de descanso rumo a um país em que os casos estavam muito mais controlados. Não faria mal. Tirar férias do Brasil também seria importante, um distanciamento de verdade das pessoas que a sufocavam e das próprias atrocidades governistas.
A professora de faculdade foi para Costa Rica, o que chamou a atenção dos amigos, porque viajar neste período muitos fizeram, mas para a confusa América Central ela era a única. Mas única ela queria ser, porque cercada de gente que ela considerava brega já se sentia. Questionava aquelas formações familiares forçadas e casas em bairro burguês de breguice exagerada. "Bem fazia pegar as bagagens e ir adiante, conhecer o mundo e, pior do que estava no Brasil, não poderia ficar."
Os dias de trilhas e calor intenso na Costa Rica foram maravilhosos. Chegava exausta na volta das viagens internas em fascinante país, mas para ela tudo valia a pena. O aprendizado, o olhar simples no semblante da população, encarar a precariedade mesmo dos serviços de transporte fazia parte do desafio. Novas realidades a serem exploradas, praias e paisagens magníficas, conciliadas com aquele sentimento ainda positivo de distância de casa, de dar um tempo de brasilis. Esses dias lhe encantavam, mas no fundo ela sabia valorizar sua própria terra. Conhecia o valor de seu povo, acolhedor e animado quando isso era tudo o que se precisava. Esse aspecto ressaltava pontos em comum com aquela cultura de país colonizado pelos hispânicos.
Seu passatempo era viajar, aproveitar para registros oculares e alguns fotográficos. Aguçar os sentidos, sentir na pele aquela outra parte do mundo, capturar olhares, sons e cheiros, da terra, das ondas, dos verdes e tons pastéis tropicais. Dessa maneira, não ficava muito assentada no hostel, que ela teve considerada sorte em conseguir uma satisfatória estadia. Não se sentiu importunada, nada além dos acostumes. Havia mesmo um grande grupo de turistas argentinos, este povo cisplatino que se espalha aventureiro com tamanha facilidade. Mesmo com população em tão menor número do que os brasileiros, as menores barreiras de idioma, ao menos pelas Américas e mesmo para o Sul da Europa, condições financeiras percentualmente melhores de boa parte daquele país e um espírito mais nômade garantiam que nossa companheira cruzasse por pampeanos do país vizinho. E eles falavam e gesticulavam e incomodaram a leitura; ela intercalava o cansaço físico com o exercício para a mente, aprendendo mais de seu ofício, mas principalmente distraindo as ideias com temas avulsos, de romances, a contos e poesia. E os argentos também queriam dar palpite em seus poemas escolhidos. Uns traziam dicas para somar, enquanto outros somente aporrinhavam aquele momento introspectivo da viajante.
Como escapulia do país de forma solitária, vários dos momentos eram dela combinar planos com ela mesma, mas as intervenções até eram positivas, com exceção de se meterem no que ela já havia proposto. As demais dicas, quando realmente precisava, quando se sentia perdida, muitas vezes equilibravam a boa tomada de decisões. Aceitava sugestões de onde seria o melhor restaurante, em qual ponto turístico poderia comparecer, embora não se apegasse muito aos pontos mais conhecidos sempre que viajava. Não queria ter as mesmas fotos que todos os turistas já têm. Para muitos casos, bastava que comprasse um cartão postal da reverenciada imagem e sairia resoluta da situação.
Foram quase três semanas conclusas de rotina que combinava as condições positivas fisicamente atribuídas à atividade esportiva. O corpo passava por experiências que exigiam esforço, mas o resultado final era reconfortante, era apaziguador. Facilitava a interrupção da malfadada insônia que a perseguia, fosse no extremo sul brasileiro ou no país em que estivesse, ela com viagens realizadas para diferentes cantos do mundo.
O exame
Quase no dia do retorno, passagem já comprada, itinerário produzido e revisto, nossa professora Gisele descobriu que necessitava certificar um exame negativo para a doença pandêmica para voltar ao território nacional. O chão abriu-se, era ela a cair. Como poderia naquele mês a situação de aeroportos e controle do tráfego de pessoas ter mudado tão significativamente? Ela até torcia por essa rigidez, mas que viesse acompanhada de um impeachment no desgovernante do país. Ela que viajou tão tranquilamente - isto é, tranquilamente em ritmo para deixar o país e aproveitar o pouco que fosse de suas férias de verão; e isto ela fez - mas agora necessitava correr atrás do exame, do resultado, da logística mantida porque não queria perder ou passar pelos perrengues de tentar cartear a mudança de sua passagem para outra data. Estava tudo certo e passara um vendaval por aquele fim de viagem.
Agora ela, que encontrava refúgio da pandemia naquele país de exatos 5 milhões de habitantes na América Central, menos da metade do Rio Grande do Sul dela, se via contra as paredes da legislação de portarias contra a pandemia. A exigência do teste, que ela conseguiu providenciar em um hospital já na capital San Jose, de prontidão para o reembarque. Havia se deslocado do litoral da Costa Rica para a capital para facilitar seu acesso ao aeroporto no dia derradeiro. Ela realizou o teste e precisava aguardar mais 24 horas na esperança de obter o resultado definitivo na noite anterior de sua viagem. Dramática sua vida naquele instante.
Se acusou e se chibatou pela proposta de tão pitoresca viagem em meio ao caos global, mas de uma coisa não havia errado, a circulação do vírus era menor no país caribenho. Se sentia mais segura e não foi mal acolhida nem pela gerência do hostel, nem por demais visitantes, nem pelas últimas atividades de obrigatoriedade em passar pelos controles estatais. Conseguiu realizar o teste de saúde, foi bem encaminhada e aguardava ansiosa o resultado do teste para deixar aquele novo hostel, o da capital, para chegar cedo ao aeroporto para a viagem de regresso.
Cerrada dos compromissos de viajar fisicamente pelo país, ingressara então em uma viagem mental entre o sentimento de culpa, o desespero, alcançando índices de paranoia. Só faltava pensar que havia uma conspiração para mantê-la presa na América Central. Uma refém brasileira, uma negociação com as embaixadas, a exigência de um resgate, as notícias no telejornal, a família sem comunicação de sua baixa. Não. Era apenas o resultado do teste contra a doença da vez. Mas foi assaltada pelo sentimento de culpa de que não teria a necessidade de se embrenhar em tão distante local, ela que possuía sim a reserva financeira necessária para mais uns dias, mas pensando em no máximo três ou quatro, não uma quarentena caso fosse detectada a doença. E precisaria armar um plano junto ao hostel ou a outro hostel para ser aceita na quarentena. Ou ser aceita em um hospital, em qualquer abrigo em que estivesse a salvo naqueles dias e ao mesmo tempo não comprometesse a saúde de mais gente com o vírus em vigência na sua circulação pelo corpo.
Então era isso. O possível resultado positivo no teste aplicaria sanções financeiras para o seu planejamento, pediria transferências bancárias com a família ou amigos. Precisaria de um local para passar aquele inferno de mais dias, ela já um pouco deteriorada de tamanho calor naquela região absolutamente tropical. Ela já um pouco enjoada do sotaque acentuado dos caribenhos, com um espanhol que nos primeiros dias lhe soava divertido, mas ao final incomodava seus ouvidos, para desembaralhar palavras adjuntas, como o povo local se pronuncia mais rápido - despacito, por favor, señor - e com o aditivo de gírias que nem sempre ela capturava no ar como uma esvoaçante borboleta contra a rede de caça. Era um turbilhão de pensamentos sobre as punições de ousado plano de descanso e de aventura; que se tornava, ao menos ao estresse imediato da incerteza da situação, um plano mais de aventura, sem dúvida. O descanso, se ela podia praticar agora para o corpo, após tantas trilhas, viagens internas na Costa Rica e com uma alimentação diferente da que estava acostumada, a mente não a deixava na esperada paz.
A ansiedade aí não escolhe vítimas de quem já sofra desse mal precocemente. Não adianta. Nos coloquemos na situação de Gisele. Solitária naquele país distante, com a companhia mais próxima de onde nasceu sendo um bando de argentinos ostentadores e falantes aos cotovelos. Aliás, erro nosso, porque o grupo de argentinos e argentinas havia ficado para trás, no litoral, ela estava era trancafiada em San José. Gisele que não conseguia mais sequer se concentrar nas leituras. E era apenas um dia o aguardado pela espera. Encontrou companhia no atendente do hostel, embora, pelo revezamento dos turnos, ele estaria com ela a parlar somente durante seis horas. Diminutas horas porque ele atendia a chamadas telefônicas, informações de alguns poucos clientes e urgências de manunteção da limpeza, como se deslocou para passar um pano em um dos banheiros da casa.
Gisele torcia para o hostel não receber mais gente naquela noite, porque assim possivelmente teria um quarto inteiro à disposição para ela, não precisaria "ser expulsa" ou "convidada a se retirar" da habitação caso fosse positivada de covid. Mas e nos demais dias? E a exigência do hostel? O atendente procurava tranquilizá-la de que não costumam receber tantos visitantes. É um hostel mais de passagem, porque a capital não concentrava tantas visitas quanto os que ela havia conhecido no litoral. Ela recordou das lotações maiores, do grupo de argentinos, sorriu e concordou. Ela estaria próxima de um hospital caso houvesse alguma complicação e teria um quarto reservado para si, o máximo de tempo possível, com demais clientes a chegar sendo organizados em outros pontos. A grande confusão é que não havia organização anterior por causa da covid. Ela mesmo pensava: "se peguei a doença, pode ter sido em algum dos outros hostel". E aí recordou dos passeios de ônibus, restaurantes, comércios e todas essas situações em que estava exposta de alguma forma. Mas também equilibrava a disputa no campo de guerra da mente lembrando de que a Costa Rica era muito menos atingida do que o Brasil, à essa altura. "E qual país não era?", se perguntava.
Conferiu em noticiário mais uma vez e constatou que a média de casos e mortes na Costa Rica seria cerca de um terço do seu Rio Grande do Sul. Ou menos, que ela também não era especialista na matemática. Mas de fato eram números significativamente inferiores ao que estaria exposta em outros locais. Tentava reduzir sua penalidade aflitiva com aquele incerto desfecho da viagem.
Após conversarem bastante naquele turno da tarde, o atendente, don Juan, ou ao menos deste nome sim, Juan, prometeu que voltaria na manhã seguinte, trocaria de turno com o outro funcionário se fosse preciso. Queria se despedir dela. Gisele agradeceu a gentileza pela conversa, pela redução de seus impulsos nervosos que a martirizavam naquele momento. Evitou roer as unhas e tentou folhear mais um pouco de seus livros. Ameaçou caminhar um pouco, mas a chuva a surpreendeu. Havia pego tempo bom durante quase toda a viagem, rompendo com quase nenhum plano anterior. Achava ela que a chuva àquela altura era mau indício. Mas também sabia que estava procurando chifres em cabeça de cavalo. Acabou mesmo trancando seus pertences no sistema mundial de armarinhos em hostel e foi para o banho de chuva, a ajudaria com as ideias, hábito que ela sempre curtiu, mesmo na sua cidade gaúcha, um pouco de água pluvial para reerguer os ânimos, prepará-la para aquela última batalha, saber o resultado.
Andou algumas quadras, cuidou atentamente os sinais de trânsito, publicidades e tudo que poderia ajudá-la a recordar com precisão o caminho de volta, já que não levava o celular para a aventura na chuva. Estaria alheia aos mapas virtuais. Pensou na imprudência de sair a caminhar com a água lavando as calçadas, vai que tivesse positivado para a doença e uma chuva daquelas comprometesse seu geralmente bem comportado e triunfante sistema imunológico. Mas de onde que seria derrubada pelos pingos em um calor fascinante daqueles? Estava era novamente procurando ovos no ninho errado.
Foi para espairecer que tomou o rumo das ruas, mas continuava concentrada no processamento dos resultados do exame. Para ela, parecia que cada passo que se adiantava poderia alterar alguma coisa na logística dos laboratórios costa-riquenhos. Pensou quantos testes estariam em processamento naquele instante, será que já o dela? Prometeram para a noite. 24 horas... Mas 24 horas deveria ser o prazo máximo, o estendido, ou seja, poderia sair o resultado a qualquer momento. Pediu para que entregassem o resultado no número do hostel, ou por papel no pequeno saguão - mais para sala de estar - ou que telefonassem e anunciassem o resultado final. Pensou em todos os exames que já feito ao longo da vida. Quando quis doar sangue. Deu certo e retornou mais cinco vezes ao hemocentro. Exames para detectar gravidez, todos negativos, ela bem comemorava. Esperava manter esse ótimo índice de aproveitamento. Sempre estivera apta para a doação de sangue, nunca caiu no indesejado oblíquo de adquirir filhos. Pensou que nas bem-feitorias da doação de sangue estava em crédito, em saldo positivo com as entidades reguladoras sobre a face da Terra. Os costa-riquenhos, assim como os brasileiros, em geral apostam na igreja católica, por tantos motivos de suas colonizações, mas ela não sabia ao certo quais eram. Apenas esperava estar em sintonia, do mesmo lado dos sobrepujantes e onipresentes. Queria acreditar que daria tudo certo.
Quando chegou ao hostel, após a caminhada de mais de duas horas, aliviada e reanimada pela liberação dos hormônios na atividade física, tentava manter o otimismo atingido durante as últimas quadras. Mas, ao portão e hall de entrada, já vinha tomada pela ânsia de perguntar ao novo funcionário, substituto de Juan, se havia chegado o resultado do teste. Não havia. Murchou um pouco o resfolegar de suas pétalas. Deixou-se cair sobre uma poltrona e ali passou mais duas horas, após ter pego o celular em meio a seus pertences. Percebeu que as 24 horas haviam sido expiradas. Quase chorou.
O funcionário foi atencioso. Ligou para a clinicagem dos resultados. Ele cobrou, percebeu-se seu tom acentuado na voz, com aspereza para conduzir a chamada telefônica. Gisele achou graça. Mas riu de nervosa. Pensou que o novo funcionário, um tal de Yeferson, estava fazendo mais do que a parte dele, mas lembrou como com Juan pareciam que as coisas estavam fadadas a dar certo. Enquanto rolava as timelines no celular, pensou que Juan daria um jeito, como em um toque de mágica.
Eis que naquela sala de recepção surgiu um vulto pelas portas envidraçadas da entrada, tendo já rompido a primeira grade protetora do prédio. Pela agilidade e precisão dos movimentos logo se viu que não era um cliente comum para o hostel. Ensopado pela chuva que havia apertado e caía torrencialmente nos últimos minutos, o homem retirou o capuz. Era Juan. Trazia consigo uma pasta no interior das roupas.
Cumprimentou rapidamente a Yeferson. Estendeu a misteriosa pasta na direção de Gisele: - Seus exames. Não queriam ceder, mas me identifiquei como sendo do hostel e perceberam que és brasileira. Portanto, aqui está.
Gisele estava muito surpresa com aquela sucessão de acontecimentos nos últimos segundos. Tremeu um pouco o lábio e não menos as mãos para alcançar os papéis que recheavam a pasta. - Não se preocupe. Teste negativo - garantiu Juan, cada vez mais Don.
- Mas não poderemos deixar que passe a noite aqui no hostel. - Novamente ela ficou sem entender. Yeferson também franziu a testa, desentendido. Mas aí olhou melhor para Gisele, custou meio segundo para entender. Tirou a prova real ao voltar os olhos para o colega. Juan também já entregava as pistas todas.
- Pode ir para minha casa. Fica por minha conta. - Ele tranquilizou-a. Gisele uniu o alívio instantâneo do resultado negativo do teste com a nova possibilidade em sua vida. Ao fundo tocava a música Incendiémonos, da banda La Beriso.
Enquanto sua mente seguia a divagar, juntava sua bagagem para deixar o quartinho dos últimos tempos. Sorria sozinha e prestou atenção na letra, enquanto Juan dirigia o carro que buscou a algumas quadras dali. No rádio se fazia audível a música No Necesito Nada, do grupo uruguaio No Te Va Gustar, alcançando a América Central na hora exata em que poderia ser convocado por vontade própria. Assim se desenhava o melhor dos seus dias na Costa Rica, embora justamente fosse o último, pois a passagem de avião a chamava e Juan não conseguiria bancar mais do que a noite no seu próprio hostel, o melhor desconto que poderiam oferecer em seu salário.
Renovados de ânimo e de esperança, separaram-se para seguirem suas vidas. Logicamente ficava no ar e nas palavras de Juan o convite para o retorno. Era nisso que ela pensava quando terminava de gravar suas videoaulas. Dava tchau para aquela invasora câmera, baixava o notebook em um gesto decisivo e alçava o olhar para o céu azul ou cinzento (muitas vezes cinzento), sonhando seu retorno à Costa Rica, longe daquelas obrigações de um país que lhe devia tanto.
E lembrava da canção do No Te Va Gustar - Na na na na na...