21 de novembro de 2023

A mulher que sangrava

Não sei porque certas histórias nos cruzam ao caminho, se por destino ou mera coincidência. Essa é uma das dúvidas que movem a humanidade. Estávamos a caminhar pelo trajeto que sempre fazemos em hora também costumeira, entre o meio e o fim da tarde, luminosidade natural ainda em alta, muito longe do pôr das seis. Nosso prédio está sendo pintado de cinza meio azulado, o rapaz não soube informar exatamente o nome da cor e, quando questionado, disparou respostas óbvias em seu gatilho de contestação rasteira e antipática. Somente o ausente chefe deve saber o nome exato da tinta. Mas isso não importa. Importa que estávamos caminhando pela mesma passarela, travessia que inclusive já abordei em meus textos se um dia tiverem ou tiveram a infelicidade de ter cruzado os olhos.

Essa mulher tem uma idade imprecisa, mas não era nova. Nova para morrer. Era cinquentona, estava deitada quando cruzamos por ela. Ela era confundível com ele, certeza que só me acrescentou no caminho de volta. Quantas pessoas passaram por ela desde então? Ela inicialmente estava deitada, de chinelos, tinha uma sacola em sua posse. Não estava no mais confortável. Parecia um pouco estatelada se agora bem me lembro. Não sei se bem me lembro. Sou no momento um narrador vacilante. Discutam isso em aula do tipo de narrador que sou, mas sou um narrador fiel a minhas dúvidas no relato que segue.

Pois quando voltamos, após aquela olhada do mar através de mirantes públicos, depois de pisotearmos as madeiras soltas ou bem cravadas da passarela que se estende após as calçadas de concreto, quando voltamos pela derradeira passarela de madeira, a mulher cambaleava. A mesma mulher logo a identifiquei. O que se passava com ela? Ela andava em zigue-zague, parecia desnorteada. Um líquido escorria de seus domínios. A cor era escura. Desnorteados, desaturdidos ficamos todos com aquela cena que não poderia ser ignorada na estreita passarela de madeira, com mirantes, com detalhes artísticos, com uma mulher em apuros. Ela pingava algo, mas o que será? Me pareceu desde o início ser escuro para ser sangue, mas seria  então um vinho que escapava de sua sacola ou do interior de sua roupa? Os pingos agora dominam minha memória como dominavam a passarela da travessia. Pingos para esquerda, pingos para direita, uma poça desses complexos pingos não identificados de conteúdo. Teria ela se levantado daquele sono em ressaca, vomitado um vinho e depois seguido pingando. Não vi cicatrizes, não vi machucados, mas minha irmã, que me acompanhava, acha ter visto.

Mas o terror não acabava. Ela falava sozinha. Falava que havia chegado sua hora. Seria apenas ressaca? Seria loucura? Teria sido agredida? Teria sido apenas desespero de uma ressaca invencível até trágico momento? Vinho ou sangue? Vinho que para os católicos mais fervorosos também é sangue do maior de todos. Ela escorria, ela se esgueirava, bailava a um lado e ao outro, aos murmúrios e às vezes com voz mais elevada. Observei meu pai passar por ela, na expectativa, na tensão, no temor que aquela criatura esdrúxula nos tropeçasse. Mas estaria doente? Mas que ajuda precisava? E seguia narrando seus infortúnios afirmando vez que outra que quando chega a derradeira hora não há o que possa ser feito. Desafortunada era apelido.

Não éramos os únicos a tão impactante visão. Além dos minutos, muitos, que se passavam entre a vermos deitada ao lado de bancos de madeira do mirante de madeira, da passarela também de madeira, além dos minutos, quantas pessoas haviam passado por ela? E agora, além de nós em presenciar aterrorizante cena, havia um estimado grupo de jovens que deveriam ter saído mais cedo de suas aulas de ensino médio ou mesmo estudavam só de manhã e passavam a tarde de bobeira maior na praia. Os jovens também não ligaram, já a conheciam? Nem se deram o trabalho de no fluxo de consciência antes de dormir formular tamanho relato que ora vos apresento?

Os jovens a ignoraram. Cruzamos pela senhora em polvorosa. Em polvorosa mais do que ela, que aceitava seu destino trágico, nós por não sabermos reagir a essa cena. Minha mãe costuma encobrir visões indesejáveis, nos imaginou "normais", eu e minha irmã a vida toda, agora adultos estamos mais diagnosticados e contemplados por remédios. Inadequações em nossas vidas e em outros episódios, como bem me recordo de uma ladra em um bagageiro de camionete quando voltávamos do Laranjal em Pelotas e os carros de Polícia que a seguiam, e logo também nos seguiam, nós imbretados nesta cena. Eles apagaram da memória, mas em minha memória infantil jamais esqueci dessa perseguição de carro. Que, caso não tenha havido, permanece tão viva em meu fluxo de memória que posso ser o maior inventor do mundo.

Enfim, meus pais procuram apagar cenas pitorescas negativas de suas memórias, anulam o trauma antes que esse os castigue. Mas eu, meus caros, eu sou castigado, açoitado das piores formas e, em noites de insônia, talvez eu conviva com a imagem da bêbada ou gravemente ferida que nos cruzou o caminho. Passou por vários. Corredores de rua cruzam aquela passarela. Pichadores algum dia ou alguma noite, mais provável, a cruzaram. Iniciais NZ da crew que reproduziu sua tag naquelas madeiras infames. Pais e mães com crianças pequenas cruzam bem quista passarela sobre o mato, vegetação natural ornamentada com garrafas de energético Baly daquela praia catarinense. Mulheres de saias curtas, homens tatuados, idosos procurando manter-se em atividade física cruzam aquela passarela. Quantos passaram por semelhante desgraça degradante presenciada? Quem a ajudou? Lamento ou não que nós não fomos?

Ela seguiu a proferir os impropérios. Desafiava as portas do céu ou as portas do inferno para quem acredita. Estava desvairada, mais do que a pauliceia de Andrade, estava mais para lá do que para cá, a cidade de Bagdá havia ficado quilômetros atrás. Ela proferia insultos, ameaças aceitáveis pela sua desfigurante posição. Ela prosseguiu. Prosseguiu não só na voz alta, mas nos passos trôpegos que venceram toda aquela extensão de passarela, cada tábua de madeira justaposta. Ela chegou no caminho concretado, passou pelo chuveirão que a milhares auxilia a tirar areia e sal a cada verão. Ela subiu a rua em formato de pouco inclinada rampa. Ela vencia a cada passo, o vinho ou sangue, o sangue ou vinho que não mais escorregava em eternos desconcertantes pingos. Marcas escuras e obscuras sobre o chão daquela madeira manchada para sempre em minha memória.

Minha irmã acelerou os passos, ela mais espirituosa, considerada até medium pelos que assim acreditam e ritualizam em sessões espíritas. Ela de cabelos, tenho certeza, arrepiados pelo corpo e vencendo antes de nós o palco trágico da passarela. Ela que tomou impulso e velocidade atlética poucas vezes vista em suas manobras caminhantes. Mas embora cada um de nós espectadores termos ultrapassado a distância da passarela, nossos olhos insistiam mais do que em qualquer outra vez por ali em olhar para trás. E a senhora avançava. Um zumbi branco, moreno de sol no exato dia em memória de outro zumbi, o maior deles, o dos Palmares, na marcação e demarcação do 20 de novembro para invadir nossos culpados fluxos de consciência de desigual Brasil.

E na Santa Catarina, estado de muitas vezes poucas consciências, que ignora o poeta maior Cruz e Sousa e ignora as cruzes da professora Antonieta de Barros, precursora do Dia do Professor, 15 de outubro, no Brasil, essa Santa Catarina que também permite que uma mulher cruze metros e mais metros sem ser interpelada pelo 'quê houve, minha senhora?'. Essa que talvez seja conhecida por outros, talvez mesmo pelos ignorantes (no sentido de ignorar) jovens que estavam também reunidos na passarela, conhecida talvez de episódios assim de que não valeriam nossa maior preocupação e atenção, mas não tem jeito, minutos, quase hora perco agora em memória dessa que ainda me invadirá o sono algumas noites por tempo indeterminado. Até onde foi, até onde caminhou, por que ela sentenciava seu próprio fim, como juro, eu, inventor de polpa, bem ouvi? Ela que subia a rua em inclinação de rampa rumo a, primeiramente, casas, chalés, cabanas de repouso em veraneio, e, mais adiante, passaria pelos portões da capitania dos portos, policiamento e bombeiros pela direção do Porto, casas e mais casas, trilhos, gente caminhante ou motorista. Não fomos nós os que descobrimos a verdade e isso me frustra. Pode ser que eles, em ato de legítima ou não defesa, em defesa ou não pessoal tenham ignorado e superado histórias e mais histórias como essa ao longo dos anos, mas minha memória novamente em terra se remexe, em contragolpes descontrolados se revolta e se refuga. Para onde foi a mulher que vinho sangrava ou sangue vinha?

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