26 de fevereiro de 2020

tudo parece há tanto tempo
será que mudei
ante tantos tormentos?

tudo aparece há tanto tempo
será que sei
sair desses tempos?

25 de fevereiro de 2020

diálogo

dialogo meus 16 com meus 76 anos dia logo o dia e a noite um oi que é tchau um só abano

el arte

a arte, eles que combatem
e a minha vai sair
a voar com seu estandarte
nem que eu morra
ou que me matem

minha arte parte a toda parte
não entendo teu objetivo
se atinge a teus e a outros
inimigos
não entendo teu objetivo
reduzir o vidro do teu
abrigo

tradução

na tradução de poemas te aventuras
missão que para mim estás àltura
¿vês? saíres de mais um problema
e se repete a cena em partitura

redes sociais

esta aqui anotei como ideia para um texto
mas, excluindo as rimas, o poema até navega
a ver


Redes sociais aceleram
Processo de depressão e suicídios
Mostram até onde se pode chegar
Encerram a surpresa e o movimento novo
Mostram até onde não se pode chegar
Deprimem pela exclusão
Da conquista ou experiência

Viagens feitas
Vidas já feitas
Receitas com nada
A acrescentar

a sylvia plath

sylvia plath sente
eu me sento
a esperar
sylvia plath

sylvia plath
se alivia em linhas
se ali via
sylvia plath

o mundo que oprime o poeta
o regime que afeta
dessa até a geração neta
daqui até os persas
à espera do cometa
ou do que será
sylvia plath

platônica
plath tônica
atônita, eficiente
melhor que o efervescente
no copo de água tônica

tapetes persas

tapetes e poemas persas
se estendem pelo deserto
fazenda criando eco
pelas nossas conversas

a pele

A pele te protege
Mas o que rege
Tá ali por dentro
A pele te protege
Mas te batem
Se você for preto

propriedades invadidas

passo tempo demais planejando
as coisas da vida
mesmo assim elas não saem
como prometidas
(planejadas)

minhas propriedades de certeza
todas invadidas
minha cabeça por demais
sempre ocupada

subversiva
obediente
subversiva
conflito
oriente e ocidente
minha mente
radiopatrulha nociva

sirene sirene
repressão policial
onde onde
se esconder nas ruas dessa capital

18 de fevereiro de 2020

ondas e marés

"A gata mia, boemia aqui não me tens de regresso"
Faz todo o sentido na vida tumultuada do rapper Black Alien, o Gustavo de Almeida Ribeiro, na época da gravação e lançamento do último disco com 46 anos. Outros temas abordados em Abaixo de Zero: Hello Hell são as experiências e problemas com drogas e como quer distância disso para se manter sóbrio daqui para frente. Com filhos pequenos para criar, aumenta até a necessidade de ficar inteiro para essa importante etapa de sua passagem.

Toda essa introdução para colocar o ponto de que nem sempre e muitas vezes a vida do fã não estará em sintonia com a etapa vivenciada pelo ídolo. A diferença de idade acaba sendo decisiva nesse ponto. Embora algumas características entrem em convergência, o que traz a própria aproximação entre fã e ídolo, outros aspectos os afastam e é interessante que se atente para isso. Apesar dos diferentes pontos nesse tabuleiro em jogo de dados da vida, muitos ensinamentos são aproveitados, ou para a hora, de imediato, ou armazenados no freezer das experiências para quando chegar o momento de utilizá-los.

É uma diferença crucial dos fãs para os ídolos, estes que estão em um aspecto de transição dos 40 para os 50, dos 50 para os 60, dos 60 para os 70 ou até onde forem. Vivenciaram muito mais coisas, colocaram em suas letras, poemas, prosas, textos, blogs, livros, reportagens. Associaram suas vivências e observações com outras vivências e observações. Eles sabem como fazer isso, sabem como conduzir, sabem como infiltrarem-se nesses campos, onde pisar, receitas para o que dá ou não dá certo. E muitas vezes quando erraram, se posicionaram para admitir e para que os mais jovens, ou mesmo de suas gerações ou até mais velhos, não façam isso. São histórias contadas, ensinamentos e alertas.

Outros dois músicos cabem em minhas observações sobre as diferentes etapas em que se encontram, enquanto estou aqui adentrado nos 20 e poucos anos, já em crises dignas de meia idade. O primeiro que lembrei é Humberto Gessinger. Após o encerramento das atividades com os Engenheiros do Hawaii, e a prorrogação do nome Engenheiros do Hawaii com outros músicos, subiu no tapete voador da carreira solo, mas parece que não decolou muito. Lança discos, mas as canções já não emplacam da mesma forma frente a um público que está menos vigoroso com suas empreitadas. Os De Fé que antes tomavam conta da internet estão mais sossegados, em outros passatempos, descobrindo novas músicas ou mesmo acariciando a nostalgia das antigas melodias. Os mais novos vão descobrindo e curtem Engenheiros através de ensinamentos dos mais velhos ou mesmo fuçando pelos amplos arquivos da internet. São letras históricas e que nos acompanham em vários momentos da vida, o que faz todo o sentido que sobrevivam a essas épocas. É como Titãs ou Legião Urbana incessantemente pelos bares em que frequentas, o gerador de memes das noites brasileiras.

Toda essa observação para a carreira solo de Humberto Gessinger, de excursões cada vez mais esvaziadas na web mas de shows ainda lotados para seu sucesso, mesclado às canções antigas, para observar como essa fase entre fã e ídolo pode estar separada em uma ponte difícil demais de obter ligação. É como o trecho de música dele em que nem caiu a ficha e caiu a ligação. Perde-se essa completa identidade que te acompanhava nas primeiras músicas. Ainda há muita highway para quem sabe encontrar seus ensinamentos novamente. Também admiti-se aqui que o referencial nem sempre tem aquilo tudo para se passar. Nem sempre que se pega uma caneta ou um violão muda-se por completo a vida do ouvinte ou leitor. A inspiração tem de estar do lado de lá também. A vontade de se inspirar com a inspiração tem de estar do lado de cá também.

Toda essa observação para afirmar que não tenho me identificado como me identificava e mesmo as canções antigas estão guardadas em recantos emocionais de meu coração; nem sempre mexo neles. De vez em quando é bom ouvir, lembrar disso ou daquilo, relembrar uma lição ou outra, mas "agora é bola pra frente, agora é bola no chão". Tem outros grenais.

Outro gremista nessa viagem toda é o músico de Venâncio Aires, o Wander Wildner. Em alguns pontos em comum com Gessinger, o fim da banda Replicantes como conhecíamos e a partida para uma carreira solo, que já dura bem mais tempo. Muitos e muitos discos, passando dos 13 para 14 volumes. Com ele vivo outra identificação, a carreira solo me diz muito mais do que Humberto tem me dito. Mesmo assim, a noção de que Wanderley Luis Wildner é agora e sexagenário, nem sempre vai abordar sexo e drogas e desejos obscuros em suas canções.

É bem provável inclusive que não faça mais isso. Não muito. Está em uma fase mais calma, em um autodescobrimento, vivendo entre os shows no extremo Sul brasileiro e as voltas para Santa Catarina, para relaxar entre o Campeche e o Balneário das Gaivotas. Comenta em entrevistas que está aprendendo com a física quântica, que pensa em matéria e energia, que a energia e as vibrações ditam muito do que ocorre e nos cerca. E quem ousa dizer que não? A biologia, a química e a física estão por toda parte. E nós poquitos aqui tentando surfar melhor nesse mar e moto. Com essas explicações, reflito e refriso que tenho me identificado mais com as paradas de Wander, que está lançando álbuns quase anualmente em músicas inéditas e regravações. Inédito pelo que está acontecendo em sua vida, se descobrindo e passando mensagens adiante; regravações do que para ele continua importando e fazendo sentido subir em um palco e mandar ver para os novos fãs que o descobrem e para os antigos, com o tamanho respeito ao carinho nostálgico de cada um.

Ser músico é um pouco dessa transição. Continuar surfando nessas águas, com novas manobras, novos alcances, novas praias, mas entender que não se pode desancorar por completo dos passos que feitos. As pessoas consomem suas músicas, seus discos, suas ideias por um acúmulo. Algumas serão eternamente gratas pelo primeiro disco, pelas primeiras canções e outras vão seguir acompanhando a carreira porque ainda se identificam, apesar da diferença de idade.

Um escritor também passa por isso, como o próprio uruguaio Eduardo Galeano, de maior fama pelo livro de brilhante título também, as Veias Abertas da América Latina (que Black Alien parece ter adaptado daí, ou não, para renomear nossas Américas como Latrinas de outros). Galeano muito comentava sobre adaptações, mudanças que faria nas Veias Abertas (da América Latina), mas o que estava feito, estava feito e as pessoas compravam e liam e assim estava um dos maiores feitos do escritor uruguaio, de tantos outros títulos importantes em latinidades.


Wander Wildner comenta bem essa ideia de assimilar por seus antigos fãs e por seus fãs que seguem o acompanhando, em um grupo que parece melhor acolher os que chegaram por último. Tem espaço na janela do bonde ainda, ao que me consta opinar. O músico das pequenas multidões, como é chamado.

Muitos desses escritores, músicos, artistas em geral, passaram por períodos de baixa, perrengues grandes, o que também é combustível para contarem suas experiências. Transformarem os maus bocados em canções, poemas e prosas da melhor qualidade. É o dito aquele do mar calmo não formar os melhores marinheiros. Entretanto, é o fã procurar entender essas diferentes etapas da vida de cada um. A hora de acelerar e a hora de puxar o freio. A hora de aproximar e a hora de distanciar. A hora de colher e do que já não nos identificamos tanto.

Humberto Gessinger dizia que produzia a sua arte, conforme sua introdução em rede social de que "faz música" e faz música com o que ele sente, com o que ele vive, com o que acredita. Conta que não liga muito para o que vão pensar e fazer a partir do que ouvem de seus trabalhos, mas que segue fazendo. É um ponto confiante de quem sabe que essa receita já deu muito certo. Escritor voraz desde a juventude, produzia muitas letras de músicas e boa parte de seu material nunca foi utilizado. Acreditou, apostou onde estava confiante e colheu safras cheias. Segue embalando melodias com suas crenças e ideais e encontrando quem escute, dos mais velhos aos mais novos. Bom para quem está em sintonia.

A relação entre quem busca um referencial e quem é o referencial é assim. Os navios precisam dos faróis, mas não vão estar sempre próximos aos faróis. Às vezes nos arriscamos a outras águas e navegações mais distantes. Suas luzes ainda estarão lá, para outras embarcações que necessitem na hora certa em um certo lugar. O próprio Humberto me auxilia a encerrar, onde é preciso deixar a onda te levar.

17 de fevereiro de 2020

aos pouquinhos

pensei
pensei e não quero morrer
dormindo
nem de forma inesperada
quero uma morte
aos pouquinhos
como o pesar dos comprimidos
ou sua mão em carinho
a me alisar
ou com a invenção
de não estar
sozinho

rota 66

Pensou em subir na vida
Notou que os degraus eram os seus semelhantes
Que a escada era feita de homens curvados
De crianças maltrapilhas
De velhos com fome
Pediu perdão 

João Augusto Diniz Junqueira
morto pelas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar
a polícia assassina de São Paulo

16 de fevereiro de 2020

os dois lados

É evidente que há situações em que existem mais do que dois lados em disputa, em conflito, em cabo de guerra. Não, não sei especificar, talvez durante o desenvolvimento de minha fala venham exemplos. Por enquanto vou me atenuar pelo que pensei anteriormente. O que eu pensei? Pois bem, sobre os diabos dos dois lados. Sobre a minha incapacidade de formular um gozo ou uma felicidade plena. Antes eu conseguia, sabe, era mais jovem, desconhecia muitas da infelicidades, das tiranias, das maldades, do que vinha adiante, compreende? Acredito que algumas situações nos moldem definitivamente...

Sim, acredito em uma constante mudança, passamos por novas situações, por novas experiências e isso modifica os conceitos que existiam na gente, nossas interpretações... Mas algumas coisas forjam e das poucas coisas que aprendi com meu pai é que é difícil ficar nisso de distorcer ferro. Nos acostamentos em estradas elevadas, só se mexe naquilo se um caminhão muito pesado colidiu. Sim, uma droga de exemplo, mas foi o que eu pensei agora para ilustrar.

Os dois lados... bem, os dois lados. São casos como o gozo que deveria ser pleno em uma formatura. Ficam lançando esses comentários de que é o desempregado de amanhã. E muitas vezes é verdade, a não ser que sua família tenha uma empresa nesse ramo em que está concluindo a graduação. A não ser que seja de confiança da empresa que estagiou. É difícil eles quererem pagar o que você merece, mesmo que o piso salarial. Procuram estagiário e tu que vá procurar outro canto. Formaturas. Formaturas são a presença, mas são a ausência também, compreende? A família dificilmente está completa. Pode-se lamentar o que não pegou o voo ou a estrada a tempo, mas também a lamentação definitiva, daqueles que já se foram. Assim são os aniversários e as festividades como natais em família quando a idade se avança. Algumas crianças convivem com isso desde a infância, notando que o avô ou aquele tio já não vem, quando não for pior e a ausência for na própria casa. Acaba se passando por isso. As presenças e as ausências...

Mesmo para procurar mulher está brabo, bicho... É a que está ali, mas é a que não está. É a que não vai mais estar. Quando consegue um bom serviço (risos), mesmo assim depois vai ser atacado pela lembrança. Que diabos fomos deixar acontecer... isso parecia besteira de filme. Me passa um cigarro... É, é, parecia besteira de filme, daqueles que não gosto de assistir. Nunca gostei. Preferia escarrar naquele copo de água com açúcar. Mas agora estou dentro do copo. Uma verdadeira tempestade no copo d'água (risos). Registrou essa? Registre essa, por favor.

Acontece na família, acontece saindo da família com as mulheres. São as coisas que elas têm em comum e são as coisas em que todas se diferenciam. Talvez não só as mulheres... é, talvez não só elas. As pessoas nos seus detalhes, se você for específico. Especifista, não existe essa palavra. Específico, então. Sendo bem detalhista e específico, você vai perceber e isso pode ser um tormento. Vai querer que fosse assim e não assado. Aí entra no diabo do campo do perfeccionismo. Sempre fui duro comigo mesmo, compreende? E às vezes deposito isso nos outros. É inevitável.

Liga a televisão aí de canto, quero saber quanto está o jogo. Depois já me passa outro cigarro, vou precisar. Obrigado, obrigado. O que mais que eu posso dizer? Depositar esses desejos no que as pessoas não são? Pode ser. Às vezes observo a sociedade, pode ser no seu mínimo detalhe em zoom, câmera fechada em uma pessoa ali ou outra lá. Muitas vezes as de lá (risos). Mas penso como fazer parte daquilo, entende? E é difícil se infiltrar. As rotinas das pessoas se distanciam, são muito diferentes. Há o horário de trabalho, as pessoas acabam se apegando em quem está próximo. Grupos de estudo nas faculdades, depois o grupo da própria empresa. Pra quem trabalha em empresa, esse diabo do capital. Não, não vamos entrar nisso, sei o quanto você detesta que eu entre nesse tópico. Sei que me desvio muito, ainda bem que não sou o caminhão pesado que vai colidir na lateral da pista, hein? Sei, foi péssima essa. Ainda odiando esse exemplo jogado fora.

Mas eu dizia que as pessoas procuram quem está próximo. Fazem o possível de melhor convívio social com o quem têm, com o que podem, com o que está perto. Eu não. Acabo me amarrando em casa boa parte do tempo, é o que eu gosto. Minhas leituras, meus filmes, meu futebol. Acho que vai dar Caxias. Registre, registre que eu acho que vai dar vitória do Caxias. Se os grenás perderem vai ser mais uma prova da minha incapacidade, que eu erro, porque sou humano. Vou abrir no celular aqui quanto está a cotação de apostas. É, a maioria também está com o Caxias, está vendo? Está com o Caxias. Me desviei do assunto de novo, quem ler esse registro... está registrando, hein? Registre, quem ler vai me odiar pela demora. Mas me conhecem, sabem que já cheguei em boa parte do que eu queria. Aí me desvio. Mas entenderam... se não entenderam, não entenderam. O que posso fazer? (risos)

Acabo me amarrando em casa, eu dizia. Me imagino em algumas situações, mas acho que podemos voltar para a metáfora de ter filhos. O quê? Sim, metáfora, espero que seja distante como uma metáfora, não uma situação real que eu tenha que lidar logo adiante. A metáfora de ter filhos consiste de que podem ser maravilhosos, mas você aguenta o tranco? Fraldas, gastos, investimentos, investimentos e mais gastos. Responsabilidade permanente. Se quiser, grife permanente. Não pode se descuidar. Não é como uma planta, nem um animal de estimação. Essa responsabilidade vai te acompanhar, cara. Percebe, diabos? Toda a infância e você trabalhando em dobro pra garantir o sustento, a mulher e a família dela na sua volta, cobrando que você deveria fazer B e não A. Deveria fazer C, porque a sua ideia de B também não agrada a eles. Mas que diabos eles todos... E a criança lá, o que será dela nesse mundo? Sim, você sabe que eu detesto o mundo. Tem muita coisa boa, mas a trabalheira para alguns momentos que valham a pena. E aí voltamos inclusive para esse começo de análise, nem o gozo pleno mais tenho.

São as presenças e ausências. Prefiro a ausência dessas crianças de minha descendência. Façam com que não nasçam. Deixe que eu faça com que não nasçam. Não se esforcem para que nasçam. Fraldas, alimentação, da mamadeira ao cobrar algo diferente que você não vai ter vontade de cozinhar, jardim de infância, amizades, tecnologia, rolos, drogas. Drogas são um assunto que sempre me derrubam quando relaciono com crianças. Penso nas pequenas que os pais fazem uso, pode ser do álcool até. Penso nas que foram criadas certo e partem para isso. É uma desgraça toda. Falo isso e te peço o terceiro cigarro.

Sim, parto para o terceiro cigarro e sabe quantos eu aproveitei? Nenhum, apenas os consumo. Queimo e passa. E o pior é que parte da saúde vai junto com eles. E daí? Mas se você me mostrar uma foto minha loiro na infância será a verdadeira desgraça. Tudo bem, sei meus problemas e limitações e talvez em algumas coisas eu esteja muito além da expectativa. Ponto para mim. Anote o ponto para mim no placar. Anote nada. Segue 0 a 0 o jogo, espiei umas boas chances enquanto você que não liga para a partida não está vendo. O futebol, trouxe uma pesquisa, traz mais infelicidade do que felicidade aos torcedores. Acho que é isso, somente um time sai campeão nos pontos corridos, outros pensam que passaram perto e outros sofreram para saber se ficam ou não com a vaga na Copa ou se vão ser rebaixados. No final escapam, mas a calvície já aumentou junto com as rugas. É irreversível. E só um comemora e no outro ano e no outro, ele não sendo campeão, já são mais dois anos de estresse contra a temporada de regozijo. Haja lembrança bem utilizada para valer a pena. São ciclos.

Detesto aquelas pessoas que sempre que você vai conversar lembram da mesma coisa. Da mesma partida de futebol, daquele perna de pau que não tem futebol para amarrar a sua chuteira mas lembra quando por acaso acertou um chute no ângulo, fez alguma boa atuação. Supere. Lembra daquele dia, lembra daquela viagem, lembra daquela senhora? Às vezes as pessoas acabam apegadas nisso para não reconhecer a desgraça que se tornaram suas vidas. É melhor viver apoiado nisso do que reconhecer o momento ingrato, insatisfatório. Desculpe, estou estragando a balaca deles. Acho que faço isso muito (risos). Grife esse riso como risos nervosos (risos nervosos).

Tá, prometo que concluo essa no quarto cigarro. São sempre os dois lados. Ter ou não ter filhos, quem está ou não está. Estar aproveitando mas saber que logo acaba, como um cigarro. Não que eu aproveite, aqui apenas pego de empréstimo a metáfora da efemeridade. Isso faz com que eu me acabe como um cigarro, como um fósforo que cumpre sua função para acender o fogão e é depositado no mausoléu das demais cabeças queimadas. E minha função está aqui e nos jornais e com alguns amigos. É, aí está minha função. Cabeça de fósforo me lembra a metáfora do Eduardo Marinho. Somos cabeças de fósforo no dia a dia. E um dia estaremos queimados e depositados junto dos outros. Cemitério. Sem gavetas, conhecimento e aprendizado nas únicas bagagens até o final. Essa é do Forfun, aquela banda de carioquinhas.

Enfim, tá indo embora esse cigarro e eu com ele. Não definitivamente (risos). Apenas risos, não risos nervosos (risos). Isso mesmo. Aproveitei nenhum desses quatro cigarros. Me aproveito de algumas leituras e de experiências do cotidiano para ampliar minhas cartas na mão. Mas acho que as mãos aguentam um número tal de cartas, igual quando você vai comprando do baralho e não vai comprar o baralho todo. Mas comprar do baralho é algo ruim, é mais pela quantidade do que se aguenta. As mãos com as cartas, talvez um carro com um limite de combustível. Um chocólatra no domingo de Páscoa. Overdoses... Não sei se você entendeu, provavelmente não. Ela entenderia.

Me vê o quinto cigarro.
cético
magnético a ideias
raquíticas
e contra o
eclético
anti-cético bucal

a Hilda - vol. II

hilda hilst
ameaçou, não desistiu
passou, cumpriu-se
emitiu-se em mim
tuas criações
aladas pelas asas
das canções
em baladas
são devoções
com sagradas
intenções
ou mesmo nada

são edições
dos teus anos
de rapina
tão de repente
como falcões
foliões
serpentinas
ou serpentes
rastejando ou
em cima
da gente
de sobressalto
ao comício
que nos dá
início aos autos
um fausto
um júbilo
isso ou aquilo
Rio Negro
Rio Nilo
um fauno
uma esfinge
um caldo
que tinge
o laudo
que eu assinava
ser
mas assassino
o papel
noturno diferente
do vespertino
transmutou
mudou regras
aparelho deu tilt
hilda hilst
riu ou não riu
de tudo isso
sentiu
ou nem nutriu
o menor apetite
na água desse rio
passa meu navio
que em ti colide
passa por baixo
de outra bridge
penduro essas linhas
em outro cabide

é meu revide
hilda hilst

a Hilda - vol. I

hilda hilst
tu com teus vinte
eu com os meus
é o seguinte
logo será nada
adeus

15 de fevereiro de 2020

meireles

marquei minha pele
reles
pensando nêssa meireles
circunflexo no primeiro "e"
do nome dessa condessa
condenso teu nome
condensado na fome
do teu corpo
como é que se chama?
minha cabeça não deixa
que eu me esqueça

meireles, esquece eles
porque eu não te esqueço
cruzas, larva das memórias
em todos meus recomeços
me pego de unhas
contra minha pele
ato que não se repele
marco que se repete
unhas que testemunham
testemunhas das extremidades
dilacerantes dos punhos
o que a ti está oculto
é o que mais vejo
tumulto no meu culto
de vozes em gracejo
bendita sois vós
meu desejo

baladas

no primeiro verso verão que é para
hilda hilst

hild hilst
não é rio
é mar
navegante
na vertente
vigorosa
rosa
resplandecente

hilda hilst
tossiu tantas frases
coloriu tantas árvores
mais de mil
tanto ainda fazes
hilda hilst



o rio

tão diferente é o rio
do mar
ambos impossíveis
domar
você riu
a me salgar

inquietude

poesia pra mim
é o que me faz escrever poesia
por inquietude
cobiça ou inveja
que também são inquietude

14 de fevereiro de 2020

mãe, te acostuma

mãe, te acostuma
com as coisas estranhas da vida
que o tanto que tu viu
não é mais parte da rotina
que o que serviu
é inútil em qualquer brique de esquina
o que nem se pensava
agora é
custas a crer, mas peço que vejas
de novo
as mudanças das redondezas
em poucas andanças vês
e vês de novo
o chamariz, o engodo
o modo como é armado
o trottoir de uma sociedade atriz
e o que mudava um triz ali
um triz de lá, agora é um atacado
de mudanças de patamar
os preços, as preces o para quê
as praças, os passos e quem vê
quem ainda vê
a efemeridade do que passa
os nomes das lojas que fecham
as agendas celulares mudadas
os contatos mutados
os ares que mudam
entre as peixarias e barbearias
entre as novidades que estão nos sebos
e as pessoas que vão perceber tarde
mas amanhã acordam cedo

13 de fevereiro de 2020

a terceirização da culpabilidade

Pessoas gostam de ter do que reclamar para eliminar, escantear, diluir suas parcelas de culpa. É como se fossem comprimidos colocados à língua na espera de que sumam e tragam alívio e paz.

Por experiências próprias e que observo, percebo como essa regra se aplica constantemente aos arredores. As pessoas se relacionam com pessoas ruins para o seu bem estar, que fazem mal para elas, mas insistem, na esperança de que esse sofrimento trazido seja superior ao que a própria pessoa se causa. É a terceirização da culpa, o jogar o problema ao próximo, é apontar o dedo de que o outro é o problema. Na frase clássica, utilizada em tantas literaturas e até músicas: o inferno são os outros.

Uma sociedade carente de atenção e relaxada em relação à autocrítica. As pessoas não percebem onde erram e porque erram, assim estão fadadas ao encalço de insistir nos mesmos erros. Procuram o progressos, encontram o entrave.

Mas essa cancela posicionada devidamente na região do abdômen, próxima ao vital órgão chamado âmago, na verdade é um desejo intrínseco no vivente. Ele quer estar ali bloqueado, onde, através de suas reclamações e resmungos, sente-se conciliado consigo próprio. A sensação de arremessar a culpa nos demais como se fosse uma rede de pesca é tudo o que esse pescador de ilusões necessita.

A culpa está na família, no emprego, na falta dele, no sistema, nos amigos, mas jamais em si. É como um enfeitiçado incapaz de ver sua flagelação disfarçada. É como uma estátua petrificada em visão.

A culpa está sempre adiante, nunca no núcleo de quem a sente. Essa terceirização, o observar da culpa à distância satisfaz o indivíduo sofredor. Prefere ele sofrer pela culpabilidade de agentes externos do que sentir-se o motivo da própria injúria.

A condição de vítima é sua monumental preferência, desde que saia inocente do processo jurídico de sua mente. Sentado ao banco dos réus, mediante seu próprio juizado, é batido o martelo de sua inocência. Os pequenos homenzinhos, presentes e enfileirados tal qual no imaginário do personagem principal de Exército de um Homem Só, de Moacyr Scliar, esses aplaudem o indivíduo e o encorajam a seguir assim.

Que assim seja, ouve-se o amém. Não precisa mudar um pelo, não precisa cambiar uma pena de lugar. Está tudo devidamente como deveria estar, seja sua essência e culpabilize os terceiros. A mão da inocência e da benevolência apalpa seu couro cabeludo como se domestica a um cão. Os afagos são muito merecidos nesse encontro com a calmaria após a explosão do tempestuar. A descoberta de que a culpa estava o tempo todo nos agentes externos faz a água tornar-se cristalina e o jorro é satisfatório como o esguichar de um hidrante na calçada de uma rua asfaltada envolta em um calor de 40 e poucos graus.

Entretanto, não encarar de frente a problemática constituinte obriga nosso nobre indivíduo social a repetir sus errores logo adiante. Com isso, o insigne relevante de sua própria vida vai cair em novos buracos pelo tumultuado caminho. Aos tropicões seguirá resmungando contra quem colocou toda e qualquer pedra em seu trejeito, inclusive contra as inofensivas pedras que choram sozinhas no mesmo lugar, como diria Seixas.

Esse indivíduo se torna destrutivo e autodestrutivo. É plenamente perigoso pelas artimanhas que sua mente distorcida formula, encarando inimigos a torto e a direito, mais a torto do que a direito. É como um guerrilheiro cego com uma metralhadora em suas mãos, incapaz de se guiar inclusive pelas vozes de seus companheiros. Enquanto catapulta suas missões impossíveis, porque o combate deveria ser muito mais interno do que externo, ao menos nesse âmbito inicial de que procuramos aqui desenvolver a questão, o indivíduo regressa de seus cansativos dias contra inimigos imaginários e distanciados e tenta, em paz com seus tribunais cujo é dono, desfrutar das horas de sono antes das próximas sanções causantes de seu protocolo ranzinza. 

É importante lembrar que essa esfera pode existir tanto no ramo afetivo como profissional. Colocar sempre a culpa sem horários, em seu local de trabalho, em equipamentos, no bebedouro, no chefe, na caneta, no tinteiro, na máquina, no computador, na enfermeira, na secretária, no enfermeiro, no secretário, na colega, no colega, no transporte, na venda, no armazém que acerca seu ofício, tudo isso tende a desviar o foco do que a pessoa pode fazer por ela mesma. Onde é possível, entre seus afazeres, minimizar os transtornos que talvez estejam realmente nesses itens citados, mas que podem ser combatidos, enfrentados e não somente resmungados aos quatro ventos?

É possível que se continue o pensamento e as ações críticas aos fatores externos e extenuantes do dia a dia, mas não se pode perder de vista os erros próprios a serem corrigidos. A autocrítica que, severa demais é amarra, mas, presente como se deve existir, faz com que as noções de culpabilidade permitam o avanço e o progresso em condições de vivência. É encarar essa máxima com o ideal de um legado do amanhã superar o ontem. Façamos nós mesmos uma luz brilhante nesse mundo canalha.

6 de fevereiro de 2020

o susto

Havia chegado em uma área escura com raras luminosidades. Aliás, assim se desenvolve sumariamente esse nefasto episódio capaz de colocar em dúvida a sanidade dos mais sãos. Para quem tenha o fio desencapado para o absurdo, o prato é cheio, mas não se recomenda repetir.

Todavia, afirmamos aqui que havia chegado em uma área escura com raras luminescências. Agora pensando em tal descrição, era como que uma feira, daquelas quermesses organizadas aos dias de santos juninos. Mas tudo era mais sinistro, a começar pelo esforço para enxergar o que cada casa significava. As paredes eram escuras e inalcançáveis, tanto ao esforço apertado dos olhos quanto na possibilidade de sair do centro daquela área rumo às extremidades. As pernas quase que paralisavam. Era, sem dúvida, um pesadelo.

Ao passo que se movimentava pelo centro daquelas inebriantes cavernas com raros e confusos letreiros luminosos, ele sentia-se como quando era criança e via as vendas de bebidas alcoólicas dos capetas e outras misturas. A proximidade com outras misturas e o próprio capeta era real dessa vez. Em deslocamento tentando entender onde estava, também sentiu como se ali fosse um cabaré obscuro, onde o visitante, não importando quanta grana portasse, não era bem-vindo. Mas algo nas luminosidades, em graus vermelhos e fluorescentes, chamava a atenção dos iniciados.

Conseguia assemelhar aquele episódio às festas obscuras de sua vizinhança imediata, quando o abuso de drogas se fazia sentir pelo excesso de gritos, em grandezas diretamente proporcionais. Não sabia a que tipo de rituais, exatamente, se dedicavam, mas sabia que algo ali havia de místico nas reincidências e no crescente interesse de diferentes participantes, aqueles que estacionavam seus carros, povoando as vagas nas madrugadas mais gélidas ou mais quentes.

Naquele buraco em verossimilhanças com o aprofundar de uma caverna, tentava achar uma saída. Ao menos buscar que mais presenças conhecidas o indicassem algum caminho. O melhor, para fugir dos repentinos arrepios, era cair fora. Mas algo despertava sua curiosidade para prosseguir nas entranhas daquele esconderijo.

As mulheres que, em circunstâncias normais àquela espécie de beco, deveriam estar em danças convidativas, na verdade auxiliavam no cerco do ambiente. Viu genitálias estranhas e formatos que não condiziam com a realidade. Apesar disso, experimentou alguma entrada ao acaso. Uma péssima escolha.

A escuridão de fora com o exibicionismo das luzes de neon piorou ao cruzar aquela porta. A única certeza que ele tinha é que tudo aquilo estava distante das civilizações cidadãs. Era no meio do nada, isto era. Ele deparou-se com uma sala macabra, que, entretanto, apresentava elementos comuns à sua memória. Uma cama de casal com os trançados véus de um mosqueteiro para proteger dos insetos em geral. Um aquário ao canto, com um peixe a rodopiar inquieto e a produzir bolhas, um estado de vida naquela fantasia de mau gosto.

Notou que a cama de casal ficava para um canto, enquanto uma mesa rústica, em grossa e secular madeira esperava a reunião de não sabia quem. Não sabia se ele era um dos convidados a se sentar à mesa ou um mero intruso. Sentia-se intrusivo. Absorvia o que aquela escuridão poderia trazer de novidades.

As cadeiras, sim, estavam posicionadas. Formavam o aproximado desenho de uma circunferência, como se a aguardar um ritual. Nos vultos fantasmagóricos que só poderiam interagir-se daquela maneira em um sonho, percebeu ao menos uma criança, muito pequena, naquela idade em que ele nunca sabia entre cinco e oito anos. Deduziu que ela era o mais nova possível. Se não tivesse os cinco completos, talvez até mesmo quatro era de se considerar. Era loira e a representante mais velha, provavelmente de sua ascendência, era a interlocutora para suas movimentações. A criança aparentava um estado normal. Caindo ele na realidade e batendo o martelo de que a criaturinha deveria ter entre os 4 e 5 anos mesmo.

A fim de tornar a treva menos volumosa, a tia daquela criança produzia chamas em velas. Uma de cada vez ela foi aumentando a luminosidade daquela antiquada toca, que, na ausência dos ventos externos do covil em forma de caverna, mantinha todas as velas acesas. Apesar disso, ao invés do ambiente tornar-se mais aconchegante e sinalizado, aquilo parecia ainda mais fantasmagórico. Tantas velas acesas ao entorno da mesa e, mais do que isso, agora também circundando a própria cama, com suas colchas e os véus dos mosqueteiros de renda.

Ele assistia, imóvel, àquele espetáculo ritualístico. Se perguntava o que poderia acontecer. A criança carregava uma boneca sob seu braço e fazia voltas e mais voltas naquele recinto, talvez imaginando alguma brincadeira que não compartilhava em voz alta. Estava andarilha, despojada, mas carregava sua própria seriedade nas escolhas de caminhar para cima e para baixo. Enquanto ela se movimentava como uma partícula descontrolada, a tia, ao que ele descobriu por meio da criança chamar-se Tia Jenny, mantinha sua postura cuidadosa em acender, vela após vela, aquela procissão fétida em cera.

Quando o fogo beijou o pavio da última das velas posicionadas e a composição estava em total sintonia, a criança aproximou-se da tal Tia Jenny. Olhou em aparência tímida, só faltando a pequena levar algum de seus indicadores, o que não estava ocupado de carregar a boneca, aos lábios. Com sua voz fina, como um risco naquele silêncio mortuário e com Tia Jenny agora prestando-lhe atenção, ao terminar a tarefa encarregada das velas, a menina manifestou-se:

Tia Jenny... também sou um demônio.

O turbilhão impactante dessa frase trouxe a histeria ao intruso visitante. Seus ouvidos foram brutalmente atacados por um turbilhão de sons. Seus olhos estavam voltados à cena da transformação da pequena em maléfica figura misteriosa. O olhar da pequena e o de Tia Jenny se misturavam em um só, hostil, como uma besta selvagem, insaciável, pronta para atacar sem perguntar antes.

O visitante foi acometido pela transformação, tentava reagir contra os horrores que sua mente presenciava e não mais poderia esquecer. A manipulação mental, criada através daquele peculiar ambiente programado, jogou para o seu sistema nervoso central uma carga imparável de imagens. Rostos, sobretudo rostos passavam diante de seus incrédulos olhos ainda vivos. O visitante se mexia em espasmos, como em convulsões, como se uma epilepsia o acometesse. O pobre sujeito agora encontrava-se deitado a rebobinar aquela violenta fita, que se assemelhava ao encontro de uma onda gigante contra um frágil e desprotegido banhista.

Ele via rostos que não identificava, cenas ligeiras, todas sobrepostas, como uma imensa colagem, como um álbum de fotografias que jamais havia visto, que não lhe pertencia e que não pertencia aos seus conhecimentos; nada que ele já tivesse visto. A sobreposição de imagens o enforcava, como uma corda que apertasse seu pescoço, como se os olhos estivessem em sobrecarga de informações. Faltava-lhe ar e poder de reação. Achou nisso que estaria perdendo para a onda violenta e ensurdecedora.

Como a mente ainda trabalhava, ele pensou que estava passando por uma transfusão de memórias, de informações, de sentidos, de corpo e, por que não, de alma. Sentiu que precisava reagir e pontuar-se como sujeito pensante, como criatura ainda viva em seu corpo inicial. Apesar de seus desgostos pela vida, defendeu-a com unhas e dentes, como afirma o ditado, mas muito mais do que isso. Se impôs contra a cinematografia macabra a qual era obrigado a assistir. Não aguentava aquele contorcionismo de imagens, todas irreais para suas memórias, nada ali pertencia e, talvez, nem humanamente possíveis eram as grotescas imagens.

Se apoiou na mulher que amou, na família que estaria com ele, nos clubes de futebol para os quais torcia. Tentou apoiar os pés no chão daquela areia movediça que o engolia aos poucos. Tentou ficar bandeira de quem ele era para não mais esquecer. Para não deixar aquele turbilhão imagético tomar conta de suas faculdades cerebrais. Mexia incontrolavelmente os braços como se à procura de uma boia para a salvação daquele nítido e impassível afogamento.

Quando sentiu que suas crenças e aquilo que ele amava vencia a batalha, ao menos a batalha, que adiavam àquela transfusão total e forçada, aí conseguiu paralisar seu corpo, o que, em meio aos espasmos epiléticos, o pareceu positivo. Estava deitado como um derrotado de uma luta, mas que entendia que naquele round ainda vencera. Estava estirado ao solo, sem se importar se o chão estava molhado ou onde estava, mas com alguma consciência de ainda estar vivo e em seu cérebro, em sua mente. Odiava muitos de seus incômodos pensamentos diários, mas agradecia naquele segundo por ainda poder pensá-los como antes. Tentava se mexer, mas ainda era cedo para reagir daquele processo desgastante que quase custou sua vida.

Enxergava, ao fundo da desfocada visão que lhe sobrava, enquanto emergia pelo canto de sua boca filetes de saliva, enxergava pessoas vestidas de branco, uma após a outra, a deixarem o recinto. Permanecia imóvel, em seus pensamentos talvez ouvidos por aqueles, talvez não, a raciocinar que tipo de ritual havia sido submetido. Sentiu que, por detalhes, não havia sido capturado para outra dimensão, para outra história que ele não poderia controlar. Sentiu que sua vida pendia por um fio, mas as pessoas de branco saíam do recinto, uma após a outra, em uma aparente desistência. Talvez a invocação daquele mal exigia demais deles para uma noite.

Talvez ele estivesse a salvo. Talvez precisasse fugir. Ainda percorrendo por suas retinas imagens daquelas cartas jamais vistas, rostos desconhecidos, momentos de infância que não lhe pertenciam, quando conseguir apoiar os dois pés ao chão em movimento de se erguer, correu. Correu como a velocidade da luz para longe daquelas trevas e gritava e gritava somente para ter a certeza de que possuía voz e a voz era a sua mesma companheira inerte.

Talvez ele estivesse a salvo. Talvez outra noite dessas seja fatal.

4 de fevereiro de 2020

impérios que operam

ouço umas rima
das melhor, das pior
um monte de obra-prima
o projetado pela mente
também traz suor
faz eu ver
as pedras pra mexer
lá em cima
porque a base é mantida
da minha doutrina
o fixado, rente ao solo
diretrizes, novas regras
e o protocolo
atrizes e atores
atuantes e tolos
todos ingredientes
de um grande bolo
duvidando desse bando
da cereja que quer
estar acima
a massa que se mexe
quase derrete nessa rotina
o clima levado ao forno
ao suborno
aos contornos
periferia
dos cornos que a gente cria
e recria pronto pra briga
no universo de um bolo
cheio de intriga
irriga e molha a massa
'e tudo passa'
é o que eles dizem
com o rosto coberto de cicatrizes
atores e atrizes
atuantes e tolos
todos ingredientes
de um grande bolo
do lobo de wall street
dos rolos, site de apostas
a cabeça no lugar
e as ideias sobrepostas
rotas e caminhos
quantos pergaminhos
quantos diazinhos
para um diabão?
quantos condomínios
cercados, escondidos
e a favela é
o que menos se mostra
na televisão
casas nas árvores
carros em conserto
montanhas, geleiras
motos no deserto
nada me identifico
nada vejo por perto
é certo
dois tiozinhos
sentados num barzinho
pessoa atravessada
deitada no caminho
containers cheios
e o lixo maior
ainda são os entertainers
o entretenimento na indústria
que sempre pulsa
como que faz pra pular
de paraquedas
em um salto daqui
para outro patamar
além dos radares
dos mesmos lugares
hectares, hectares
que só a um pertencem
o nome em sigilo
filme de suspense
gente desconhecida
que nem vai usar
e a reforma agrária
iria tumultuar
tem que deixar quieto
tem que deixar lá
não importam os sem-teto
nem a terra sem arar
nem o ar de São Paulo
nem a polícia do Rio

nem a chuva em BH
nem o covil de Brasília
nem o trânsito da ilha
nem a ervilha do lanche
nem a azeitona
o que pode vir à tona
sem te escandalizar
rompimento de casal
indicados ao Oscar
guarda-sóis ao litoral
outra lesão de Neymar
em seguida carnaval
vírus em outro lugar
Filipinas uma morte
aqui povo sem suporte
da febre amarela
da civil e outras guerra
outras cores de febre
diplomatas que celebrem
as novas eras
os impérios que operam
operações que imperam
que já eram em outras era
pra domesticar a fera
para acalmar o povo
absorve e absorvo
no ibope pelo globo
na letra que eu trovo
bebe água, dá uma trégua
volto em outra corneta
volto com outra bereta
jorge luis borges
o outro, o mesmo
a caneta

3 de fevereiro de 2020

as formigas

Vivia abatumado de seus dias, em uma cansativa mas monótona rotina. Com a insônia que lhe habitava, pendia madrugadas na dúvida se o melhor era se recostar para dormir logo, mesmo correndo o risco de virar-se e virar-se sem efetividade, ou esperar até que a distante terra do sono lhe abatesse. Possuía também a dúvida se gostava era de experimentar o mundo inovador dos sonhos ou achava que neles perdia tempo de novas conquistas, como metas de leitura ou mulheres com quem falava.

O certo nisso tudo é que o relógio era programado para a manhã seguinte e o trabalho no banco privado teria de ser feito no dia posterior. Nisso, ele acordava com aquele som metálico, automático e, ao contrário da firmeza e exatidão da máquina, tateava todo errado para bloquear aquele som repugnante. Tropicava arrastando os chinelos e dava um jeito de melhorar o aspecto externo ao tomar um banho, o que nem sempre funcionava para o seu corpo adquirir a tal da boa vontade.

Se confundia um pouco com o molho das chaves, que não eram muitas, mas lhe exigiam muito do cérebro. A bem da verdade nem se sentia mais vivo como se sentia há alguns anos. A terapia o ajudava, mas custava um tempo, que ele nos turnos matinais dos bancos e com a somatória dos cursos que se inscrevia na esperança de fomentar um currículo melhor para sua área de formação na universidade, hoje não desprovia. Preferia usar melhor seu tempo livre no apanhado de discos que comprava. Alguns vinis sabe-se lá de onde vinham, mas chegavam após as encomendas travarem-se um bom tempo em Curitiba. Sejam as nacionais ou internacionais, mas Curitiba aumentava a ansiedade dele em 110%. Ao chegarem as novidades dos antigos rocks clássicos, música folk e até alguns sucessos alternativos ou indies mais recentes, ele botava para escutar, posicionando cuidadosamente a agulha sobre aquela extremidade, com a ternura de um tatuador caprichoso. E o arrancar musical daquela estrutura rodopiante dentro da vitrola o colocava em boas sensações, aquelas cada vez mais raras para a sua cansativa, porém monótona rotina.

E como contávamos aqui, ele já nem se sentia mais vivo (salvo esses raros momentos). Se sentia era como uma peça em um tabuleiro incontrolável que a nada levaria, a não ser a derrubada sua e das outras peças, de uma maneira inevitável. Ainda por cima pensava que os verdadeiros estrategistas, enxadristas desses jogos complexos eram simplesmente pombos prontos para os chutarem aos montes, isso quando não cagassem por cima das casas daquele grande palco quadriculado.

Esperando ou não sua vez de cair fora do tabuleiro, ele nunca tomava coragem para pedir as contas e encerrar suas atividades. Assim seguia em modo automático tomando os mesmos ônibus, quando possível, sentado nos mesmos lugares, que acostumava e até se irritava quando um estranho ia alocado em seus humildes aconchegos, nem tão longe da saída, nem tão perto da entrada, com visão segura para os demais passageiros. Uma ou outra moça a ser observada, mas a libido menor do que em outros anos. Todavia, era mais interessante olhar para as nucas daqueles passageiros e passageiras sentados à sua frente do que olhar as quantidades monetárias de alguns deles no serviço entediante do banco. Eram horas que custavam a passar e ele sabe que aquilo custaria um rombo na sua conta de horas proveitosas quando os pombos agissem derrubando a todos. Imaginava, na mente fértil, que o banco passaria por uma poderosa corrosão e haveria desespero de acionistas, depositantes e, é claro, obviamente, dos funcionários e funcionárias sôfregos pelas demissões em massa. Ria sozinho com a ideia e realmente não se importava caso aquilo ocorresse. Não se sentia imerso nem levando a sério aquela função, pois era tudo um jogo de tabuleiro em que, peão, iria ser defenestrado, arremessado daquele universo para outro, que também já não lhe apetecia pensar qual. Ele nunca obtivera maiores respostas e cada religião e cada religioso tinham versões alternativas sobre o destino.

Esses devaneios eram extensões, o sonhar acordado quando não estava se preparando para o próximo episódio dos custosos sonhos dormindo. Custosos pela demora em novamente pegar no sono, naquela passagem, transição de terça para quarta, quarta para quinta e o brilho no olhar do final de semana. Ao invés de ouvir discos em casa, talvez passaria a sexta em um bar ou pub temático, algum show ao vivo, banda local ou convidada de outra cidade do interior. Maiores eventos naquela cidade eram raros. Além de raros, muito caros. Seu lidar ansioso preferia investir nos discos por conta própria enquanto isso, sem esperar o trabalho burocrático e vagaroso dos produtores para confirmar concertos. Esses serviços Curitiba nenhuma cuspia nas entregas de sedex ou correios. Até a produção se clarear, ele já teria ouvido muitos e muitos sucessos de seu interesse, não se importando muito com os preços, mas sim com a qualidade daqueles novos produtos cujo até o cheiro de recém-saídos da loja e o plástico-bolha que os envolvia felicitavam. Aquilo eram momentos que ele valorizava tanto quanto outros podiam aproveitarem-se de um café bem passado ou do folhear álbuns de fotografias valiosas, cuidar de flores em um jardim ou uma boêmia sem culpa. Tempos difíceis para cultivar esses belos hábitos. Ele tinha os discos.

Foi em certa tarde de segunda-feira que, já para o final daquele turno vespertino, em casa e na companhia coincidente de uma xícara de café e uma cuca, percebeu caminhar por seus ombros duas formigas, uma em cada ombro. Afastou-as intrigado pelas presenças. Não lembrava de vê-las pelo chão ou pelos cantos. Até conferiu na dispensa da cozinha outras danadas, mas não ocorreu naquele dia. Talvez o doce da cuca ou da geleia. Talvez.

Na manhã seguinte, acordou com mais três formigas em seu colchão. Ficou horrorizado pela ideia de poder ser atacado enquanto dormia. Já havia pensado nisso havia anos, mas nunca se concretizara tal situação hiperbólica de seus pavores. Mas estava acontecendo. Acabou com essas três e revirou o colchão e jogou as colchas para o chão, os lençóis idem. Precisava se livrar daquilo tudo.

Resolvia se chamavam serviço de dedetização ou não. Resolveu esperar mais um pouco. Na ida de ônibus, em seu ombro, mais uma delas. No assento ao lado, raridade estar vazio naquele dia útil, via outras subindo. Ou será que desciam? Ele parecia o centro daquela desgraça. Voltou para casa após afastar mais quatro da mesa do escritório: havia uma subindo pela caneta, outra num porta-lápis e as últimas só bisbilhotando pelos seus papéis.

Em casa, foi direto ao armário verificar suas roupas. Passou cabide por cabide, gaveta de meias e de cuecas para concluir espantado que ali nada havia. Na dispensa da cozinha, conferiu novamente, tampouco havia. Se perguntou se alucinava, se o grau dos óculos estava correto. Alguma coisa motivava aquelas aparições. Enquanto ainda delirava nessas indagações, a coisa se agravou por sentir na pele a subida ou descida de mais algumas. Tomou dois banhos naquela noite para não deixar sombra de dúvida. Na água, viu que meia dúzia dos insetos se afogavam em direção à saída do ralo.

Procurou um médico com consulta dali a dois dias. Enquanto era atormentado pelas formigas na espera de quase 48 horas, ao desembarcar na sala de espera para o consultório, ficou aliviado, com nenhuma coceira no corpo. As próprias picadas pareciam nem existir quando diagnosticado. O médico entendeu nada do que se passava. Ele estava entre o alívio e a apreensão de continuar com isso e não ser entendido. Foi pegar o ônibus de volta para casa que notou novamente o caminhar daqueles pequenos monstrinhos, organizados na aparente desorganização.

Marcou um café com uma amiga que não via há algum tempo. A companhia dela também, apesar de todo o açúcar que depositava no café, afastava aquele mau agouro. Nada de formigas naquele açúcar com café, como ele brincava, não café com açúcar, tamanha a quantidade adocicada. Enquanto na solidão não se livrava delas, reparava que, na chegada de outras pessoas, aqueles intrusos em miniatura desapareciam. De forma forçosa, conseguiu reagir contra aquela situação. Pegou pela agenda do celular, em diversos números no aplicativo para chat, e reuniu pessoas que não via fazia tempo. Apesar de ser recluso, aquilo lhe concedeu uma melhora. Preferia a companhia humana às formigas sobre seu corpo. Disso não tinha dúvida.

Foi um solavanco pesado para mudar um pouco sua rotina. Passou não só a observar aqueles passageiros de ônibus como a puxar conversa com alguns. Também foi mais atencioso e até afetuoso com os atendidos no banco. A experiência das formigas, que ele mantinha como lembrança mesmo após meses (e nisso passariam anos sem esquecer), fez com quem recordasse algum valor à sua posição naquele maldito tabuleiro. Não eram os pombos que o derrubariam ali, ou até seriam, mas não agora. As enviadas formigas, que saíam dele para ele próprio, essas é que precisaram ser derrotadas naqueles angustiantes momentos.

De vez em quando ele ainda acorda meio estranho tateando o despertador no celular. Encontra uma formiga, pega com os dedos como pinças, sorri medonhamente para elas e as encerra mortas em lixeiras ou no próprio vaso sanitário. Elas também estão por ali no banheiro, nos lugares que escolha no ônibus ou até nos retratos que conserva da família na mesa de escritório. É difícil livrar-se delas. Por via das dúvidas, o dedetizador afirmou que o problema não era o espaço ali, que nada encontrava. Percebeu, ao fim desse tragicômico episódio, que ele mesmo precisava combatê-las. Por mais que ainda surjam, tentava renovar as promessas de que só voltaria a encontrá-las quando fosse de forma derradeira, na posição horizontal permanente. Quando os pombos, ah, os malditos pombos, quando esses agissem...