30 de junho de 2019

Do desjejum ao almoço

Toma o seu café em local próximo da vitrine do estabelecimento. É uma mesa de canto, o assento em boas condições, aqueles estofados, infinitamente mais confortáveis do que os bancos altos atrelados ao balcão. Os bancos altos, que fazem os homens e mulheres se assemelharem a pássaros num poleiro, são para os clientes com pressa, pequenas almas desgraçadas por intervalos ínfimos, obrigados a consumirem o café ainda em temperatura pelante, amaldiçoando sobretudo os de camadas finas nos lábios ou sensíveis na língua e nas gengivas.

Mas ele não era desses. Se não tinha todo o tempo do mundo, ao menos possuía o suficiente para procurar aquela mesa do canto, quase sempre desocupada, porque a tolerância em relação ao seu tempo fazia com que ele chegasse cedo e logo se acomodasse. E dali ficava a espiar o movimento, o chamado vai-e-vem de pessoas. Os pobres pássaros nos poleiros, desconfortáveis em calças apertadas e pés que não tocavam o chão, folheando jornais que passavam de dedo em dedo. Isso lhe parecia muito anti-higiênico. Por isso também gostava de conservar o mesmo lugar e trazia o seu próprio jornal. Os três reais não eram problema para ele. Aliás, nem pegar táxi, mesmo com a alta dos preços, se tornava ruim para ele. Preferia pegar táxi, porque os veículos do aplicativo uber deixam registros e pistas demais. Tudo bem pagar um pouco mais caro, não é mesmo? Se bem que geralmente usava seu próprio carro, um Corsa pouco chamativo.

Ele abria o jornal e o esparramava sobre a mesa. Obviamente que a esta hora já havia sinalizado ao jovem rapaz ou à moça do cabelo preso sobre o seu café, que sorria ao pedir. Metódico, ele contabilizava quantas vezes chamava a cada um por mês. Era fim do mês e o placar contabilizava um largo score de 17 a 8 em favor da moça do cabelo preso. Ele ficava imaginando como ela era de cabelo solto, mas quando ela deveria soltá-lo ao fim do expediente, ele já estaria longe. Estaria em seu bairro e na sua casa, nem zona sul e nem zona norte.

O jornal. O jornal por vezes ficava como um mapa do tesouro debruçado de ponta a ponta da superfície quadrada da mesa. Outras vezes servia para praticamente ocultar-lhe o resto para os demais. Era muito vaidoso e às vezes estava com vergonha de sua aparência, ou simplesmente acordara mais estranho do que cordialmente e preferia esconder-se mais do que naquela mesa de canto.

A obsessão. A obsessão por suas escolhas também poderia ser um satisfatório motivo para começar as ocultações logo cedo. Literalmente cedo, nem nove horas da manhã. Podia ler e, com sua boa memória, decorar trechos e trechos do periódico até o intervalo do trabalho da candidata do dia.

Se o placar servil do mês era favorável à moça do cabelo preso, o placar de moças versus rapazes nas escolhas que ele fazia com os olhos sobre o jornal ou enquanto palitava os dentes dava vantagem muito maior às fêmeas. Mas de vez em quando encontrava algum potencial amigo e largava o papo sobre futebol ou política, seus assuntos preferidos, atraindo a atenção de algum homem solitário. De futebol ele sempre gostou e trabalhava com isso havia anos, inovando agora com gravações diretas do seu celular. Era um rosto até bem conhecido com suas bochechas que tornavam a face extremamente saliente. Sua paixão era o telejornalismo, mas, a exemplo da mesa do canto e jornal que usava como trincheira e passatempo, não queria se expor demais, então ficou com a voz do rádio e a cara restrita para os meios virtuais. Acreditava ter espectadores jovens demais para serem suas escolhas tramadas na cafeteria: potenciais encontros íntimos ou amizades por acaso.

Claro, quando em vez aparecia algum jovem e o chamava pelo nome, algum assobio, sempre que chamavam atenção demais arrancavam algum grunhido seu de desaprovação, mas ele gostava da fama simpática e então atendia a pessoa e trocava até uma ideia. Se a pessoa insistisse com o assédio ao profissional ele inventava alguma desculpa, olhava o relógio e dizia que tinha que ir, engolia o resto do café, se houvesse, e partia, lamentando um dia de plano perdido.

Mas vamos passar aos planos efetivos. Passada a página 11 do periódico, já deveria ter traçado a escolha do dia. Seus botes eram precisos, invejáveis a muitos funcionários do ramo ilustrados em livros ficcionais de Agatha Christie, Patricia Highsmith ou Ross Macdonald. Comunicador nato, era bom de papear e convencer. Não fosse a posição confortável que adquirira com o passar dos anos, poderia estar bem encargado de vendedor em alguma empresa de alarmes a planos funerários.

Essa para ele era boa: planos funerários. A verdade é que se aprochegando da pessoa para puxar seus ora descontraídos, ora incisivos assuntos, checava se ele era ou não conhecido da escolha. Obviamente preferia não ser reconhecido, pois vai que abram a boca por aí dizendo que ele chegou puxando assunto e já estaria muito íntimo. "Nem acredita, Fulana, ele quem tomou a iniciativa e já estamos nos seguindo nas redes sociais."

Redes sociais. Preferia evitá-las na puxada de conversa. É lá que o seu rosto circula? É, de fato. E como seguir a pessoa nas redes, ser um dos últimos a fazer isso e ela logo não estar mais lá? Mancada demais, piso escorregadio, dobra no tapete para tropeçar.

Então preferia o bom e velho telefone. E não entregava seu número, fazia questão de afirmar que ele ligaria. Era legal colecionar os bilhetinhos com as caligrafias. Sim, ele lamentava cinematograficamente que não havia trazido o celular, deixou em casa conectado ao carregador num trágico esquecimento. Mas deixe aqui o seu número, eu ligarei.

Não ligava, estava mais era pelo acúmulo de bilhetinhos. Um plano eficiente era perguntar onde a pessoa frequentava e começar a migrar a esse outro lugar. Pra ver se resolvia na segunda, quando não era de primeira ali.

Estacionava em um lugar meio distante, onde sabia que não havia mais câmeras públicas. Já perdeu vários encontros pela distância a pé de onde deixava o carro. Não deixava sempre no mesmo estacionamento. Havia uns ali próximos aos ferro-velhos. Não andava tão chique apesar de seu bom cargo na rádio, que os primeiros fios grisalhos anunciavam no seu tempo de carreira. Os fios se multiplicavam como se multiplicavam os casos.

Não andar tão chique computava que usasse um agasalho por cima, por isso sua época favorita era o outono-inverno, até porque no verão a cidade esvaziava nas fugas para o litoral. O gosto do café não era o mesmo. Na estação quente ele mais lia o jornal do que o usava como plano de fundo e de fuga, até prestava atenção nas linhas tecidas. O agasalho era fundamental para seu disfarce, caso alguma câmera ainda captasse parte da caminhada ao lado da escolhida.

Como morava em um bairro que não levantava suspeita - ingênua sociedade classe média - conseguia arrastar muitas de suas escolhas através da boa oratória e conhecimento. Convites para almoçar para quem dispunha de tempo como ele ou pra quem iniciava seus turnos só mais tarde. Funcionava. Nada como a experiência e a repetição nos atos. Em menos de sete de semáforos (ou sinaleiras, como ele dizia), chegavam ao destino.

Apesar da idade, conservava uma boa força. Era antes do almoço que resolvia a parada. Aprendera há muito que o melhor lugar para golpear era entre o queixo e ouvido. Geralmente a pessoa perdia os sentidos na primeira, evitando qualquer escândalo. De repente quando fosse servir o almoço preparado, deixava respingar algo na roupa da pessoa. Se oferecia para limpar e aplicava o golpe. Terminava o serviço logo na sequência, a tempo de desfrutar da refeição.

A pessoa, que não visualizava a cozinha, nem tinha tempo de perceber que ele só cozinhava o suficiente para um adulto. Não gostava de desperdícios. E procurava arrumar todo o serviço antes do arroz esfriar. Tinha pavor ao arroz frio.

Tinha um grande jardim e vizinhos ausentes. Como os vizinhos eram os atarefados pássaros em poleiros em bancos de cafés, sabia que podia convidá-los seguidamente para olharem os jardins. Eles dificilmente aceitavam, mas ele era caprichoso para quando aceitassem. Metódico. Nada de sangue nas pás ou ferramentas. Nada de buracos ou terras reviradas e dispersas de explicação para estarem ali.

Uma vítima por bimestre estava de bom tamanho. A pesquisa e a margem de erro permitiam isso em boa condição. Ele encerrava o serviço, lavava o rosto com água gelada, mirava suas próprias olheiras de quem acordou cedo, penteava o cabelo para trás, cada vez mais grisalho, ajeitava a gola de seu casaco ou sobretudo. Queria usar a mesma roupa do crime recém cometido, mas preferia trocar para não relacionar a vestimenta da rua.

Celular na mão - estava com ele o tempo inteiro no bolso - hora da gravação do dia. Olá, amigos, aqui é o jornalista *****. A vítima de hoje tem 1,66, cabelos castanhos e olhos mais escuros. O batom vermelho foi elogiável, porque foi duradouro em conservar a cor durante toda a ação. De qualquer forma, o vestido preto dela denotava um ar fúnebre desde que escolheu vesti-lo essa manhã. Creio que a agência dela perdeu uma bela funcionária. Espero que não me incomodem nos próximos dias. É isso, um grande abraço."

Em seguida começava o vídeo sobre esporte no dia. Logo em seguida publicava. Sabia que, caso um dia confundisse o envio, estaria velho demais para seguir os serviços. Até a próxima, um grande abraço.

23 de junho de 2019

#rap: viagem conturbada

quando tem não valoriza
depois que perde, sente falta
percebe que precisa
é a voz na cabeça que avisa
o anjo ou o diabo no ombro que batiza

agiliza
um jeito de se ocupar
de preferência pra agora
mas se demorar
aproveita a viagem
para viajar
na ocupação ou invasão
da mente
a oficina de garagem
daquele do tridente

e passa o pente fino
lacunas deixadas desde menino
conhece o patamar do mezanino
como o pátio é conhecido
pelo farejador canino

redentor
voltar dessa é 'glória ao senhor'
naquela promessa de nova recaída
viagem só de ida
pra voltar a estrada esburacada
na contramão
luz alta na cara
aquela que cega a lógica
que era questão contornada
faz perder a direção nórdica
e a bússola joga fora
escuridão na visão de agora
antes fosse catapora de só uma vez
mas a viagem traz fatura fim de todo mês

ahhh
viagem conturbada
vê quem tá contigo nessa
vê se presta
se ajuda ou atrapalha

ahhh
parou de ler as placas
o mapa em outro colo
olha para o lado e saca
ninguém para pedir socorro

ahhh
subidas e descidas
sinais e sinais de morro

mira o retrovisor
tanta coisa que se deixa
amores, cores, dores
tanta coisa que se queixa
mira outra empreitada
se não geral se desleixa

respira fundo, veste nova paciência
o tempo lá fora exige novas exigências
não era o objetivo, mas agora é da tua agência
pelos mesmos motivos que o camaleão
aprende novas cores
e se infiltra em novos corredores
e tu aí filtra café em coadores
e pensa no que é, no que foi e no que fores
olha pro lado e quem são seus assessores

ahhh
viagem conturbada
vê quem tá contigo nessa
vê se presta
se ajuda ou atrapalha

ahhh
parou de ler as placas
o mapa em outro colo
olha para o lado e saca
ninguém para pedir socorro

ahhh
subidas e descidas
sinais e sinais de morro

17 de junho de 2019

#punk: deixa o disco

você me dá ordem
você me dá ódio
problemas me mordem
outro episódio

cabeça em desordem
encaixe dos módulos
o disco não toca
sobrou algum nódulo

agulha em contato
a fúria rugindo
loucura ao tato
euforia fluindo

deixa o disco rodar
nenhum cisco no lugar
deixa o disco rodar
nenhum risco no radar