28 de junho de 2020

quanto cabe?

quando cabe em uma linha?
se apertar a letra no deslizar da caneta
quanto cabe em uma caneca?
além do café das ideias, das misturas de Chico
quanto cabe num rosto?
o desgosto as caretas os olhos refletidos
quanto cabe no infinito?
ninguém voltou de lá pra comprovar que é
cansou da caminhada após centena de quilômetros
camelos bebem água, cabelos se escaldam sob o sol
o termômetro marca o impossível
quanto cabe nas possibilidades?
as cidades. levantadas. ornamentadas. derrubadas.
quanto cabe em uma árvore?
quantas vidas. abastecidas. não se calcula
e se se calcula ficamos mórbidos
quantos pensamentos em uma órbita
até te ver. folclórica. fonte de renda.
em glória nas emendas memórias discursivas
pensativas. insólitas. magnólias. magnânima.
anima que chega a dar cãibra na língua
me acompanha. me ensina. me arrebata. me arrebanha.
até o leito de um rio. um leito de campanha.
um litro de lenda
quanto cabe sob medida? sob encomenda
no frete daqui a uma fazenda

em perspectiva. a vida que eu preciso
reunida
quanto cabe em uma vida?
caso eu queira em um poema à beira do fim
em um poema cabe bem mais vida
do que vida habitou em mim

o experimento

a porta abre sozinha
e interrompe minha linha de pensamento
o vento fora definha
avante uivante ululante é o vento
os sedimentos da melancolia se empilham
são os quartzos de sofrimento
alegria é uma pedra tão rara, tão cara
quando agarra ela foge ao abrir os dedos
lente de aumento, estudo de campo
é ampla a procura, é diminuta a alegria
entre as areias, os campos de aveia, as baleias
e o aleluia de encontrada alegria
quando transportada, intocada, devidamente guardada
no laboratório abre-se a caixa e nada
alegria ficou naquele momento
a porta bate sozinha
ninguém diz algo, todo mundo adivinha
está encerrado o experimento

me ensine

me ensine o quão sublime pode ser
porque nunca foi assim
não sub nem superestime
os estímulos, os estimes do jardim
use, mas não abuse das frases em latim

me ensine o nome do software
e das galáxias
o que você baixava no limewire
e quantas hemácias você tem
me ensine sobre aquele regime
e os impérios do mandarim
o preço do conserto dos rins, dos sim
e dos casamentos e adultérios
e dos mistérios do fundo dos mares da mente
me ensine, me guilhotine se precisar
sem você já não quero ir pra outro lugar

25 de junho de 2020

Não adianta mesmo ser livre

Acabo de ler On The Road - Viajante Solidário, do escritor descendente de francês, nascido nos Estados Unidos, Jack Kerouac. O sobrenome dele havia me confundido e confunde a muita gente. Não se sabe se pronunciamos de um modo inglês a combinar com o nome Jack, ou se ele era de fato um franco-estadunidense, ou até a presença das letras em semelhança a povos indígenas dos Estados Unidos. Somente para o final do livro, após debochar de algumas pronúncias que lhe conferiam, ele, ao desembarcar para Europa, demonstra sua ansiedade por conhecer a França de seus antepassados. Então devemos computar uma pronunciação francesa. Mas era nada disso o que eu tinha para comentar.

O espírito aventureiro da geração beatnik havia me despertado uma diferença do modus vivendi (pra encher a boca e dizer isso, que nada mais é do que o modo de vida) possível entre um homem e uma mulher na época. E mesmo entre um homem e uma mulher para maiores atualidades, iniciada segunda década do século 21. As viagens de trem, de navio, a espera das noites pelas manhãs, os hotéis baratos e suspeitos, a vida à beira e sobre os trilhos. Quanto tempo duraria uma mulher em semelhante atividade? Não por questionar de modo algum sua resistência, mesmo levando em consideração os episódios sobre as montanhas do noroeste dos Estados Unidos, quase Canadá. Não questionamos aqui capacidades fisiológicas, mas as atividades sociais, o modo como a mulher é vista e tratada na sociedade. Após tantos tipos de viagem, seria permitido que desembarcasse em segurança, sem ser perseguida, sem ser 300% mais importunada, sem correr os maiores riscos de violência dos mais diversos tipos? São algumas questões. Atrela-se que não são restrições à época distante da geração beat nos Estados Unidos, mas temas de ainda grande relevância. É difícil pensar como ocorreria a sobrevivência nessas condições. Repetindo que levando em conta muito os aspectos sociais que cerceiam as desventuras.

A diferença também poderia ser tratada nas relações entre as oportunidades, vistas e tratamentos entre um homem branco, no caso Jack Kerouac, e algum homem negro de mesmas tomadas de decisão. Oportunidades empregatícias, abordagens policiais, consultas de passaportes, etc. Existe uma censura social a respeito de tudo isso. A pessoa, com semelhantes ideias e disposições a vaguear dessa maneira poderia ser censurada durante suas aventuras. Ou, como é mais comum se pensarmos, a própria pessoa, mulher ou homem negro, no caso, poderia se auto-censurar. Não se daria ao estado de perambular, viajantes solitários, dessa maneira incerta e de prerrogativas inconsequentes.

São alguns pensamentos. Penso também nas questões atuais, em mundo pandêmico, censurado e advertido pelos riscos, pelos perigos mortais da covid-19, a doença propagada pelo novo coronavírus. Os indicadores econômicos barranca abajo, mas sobretudo a vida de cada família, de cada pessoa afetada, na perda não de lucros, mas sim de condições básicas de alimentação, de teto para morar. Como houve o caso em Pelotas de uma vila inteira de moradores despejados por ação de reintegração de posse. Leva-se em conta que trata-se de um terreno em absoluto desuso pelos requerentes ditos proprietários, sem alguma urgência que justifica-se a ordem de imediato despejo, onde não houve, por mais do que um mísero turno matinal, conversa entre os concidadãos e as forças policiais responsáveis pela ação do despejo. Pessoas que, em meio a uma pandemia selvagem, que atinge, como há de se esperar, principalmente aos pobres. Pessoas que perdem suas moradias e de hora para outra, com seus poucos pertences, são obrigadas a migrar para residências apertadas de parentes ou procurar ajudas circunstanciais do poder público. E onde está aí o risco do contágio pelo novo vírus? Parece irrelevante para os requerentes proprietários do terreno, para a juíza que autoriza a reintegração de posse e para a prefeitura que permite, que autoriza, que é omissa na ação policial devastadora.

Os indicadores econômicos baixam pelo país, famílias desalojadas, questão levantada rapidamente como um ataque de voleibol. O saneamento básico no Brasil. Não se falava nisso, mas tão logo se falou e o atacante já cravou uma cortada para o chão da quadra adversária. E o time que sofre o ponto é o do povo brasileiro. A privatização não escancaradamente apontada nos pontos de um projeto aprovado no Senado, votada por representantes que popularmente não representam. Pouquíssimos debates, escassas aparições midiáticas a respeito e selada a oportunidade de empresas estrangeiras meterem suas mãos sujas de sangue na água brasileira, em diferentes estados, conforme lançarem-se sobre as burocracias de concessões. A população nada ou quase nada sabe a respeito disso. A militância de A ou B e de C não se entende a respeito. Comemoraram o posicionamento contrário, rogam pragas a quem concordou com abjeta e rasteira ideia. A população mais pobre, nisso tudo, novamente a mercê. Os aprovadores defendem os novos investimentos que virão, as novas oportunidades de ampliação das redes de abastecimento de água e saneamento. A todos, fica o risco, a preocupação, a dúvida do custo das embargantes obras. 

"Tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre. Se tanta gente vive sem ter como comer."

Entre sonhos beatniks de liberdade em um mundo em que muitos sonham ao menos mínimo para alimentação. A defensoria aos oprimidos sob rótulos pejorativos de comunistas. Assim chamam. Preferem talvez os vagabundos que perambulam pelas cidades em busca do seu miserável sustento do que um governo estatizado e que realmente se preocupe com as pessoas mais vulnerabilizadas, o que se costuma - midiaticamente e governamentalmente - se lançar para baixo dos tapetes da república. Válido pensar que a vida da mulher para sobreviver nas ruas é imensamente mais complicada do que a do homem que pode caminhar pela beira dos trilhos em uma visão mais ameaçadora do que ameaçada. Válido pensar naqueles que tornaram-se inválidos para serviços braçais ou mesmo intelectuais com as sequelas de guerras, de conflitos ou mesmo do andar errante pelas ruas. É preciso que se garanta o básico, constitucionalmente.

Como pensar em sonhos libertados enquanto se retiram as casas das pessoas, enquanto o acesso à água e ao saneamento, itens básicos e indispensáveis para uma rotina mínima, ainda não são garantidos? Parei por essa linha de raciocínios entre o cérebro On The Road na companhia beat de Jack Kerouac - o descendente e admirador de franceses - e a impossibilidade brasileira de desfrutar do conforto minimizado que deveria ser preocupação e garantia federalizadas. O que dizer do auxílio emergencial para os desempregados e pessoas em vulnerabilidade, "benefício" assim chamado com disponibilidade por internet, por aplicativo? Quem mais precisa realmente tem como sacar essa proposta? Resoluções distantes. Fiquei em dúvida o que seria o B no meio do nome de Vanessa, mas não quero perturbá-la em perguntar.

21 de junho de 2020

cinco caixas de cerveja

Esperava sentado na praça em frente a um dos prédios da faculdade, que tornava aquele bairro habitualmente ornamentado com rostos jovens estudantis. Ele era um desses rostos jovens, mas na verdade estava apreensivo. Após 15 anos sem conquistas nacionais ou internacionais, o seu clube jogaria a partida decisiva pelo título, após o placar de zero a zero na ida. Uma vitória simples bastaria para passar a limpo a vida inteira de sofrimentos consecutivos.

Iria encontrar seu amigo para rumarem a um bar ali próximo, mas, como saiu de casa cedo, ficou pela expectativa da decisão. Trêmulo, ouvia música nos fones e de vez em quando trocava a posição de braços, cruzados ou estirados, pernas inquietas e pés que iam para frente e para trás, ou mesmo se mexiam ao som do que somente ele escutava. Eis que cruzou um sujeito após determinado tempo ali sentado.

- Não se preocupe, meu jovem. Hoje vamos ser campeões. - Disse o senhor, que familiarizou o papo através da camisa que ambos vestiam. - Já comprei cinco caixas de cerveja e está tudo no meu apartamento. Não há como dar errado. Se não ganharmos, me jogo lá de cima. - E apontou com a chave em direção ao prédio, mostrando que era bem ali próximo.

O jovem apenas sorriu, constrangido com o excesso de detalhes e confiança depositados na fala. Então, surgiu o convite.

- Por que você não me acompanha? O pessoal já está para chegar também.
- Tem certeza?
- Claro, vamos torcer todos pelo mesmo time. Menos o Pedro, que é colorado. Talvez o Jaime, mas seremos maioria e vamos comemorar o resultado juntos. Repito: não tem como dar errado.

Tentou ligar para o amigo que encontraria no bar, mas ele, em deslocamento, provavelmente, não atendeu à chamada.

- Vamos, vamos logo. As geladas estão esperando.
Tentou mais uma chamada enquanto caminhava ao lado do senhor, mas realmente não obteve resposta. Observou a qual rua pertencia o prédio e foi subindo o lance íngreme e estreito de escadarias, sem atentar a qual andar estavam. Era entre o quinto e o sexto, de modo que já estava ofegante na entrada. Foi o dono do apartamento girar a chave e depositar sua jaqueta em um sofá próximo que foi fazer as honras de trazer as primeiras cervejas. Esvaziar a primeira das prometidas cinco caixas. Logo chegariam os demais componentes da mesa à espera do jogo.

Mas os minutos passaram, passaram e a cerveja vinha a fazer efeito. Esqueceu de tentar nova ligação para seu amigo, que deve ter encontrado outro ou voltado para casa. Não entrou em contato ou, se tentou, o próprio, embrigando-se, esteve desconexo da realidade virtual do grupo de mensagens ou da caixa postal que eventualmente cairiam as referidas chamadas. Isolado.

Apenas um jovem rapaz apareceu cinco minutos antes da bola rolar para a grande decisão. Tocou a campainha e o dono não fez cerimônias para levantar-se e anunciar: "deve ser o Richard." Era, de fato, o Richard, um homem negro de aparência bastante forte, com cerca de 30 anos. Richard usava uma boina e repetiu o ato do dono do apartamento ao retirar o casaco e depositá-lo próximo do abandonado antes. Os casacos ocupavam os lugares vagos no sofá. O dono do espaço, que, após muita conversa jogada fora se apresentou como Elton, ofereceu cerveja ao Richard.

- Não, não. Não estou bebendo hoje. Tá, talvez uma só. - Concordou o convidado.

O descoberto por acaso na praça pensou como aquilo era estranho. Ele supor que era o Richard a chegar, mas o próprio Richard não ser muito chegado aos bebericalhos. Mas tudo bem, hora do jogo, autoriza o árbitro e bola rolando em Belo Horizonte.

A partida se desenvolveu de forma nervosa, minutos de ataques adversários, duas grandes defesas de seu goleiro e duas bolas rebatidas, salvadas pela dupla de zaga, o trunfo da equipe. Foi em duas escapadas ofensivas, como contra-ataques organizados, o meio avançando e liberando o ponta-esquerda que o time cantou a vantagem pela taça. Abriu 1x0 no primeiro tempo e decretou 2x0 na etapa final. Havia tempo para reversões, porque o time da casa não se dava por vencido. Descontou e impôs pressão após uma jogada de bola parada, um escanteio. Em caso de novo empate, a decisão iria para os temíveis pênaltis. Mas uma saída inteligente de sua equipe fez com que o terceiro gol sacramentasse a dianteira e assegurasse o reluzido troféus nas mãos dos atletas, comissão e dirigentes. A medalha dourada era deles, a festa fora de casa. A festa no apartamento. Será?

O Richard vibrou no primeiro gol, abriu até sua segunda lata, longe de dar desfalque na promessa das cinco caixas. Se derrubaram uma aquela noite era muito. No segundo gol, o Richard estava na cozinha. Ouviu-se o barulho de ferramentas, ouviu-se o grito de gol do rapazote, da vizinhança, as luzes piscantes dos apartamentos, a comemoração que vinha lá do nível do asfalto. Mas o Richard não parecia interessado em assistir ao replay, nem sequer perguntou se foi outra bucha do Rojas. No desconto, Richard ficou apreensivo, notou que o convidado desconhecido dele não iria relaxar até o fim do jogo. Mas foi o terceiro gol da equipe que consolidou o placar em 3x1 e permitiu a abertura de mais três latinhas, uma para cada membro da esvaziada sala de estar.

O estudante percebeu que ela nem sequer juntaria tanta gente quando lhe foi dito. O Pedro colorado, ou o tal do Jaime, que seriam minoria. Seriam dois contra os dois que ali estavam. Ele era a novidade, não estava programado. Ou seja, precisariam de, no mínimo dos mínimos, mais duas ou três pessoas para tornarem os secadores do time como minoria digna de ser assim classificada. Naquela sala, seis pessoas seriam o estouro dos lugares, só se trouxessem seus banquinhos ou cadeiras de praia, ou não iria rolar.

- E o que aconteceu com o pesso - PAAAAULLL. O som do porrete que Richard lhe acertou soou como o nome do beatle mais famoso das últimas décadas. O jovem tropicou para frente, praticamente sem reação, tentou levantar os olhos, tentou levantar a cabeça, mas ela doía tanto que só conseguiu ver os sapatos do suposto Elton e do negro Richard virem para perto de si. - Malditos.

- Eu só torço pelo time local, Marcos. - Disse Richard. - Maldição de taça da capital.
- Faz parte - disse Marcos. - Mas eu até que gosto deles. Estava matando somente os rivais nos últimos anos.
Ambos riram.

Olhou os bolsos do estudante. Cartão estudantil do banco estadual. Carteira de identificação na portaria da universidade. Carteira de identidade. 19 anos. Se havia 15 temporadas de jejum, o coitado não havia visto alguma taça daquela relevância ainda.

- Ao menos comemorou os três gols como se fosse o último jogo da vida dele.
Ambos riram. E seguiram carregando o corpo. Richard livrou-se do celular, que recebia mensagens e mais mensagens, felicitando pela conquista da taça nacional.

20 de junho de 2020

encosto de renda

Organizava a papelada sobre a mesa. Lápis, régua, borracha para eventuais equívocos. Mas ela era bastante rápida e precisa. Havia quase 20 anos que emitia impostos de renda. De bate-pronto, contabilizava os dela e o do marido. Familiares também contavam com ela, afinal, era a pessoa com a melhor formação na área dos tributos bancários entre as de seu sobrenome.

Calculava recebimentos, bem declarados, alíquotas finais e foi surpreendida naquela tarde de sábado por uma presença. Primeiro mirou para dentro do copo d'água posicionado à sua esquerda, a uma distância razoavelmente confiável dos importantes papéis. Com círculos efêmeros que tão velozmente se formavam já sumiam, ela percebeu que algo estava causando as vibrações. Origem desconhecida.

- Quem está aí?

Como em qualquer filme do gênero, não obteve repentina resposta. De testa franzida percorreu rapidamente o ambiente como uma câmera em movimento travelling, de um lado ao outro da sala. Sem conclusões, prosseguiu de onde havia parado. Era o imposto de sua prima. Tinha aproveitado a saída dos familiares, rumo ao sítio para catar vergamotas ou alguma fruta que o valha. O silêncio era uma dádiva para elaborar os documentos. Mas agora ela estava preocupada e a cabeça quase se desconectava da matemática certeira.

Sentiu arrepios de frio lhe percorrerem o corpo. A gata Jandira passou debaixo da mesa e correu para fora. - Só pode estar de brincadeira - falou muito mais para si do que para fora. Voltou a notar os círculos reproduzirem-se no copo d'água. Percebeu que, ao frio do meio do ano no hemisfério sul, não estava com sede e livrou-se do copo na pia da cozinha, contígua ao espaço da sala. Pronto, poderia voltar finalmente ao trabalho em paz. Para certificar-se de que estaria tudo bem, terminou de abotoar a casaca que vestia, protegendo melhor o peito e o pescoço com o alinhamento das estruturas em suas respectivas casas.

Alinhou-se ela no retorno à sua cadeira, coluna levemente torcida, mas, após tantos anos de repetitiva atividade, ela não se importava. Compensaria nas aulas online de yoga depois. Ouviu o acessório de lareira, que estava bem calçado, despejar-se ao chão. Não era possível. - Quem está aí?? - Repetiu a pergunta anterior.

Atravessada por outro espasmo de frio, em seguida deu-se a revesgueio do olhar com uma sombra. Terminou de derrubar sua própria temperatura com a aparição diagonalmente postada a ela. Quase não conseguia pronunciar a pergunta seguinte, por ordem natural, que só poderia ser: - Quem é você?

- Eu? - Disse a sombra tornando-se semblante e finalmente ganhando formas cada vez mais humanas, com distinções de olhos, nariz e boca, com a qual completou - Eu sou o encosto de renda.
- Encosto de renda?
- Sim, o espírito que fiscaliza e cobra os impostores.
- Impostores?
- Pare de repetir o que eu falo, madame. Seguinte, acompanho seu trabalho há muitas temporadas. Não pense que não. Nem repense agora, foco em mim, foco em mim. Você não caiu nas malhas nem grossas nem finas, mas não pode escapar da justiça divina do encosto de renda.
- E a que me deve a visita após todos esses anos, senhor encosto?
- Me chama de Djalma.
- Senhor Djalma.
- Apenas Djalma. Eu vim para cobrar por seus negócios familiares. Tretas em vendas e revendas de carro, más remunerações e tratamentos aos funcionários do sítio, percebe?
- ...
- Você sabe do que estou falando. Fora as vezes em que você trabalhava no banco e destinava destinos...
- Destinava destin...
- Não me interrompa! Interferia juntamente ao gerente nas transações possíveis àqueles pobres camponeses que buscavam linhas de crédito suficientes. Lembra daquele inverno da estiagem? Dos períodos de seca? Das perdas nas lavouras? Mas você ainda não tinha aquele sítio, não é? Foi herdado. Foi corretamente abalizado? Será que foi? Cada arrendamento de terra?
- Não sei o que dizer, senh... Djalma. Djalma... Não sei o que posso fazer por você agora.
- E o carro, o que seu marido e as crianças saíram para o sítio ontem de noite? Violar a quilometragem do anterior, avisar que a regulagem dos freios estava em perfeito estado. Quase causam a morte de outra família. Nota a gravidade disso, Eugênia?
- Sabe meu nome. - Mais afirmando do que perguntando.
- Sei tudo sobre você. E seus impostos. E suas declarações e omissões e subnotificações. Por tabela, conheço as situações financeiras de seus familiares que lhe pedem as emissões também. Mas sei que trabalha fielmente para eles. Não deixa passar um fio de cabelo, nada abaixo do tapete.
- Obrigada.
- Não é um elogio. É quase uma revolta por você buscar vantagens só na órbita do próprio umbigo. Deveria ter vergonha.
Ela não enrubesceu.
- Enfim, Eugênia, acho que é hora de darmos um passeio. Deixe seus óculos sobre a mesa. Isso, pode guardar na caixinha deles se quiser. Você é tão organizada. Olha como ajeita o paninho adjunto como invólucro. Não é uma graça? Mas agora vamos. Poderia perder os óculos pelas tormentas do caminho. Mas não se preocupe, depois voltaremos. Voltará outra.

Pegou Eugênia pela mão e, mais rápido do que surgiu, fê-la desaparecer com a sua presença transformada em ausência em meio à sala de estar. O marido e as crianças retornariam ao anoitecer dominical, ele fatiado entre o descanso de um fim de semana fora e as canseiras dignas do rancho rural. Giraria a chave na fechadura, chamaria pela esposa, tiraria o casaco, notaria que a lareira, costumeiramente acesa para o horário e tamanho frio, estava com nenhum sinal sequer de brasas. Vasculharia os cômodos, todos os quartos, o espaço da empregada, que os havia acompanhado, os banheiros, e notaria posteriormente, na sala de estar, os papéis do imposto de renda, incompletos, últimos registros da esposa.

Amílcar segurou os papeis, folheou alguns. Preparava três severas broncas para a esposa. Sair até tarde da noite sem os óculos, que ela havia deixado esquecidos sobre a mesa, embora bem guardados. Avisar nada para ele, que poderia estar sem a segurança da própria chave da porta. E, por fim, a audácia de fazer primeiro as declarações de imposto de renda dos familiares, antes das declarações dele, conforme descobriu intrometendo-se entre as folhas. Um ultraje. Isso não poderia ficar assim. Mais um deslize desses e Amílcar pediria o divórcio. - Apenas os carros estão no nome dela mesmo.

Foi até a garagem dupla e certificou-se que o carro que a esposa poderia ter usado, para sair para um destino desconhecido, ainda estava ali. - Isso não vai ficar assim.

E não ficaria mesmo. O encosto de renda voltaria com uma devolução. Uma troca na leva. E Amílcar dessa vez não sairia ganhando.

16 de junho de 2020

leitura ao som de algum blues

no bairro Porto havia um bar chamado
Cais D 4
meus amigos riam
mas eu havia superado
em alguma órbita dentro de mim eu havia
superado aquela pornografia
não achava graça
ia lá desembaraçar
ainda embaraçado
bebia polão de latar
ou algo mais refinado
nunca fui mestre da mistura
tal qual Chico desgovernado
anarquista da cachaça
estranhas criaturas
Cássio, mente brilhante
silenciado, de poucas palavras
em pensamentos ocultos sob um gorro
e o cabelo comprido só as pontas de fora
noite afora
na penumbra gritos de socorro

mas eu havia superado
em alguma órbita dentro de mim eu havia
superado aquela discografia
que você me fazia ouvir
e eu dizia
boa a primeira mas melhor essa daqui
track quatro
gostava quando você tirava o sapato
e se mantinha sobre a cama
o seu ar cansado ainda de pijama
ou seu ar ensandecido ainda em chamas
nosso estandarte testando arte
curvas melhores que andar de kart

mas eu havia superado
em alguma órbita dentro de mim eu havia
entendido que aquela pista não me pertencia
nem seria mais minha a posição da pole
de uma polinização
primavera fora de controle
a estação não me transmitia
a mensagem decodificada que eu queria

mas eu havia de superar
ah, havia
na rotação, na translação
ou melodia

15 de junho de 2020

Karina Bianca

Karina Bianca tinha 18 anos e entrado para o curso de História da Universidade pública. Sua mãe não teria como pagar um curso na instituição privada, nem ela sentia que podia se acostumar a uma rotina intensa de trabalho e estudo. Ficou pela História. Karina aproveitou a indecisão da prefeitura entre determinar o toque de recolher ou não, afinal, era pandemia e o debate estava em fogo alto nos últimos dias. Vereadores exaltados, manifestantes não por menos a fornecer lenha. O prédio da Câmara era palco para agressividades e tudo precisava ser controlado, higienizado e restringido. Não era o que acontecia, evidentemente.

Como a votação pelo toque de recolher, proibindo os moradores de transitar após às 21 horas, ficaria para a próxima semana, Karina pegou a bicicleta na garagem e contou nada para a mãe. Abriu e fechou o portão grande no sigilo, aproveitando que a graxa silenciava o vai e vem da imensa boca de ferro. Olhou para ambos os lados e apreciou a solidão, ninguém à vista, nem o guardinha do bairro, sr. Rubens, que poderia ter deixado a guarita para bandear por aquela rua deserta. Preferiu ficar no deserto a duas quadras de distância. Velho Rubens que já havia sido preso e prometia a si mesmo e a quem quisesse ou pudesse ouvir que não voltaria para aquela jaula. Até considerava o suicídio, mas nada de repartir cela com dezena de detentos, acusados e condenados pelos mais diversos crimes. Ele nada tinha a ver com essa vida mais. Se empenhava na função de proteger aquelas quadras, que nessa época, de fato, haviam se desertificado. Nenhum transeunte naquela madrugada, quase 1 hora da manhã. O trânsito de carros também estava bastante reduzido. Olhos duplos de faróis eram raridade, um par a cada quatro ou cinco minutos.

"Depois eu volto, seu Rubens", falou para si mesma. Calçou a bicicleta e começou a pedalada. Karina pressentia a necessidade desse momento. Espairecer. Ela não vinha saindo de casa nas últimas semanas por conta dos decretos. Estava sem aulas presenciais na História, sem EaD, estava sem o namorado, que já estavam a ponto de terminar o relacionamento de quase dois anos. Ela precisava desse tempo com ela própria. Agradeceu que a bicicleta fosse escura e não a rosa, que seu pai insistia tanto. A bicicleta era sua companheira havia pelo menos uns 7 anos. Alguns pequenos consertos, ajuste na correia e uma desregulada nos freios, mas nunca deixou de ser a sua guia pelas ruas da cidade. E Karina cuidava bem de sua parceira, calibrando os pneus sempre que possível, ao menor anúncio de que problemas poderiam vir.

Karina pedalava agora para fugir dos problemas. Considerava que o país havia entrado em uma maré, em uma enxurrada de infortúnios com a acusação e cassação dos direitos políticos de Dilma Vana Rousseff em 2016, a 36ª presidente do Brasil, a primeira mulher. Deposta. Na época, Karina não havia percebido dessa forma, mas os primeiros semestres na História lhe indicaram isso. Ela iria começar o terceiro período de um total de oito. Era o segundo ano na Universidade pública. Universidade que também estava bastante ameaçada pelos últimos desdobramentos. "Justo agora que é minha vez", ela havia pensado. Prerrogativas de greve, pelo mau repasse de verbas, pela má remuneração de funcionários desajustados ao subimento dos preços, falta de incentivo aos pesquisadores e pesquisadoras, mas motivos maiores no país, no afeto à saúde pública, de um modo geral. Turbilhão de acontecimentos para a jovem Karina Bianca.

Levaria ainda mais três semestres para entender que estava se livrando de um relacionamento abusivo. As amigas da sua idade não saberiam dizer, ela mais adiantada do que a maioria delas. Talvez a Sônia soubesse, mas a Sônia já não conversava com Karina desde que esta havia entrado para a Universidade. A Sônia tinha passado por isso mais de uma vez e começava a entender os efeitos devastadores ainda aos 16 anos. A Karina, bom, a Karina estava em seu primeiro relacionamento fechado, primeira atualização de status nas redes sociais, sobretudo o Facebook, que deixa mais evidente se está ou não está compromissada, se está ou não está disponível, porque diz ali direto no perfil. Nas outras era necessário procurar fotos. Mas logo se sabia que Karina estava com Maicon.

Mas logo não estariam mais. Ele cada vez mais frio, ele cada vez mais ciumento e, ao mesmo tempo, cada vez mais distante. Karina não entendia bem o companheiro, o que se passava com ele. Gostava muito de Maicon, mas ele não contava sobre o que o atingia e assim a relação se desgastava percentualmente a cada mês. Karina, por outro lado, se entendia era com a bicicleta. Isto sim. Já havia contornado os paralelepípedos pedregulares, imprecisos, desnivelados, desleixados das ruas próximas à sua casa e avançava com maior claridade, maior iluminação pública por uma avenida de constante trânsito sobrecarregado, mas que respirava mais calma pelo horário e pelo contexto todo já relatado. A ciclofaixa não havia ficado nos conformes anunciados, mas servia para escoar seu passeio de absoluta necessidade.

Talvez tenha sido ali, na esquina de um restaurante em que costumavam almoçar aos sábados ou jantar com Maicon que ela decidiu encerrar o relacionamento duradouro com ele. Passou pela faixada vazia, anunciando ainda alguma promoção de frango e marmitex com entrega gratuita na região da cidade, nada sentiu pelo restaurante, nem por Maicon, por suas lembranças antes calorosas por ali. Até simulando coisa maior, como se fosse casamento, ele queria que ela usasse anel de namoro com ele, fora ali, mas não mais. Nada significava no momento. Maicon nem sabia quem era Karl Marx, nem Martin Luther King, muito menos sobre Angela Davis, ou o importante movimento zapatista no México, ou sobre as revoluções por sovietes e coreanos. Disso ele nada queria saber. Disso ela tudo queria entender.

Pra fora de seu bairro, as ruas e a iluminação eram melhores. Ela e suas pernas agradeceram pela redução considerável no número de solavancos e sobressaltos por uma melhor plenitude das calçadas e do asfalto do meio das ruas. Quanto ao ajuste no funcionamento dos postes, confessa que preferia o maior anonimato e a maior solidão da escuridão que havia transpassado.

Pensou se sua mãe daria por falta da filha naquela noite, até que regressasse e tentasse, no mesmo sigilo de espiã, recolocar a bicicleta onde estava e ela devidamente alojada com a cabeça sobre o travesseiro. Seu irmãozinho tinha apenas cinco anos e já era fruto do segundo casamento da mãe. Dormia relativamente cedo, mas daqui alguns anos já estaria crescido e gamer para invadir madrugadas atrás da diversão de um playstation entre o 4 e o 5. Sabia Karina que para sua mãe seria mais fácil investir dinheiro em vídeogames do que outras atividades para acalmar o insaciado Lucas.

Sobre o relacionamento de sua mãe, era o terceiro dela após o divórcio com o pai de Karina, o primeiro em que a então solteira senhorita Alves sentiu confiança o suficiente para se unir novamente, juntar as escovas de dentes, como se diz. A gravidez para ter o Lucas deve ter sido como um dos solavancos nos passeios de bicicleta de Karina Bianca, mas, no caso da união ainda instável, como um ultimato para a junção de sua mãe com seu mais novo padrasto. Notava que o relacionamento deles se encaminhava para abusos e violência, porque era mais fácil notar isso quando, talvez no fundo, já fosse o desejo dela de que ele não mais vivesse com sua mãe, que ela poderia ser mais independente e mais feliz, estar melhor sozinha do que com ele. E também porque era mais notável, mais evidente onde ela não colocava seus sentimentos, emoções que mais confundem do que transcendem a transparência da resposta.

Karina sabia que não eram normais os cansaços e chateamentos de sua mãe, que ela estava sofrendo entre quatro paredes e só evidências físicas, algum hematoma ou lesão maior para comprovar até onde o padrasto poderia ir. Do passeio de bicicleta, sob o luar e absorvido o ar mais limpo daquelas noites de menor trânsito, ela sentia-se pronta para retornar, encarar novamente a piora das calçadas, a ausência de iluminação para torná-la novamente anônima. Apesar de ter a chave para a resposta sobre a situação da mãe antes da sua, quem primeiro resolveria seus problemas era ela, desintoxicada por seus passeios de ciclista. Só torceria para que não fosse tarde demais para sua mãe... para ela e para o Lucas, para a família, enfim.

Dobrou para a derradeira rua de sua casa e avistou o senhor Rubens. O guardinha notou os olhos arregalados da jovem, que sentia-se em apuros pela descoberta de sua saída noturna. Rubens apenas sinalizou com o indicador que o melhor a fazer era o silêncio. Quando cruzaram-se, a menos de 10 metros de distância, ele confidenciou. "Sua mãe precisa de você".

Abriu o portão com o mínimo possível de ruído, certificou-se do exato estacionamento da bicicleta, cuidadosamente desviando do carro do padrasto. Parece que sua mãe não notou sua saída naquela noite.  Mas, pelo olho levemente arroxado dela, o padrasto havia percebido a ausência. No café da manhã seguinte, Lucas, sobre o ocorrido, apenas sentenciou:

- Estão muito quietos... Ninguém quer mais geleia?

um ano contigo

passei um ano contigo
e um ano
tentando me recuperar

eu precisava de abrigo
e eu sigo
tentando onde encontrar

(ainda produzindo)

14 de junho de 2020

Offline

Tinha pousado a xícara de café ao lado do monitor. Era sua mesa de trabalho em casa. Ele que, no momento, estudava e trabalhava e, mesmo sem sair de casa naquela pandemia, estava abarrotado de tarefas por cumprir. Foi quando o amigo, na recém ligada videoconferência dos confrades, perguntou:

- Por que você não escuta aquela banda peruana que lhe falei, a banda El Polen?

Ele se controlou para não arremessar a xícara contra a parede, justo uma de suas favoritas, com o desenho de um boxer saltitante em um gramado, ideia de um parque em liberdade.

- Por que eu não escuto a banda que você recomendou? Porque não tenho tempo! Tenho tempo para nada! Você vai ler o material que eu preciso desbravar para realizar o EaD? Uma média de 30 páginas por dia, vejam só! Ainda faltam três livros para concluirmos esse semestre. Você vai? Vai prestar minhas provas e avaliações quando chegarem as datas? 60 questões de múltipla-escolha e cinco dissertativas, média de 20 linhas de resposta para cada dissertativa, com textos e apêndices de consulta que não estão no Google. Duvida? Pode pesquisar os títulos, eu te passo o nome das obras depois. E aliás tem consultas em espanhol e em inglês e o meu inglês anda enferrujado desde a escola, com exceção de quando eu tinha tempo para ouvir músicas inglesas e norte-americanas e, quando muito, australianas. Mesmo o espanhol precisava ser galvanizado, no mínimo reidratado. Já faz dois anos desde a minha viagem a Buenos Aires, quando eu tinha tempo. E as memórias estão muito mais na câmera fotográfica do que na ponta da minha língua, comprendes muchacho? Además que preciso levar meus dois boxers para passear de três em três dias, ou ficam insuportáveis, assim eles se acostumam e eu também, a pelo menos esticar as pernas.

O que mais? Vai preparar o meu almoço? Vai esquentá-lo para eu jantar? Talvez tu faças isso... Ou quem sabe vá ao supermercado por mim. Compre as latas que estão esvaziando na despensa, compre pães fatiados, bisnagas, o que sobreviver a mais tempo no armário e no canto da mesa. Compra o meu café que lá se vão três boas xicaradas por dia. Por isso fico assim, ainda disposto para o anoitecer, quando idiotas como você, seu babaca, me fazem esses questionamentos como se eu tivesse nada por fazer. E quando termina o dia, em seguida, sabe o que eu faço? Não sabe, não é? Eu vou até a pia e, adivinhem senhores, lavo a minha própria louça. E depois disso, não obstante eu seco. E, de preferência, pela boa colocação e para evitar barata, que mês passado, mesmo com esse frio, adivinhem, apareceu barata. A diaba custou três chineladas para morrer. Morreu. E morreu o meu hábito de deixar a louça exposta pelas noites, a louça indefesa, a louça, os pratos, as xícaras, os talheres que nem gritar podem. Coitados.

Coitado de mim com tantas tarefas. Correio, banco, saídas que não posso evitar, jogo com o horário do EaD para isso. Estou prestando dois cursos à distância. Entrego os relatórios do meu serviço antes das 16h45 de cada dia. É a forma como eu bato o ponto. Casos e mais casos. Às vezes mais exceções do que casos, podem vocês imaginar. Burocracias, consultorias, troca de e-mails. Abro o meu e-mail, eu calculei, uma média de 42 vezes por dia. Claro, tem vezes que é somente na base da tecla F5, a aba fica ali aberta. Ela e mais umas 12 abas abertas por vez e tento não me perder. E clico uma média de 168 vezes na aba errada por dia. E meu salário, nisso tudo, nada de reajuste que compense o que está acontecendo. Sim, sei, eu precisaria ser grato por ter meu emprego e conseguir manter meu apartamento. Acontece que eu também tenho feito compras e encomendado serviços para cuidarem dos meus pais, a coisa tem apertado, percebem? Mas para vocês é tudo muito fácil mesmo. Mesmo você, Thomas, com filho pequeno, você não faz dois EaD por dia. Nem você, Everton, que tem tempo para ouvir bandas peruanas. Vocês todos, seus inúteis, desconhecem a minha realidade, desconhecem o meu dia a dia, desconhecem o esforço que eu faço, passo, lavo, seco, varro para evitar que apareça outra puta barata em alguma noite silenciosa como essa. Me irritaram tanto que terei, por obséquio, reservar-me o luxo da quarta xícara de café do dia e, assim sendo, tenho certeza que posso expirar minha média e o café acabar antes da próxima ida ao supermercado, programada para o dia 18. Agora eu só quero saber, apenas por curiosidade, porque vou ouvir porra nenhuma, por que você acha que devo ouvir uma banda peruana chamada Polen?

Dois dos seis iniciais já estavam offline desde o papo sobre correios e serviços de banco. Quem se manifestou foi Thomas, o pai de filho pequeno:

- Achamos que anda muito estressado. Tá esquisito conosco.

E Everton, o da banda peruana, completou:

- Teve tempo para esse teatro todo e não pode ouvir uma progressiva dos peruanos?

Ele arremessou a xícara dos boxers contra a parede e ficou offline.

11 de junho de 2020

O primeiro treino

Tal como o uruguaio Mário Benedetti, no livro A Borra do Café, fui assaltado constantemente por memórias da infância nos últimos tempos. Embora mais jovem que ele, passados mais de 15 anos de acontecimentos, resolvo expô-los aos poucos, mais pela ânsia dos registros na incerteza de estar aqui para registrá-los depois do que por receio de perdê-los na capacidade de gravação de nosso estranho HD.


Pôsto à provas factuais do império de remoto passado, algumas situações são bastante curiosas. Uma série de inusitados acontecimentos que não teria porque lembrar, nenhuma relevância maior. Ou será que são nesses casos que essas eventuais relevâncias se escondem? Na última madrugada, o round travado contra a memória foi referente a jogos no período em que eu atuava pelo rubro-negro Paulista FC. Na parede do ginásio, só recentemente descoberto por mim que pode ser chamado de Gigantinho da Zona Norte - na infância não fazia ideia disso, chamava apenas de Ginásio do Paulista - na parede branca havia a inscrição para que não houvesse dúvidas: Paulista Futebol Clube. Um clube de salão, de ginásio, com o nome de clube de futebol. Também nos atiçava a dúvida de qual era a referência aos paulistas, pois até nas cores, o vermelho, o preto e de praxe o branco acompanhavam a bandeira do estado mais populoso do Brasil.


Por dois anos, defendi o Paulista. Domando nervosismos, ansiedades e o peso da responsabilidade de representar como goleiro titular a minha categoria. Lembro de meu primeiro treino, que surgiu-me em oportunidade a convite de meu melhor amigo da época. Ele já treinava na equipe e fui carregado a reboque para buscar o meu espaço.


Eu estudava de tarde e tenho nítida lembrança da primeira vez que entrei pelo estreito portão de acesso em uma manhã razoavelmente fria, o meio do ano se aproximando, eu tendo perdido as primeiras atividades daquela equipe. Apesar de pequeno, o portão de acesso já me parecia um aperto, imagine para alguém de 100 ou mais quilos. Contornei o estacionamento de britas como solo, poucos carros, pais de alguns? estavam estacionados e entrei para o complexo esportivo. Os garotos aguardavam o nosso treino, o da nossa categoria. Tomei a dianteira naquela entrada triunfal, não lembro se meu pai me acompanhou naquela jornada, vindo depois ou sequer se assistiu minha primeira atuação.


Acontece que todos ficaram petrificados visualizando o atrasado da temporada. Muito acanhado não cumprimentei-os direito e devo ter permanecido calado na maior parte daquela derradeira manhã. Meu amigo, irmão, camarada já habituado com as demais companhias, eu tentando esboçar o que seria meu ano. Fui recebido pelo professor, me identifiquei igualmente acanhado junto a ele. Em poucas palavras, sequer me referi a jogar como goleiro, minha eterna preferência entre as posições da modalidade (diferente do handebol, onde preferia me esconder pela ala direita, posição destinada aos canhotos).


Os treinos iniciaram e pareciam muito com os da escola, que eu havia experimentado no ano anterior. Naquele 2004, entretanto, eu trataria a arranjar algum ritmo de competição, mesmo que isso custasse dores de barriga e arrepios. Dominar a bola do salão com a parte da sola do pé, ajeitar para a canhota e devolver o passe com a parte de dentro do pé. Lições básicas, jamais esquecidas. Depois, envelhecemos e relaxamos, querendo inventar de dominar com a parte de dentro e dar o passe com a de fora. Ronaldices.


O treino deve ter transcorrido nesse ritmo. Lembro de alguns ensaios propostos pelo treinador Votto, que preparava circuitos de dar o passe para um lado, correr para outra fileira ou, em uma manhã obscura, chuvosa, trevosa, correr em diagonal e todos nós nos atrapalhávamos, com exceção dos raros Q.I. mais altos. Mas estes tipos complexados e complexantes de treinamentos ficam para outra hora.


A parte que todos aguardam ansiosamente é o treino coletivo. A separação de equipes, quem joga com quem, quem enfrenta quem, qual time espera no banco, qual ficou mais forte, quem espera no banco e aguarda a troca dos pivôs, dos alas ou do seguro fixo. Não tinha dúvida que os melhores atletas de nossa equipe eram os fixos. Douglas e Matheus são dois de minha recordação na temporada 2004.


Douglas jogava de camisa branca com detalhes rubro-negros. Não lembro se era um uniforme antigo do próprio Paulista. Matheus geralmente associo a camisas vermelhas, talvez um colorado, mas informação imprecisa. Acontece que eu estava no meu primeiro dia de treinamento e pressionado a passar uma boa impressão. Mantenho essa conduta a qualquer lugar que eu vá, qualquer pessoa com quem eu converse, qualquer que seja o objetivo a ser atingido. Quero dar a boa impressão, quero demonstrar meu valor. Não quero falhar.


Eu não queria falhar e, após esperar no banco de reservas a minha oportunidade, fui chamado a compor um dos times. Atuei na linha, se bem me recordo. Aquela categoria do Paulista estava sem goleiros. Vê se pode! Tradicional clube da cidade, da região e do estado. Nenhum goleiro de mimosa idade para o horário matinal previsto. Mas eu chegava para garantir o feito. Após uns minutos apagados tocando pouco na bola, aparecendo pouco, recebendo menos ainda, fui convocado a passar uns minutos na goleira. Talvez Votto e seu auxiliar Diego tivessem pensado que aquele guri não levava muito jeito para aparecer na quadra, mas no fundo sempre encarei como uma democracia em cada atleta de linha seria resignado a uma breve tortura de levar boladas. Mas na hora pensei mesmo foi na minha grande chance, mostrar o meu potencial.


Em fogo alto de expectativa o texto, não é mesmo? Pois assim prosseguimos. Não saberei precisar como ocorreram as defesas, mas sempre tive para mim que foram quatro. Após eu sair da posição de linha, como se chama, nosso time foi até mais bombardeado (deem valor agora, hein) e me saí da prova ousada de uma maneira competente. Quatro disparos e quatro defesas, a penúltima ou a última delas arrancando espantos dos novos colegas. Já me encaravam como muralha intransponível. É isso, garotada. Não adianta reclamar. Não adianta chutar de longe, nem cheguem perto de meus domínios. A média de gols cairá drasticamente. O terror para os pivôs mais rechonchudos e para os que estavam acostumados a guardar tentos de média distância. Não mais, jovens peregrinos.


Jamais esquecerei que naquele primeiro treino, em que chamei atenção por aquelas defesas, compareci com minhas luvas de camelódromo da época. Elas eram de lã. Uma tonalidade escura, nem preta nem bem azul marinho, difícil de identificar a cor das diabólicas peças. Nelas, nas palmas, haviam inscrições em tores marca-texto, entre alaranjadas e amareladas. Havia a palavra SOCCER e uns pontilhados fingindo alguma preocupação com a ADERÊNCIA do azarado goleiro que as utilizaria. E eu era o utilitário daqueles produtos paraguaios. Quatro defesas com as esquisitas luvinhas.


Também me ponho a pensar que, como fui de luvas, por mais rudimentares e despreparadas que fossem para a prática esportiva, não teria Votto ou seu auxiliar notado que eu queria era atuar, desde o início, como goleiro? Aquela exposição aos lances fracassados das tentativas com os pés poderia ter comprometido aquela histórica manhã de 2004. Mas acabou que deu tudo certo. No treino seguinte, já fui direto para a companhia das balizas enredeadas. Treinava desde os ensaios de finalizações e seguia ali para o treino coletivo.


Minha autonomia era uma seguridade tremenda. Eu era o mais difícil de ser vazado pela trajetória da bola e também ninguém queria compartir daquela ingrata tarefa. Estava tão assegurado como um concursado funcionário público, apesar de querer, a cada dia, dar o meu melhor. Assim eu estava, até a chegada de um gigante. E isso fica para o próximo capítulo.

esquece

O chamado pai de família estava lavando a louça após desfrutar da refeição preparada por sua esposa, casados eles há 30 anos. Naquele horário posterior ao almoço, a filha mais velha já costumava se retirar do recinto, porque o assunto declinava em nível. Segundo ela, era possível perder neurônios só de absorver o conteúdo inútil da conversa. Após falarem um pouco sobre a sogra do homem, a mãe da esposa, o lavador da louça então iniciava uma de suas histórias dos tempos de operário:

- Teve uma vez em que o Camobi lá em Rio Grande...
Mas foi o bastante para arrancar risos, em função do apelido do colega, referência a bairro santa-mariense. A mãe e o filho se entreolhavam e riam. Ele, de costas, de frente para a cuba de louças no aguardo, apenas ouvia os ruídos indesejáveis, que interrompiam o bom prosseguimento do conto.

- Enfim, o Camobi veio de conversa com o Dirso e...
Novamente os risos que lhe custavam o pingo da paciência, assomados com a pouca água em período de escassez de chuvas.

- Assim não conto mais nada. Não precisa saber. Esquece...
- Não, não, agora queremos ouvir o que houve. - Disse a esposa.
- Esquece. - Ele apenas concluiu e seguiu as batidas de leve com a louça que saía das cubas para o escorredor.

A mulher, entretanto, não era fácil de ser vencida. Quando queria saber alguma coisa, por mais irrelevante que fosse, ia atrás da resposta. Ainda por duas vezes ela insistiu naquele instante pós-almoço.

- Não, não, vocês não me deixam contar. Esquece.

Ela percebeu que tratavam antes de assuntos delicados, antes de recair para o ciclo de bobagens intermináveis. Intermitentes até que cessasse a louça no escorregador, isto quando não persistiam enquanto os pratos e xícaras e copos e talheres eram secos com o pano. Mas essa percepção aguçava a curiosidade da esposa, que agora estava interessada no que diabos os operários estavam tramando em Rio Grande.

Horas depois, foi no momento de ouvirem a televisão, após o jornal da tarde e antes do zapear por programas que variavam de carros antigos a casas nas árvores, quando não terminavam em gente pelada no matagal.

- Mas o que o Camobi tinha a ver com o Dirso? E com a minha mãe?
- Nada. Esquece. - Ele respondeu secamente e seguiu trocando os canais, à procura da melhor opção em HD.

Mas a dona era osso duro na queda e não se daria por vencida facilmente. Com uma memória impressionante, não deixaria a questão morrer sem um desfecho. O ataque seguinte foi após a janta, rechaçado com outro solitário e trissilábico "Es-que-ce".

Antes de dormir. Antes de cair no mundo dos sonhos ele cederia à vontade da companheira de três décadas e diria o que tinha a ver o Camobi com o Dirso - seja lá quem fossem - e isso resultaria com que ela dormisse tranquilamente, satisfeita com o desenrolar de obstante assunto. "Esquece", ele virou para o lado, enquanto ela permaneceu rija com o livro de cabeceira em mãos. Depois, não conseguiu se concentrar na leitura, nem pegar no sono. Precisava saber da história.

Nos dias seguintes, a cena se repetia. Era o marido mexendo no motor de carro e levando um susto com sua chegada repentina em momento de distração com tantos cabos, ligações e checagem dos elementos.

- O Camobi... - disse ela afinando a voz para um tom suave e despreocupado. - Ele e o Dirso, o que...
- Esquece. - Ele falou enquanto mudava de tarefa para verificar o óleo.

Ouviu ainda uma sequência de esqueces entre o jantar seguinte, um cruzamento entre os dois quando iam dar comida aos cachorros e finalmente em uma cena em que o marido achou bizarra a presença dela. A esposa o surpreendeu no box, no chuveiro, orgulhando Alfred Hitchcock pela influência direta na intervenção. O homem arremessou o sabonete para longe, abriu os braços, pensou que era assalto, seria homicídio, latrocínio ou qual fosse o nome que mencionariam no jornal, Antônio Vieira Santos da Cunha em letras garrafais, assassinado no banheiro da própria casa. Mas era somente sua esposa querendo saber da história do Camobi e...

E nada de arrancar resposta. Ela esperou os filhos saírem para tomar a maior das providências. A filha na casa do namorado, o garoto em um congresso da área dele na faculdade, fim de semana inteiro fora pela viagem. Aproveitou-se do sono pesado do marido, que nem precisava deitar para cochilar. Com a mão leve, tratou de amarrá-lo quando estava torto como uma vírgula sobre a poltrona da sala. Imobilizou pulsos e calcanhares, nós apertados e agora ia requerer a história dos tempos operários do já aposentado homem.

Ela, diabólica, atormentada, destroçada nos últimos dias sem dormir querendo saber daquela bobagem rotineira que seria incrementada ao cardápio do dia após mais um almoço, ela ofegante, olhos fixos, nem piscava, quase babava de sabor pela eminente descoberta e pela raiva que sentia do companheiro de mais de 30 anos juntos, somados os oito meses de namoro antes do casório. Ela com uma tesoura em mãos e as palavras pronunciadas em ameaça ao pênis do marido, que havia semanas que ele não utilizava senão para urinar. Ela com as antigas revistas Placar, ele colecionador, sentindo esse ameaço extra-corpório, aquelas revistas com Romário, Dunga, Alex Cabeção, Danrlei, Edmundo, Pantera e o favorito Túlio Maravilha podendo serem picoteados pelas pontas afiadas do instrumento cortante.

- Vai me contar agora, sem mais delongas, o que o Camobi havia falado com o Dirso e o que isso tem a ver com o assunto da sua sogra.
Pendurado de cabeça para baixo, ele com o suor que escorria na direção contrária ao que se costuma ocorrer em posições normais, o corpo fechado e retraído pelas severidade da situação, apenas conseguiu soluçar, em voz fina e trêmula.
- Agora eu que esqueci.

10 de junho de 2020

Se eu tivesse...

Caminhava a passos firmes pelas ruas, com a mente divagante. No dia, logo cedo conferiu no banco estadual que havia entrado seu humilde salário. O contentamento era completamente efêmero, em seguida cedendo lugar para a frustração de quem pouco ganha. O valor ultrapassava do considerado mínimo, mas não chegava ao piso de sua categoria. Chutava pedras pelo caminho e contou bitucas de cigarro largadas a esmo. Nada lhe sobrava aos finais de mês e ele pensava que não podia reclamar muito, que ainda estava empregado apesar dos 15 a 16% de desemprego assolando o país. Mas também pensava que havia cursado o ensino superior para desfrutar de algo bem maior, sem depender da mãe idosa ou da tia solteirona sem filhos que lhe mesava quase 10% do salário dela, outro picorrucho.

Alimentação ok. Duas refeições e uns complementos. Café da manhã desconhecia com a graça santíssima trindade que oportunizava um emprego no turno vespertino. Dormia sempre tarde e acordava hora antes do almoço no local de maior desconto que conseguia próximo ao apartamento de segundo andar em prédio com quatro, um cubículo meio centro, meio bairro. Contas, contas e mais contas a pagar. Havia cancelado o streaming para filmes online. Detestava tanto o que precisava ser pago, que lhe comia os dígitos salariais como se fosse um furioso pacman, quanto o processo de ida aos bancos e lotéricas. Boletos a dar com o pau. Sentia a falta do pai que podia fazer isso por ele no começo de sua vida adulta. Passados.

Distraído, o sinal de trânsito a revesgueio de sua visão quase acabou com uma perna atropelada, mas resultou mesmo foi em dois longos buzinaços e um xingamento à sua idosa mãe. Ele não deixou por menos: 1 a 1 no placar de ofensas enquanto o do Honda Civic cantava pneu na rua asfaltada havia três anos. Desgraçado. Desgraçados. Havia um de óculos escuros no banco de carona a rir da quase-tragédia, balançando a cabeça, em lapso notado por trás do insufilm escuro. Típicos consumidores de milk shakes repugnantemente doces em drive-thrus.

Continuou sua sina de pensamentos, considerando que não era exatamente mesquinho ou mão-de-vaca, apenas queria um salário mais digno, o mínimo de luxo que não fosse sua mensalidade a custo da sobrevivência básica: comida-água-luz-telefone. Ainda herdara da mãe o perfeccionismo para não atrasar impostos. E votar em esquerda, sempre que possível, apesar do centrão querer se apoderar de tudo. E tantos gritos de - fora fascista! - fora racista! - fora machista! em nada resultarem nos últimos três processos eleitorais. Duras derrotas. Severos golpes. Golpe ou impeachment? Golpe, ele tinha certeza.

Pensando numa duplicata oportuna de seu salário e poderia ajudar a tantos outros. A dívida com o Freitas, o empréstimo do Gabriel, o disco que prometera a Victória. Isso, isso, isso. Mas ajudar além, nada de restrições ao grupo de amigos classe-média, a maioria ainda parasitas das próprias famílias, fato que, sendo ele assim também considerado, o incomodava. Imputava mudanças que tardavam a vir e nunca vinham.

Queria ajudar àquela ONG de gatos de Santa Maria. Ou era Cachoeira do Sul? Se houvesse nas duas cidades, ajudaria ambas. Gostava mais de gatos desde que a Chiquinha aparecera. Nem se lembrava do porquê a felina tricolor se chamar Francisquinha, seria do seriado mexicano que era retransmitido havia décadas pelo Sistema Brasileiro de Televisão? Talvez. A Francisca completava 11 anos no mês passado e morava com a mãe dele, o que seria para a bichana uma avó. Questão de pátio, jardim, lugar para caçar, coisa que o apartamento de segundo andar dele, naquele cubículo meio centro, meio bairro não disponibilizava para a castrada gorduchinha.

Ajudaria a ONG dos cães meio afastada do município, não tinha dúvida. Era para os lados do Capão do Leão e tinha sempre dezenas, senão centenas de cães esperando um melhor destino, uma adoção convincente, em um trabalho sério de seus conterrâneos. Lembrou de seus tempos a ajudar crianças em vulnerabilidade social, em especial meninas, e daria uma ajuda mensal para o instituto do prédio amarelado na baixada do centro em direção ao bairro, era perto de onde ele morava. Auxiliaria, sim. Ajudaria também o extremo oposto da vida, o lar de idosos em que ele serviu sopa durante três semestres, não fechou dois anos. Será que ainda estavam por lá as donas Dercy, Jurema, Faustina e Dilminha? Era possível que a resposta fosse qualquer uma das combinações: 100%, 75%, 50%, 25% ou até todas inscritas na lista definitiva das paredes e tábulas de cemitério. Impossível saber sem visitar. Enfim, ajudaria com pagamento ao invés de servir sopa nos jantares cedo, elas recolhidas pouco depois do horário destinados às galinhas. Antes mesmo dos gatos saírem às caças noturnas. Já havia citado a ONG dos gatos? Já, havia pensado nos tigrados, sim, só não sabia se Santa Maria ou Cachoeira e isso não fazia diferença, porque ele não possuía em mãos os recursos necessários.

O que mais ajudaria? Gatos, cães, crianças em vulnerabilidade social, lar das idosas... Albergue para os moradores de rua. Isto sim, melhores condições sanitárias, reforço na refeição que dispunham. Mereciam. Acha ou desconfia que não somente aqueles que nunca dormiram na rua ou passaram frio sem ser por imprudência de não obedecer a regra materna de levar um casaco. Aqueles desgarrados mereciam melhor decência nas acomodações. Compraria jogos de cama, toalhas, itens de higiene. Se sentir sujo era terrível. Mesmo ele, que não era fã do banho diário, principalmente entre maio e agosto, sabia responder que era brabo não se aceitar higienicamente.

Claro que esse aumento, a duplicata salarial resultaria em uma namorada digna de seus atributos, jantares romanescos e passeios indefinidos na turva mente, ao gosto dela. Ela receberia seus agrados e presentes trimestrais, não mais do que isso para não acostumar mal. Mas importava saber mesmo onde aplicar a grana para o bem estar do próximo, muito além da Clara, da Brenda ou da Francine. E mesmo da Vanessa. Será que não era Santa Maria a ONG dos gatos? Não importava.

Recuou em puro reflexo em uma esquina quando um Renault passou chispando pela poça d'água, com os respingos quase o atingindo. Movimento digno da realidade sobrepujando a ficção do filme Matrix. Filho de uma égua. Fosse político investiria na melhora gradual e sistemática do transporte público, ao invés desses barbeiros imbecis financiarem seus modelos prateados, uns iguais aos outros.

Com um salário político então, ou mesmo assessoria de um deputado poderia pensar além das ONGs de cães, gatos, Santa Maria, Cachoeira do Sul ou Capão do Leão, lares de meninas, orfanatos, idosas, crianças com câncer, assistências para os deficientes visuais e bem estar dos albergues noturnos. Podia ajudar também às agremiações esportivas e aos atletas independentes, patrocínios pontuais para homens e mulheres competirem e alavancarem suas carreiras. Eles não esqueceriam. Mensalidade e carteira de sócio na mão naquele clube de sua preferência, pendendo a fechar as portas, não fosse sua ajuda em três dígitos mensais. O velho Carlos agradeceria muito a ele, poderia sentir os pesados tapas sobre o ombro, a gratificação do amigo pela ajuda prestada.

Em tudo isso ele pensava, martelando como o mundo, o seu mundo, seria melhor com um salário digno. Não era coisa para ele e sim para todos que estivessem ao alcance. Já não se importaria do dinheiro não sobrar no fim do mês, pois as aplicações seriam justas e com retornos, sorrisos que não competiam aos preços das prateleiras. Dobrou outra esquina quase chegando a seu cubículo meio centro, meio bairro, quando notou na calçada, em frente ao prédio vizinho, um mendigo que ele sabia quem era. - Ora, de novo esse...

- Uma moeda, senhor, pra garantir a janta.
- Hoje não tem.
- Ontem também não tinha.
- Talvez amanhã...

E o mendigo notou que ele já estava com as chaves na mão esquerda e que o barulho dos bolsos só poderiam ser o seu exclusivo desejo.

8 de junho de 2020

O salto

Estava tudo pronto. Era o grande dia para o salto. O céu estava todo azul, embora de onde estavam essa era a tendência diária, sem tempo ruim. O paraquedismo que, em vida, muitos temem ocasionar a morte, para eles, que estavam mortos, era a devolução da vida. Confuso? Não, muito simples. Os que saltavam do avião iam direto para o retorno à vida. Uma reencarnação.

Logo no café da manhã, ele notou os companheiros animados. O salão para o desjejum estava ruidoso. Todos conversavam alegremente sobre as expectativas para a próxima vida. Alguns ainda recordavam de flashs da última passagem pela Terra e sabiam que logo tudo seria esquecido. Se chegava zerado em memórias e com apenas muita fome, causadora daquele prolongado choro de boas-vindas. Ao lembrar dessa realidade, ele estremeceu. Pousou a xícara e cruzou os dedos, entrelaçando-os, enquanto os cotovelos ficavam repousados sobre a mesa. Cobriu a face com as mãos, ao despencar o rosto e o pensamento para longe. Retornar bebê era tão fastigante. Esperar pelos cuidados maternos em busca do bico do seio e depois o bico de borracha e depois a mamadeira. Enfrentar as assaduras sem que as mãozinhas alcançassem a solução sozinhas.

Nada disso parecia importunar os demais aventureiros, o grupo que sabia que, naquele dia, retornariam à vida. Ao contrário do corredor da morte, que condenava os habitantes para essa outra realidade (ao menos que o despacho fosse justamente ao inferno, mas nunca se sabia definitivamente), ao contrário, ali estavam no corredor que daria o viver. Era um hotel que trocava hóspedes constantemente, conforme a lista de chamada. Ali estavam reunidos os retornantes do dia 9 de junho.

Seguindo as combinações da última palestra, após o café da manhã, foram aos quartos pegar os kits para o salto. Olhou um retrato que ele mantinha sobre a mesa de cabeceira e sabia que seria a última vez que olharia para ele. Depois tudo seria esquecimento e novas linhas para páginas em branco. Dos corredores para a excursão prosseguia o vozerio avantajado, muy alegros, muy contentos. Pareciam colegiais rumo a um acampamento ou viagem de formatura.

Conseguiu um lugar à janela e foi observando a paisagem das nuvens, que estavam muito abaixo deles. No caso dos que brevemente reencarnariam, o passeio de ônibus era lá do alto e, no ponto determinado, todos teriam que saltar de volta para a vida. Segundo o instrutor alertara, os corpos ganhavam tanta velocidade que a mente se desligava e só voltariam a si nos braços médicos pelo nascimento. Ou seja lá de quem serviria de parteira na ocasião. Para alguns, o resquício do medo de altura, apesar de teoricamente mortos, o que reservava palavras de confiança, exaustivamente ensaiadas pelo instrutor, que, a bem da verdade, estava cansado de ver as companhias passarem e queria ele mesmo retornar à vida. Não era o melhor emprego que já tivera, pensava ele, apesar de não lembrar os que havia possuído em terra firme.

A nave dos reencarnantes se deslocava agilmente no tempo-espaço. O que eles sabiam é que todos ali chegariam ao nascimento em 9 de junho. Ele não conseguia lembrar a que signo correspondia essa data, mas ainda recordava ter nascido em dezembro. Um a um, os companheiros saltavam, animados. Havia breves rezas em diferentes crenças, havia recados de que nunca esqueceriam as esposas que mal lembravam o rosto. Havia o "papai te ama", vindo de homens que sequer sabiam o nome dos filhos (maldosos dirão que nem em vida sabiam).

Metade da espaçonave estava esvaziada e seu número foi chamado: - 112! - gritou o instrutor. Por um segundo, sua mente foi dominada com o intuito de ficar quieto e enganar o planejamento da natureza, as ordens superiores, há quem diga que de Deus. Mas percebeu os companheiros restantes, ansiosos, o encarando, alguns mais rudes já o repelindo por estar perdendo a jornada e atrasando a viagem dos comparsas. - Talvez eu não caia na casa certa, seu animal!

Não hesitou três segundos completos e já estava com um brutamontes aproveitando-se de sua condição física de vida passada, como um lutador de UFC, segurando-o pelo colarinho. Humorista que era, pensou que aquele talvez nem um caminhão atropelando para jogar para o hotel lá de cima. Mas de alguma forma havia morrido e estava pronto para, ao invés de matá-lo, caso fosse uma rotineira briga de bar, estava disposto a devolvê-lo à vida. A ironia era mais constante ali do que na Terra.

Conduziu-o até o instrutor, que agradeceu aos serviços préstimos.

- Vamos lá, meu rapaz.
- Tenho mesmo que ir? - tentou bancar a criança.
- Perceba que aqui ninguém morreu jovem, rapaz. Todos estão bem conscientes da responsabilidade. Hora de voltar.
- Lembro que gostava de quase nada lá embaixo.
- Bobagem. A ala do suicídio mofa um bom período no inferno. Voltam tão mal de aspecto que imploram para regressar à Terra.
- Não foi por falta de pensamento a respeito.
- Mas aguentou firme, não se matou. E agora é hora de voltar.
- Serei recompensado por não ter me suicidado?
- Isso nem eu, nem outra pessoa tem a resposta.
- Gostava dos jantares do hotel.
- Eu também gosto. É o que mais me alegra nesse emprego em que tenho que convencer, vez por outra, alguém a saltar.
- Lembra o que fazia na Terra antes de vir pra cá?
- Na verdade não.
- Mulher, filhos?
- Acho que sim... Não faço ideia. Tem aparecido cada vez mais homossexuais que lamentaram não se assumirem.
- Isso é triste.
- Demais. - Coçou a cabeça o instrutor, com o polegar na testa, em movimentos repetitivos. - Mas enfim, precisas saltar.
- Não quero mesmo.
- São ordens superiores, camarada, apenas as cumpro. Listagem, passageiros e horários. Estamos perdendo a sua janela e o com cara de poucos amigos que te trouxe até a porta para os salto está prestes a voltar...
- Parece que não tenho escolha.

Nesse instante, ele se precipitou para a borda, mas tomou um rumo inesperado. Puxou o instrutor pelo ombro, aplicou algo como um golpe de judô e fez com que caísse com o corpo inteiro para fora da nave. Apenas as mãos se agarraram com os dedos inseguros. O passageiro entre um olhar diabólico e um receio de reticente pena, disse:
- Sinto muito.
Pisou nos dedos do instrutor que foi voo abaixo para seu novo destino.

Notou que o instrutor havia levado a prancheta com os próximos nomes. Os incrédulos homens, que esperavam a sua janela em horário e local de salto, demoraram a reagir. O usurpador do instrutor se trancou em uma cabine. Tão logo trancou a maçaneta por dentro, ouviu o alvoroço daqueles que queriam o seu couro. - Não podem me matar! Gritou enquanto impedia que entrassem na pequena cabine com alguns produtos de limpeza.

Espiou por uma fresta que vários perdiam a paciência e saltavam para suas novas vidas. Só saiu da cabine após o silêncio que se seguiu. Dois covardes não tomaram coragem de saltar, nem de impedir que ele se dirigisse até o piloto. - Você tem medo de viver? - Perguntou ao condutor.

Na Terra, episódios esquisitos viraram notícia. Um repórter anunciava:
- Tivemos inesperados casos de gêmeos, trigêmeos e quadrigêmeos na nossa região. A maioria dos casos surpreendeu aos médicos, que, nos exames, não haviam constatado os múltiplos no útero das mães...

Em um dos nascimentos do dia, um bebê bastante curioso, que praticamente não chorou. O doutor aplicou-lhe algumas palmadelas para se manifestar como bom recém-nascido. Na mente do pequeno, apenas um pensamento, enquanto era acariciado nos braços e seios da mais nova mãe. - O desgraçado me empurrou do avião... Isso vai ser descontado do meu salário.

7 de junho de 2020

eu fico esperando

eu fico esperando você voltar
e esse efeito acabar
eu fico esperando você voltar
e a pandemia acabar
eu fico esperando
o mal que faz esperar
eu fico esperando olhando o mar
e o efeito do avatar
eu fico esperando jimi joe compor
esperando o seu amor
eu fico esperando o conflito
atrito se sobrepor
eu fico esperando o diesel baixar
e o motor aguentar
eu fico esperando você passar
e o cigarro apagar
eu fico esperando o final da série
e uma série de contas por pagar
eu fico esperando música tocar
e a bateria apagar
e a bateria carregar
eu fico esperando o presidente morrer
e o plantão na tv
eu fico esperando você me notar
que nota tem que tocar?
eu fico esperando a ressaca passar
é pro meu barco navegar
eu fico esperando enghaw voltar
e kurt cobain ressuscitar