15 de junho de 2023

Que me perdoem os monogâmicos do futebol

Meu pai conhecia desde sua infância, nos velhos muros que, contrariando lógicas e passadas enchentes, mantém-se de pé. Vermelho e branco, perdoem-me, sempre foram cores que desprezei pela minha criação no Rio Grande do Sul. Nunca me imaginei torcendo efusivamente por um colorado. Perdoem-me, em especial, os monogâmicos do futebol que não entendem minha paixão por mais de um clube. Elas se complementam em ser quem eu sou. Afetado por uma cidade decadente após a grande enchente de 1974, o Hercílio Luz, bicampeão catarinense em 1957 e 1958, ainda assistiu ao então rival, Ferroviário, completar a trinca de títulos da cidade em 1970, ano especial em que o tri também veio para a seleção brasileira na Copa do México, no esquadrão de Clodoaldo, Gerson, Tostão, Jairzinho e Pelé. Em Tubarão, a enchente de 1974 destruiu casas e sonhos, causou mortes que desfalcaram uma ou mais gerações em diversas famílias. Com as benções sabe-se lá de onde, minha família passou intacta nessa tragédia. Já desfalcada de outras causas mais ou menos naturais, eu com metade dos meus originais tios, volto ao encontro de minha própria história familiar ao retornar para Santa Catarina ao final de 2021. Apenas tinha passado poucos dias em férias em cada ocasião a que vinha ao estado vizinho ao norte, mas, ao passo em que meus pais adquiriram posse no litoral do estado, posso experimentar uma vivência mais robusta, uma estadia mais longa. E aí surgiu a retomada desse amor perdido de meu pai, que durou de sua juventude até o começo da década de 1980, quando conheceu minha mãe ainda em Tubarão e logo passaram a morar em Pelotas, isto, mais ou menos, por 1987. Minha irmã e eu nascemos no extremo sul brasileiro, a pouco mais de hora da fronteira com o Uruguai, embora a influência charrua seja tão pouca por aquelas bandas, talvez no hábito do chimarrão e em poucos termos que ainda não configuram nossa linguagem como um portunhol mais escutado nas verdadeiras linhas imaginárias fronteiriças.

O Hercílio Luz Futebol Clube carrega vários vice-campeonatos, entre eles, o de segundo clube mais antigo do estado de Santa Catarina em atividade, perdendo a liderança que detinha para o retornável Carlos Renaux. Leão do Sul, como é conhecido o nosso Hercílio, acumula dois vice-campeonatos recentes na Copa Santa Catarina, além de três vices da segunda divisão catarinense. O Marcílio Dias, nome parecido com o qual muitos confundem Leão e Marinheiro, por exemplo, tem apenas um título de primeira divisão em SC, mas possui taças da segunda divisão, inclusive a taça da última Copa Santa Catarina, vencida exatamente sobre o Hercílio de Raul Cabral.

Raul é um personagem central nessa retomada do Hercílio Futebol Clube. Residente da região, assumiu o clube em 2021 e, até a escrita dessas humildes linhas, acumula 27 vitórias, 16 empates e 13 derrotas, um aproveitamento de dois por um em vitórias-derrotas, como podem ver, feito grande para um clube emergente do interior brasileiro.

A cidade de Tubarão comporta uma população pouco maior de 110 mil pessoas, podendo evoluir, talvez para 120 ou mais ao longo desta década. É uma cidade relativamente pequena para a busca, o sonho, o almejo de um futebol nacional. O Hercílio Luz em seu retorno profissional de 2008 para 2009, pela primeira vez reescalou um calendário brasileiro, com a Série D do presente 2023. E tem a vaga em garantia para disputa-la, caso não suba (e as probabilidades obviamente, em um campeonato em que de 64, apenas 4 conquistam o acesso, jogam contra), para o ano seguinte de 2024.

Além dos tubaronenses, que ainda se dividem, erroneamente ao meu ver, entre Hercílio Luz, vermelho e branco, e Tubarão, tricolor que tenta retomar um relâmpago tempo glório em que disputou o nacional e a Copa do Brasil antes da pandemia, mas atualmente está na vexatória terceira divisão catarinense, o público hercilista consiste em lagunenses, imbitubenses e demais moradores das áreas que pertenciam a Tubarão, como Capivari de Baixo. Assim as arquibancadas costumam-se povoar em pouco mais de dois mil torcedores por jogo no Catarinense - após duas grandes campanhas - em que caiu nas quartas de final em 2022 e nas semifinais para o campeão Criciúma, por conta de um gol - e controvérsias de arbitragem - em 2023. Na Série D, o público está mais baixo, a trancos e barrancos superando a barra de mil torcedores por partida, número que precisa ser ampliado nas rodadas decisivas aos fins de semana, não mais nas esvaziadas quartas-feiras à noite de um vindouro e desconvidativo inverno. É necessário novamente dobrar a meta, chegar aos dois mil torcedores e assim buscar a faixa de três mil em possíveis decisivos mata-matas. Orai por nós.

Imaginava um texto mais romântico e me restringi a muitos dados. É verdade que o sentimento nas arquibancadas antigas do Leão do Sul, que chegou a fechar durante vários anos, que retomou como Tubarão nos anos 1990 e durou até haver criação da startup do novo Tubarão, esse projeto que decolou e implodiu e tenta, teimosamente, decolar de novo, enquanto o Hercílio retomou profissionalmente em 2009, acendendo em mim, por agora, um sentimento novo, em vários um sentimento antigo. Por isso novamente peço as mais valorosas excusas aos rabugentos monogâmicos do futebol, que amam somente um clube, sofrem só por ele, em algum domingo que talvez se repita no seguinte. Eu peço a licença para declarar-me aqui ainda a Botafogos, Liverpools, e obviamente ao Grêmio. Mas o Hercílio em questão me aproximou de meu pai, que eu havia, silenciosamente, distanciado nos últimos tempos, em relutantes batalhas de humor e afastamento de quem tem por objetivos de vida escolhas diferentes, principalmente às habilidades e escolhas profissionais. Meu pai que muitas vezes não me entende, eu que muitas vezes não entendo meu pai, jovens como eu que cada vez mais, no avançar dos anos, passam a entender um pouco mais de seus antecessores na indústria da vida.

Nunca terei a resposta precisa do que meu pai sentiu ao retornar ao estádio Aníbal Costa tantos anos após sua juventude, tanto tempo depois daquele garoto de família humilde que pulava muros com os irmãos e/ou amigos, para ver minutos finais de partidas, driblar seguranças, quebrar guarda-chuvas aos gols perdidos, comemorar a braços e gritos os gols marcados, lamentando derrotas nos eternos clássicos diante dos mais bem afortunados criciumenses, sonhando em medir forças com os de Florianópolis ou os de Joinville - e hoje conseguindo contra os da capital e até ultrapassando o JEC do norte do estado. Tento imaginar aquele garoto que ele ainda conserva guardado em alguma parte do corpo ou da mente, que se confunde, eterno confuso, em lembranças difusas, em histórias que se repetem ou se embaralham em suas ideias ou problematicamente fonéticas elaborações. Meu pai que se enrola para contar, que busca pescar da memória e apresenta o mesmo insucesso de quando tentava pescar nas praias.

Por isso acredito que muito dificilmente terei a resposta do que passa por sua mente em reintegrar uma comunidade que ele havia deixado e hoje volta muito em minha insistência. Eu hoje pertenço a ela, através de já idos oito jogos, com seis vitórias, dois empates, uma invencibilidade e muitos sentimentos. Também, a exemplo de meu pai, os apresento confusos, confessando que, antes de iniciada esta jornada em escrita, imaginava ter mais bem definidos os sentimentos que passaria, tentando transcrever nessas linhas.

A verdade é que muitos torcedores, quando questionados o porquê de escolherem - ou serem escolhidos, vamos, Botafogo - tal clube de futebol, talvez não tenham essa resposta. Alguns culpam seus pais, outros foram para arquibancada ainda crianças com tios, amigos e aí deslubraram esse mundo de mais derrotas do que vitórias, ao menos sentimentalmente, porque, afinal de contas, ao final dos campeonatos, apenas um time é campeão e todos os demais não, por mais que se comemorem vagas em diferenciados sabores. Outros se descobrem mais velhos, como é meu caso, com, não é negada a influência de meu pai, mas também um sentimento familiar que se amplia, sabendo que meus tios, que posso visitar nas idas a Tubarão, também desejam o sucesso desse bravo e valente Leão do Sul.

Tenho um sentimento exatamente muito familiar ao passar pelas ruas do Aníbal Costa, um bairro ainda central de Tubarão, em ruas que me soam agradáveis com seus chalés antigos reformados, casas mais abastadas, calçadas que variam, ruas em paralelepípedos que também me recordam do interior gaúcho, até a avenida do estádio, que está localizado a uma quadra do colégio onde meu pai revela ter estudado. Um bar raiz na esquina, convidativo, em madeira. Um prédio de apartamentos em frente ao estádio, lugar propício para algum torcedor adquirir a sacada de frente para ver jogos sem pagar ingresso. A bilheteria de pouco movimento, com raras exceções, as camisas em vermelho e branco, a bateria da torcida organizada Império Vermelho. A contradição do nome império, mas vermelho, o que pode agradar e desagradar a todos. O povo que adentra conosco, negros, baianos, sergipanos, como já conhecemos, lagunenses, também imbitubenses e, é claro, os tubaronenses em maioria. Um maluco que cobra os assistentes de arbitragem na tela do estádio, eu que reclamo da demora da cera dos goleiros adversários, tento condicionar o árbitro no grito quando acredito ser falta, cobro, peço, imploro por cartões amarelos ao adversário, por acréscimo ao final se precisamos do gol. Gasto minha voz como obrigação e devoção de onde estou. Quero a vitória sempre, sabendo que em casa ela é imprescindível, necessária e a sequência atual oferece gulosos 25 jogos de invencibilidade no Aníbal Costa, como pude comemorar algumas vezes.

Vencemos a Chapecoense duas vezes, o Avaí uma vez, o campeão Brusque uma vez, empate com o Figueirense, empate com o Caxias, vitória sobre o Camboriú e sobre o Brasil. Golaços de fora da área, gols trabalhados em toque de bola sobre um gramado em bom estado, embora manchado, arrancando gritos da torcida, que acompanha, nas melhores horas, a bateria contagiante da Império Vermelho, incansáveis em busca do ritmo, da ajuda que os jogadores tanto tem reconhecido. É uma torcida ainda pequena, mas muito fiel, uma organizada que incentiva durante os 90 minutos, como pode ser até raro pelo território brasileiro. A bateria não para, a cantoria às vezes quase emudece, mas sempre algumas gargantas a mantém incendiada para o mínimo que se espera de uma torcida no estádio. Os demais seguem nas palmas, cantam as músicas de menos letra Hercílio oleoleole, Leão eô, Leão eô, HER-CIII-LIOOOOO O OOOO O OOOO HER-CIII-LIOOOO

Gosto do comportamento das torcidas barras bravas que nunca param de cantar e posso afirmar que o Império, embora em poucos membros, mantém o samba animado ao longo dos 90 minutos, mesmo que demais, mais corneteiros desanimem. E entendo até os desanimados, porque eu mesmo sou um que no íntimo, que às vezes repasso, desisto que saia um gol nosso, mas o time de Raul Cabral tem nos dado motivos para acreditar e voltar viagens a Imbituba felizes. Procuro orientar nossos atacantes para optarem pelo melhor caminho, cobro que o meio campo, que tem deixado a desejar, se movimente mais, varie as jogadas e assim o caminho das vitórias tem aparecido, obviamente não por intermédio meu, mas me sinto parte da comunidade de camisas vermelho e branca. Também me questiono como pode a camisa do Internacional, a do Náutico podem me desagradar tanto e a do Hercílio me orgulhar, me cair tão bem. As listras, o símbolo arredondado, as iniciais que tanto amo ver nos nomes meu e de Larissa, pela ordem das iniciais do clube.

As camisas de outro clube que expõem uma comunidade bastante ampla, pois já vi camisas, durante o Campeonato Catarinense, de todos os considerados 12 maiores clubes brasileiros. Você está fora aqui, Athletico Paranaense, por mais que tenha feito resultados em campo que o valham citação. A preferência pelos clubes cariocas é evidente, mas os demais paulistas também botam a cara. Creio que vi algum atleticano, mas cruzeirense agora não confirmo, então talvez possam deletar o depoimento deste parágrafo. Fato é que o Hercílio Luz se mostra bastante querido pelos torcedores de diversos clubes, daqueles que se aventuram em buscar os maiores títulos do país e da América do Sul. Dentro do Aníbal Costa, todos hercilistas em busca do mesmo objetivo, seja uma retomada épica às glórias antigas do Catarinense ou uma escalada nacional não antes vista na Tubarão de seus hoje pouco mais de 110 mil habitantes. A base do clube também tem feito bonito, disputando competições pelo Sul brasileiro e também fez boa campanha na última Copa São Paulo de Juniores, quando adentrou o universo dos 32 melhores clubes do país em categoria de base. Se foi apenas uma exceção dentro da competição, descobriremos, mas estes dias os guris conseguiram bater o forte Figueirense, mais uma vez. Tomara consigam novos triunfos e formar alguns atletas nos próximos anos. Não sejamos escravos do careca, quase aposentado, Renan Bressan, meio-campista de relevância a nível nacional, com passagem pela vizinha Criciúma, por Paraná Clube e outros.

Arremato o texto então nesse tom de breve despedida, em mais uma volta a Pelotas, que seguirei torcendo para o Leão do Sul na caminhada da Série D, mesmo estando distante. Procurando no rádio e nas imagens via internet, lejos do Aníbal Torres Costa. Espero que meu pai possa ir a mais jogos, embora ele não se encoraje muito de sair da cidade litorânea rumo a Tubarão, apesar da boa estrada e da oportunidade sempre bem-vinda de visitar seus remanescentes irmãos e talvez alguns sobrinhos. Espero que o Hercílio mantenha a chama do futebol acesa sobre Tubarão, uma cidade que tenta retomar seu espaço no mapa catarinense e também entre as maiores do Sul brasileiro. Um percurso árduo, mas que muito felicita ser cursado. Refletores que se acendem e se apagam. Um amor de verão chamado Hercílio Luz, que vem sendo mantido, abandonado agora nas escadarias frias do inverno, mas para logo ser reanimado. A camisa pode ir por cima da jaqueta ou direto na pele. Tubarão é boa no inverno, quando o frio teima em não baixar dos 10 graus, mas é escaldante no verão, que quase me derrubou em desmaio justo no melhor jogo, naqueles 3x0 sobre a Chapecoense. Espero ver mais senhores sonhadores, crianças em seus primeiros passos, mulheres que tomam cada vez mais gosto pelo futebol. Que as ideias ousadas de destrinchar um caminho tão estreito e íngreme não se percam nas tão comuns vias da vaidade no futebol, no desmanche, na incompetência e na falta de planejamento coerente. Sonhar sempre, com trabalho pela frente, para que mais pessoas possam construir suas histórias ou reencontrar aquelas em que a família já havia aberto percurso.

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