28 de maio de 2018

Todos infelizes

Respeito e estimo melhoras a nós sintomáticos da depressão, que ora brota de trás de um quadro ou debaixo do tapete. E realmente desconfio dos que nada sentem perante os problemas que nós comunitariamente atravessamos enquanto sociedade doente.

No dia de hoje, houve sol, calor que interrompeu uma sequência invariável de dias frios. Nem sinal de chuva. Nem sinal de pedra no peito. Nas caminhadas, nos trajetos que faço, sempre me pedem moedas. Uns se justificam que não são ladrões. Geralmente desses desconfio que em algum momento com algumas pessoas, são ladrões. Geralmente eu não os julgo, porque a formação deficitária e a falta de oportunidade são o que leva muitos a serem assim. Ou, ao menos, a me pedirem trocados, os quais não tenho saído com para evitar maiores volumes nos meus bolsos que circundam minhas pernas magras.

Preocupantemente já saio com o celular criando volume ao bolso da minha perna direita, os fones de ouvido brancos conectados em músicas de tempos passados e raramente sucessos da atualidade. Passo por catadores de lixo seguidamente, em malabarismos e desafios de equilíbrios em carrinhos ou sacolas ou até na cabeça se conseguissem tais quais aquelas pessoas que recolhem galões de água no deserto. Procuram plásticos e demais recicláveis em meio às sobras. Infelizmente se acostumam dessa maneira. Felizmente que ao menos devem se acostumar a esse programa que nos enjoa somente de ver. Infelizmente se acostumam por não acharem outra saída imediata para combater a fome ou as mais diversas necessidades que passam.

Semana passada a prefeitura lançou a campanha do agasalho. Mas falta tanta coisa a essa gente. A mim, falta a saúde mental, como a tantos outros. Não nos espanta isso diante dos cenários que nos cercam. Mesmo o pessoal que ascenderia da pobreza para uma classe média estaria sujeito às mais diversas presas pecaminosas, coabitando com pressões e com os mais diversos problemas. Arrumar um emprego é estar se adequando a regras que não queremos seguir e convivência com gente com a qual não queremos conviver ou, algumas vezes, sequer desejamos que a pessoa exista, tamanho o desgosto de sua presença. Invejas, cobiças, ostentações, intolerâncias, ignorâncias, estupidez em seus mais raros e possíveis estados físicos ou mentais.

Pilhas de e-mails não respondidos. Já nem esperamos que os respondam. O mesmo asco que sinto ao lê-los não respondidos, os que recebem do outro lado devem pensar pela lotação de bobagens em suas caixas de entrada. Todos infelizes.

Os dilemas entre pressionar por respostas, procurar alternativas e se gastar, gastar energia com isso ou apenas deixar passar e partir para outra. Se perde pela insistência e o cansaço. Ou se perde pela falta de insistência. Todos infelizes.

A lua que me acompanha na volta para casa a pé é muito bela. Um cenário perfeito para roubarem o celular que eu já temia perder à luz do dia. Felizmente sobrevivo mais esta jornada. O asfalto e a iluminação estão bem posicionados nessa rua, as paradas de ônibus novas levam vidro em suas confecções, mas o clima de insegurança permanece em alto teor. Quase tudo certo, mas alguns erros são grotescos.

A saúde mental sabe que o básico dos básicos está em condições quando chega-se em casa. Na internet, lê-se os mais diversos absurdos das mais diversas pessoas. Anarquistas que debocham, gente que acha que político é tudo igual, estes debocham, pessoas pedem intervenção militar em um país castigado antigamente pelos militares no governo. Inflações altas, corrupção deslavada, vozes silenciadas, torturas, exílios e mortes. Tudo ignorado por esses infelizes desconhecedores da história brasileira. Ou simplesmente pessoas de mau caráter. Não duvidem, anda por aí gente sem escrúpulos, canalhas e calhordas das piores espécies que existem.

Interrompem ao parágrafo os gritos dos coletores de lixo oficiais do governo. A coleta dos reciclados está suspensa pela crise no setor dos combustíveis, paralisações de caminhoneiros e de petroleiros na semana. Pautas diversas sendo jogadas, arremessadas espalhafatosamente ao ventilador. Um país em pleno caos. Todos infelizes.

A cadela pertencente aos vizinhos segue latindo desde que o caminhão passou. Ela deixa meus pais infelizes enquanto eles assistem à televisão da sala. A cadela parece seguir incomodada e outros cães da vizinhança se manifestam. Pedem intervenções ou querem intervir. Todos infelizes.

21 de maio de 2018

Poesia que fores

Suas mãos fazem uma poesia de flores
Eu queria fazer parte
Nessa sua palheta de cores
A mais bela das artes

Suas mãos fazem uma poesia de flores
Ramalhete e arremate
Junção, laço e gene
Genialidade da arte

Suas mãos fazem uma poesia de flores
Espinhos visíveis, vizinhos de dores
Dedo médio, dedo mínimo
Incisivos que forem
Poesia de flores
Poesia que fores
A mais bela das dores...

18 de maio de 2018

Fins (de semana)

Minha tia fofoca na cozinha. Sempre sobre as mesmas pessoas e raramente sobre outras. Não sei aonde leva esse assunto. Não sei aonde leva a loucura e a lógica do sistema. Cheguei em casa e suo mais nas mãos agora do que enquanto caminhava à alta velocidade.

Um amigo de infância confidenciava entre uma de nossas primeiras rotas traçadas a pé e sem supervisão adulta que ele gostava de caminhar rápido para 'evitar problemas' ou seja lá o termo usado na época. Ele tinha, e ainda tem até hoje, grande poder aquisitivo, o que talvez justifique essa atitude estratégica. Seus celulares de cinco, seis anos atrás deveriam ser melhores do que o que eu tenho atualmente. E às vezes é o tipo de gente que carrega dinheiro demais para ocasiões em que necessitariam trocados ou notas baixas, para evitar constrangimento de trocos.

Enquanto eu digitava a palavra dinheiro, minha mãe a entoava na cozinha. O dinheiro é sempre o centro das questões. É o dinheiro, ou o produto celular no meu bolso, ou meus óculos escuros já devidamente pendurados no colarinho, que fazem eu apressar o passo, relembrando a distante fala do amigo que hoje tenho tão pouco contato para com ele. É o dinheiro que me faz correr atrás dos mais diversos comércios e estabelecimentos em busca de subsídios para meus hobbies e futura sobrevivência.

São os 82 reais que devo ao Ministério da Educação através da inscrição do Enem e preciso quitar até a próxima terça-feira para realizar uma prova objetiva de questões a b c d e, na interpretação, no susto, na sorte, no chute, na grade, em busca de cento e poucos acertos e mais uma graduação. Em busca de terminar e me livrar no menor tempo possível para me livrar de procurar comércios e estabelecimentos e ter um horário fixo para desenvolver a mesma função repetidas e repetidas vezes. C'est la vie, alguns se orgulham em compilar a fala em suas fotos de capa em redes sociais online.

Achei que seria assaltado ao lado de um grande supermercado que fechou nos últimos anos. Ao redor da colossal escultura que antes abrigava movimento de clientes, carrinhos de compras e barulhos de código de barras liberados, existia uma tela, mas ela foi roubada. Aí foi reposta, como se nada houvesse acontecido. Agora estou no aguardo de quanto tempo para que seja novamente roubada. Uma escadaria que leva a um segundo andar na construção foi grafitada e pichada como os norte-americanos gostam de fazer nos estabelecimentos desocupados pelas inflações imobiliárias e crises inventadas do mercado mundial e wall street e etc. Ao lado desse super abandonado, achei que seria assaltado.

O ciclista vinha sorrindo e olhando para o lado, parecia para mim. E segui caminhando, mas voltei meu olhar a ele e ele continuava sorrindo e eu caminhando e ele pedalando e sorrindo e uma cara de quem ia se dar bem. E ele segue sua trajetória à beira do meio fio pela rua e ao meu lado na calçada passa uma criança também de bicicleta, que deveria ser o irmão mais novo dele ou talvez um filho, é possível. Dessa vez senti o perigo tão iminente que nem me arrependi de ter duvidado de sua índole. Em outros tempos eu teria me chateado e deprimido comigo mesmo. Mas são tantos e tantos motivos para isso que prefiro não empilhar mais esse. Postes acesos e cachorros levando suas donas para passear. Estou falando dos quadrúpedes, alguns vestidos de roupinhas no inverno que se aprochega na metade sul do globo terrestre.

Eles cagam o meu caminho nos fundos dos apartamentos da rua Brasil e pelo menos o novo prédio, um dos mais altos da cidade, tem calçada nova, até ciclofaixa e os cães o tem respeitado, sabe-se lá porque, mas continuam cagando nos mesmos espaços que depositavam desde antes.

No posto de gasolina da esquina, a placa que sinaliza a marca do posto não combina com o resto da decoração e da sinalização dele, eu estranho. Os funcionários estão agora equipados com jaquetas mais grossas, num tom de vermelho berrante e uma das funcionárias ajeitava a postura da roupa sobre o colega funcionário.

Durante o trajeto, notei muitos rostos de clipes do System of a Down, o que significa gente observando o nada e o tudo e seja o que for pela janela, a vida passando diante de seus olhos, enquanto trabalham encaixotadas em endereços decorados na cabeça para indicar onde comerciam e para aumentar as vendas. Trabalham encasulados e encarcerados, mais empacotados do que as próprias mercadorias que vendem, que pelo menos vão mudar de endereço quando são vendidas. Enquanto elas, as pessoas, vão continuar ali, observando os fins de tarde na infindável melancolia e na expectativa recortada no calendário em denominação de fim de semana.

Enquanto descrevi tudo isso, minha tia segue na fofoca no cômodo da cozinha. Bom fim de semana a todos os leitores. Se estiverem lendo no início de uma semana posterior, não se preocupem pois o desejo do bom sempre se reserva aos finais de semana. Enclausurados, encasulados, empacotados nas folhinhas espetadas nas cozinhas em doações feitas por armazéns próximos.

8 de maio de 2018

Segunda-Feira, 7 de Maio

Terminei de ler mais um livro. Um grande livro. Em tamanho e significado, recomendado por um dos meus amigos da atualidade. Na verdade, me joguei a essa leitura através de uma lista dos livros que nos desafiavam sobre termos lido ou não. Esse eu não havia lido, mas agora posso marcar, confirmar e condizer que sim: li.

Ao terminar essa vasta leitura, o relógio ultrapassa as temíveis três horas da madrugada. O maior temor é o despertar do dia seguinte. Ó, que contradição, se o maior temor seria não acordar no dia seguinte? Mas me refiro aos desrespeito com o horário. Mais uma madrugada atravessada entre as pálpebras. Uma leitura estonteante, um folhar de páginas que pode mudar a vida de vários indivíduos, configurando o porquê da obra ser um clássico respeitabilíssimo.

Para este amigo, devo ações políticos. E será que devo? A quem devo? No que acredito? Quais são os próximos passos? Um maldito ano eleitoral em que estamos cercados das mais diversas maneiras. Quem matou a vereadora carioca Marielle Franco? Pode manifestação política defendendo político específico em estádio? Por que afirmam que Ciro Gomes não é de esquerda?

Um colega de jornalismo, conhecido virtualmente, desabafa neste horário sobre o pouco ânimo vital. A gente nem se espanta mais. É tão comum o desânimo. A gente aprende a conviver consigo mesmo e a não arregalar os olhos nos demais casos. É preciso ser muito forte, paciente e domado espiritualmente. Domado como um animal que obedece quando o dono arremessa uma bola e se corre atrás.

Este colega não está mais no site em que eu estava. Somos ex do mesmo portal. Não tenho tamanha intimidade e nem fôlego agora para indagá-lo sobre sua situação atual. E, a bem da verdade, nem sei quais são as palavras certas para ajudá-lo neste momento. Ele reclama que não se sente à vontade com o que está produzindo ou para que possa produzir o que deseja. Entendem? Ele sabe que está fazendo algo, mas não aprova. Ou não está fazendo algo porque simplesmente não consegue configurar-se para tal função. Falta de manejo físico ou psicológico atualmente. Um problema, um problemão que atinge a muitos e muitas.

Os que buscam emprego se apertam contra portas estreitas da atualidade. Um colega de escola forma-se engenheiro civil e não tem contrato e não tem  por onde ir no exato momento. É possível que a construção lhe abra passagens futuras, literalmente, mas por enquanto é um cenário de tensão e espera. Outro formado há mais de ano também não conseguia o que exercer. Um terceiro está para se formar e tem sonhos utópicos que necessitariam de uma responsabilidade enorme, de um capital de giro inicial bastante alto e que sabe-se lá de onde espera tirar. Devaneios de um Brasil que, ao invés de ser pista de decolagem está mais para terra movediça. Sacam?

No Jornalismo meu e do colega acima citado, o problema é se defrontar com o que produzimos e em nome de quem e para qual retorno. O financeiro é irrisório, qualquer obra simbólica ou de menor esforço físico valendo mais. Nos desgastamos em deslocamentos para cobrir pautas, em horas escolhendo e editando as palavras certas nos resumos jogados nas lixeiras dos calçadões ao fim do dia. Ao buraco do esquecimento no migratório e acelerado circuito virtual que nos engole como pequenas presas de leões.

A outra companheira que destrincha umas linhas, uns podem chamar de thread, resmunga a respeito do barulho feito pelos vizinhos de cima do apartamento. Taí outro problema comum dos deseducados moradores de condomínios Brasil adiante, mesmo essa sendo uma legítima pelotense. Reclama sobre barulhos de móveis ou de que for que está sendo arrastado teto acima para ela. Três horas da madrugada e essa situação humilhante, o sono, ainda gratuito, sendo dizimado em nome de algum absurdo para o horário.

Desânimo dela que conta aos leitores madrugadores ser uma cena comum. Gravou vídeos com o celular para provar o horário e o estampido dos sons impertinentes no apartamento de cima. Mais cedo, uma outra menina reclamava do sexo dos vizinhos, mas essa é outra história. Outra história que pelo menos era mais justificável e mais cedo.

A boa notícia, segundo o portal da emissora mais famosa do Brasil, é que os imóveis baixaram 0,01% do preço no mês de abril. É a grande chance de trocar de endereço, desanimados e desanimadas deste país. Assim foi-se a segunda das feiras.

5 de maio de 2018

Morros

Era um morro. Naturalmente era um morro, relevo esculpido pela mãe geografia desde muitos e muitos séculos. Também é lógico que trata-se de um morro ocupado. Famílias e famílias periféricas, mas visíveis, talvez de binóculos, aos olhos do reinante asfalto, que no Rio de Janeiro tem seu reinado no ponto mais baixo.

Mas o morro tinha lá seus impérios. Lugar melhor para alguns comércios não há. E os que sabem, se escoram e se encorajam nisso não perdem chance. Ocupações para o bem ou para o mal. Ou além disso, pela sobrevivência. Algo que orgulharia a teoria de filósofos alemães que jamais viram tais cenas e nem as imaginavam no europeu século dezenove.

De fato, era um morro. Um morro que aqui não representa nome. Um morro desses que o turista conhece olhando lá de baixo para cima, com olhos arregalados, a boca abismada em formato de caverna e, se não é assim que observa, é porque teme representar demais a expressão turística, chamadora de atenção de quem tenta se aproveitar deles. Morro desses que o estrangeiro a essas terras observa como uma junção de peças muito semelhantes, como um quebra-cabeças, mas que tenta, ao mesmo tempo, registrar as diferenças, entre uma casa de tijolos à vista, outra pintada em cor de rosa, outra na mão de tinta em verde limão. Tenta observar uma bandeira do Flamengo pendurada, umas peça de roupa em outra corda, uma bicicleta ali jogada ou uma bola de plástico instantemente abandonada. Tenta entender como a fiação funciona naqueles enroscos que desafiam a lógica e a física. Desafiam aos vizinhos descobrir quem é o responsável quando a luz se vai ou quando o incêndio atinge uma dúzia de barracões. Os desafios do dia a dia.

Cada vez mais convencido de que o ser humano é adaptável. Pra quem mora ali desde a infância, nada disso é cenário para bocabertices, para espanto, caras pasmas ou a mão trêmula tentando sacar dali fotografia com o celular ou com a Canon ou Nikon. Um casal de jornalistas ali vivia há cerca de um mês. A primeira semana sempre é a mais difícil. O trabalho de conseguir alugar um espaço de dois quartos, uma cozinha e um banheiro quase comunitário com os vizinhos não foi tranquilo aos olhos dos controladores.

A adrenalina e a ânsia da reportagem falavam mais alto. Gritavam e abriam espaço em seus peitos. Precisava ser feito. O início era como se adaptar a um quarto de hotel, com suas peculiaridades estudadas nos primeiros dias, nos primeiros acenderes do fogão, nos primeiros banhos para regular o pouco que podia ser feito com a água do chuveiro. Armazenar água da chuva para fundos de emergência, saber a intensidade da descarga do vaso sanitário. Entender o horário e os incômodos que os vizinhos poderiam causar.

Preconceitos à parte da sociedade dos bairros abaixo, nada ali estranhava muito. Crianças brincam e fazem barulho, naturalmente. Das mais ricas às mais pobres. Experiências de observar crianças haviam tido, embora, casal junto há menos de quatro anos, não tinham filhos e, nos custos de tempo e estresse na dedicação ao trabalho, não pensavam e mal discutiam essa hipótese, mesmo para um futuro que não sabiam se existiria.

Se conheceram ao final de suas faculdades e a oportunidade de trabalhar juntos uniu-os de vez. É possível que já haviam se visto nesses rios de janeiros de zonas sulistas, mas somente os encontros para a definitiva oportunidade de trabalhar no mesmo ramo meses depois causaram uma união mais estável. Dividiam um apartamento anteriormente, com alguns custos de auxílio das famílias, pois jornalista tinha um alto custo com internet, telefonia e outros serviços. Até mesmo com deslocamentos com transportes, que, mesmo nos aplicativos novos, somavam uma nota desconfortável ao final dos meses.

Aquele espaço no morro era para uma produção que ganharia destaque em chamada e páginas e páginas de uma revista. O veículo entrava em contato com eles praticamente diariamente. A negociação para obter o lugar estratégico demorou mais tempo do que passariam ali. Os contatos com os controladores eram seguidos. Queriam saber a intenção da reportagem, saber um pouco sobre suas identidades e histórico recentes, o que foi passado em resumo bastante resumido, mas sem invenções ou ocultações que poderiam complicar a pele do casal enquanto estivessem lá em cima.

Conforme avançavam no currículo que os controladores desejavam, a isenção de pagamento foi conseguida. Era um dos raros espaços desocupados anteriormente entre as construções tão adjuntas do morro. Famílias e mais famílias os cercavam. A bem da verdade, o ponto de vista antropológico os interessava muito. A parte criminalística deixava de ser o ápice da reportagem durante vários e vários dias. Muitas vezes o olhar direcionado ao conhecimento daqueles humanos preferia fotografar as crianças em brincadeiras rudimentares de futebol, nas versões de altinha e em gols improvisados, as quase extintas bolas de gude, ou mirar o deslocamento das constantes lavadeiras, que pareciam carregar e trabalhar com mais peças do que caberiam em pilhas ou cabides no aperto dos quartos das casas.

E no que se conseguia capturar de seus assuntos, as palavras, os discursos e os diálogos inalados de sabão iam dos homens, dos ex-acompanhantes, dos bêbados da região, da novela, algo mais vago sobre futebol, sobre o desempenho dos que estudavam e o lamentar dos que não estudavam naquelas famílias tão jovens, de mães adolescentes a crianças que começavam a se encarregar do perigoso e mortal tráfico.

Esta era uma das palavras as quais evitavam a todo custo. Certas palavras pareciam perigosas e distintas até mesmo para colocá-las no papel, das anotações aos registros do notebook. A sensação era de cometer um grande delito e que sempre alguém os observava como se fosse o Cristo Redentor, ainda mais ao alto, a aconselhar que utilizassem sinônimos ou tomassem o extremo cuidado naqueles delicados assuntos.

Também pelo receio de abordar esses temas é que muitas vezes o cotidiano das famílias mais simples, necessitadas e pouco estruturadas tomava espaço nos registros, nas anotações e nos álbuns construídos. Aprendiam o nome de alguns vizinhos, embora a maioria demonstrasse interesse, mas receio de se intercomunicar por muito tempo. Qualquer estouro em relação aos jornalistas poderia acarretar em problemas entre os mais próximos, como tortura, ameaças e necessidades de confessar até o que não sabiam.

A relação com a vizinhança foi um dos tópicos bastante abordados durante as conversas para definir o aluguel. Muitos dos moradores, principalmente os mais antigos e de confiança dos controladores, foram indagados sobre a possível presença dos jornalistas ali em dia e noite. Uns torceram o nariz, mas a maioria foi aceitando. A liberação da concordância foi acontecendo em processo de confiança dos primeiros dias. Mas, para os jornalistas, a sensação era sempre de que alguém os observava. E era possível que realmente os observavam nos mais diferentes horários e locais, como na ida aos mercadinhos da zona ou da cerveja que Gabriel arriscava beber nos botecos, colhendo mais alguns depoimentos dos frequentadores, uns mais exaltados ou confessores após os pileques.

Gabriel era mais moreno e Patrícia era muito clara. Ela atraía olhares masculinos, mas teve dificuldade era em convencer as lavadeiras, as jovens mães acompanhadas ou solteiras de que sua presença era meramente trabalhista. Não ia lá para roubar homem, muito pelo contrário, afirmava.

Os preconceitos correm fácil por esse Brasil, talvez tão fáceis como circulem os córregos da vasta bacia hidrográfica de Norte a Sul, ou fáceis como as valetas e os esgotos a céu aberto. Ou fáceis como o voo das veranistas andorinhas e outras aves nativas. Tão fácil quanto a fumaça do cigarro no bar que Gabriel frequentava às vezes com Patrícia. Tão fácil quanto a mercadoria financiadora descia morro por meses sem a mínima interferência estatal e o controle era todo daqueles que intermediavam pela população, ameaçavam e empunhavam suas regras e seu armamento por vezes à luz do dia.

Faltavam poucos dias para fechar um mês de trabalho. Eles não projetavam estender muito mais a jornada por aquelas bandas, conforme inclusive haviam acordado com os controladores da região. Eram 28 dias completos na missão para a revista, mas então houve a noite derradeira. Foram 28 dias completos, mas na vigésima oitava noite...

2 de maio de 2018

aforismos do deus mercado

É estranha a vida de prostituto comercial. Aqueles que continuam a conversa quase uma semana depois como se nada houvesse acontecido.

Por horas, tenho ideias mirabolantes de possíveis anúncios e me sinto um empresário renomado e de sucesso, em boas roupas de cima a baixo e comentarista de revistas de coworking. Por outras, não confio em vender esses espaços falidos e me sinto um desgraçado, um pobre inválido diabo que não terá hipoteca, aluguel ou teto de privacidadindependência.
 

Transportadoras, restaurantes, farmácias de manipulação. Todos têm lucro... Só queremos pequenas fatias. Fatias chamadas oportunidade. Ou fatias como o pedinte da entrada do supermercado queria apenas uma das suas 23 sacolas do rancho. Fatias.

No mais, prostituir-se comercialmente em nome dos anunciantes denota um grande trabalho entre os diferentes processos mais ou menos organizados por: explicar a proposta, decorrer aprovação sem implorações ou choros demasiadamente degradantes e indignos, desenvolver o contrato mediante assinaturas, recolher a grana mensalmente, preencher recibos, pressionar pela renovação e finalmente, talvez o mais seguido e preocupante para qualquer paranoico: manter o nível de conteúdo a cada mês.
 

Ou será que sou dramático?

“Sacrificamos os antigos deuses imateriais e pusemos no templo o deus mercado... Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando já não aguentamos mais, sucedem a frustração, pobreza e até a autoexclusão”
José Mujica, ex-presidente do Uruguai.

debutes

Ao dia 1º de maio de 2018, minha irmã adentrou um estádio para um jogo de futebol oficial pela primeira vez. Justamente, por coincidência ou por aproveitamento da data, no feriado do dia do trabalhador. Justo minha irmã e eu que tanta dificuldade temos em arrumar empregos, por aptidões, qualificações ou socializações que nos faltam. Mas ela tem se virado no meio autônomo no campo artístico no desenvolvimento de desenhos, pinturas e moldes para as mais diversas personagens. Eu tenho começado a me virar radiando anunciantes na amplitude modulada, com um pouco do talento advindo comigo e com um pouco do que aprendi nos anos da faculdade de Jornalismo. São tempos difíceis, todavia, ao que se sabe. Tempos complicados mesmo para quem possua maiores aptidões, qualificações, formações e socializações, sobretudo. Tanto minha irmã quanto eu tivemos desempenho notório no aprendizado escolar, o que mais uma vez prova o despreparo do ensino para preparar. A despreparação do estudante para encarar os passos a seguir, o caminho pós-diploma, saturado de conhecimentos vagos, desconexos e a grosso modo inúteis no cotidiano. Pois bem.

Feita a crítica, vamos à parte positiva, a parte boa da receita. Minha irmã no alto de suas quase três décadas voltou definitivamente a ser criança. O anseio manifestado de um desejo passado por entrar em campo acompanhada de jogadores dessa vez foi saciado das arquibancadas. Um jogo de público de médio a baixo para as perspectivas do clube local pelotense, na Série B do Campeonato Brasileiro. Partida de bom acesso e de bom horário. Peleia disputada à tarde, percorrida até o início de noite do feriado e que se mostrou acolhedora para ela em um ambiente muitas vezes demasiadamente hostil.

Ao mesmo tempo em que muitas vezes julgamos alguma fragilidade destacadamente maior à figura dela, enquanto mulher e mulher com especificações e problemas de socialização, demonstrou curtir, ao que contou, os momentos mesmo mais exaltados de alguns torcedores ou dos jogadores em campo, partindo para desentendimentos e princípios de brigas e confusões além do jogo de bola. Ela é acostumada a jogos eletrônicos virtuais com armas, personagens e objetivos dos mais diversos tipos.

Quanto ao jogo especificamente, uma boa partida, talvez a que narrei pela rádio com mais chances de gols por ambos os lados. Uma atuação positiva dos escretes das duas equipes, a gaúcha e a catarinense. Os gols que se escassearam na injustiça desse desporto. Apenas um, de pênalti, deu a vitória aos pelotenses sobre os florianopolitianos. A bem da verdade, também se apreciam as boas defesas praticadas por ambos os arqueiros, sobretudo o da representação alvinegra, evitando por puro reflexo e boa colocação o aumento do score dos locais. Placar final de 1 a 0.

Na volta para casa, na qual dividimos o pedido de um lanche bem aproveitado, para fechar com chave de ouro, por assim dizer, ainda fico sabendo de mais relatos, quase todos entre sorrisos dela, no seu aparecer dentário de humores duvidosos, como costumam ser. O gol da partida anotado no primeiro tempo e gravado para a memória póstuma através da gravação de imagem feita pelo celular. Além desse registro importante, captou fotos da torcida antes do jogo e na entrada em campo das equipes, aquele momento que ela confessava tanto apreço anteriormente, o qual não conseguiu aproveitar em infância, mas conseguiu estendê-lo (e entendê-lo!) agora, ao menos sentimentalmente.

Nesse relato feito, comum a tantas crianças e adultos que conviveram em centros menores ou mal financeiramente, distantes dos seus times coracionados, contempla-se a importância das canchas de futebol. Poderia ser, no que confere jogo da mesma data, um debute de excursão à luxuosa e majestosa arena financiada em Porto Alegre, mas quis o destino que a estreia dela em estádios fosse com uma vitória mais humilde, como confere nosso polo em relação a(o) capital. De bom tamanho e de sorrisos escalados para durante e depois, como ora-se e pede-se antes de cada partida. Assim foi um feriado para não mais esquecer.

1 de maio de 2018

moinhos

e nesse mundo, esse nosso mesmo, estamos no mesmo barco e eu encontro ainda que com a resistência do tamanho e da idade, o colo de minha mãe, uma mentora que todavia me escuta. e posso falá-la e posso dizê-la, que não sei o quanto aguento nesse mundo, esse nosso mesmo. aguentar a multiplicação dos desempregos, os filhos e filhas pequenos com fome, as pessoas que batem à nossa porta ou me imploram trocados nas ruas, na entrada dos supermercados ou nos estacionamentos das poucas festas que nos resta fazer. não sei se consigo aguentar essa multiplicação de depressivos, essa desilusão em tudo em volta. a desilusão na mínima confiança ao próximo. ao próximo passo, ao próximo gesto, à próxima pessoa. reflito com ela, vitória régia de meu brejo, anjo de harpa em mãos e cabelos esbranquiçando. digo, mãe, que não sei o quanto aguento nessa subida de preços, nessa subida de grades, cercas e alarmes em nossos endereços. nessa subida de propagandas das mais falsas, picaretas e dizimadoras, propagandas contrárias ao que pregamos e acreditamos.

não sei mais quanto aguento nesse exercício de prender a respiração na manobra que antecede ao mergulho, prática de que nunca fui muito bom em ser duradouro. prender a respiração e procurar refúgio do mundo externo ao estar interno. e não encontrar a paz e tentar um conforto numa atividade externa e retornar e ficar no giro desse moinho que sufoca em águas. prenda-se, prenda-se, prenda-se. mergulhos nas águas das mais turvas e mais obrigatórias e mais uma sessão que se aproxima nessa roda giratória.

e tenho teu cloro e tenho meus braços para agarrar-me o quanto posso. e tenho cloro nos olhos e água nos pulmões. e mais sessões e sessões e sessões. à deriva, a naufrágios. o desejo da ignorância aos males que nos atingem externos e internos e que são incessantes, atormentantes e atuantes. sentinelas carrascos e garantidores do mecanismo. do moinho que joga-se em seu movimento e novamente afoga. e na tua mão me afago e no moinho afoga-me. e na tua mão afago-me e no moinho me afoga. e na tua mão me afago e no moinho...

despindo desperdícios

e novas linhas
linhas minhas eu teço
para isso
às vezes desapareço.
e no regresso
será que é progresso?
e não meço
o quanto andei
não meço o preço
que paguei pelos versos
não adianta tentar calcular
um custo-benefício
porque pertenço a só esse ofício
penso e escrevo
por amor ou por vício
às vezes mundo real
às vezes fictício
enchendo linhas
serão desperdício?

enseadas

ensereiada e aportada
na minha cama
com pernas pra ir onde quiser
mas fica se eu chamo
fica em chamas