28 de março de 2023

Cada noite que eu me deito

Cada noite que eu me deito

Sinto que estou morrendo

Sinto que estou morrendo


Sinto que não tem mais jeito

Mas o processo é lento

Mas o processo é lento


Cada noite me contento

Que ainda não estou morrendo

Que ainda não estou morrendo


Cada noite sou um detento

Detido por meu organismo

Detido por meu organismo


Tanta coisa já nem lembro

Tanta coisa é instinto

Tanta coisa é instinto


Tanta coisa que aprendo

Tanta coisa nem aprendo

Tanta coisa nem fudendo

E tanto que eu sigo fudido


Sou meu amigo e inimigo

Me absolvo e me condeno

Aciono o meu jurídico 

E perco horas a pleno


Tomo água e veneno

Bebo mágoas e vou sendo

Menos do que eu sonhava

Mais do que eu imaginava

Isso depende o momento

Às vezes já estou morto

Às vezes ainda vou sendo


Cada noite que eu me deito

O leito tá preparado 

Eu já estou acabado 

Ainda não tô acabado

E assim ainda vou sendo

18 de março de 2023

Entre gremistas, formigas e um cão perneta

A família que morava no quarto andar se mudou ontem. Eu vi o caminhão de mudanças pela manhã, desconfiei, mas não me despedi como deveria, agradecendo a boa e rara vizinhança conforme agiram neste ano e meio de convívio. Quase não os ouvi e, se os ouvi, só em horários aceitáveis. Lutamos bravamente juntos contra a ameaça paulista que ocupava o terceiro andar e nos incomodou madrugadas de conversas, fofocas, visitas, vídeo game e sabe-se lá quais bebidas e cigarros. Por mim que consumissem o que bem quisessem, desde que não enchessem o saco, mas logicamente enchiam e nos horários mais inoportunos possíveis. Pois bem, aguentamos isso em 2021 e ganhamos o alívio da ausência dos paulistas, em sua retirada em 2022. Porém, para 2023, a família, que tão bem ocupava o andar mais alto do prédio, está fora. Me acompanhava a dúvida se estavam apenas retirando uns móveis ou se um dos filhos do casal é que iria se mudar, mas partiram todos, como bem prometiam há um tempo atrás, sem eu imaginar que esse tempo de partida não tardaria, que já se avizinhava tão costeiro.

E quem sobra? Apenas nós do segundo andar. A senhora que me aluga tem um companheiro, entendo eu que por conveniência (de quem? de ambos), mas o que tenho eu a ver com a vida privada dos outros? Ela tem viajado às vezes e ele, dessa vez em que escrevo, é quem está cuidado do apartamento e, juntamente comigo, do prédio. Percebo em mim um passo a mais rumo à solidão, o que me desanima e me consola, me traz êxtase e vazio. O prédio cada vez mais silencioso, sem sequer passos mais pesados dos andares de cima ou o raro arrastar de algum móvel (tão mais comum no prédio que meus pais arrumaram em Santa Catarina), a possibilidade de um privado mais extenso. Esses dias, amigo meu, o qual considero um dos melhores escritores vivos que conheço, relatou o perigo de um jovem solitário morar sozinho, porque é a velha extensão de seu quarto, recinto fechado, dessa vez tratando-se de um apartamento inteiro à disposição. E o meu tem o quarto sobrando para quando meus pais oram voltam de Santa Catarina, como assim planejo no mês que vem, abril.

Pois bem: agora tenho não só um quarto para ouvir música, ver filmes, ler, chamar de meu, mas um apartamento e praticamente um prédio à disposição. Concorre a esse extasiar, o fato de que a segurança condominial diminui relativamente. Me sinto quase que enfrentando zumbis em uma pandemia. Me sinto como o protetor desse pequeno e quase desinteressante universo. Além de mim, as formigas fazem questão de aparecerem. Visitam minha cozinha diariamente, entram por trás do balcão embutido na parede, percorrem um espaço milimétrico por entre o buraco por onde passa o fio da internet. Se inserem na minha pia, buscam migalhas de torradas, bebericar um aguado refrigerante esperando o dia da entrega das garrafas para reciclagem, tentam alguma migalha de pão por sobre a mesa da cozinha/sala ou até se aventuram em terras mais íngremes, como o pote de bolachas ou a geladeira. As minúsculas formigas e sua organização invejável são um grande obstáculo na busca pelo sossego, mas por ora me deixam um tapa menos solitário.

Quando fui buscar meu almoço deste sábado, cruzei por um catador de reciclados com uma camisa de número 7 do Grêmio. Peguei o troco do restaurante e lhe depositei moeda em mãos. Fiquei depois pensando que valeria até deixá-lo com uns 10 reais, mas pensar na minha própria condição ainda me impede disso. Por que não cedermos um almoço para quem mais necessita de vez em quando? Elogiei sua camisa e falamos um pouco do Grêmio que ele, de alguma forma, acompanha, seja por transmissões cada vez mais por internet, menos na televisão aberta que facilitava a todos (hoje jogam Caxias e Inter pela semifinal), ou pelo rádio, bem um pouco mais universal, mas que, por tempos, Pelotas sofria de não ter transmissão da dupla Gre-Nal pelo meio do cada vez mais dispensável AM (que me perdoem os torcedores Bra-Far-Pel pela heresia de querer que algum gremista ou colorado acompanhe seu clube do coração em nossa terrinha).

O catador falou que já teve oportunidade de ir na Arena e que achou "muito massa". Mas quer mais também de Luis Suárez, pois este "é muito caro", o que concordei sobre querer render ainda mais um pouco - queremos sempre mais. Mas qual parâmetro possível de comparação entre o ser muito caro, o salário de milhões, em relação a um trabalhador braçal, autônomo, que agradece qualquer moeda que o entreguem? Como é difícil visualizar alguma justiça nesse mundo. Renato Russo - vejam só, do nada, Renato Russo e Luis Suárez no mesmo parágrafo - Renato, pessoa muito chato da qual não sei se seríamos amigos, creio que foi até bondoso quando afirmou que "o mundo anda tão complicado". Creio que o mundo está impossível, em suas injustiças, perda de valores, convívios, chantagens, relacionamentos entre as pessoas. Mas, de alguma forma, ainda acredito na solidariedade, dentro dos nossos possíveis - talvez um dia dar-lhe 10 reais e não apenas um. É preciso tratar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque, na verdade, não há muitos mesmo.

Por fim, após meu almoço, enquanto degustava a sobremesa dita gratuita - vai nessa - apareceu por nossa rua um cachorro que por vezes vejo, um perneta de três patas. Atropelado ou vítima de algum outro problema que lhe amputou, ele, maltratado pelo calor dos últimos dias, foi digno do que restou de minha marmita, a qual agradeceu deliciando-se tão logo depositei ao chão para que se servisse. Mastigou até o que eu não esperava e percebi que precisava dar-lhe água contra esse calor todo. Só depois percebi que lhe dei minha água mineral ao invés da torneira, mas vai que ele merece, pois água das torneiras pelotenses não é lá coisa que se recomende. Bebeu também e fez a expressão que me pareceu contente, como quando percebemos contentes os cachorros, sobretudo - porque os gatos são mais difíceis de leitura - penso eu. Fiquei feliz e talvez agora eu tenha um novo companheiro. Enquanto aqui ainda habito este velho prédio, antiho, surrado, pouco chamativo, quase desabitado. Eu, um casal de conveniência, as formigas, um cachorro perneta para ocupar nossa quadra e dar-me mais motivos por mais dias. Não sei se ele me agradece ou agradeço a ele. Enquanto escrevi percebo que da janela voou um pó para dentro do meu doce (vai nessa) gratuito de maracujá. A sorte nem sempre me sorri.

10 de março de 2023

Eu também

Outro dia vi um cachorro de um vizinho ir até o limite da grade da porta, ele apenas querendo ver o movimento da rua. Olhou, viu nada e deu volta para dentro da casa. Achei engraçado, mas logo percebi que eu também era um cachorro até o limite de meu apartamento, de frente para janela que dava para rua. Eu era aquele cachorro.

Outro dia um senhor caminhava solitário pela rua, passos lentos, ritmados em ritmo que ele gostaria fosse mais rápido. Sozinho por ruas bem mais antigas do que ele. Achei engraçado, mas logo percebi que eu também era um senhorzinho, menos elegante e menos realizado do que eu gostaria. Eu era aquele senhor.

Outro dia pelo começo da noite que ainda não havia nos cercado de todo, dois gatos à altura de uma janela me olhavam duvidosos, sem saber se seguiam pela rua ou entravam de volta na casa. Bichos soltos a tomar suas próprias decisões. Eu achei engraçado, mas logo percebi que eu também era um gato no começo da noite. Estava indo em direção a um bar a umas seis quadras de distância e precisava caminhar firme, sem retroceder de voltar para casa. Alguns gatos não têm casa. Eu era um daqueles gatos.

Batom das noites

Quando você limpa o batom da boca, me arrebata uma sensação de ânsia, de excitação, de pólvora, de perspectiva, de expectativa. Porque sei que vamos beijar-nos. E digo que a vontade permanece a mesma da primeira vez. Na verdade ela é ampliada, porque agora já sei como é bom, e tenho a confiança dilatada de saber que nos queremos. Você limpa o batom silenciosamente no banheiro, sem eu saber. Eu, tonto, não percebo ao voltar. Posso pôr a culpa na luz que você tanto abomina por mostrar-nos. Ou então você deixa mais claro que, sim, vamos beijar-nos e manda a senha ao perguntar se o batom saiu todo ou permanece. E um pouco permanece, percebo em seu lábio superior. Mas estou de acordo que permaneça. Quero ser marcado. Quero você em mim. Quero trocar carícias e microrganismos. Quero ser colonizado. Quero que me imponha sua língua. Quero licença para essas barbaridades. Quero atingir os lábios que decoro formato. Quero sentir-me em casa e repousado. E quero a vertigem da primeira vez. Ampliada porque já sei o quanto é bom. E confiante, porque faço o teste sabendo da aprovação.

Espero por esse momento a cada noite. Sempre iniciamos contidos. Nem na bochecha nos tocamos. Somos discretos, não gritamos. Eu após umas cervejas grito. Faço bobagens porque só sei fazê-las. Nos momentos mais a sério, descontraio. Aprendo a meu modo que a vida é assim e tão inútil é fingir que não, que tudo é sério. Mas tão séria são nossas missões de cruzada e reconquista. Imposição permissiva. Termos de mau gosto. Mas eu gosto, sussurraria. 

Suas roupas pretas que contrastam. Seu batom escuro que marcou algum papel na retirada, no fim da missão, na fronteira de volta às cores naturais disfarçadas em iluminação (ou falta dela) noturna. Seus resquícios de batom que me marcam e carimbam mais uma noite nossa, com bênçãos invisíveis após anos de rezas infernais. Lamento os gritos ao redor, a música que não combina, a fila do banheiro e ele em si. Lamento o preço da cerveja que nos desagua e lubrifica. O engov que a idade patrocina e entrega, a disposição que prefere as cadeiras à pista. Comemoro a combinação ajeitada para lá ou para cá. Lamento que ajuste não seja uma palavra que nos soe bem. Mas ajeito para que ela não seja problema.

Me encantam expressões faciais com as quais me divertes. Seus olhos de mulher que promete algo entre o fim precoce e a idade idosa. Seu sorriso que me rejuvenesce, me batiza e me acompanha. Suas mãos cuja pele eu deslizo aos braços. Seu nariz que me diverte em bonito formato. Seus olhos, volto a eles, grandes e profundos. Que mundo escondem e que mundo ainda veem? E o que ainda vem? A alegria com a qual sempre te vejo. Cercania que abre alas, lá está meu desejo. Sua pele alva, meu alvo, saliva que me salva. Algo se repete, algo novo fica. Me invita novas linhas. Novas noites de um batom que antes de mim te encontra. Azar dele porque a ele o limite é a boca. Mais bela, além do que mesmo de longe chamamos ela, é sua alma.