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18/03/2023

Entre gremistas, formigas e um cão perneta

A família que morava no quarto andar se mudou ontem. Eu vi o caminhão de mudanças pela manhã, desconfiei, mas não me despedi como deveria, agradecendo a boa e rara vizinhança conforme agiram neste ano e meio de convívio. Quase não os ouvi e, se os ouvi, só em horários aceitáveis. Lutamos bravamente juntos contra a ameaça paulista que ocupava o terceiro andar e nos incomodou madrugadas de conversas, fofocas, visitas, vídeo game e sabe-se lá quais bebidas e cigarros. Por mim que consumissem o que bem quisessem, desde que não enchessem o saco, mas logicamente enchiam e nos horários mais inoportunos possíveis. Pois bem, aguentamos isso em 2021 e ganhamos o alívio da ausência dos paulistas, em sua retirada em 2022. Porém, para 2023, a família, que tão bem ocupava o andar mais alto do prédio, está fora. Me acompanhava a dúvida se estavam apenas retirando uns móveis ou se um dos filhos do casal é que iria se mudar, mas partiram todos, como bem prometiam há um tempo atrás, sem eu imaginar que esse tempo de partida não tardaria, que já se avizinhava tão costeiro.

E quem sobra? Apenas nós do segundo andar. A senhora que me aluga tem um companheiro, entendo eu que por conveniência (de quem? de ambos), mas o que tenho eu a ver com a vida privada dos outros? Ela tem viajado às vezes e ele, dessa vez em que escrevo, é quem está cuidado do apartamento e, juntamente comigo, do prédio. Percebo em mim um passo a mais rumo à solidão, o que me desanima e me consola, me traz êxtase e vazio. O prédio cada vez mais silencioso, sem sequer passos mais pesados dos andares de cima ou o raro arrastar de algum móvel (tão mais comum no prédio que meus pais arrumaram em Santa Catarina), a possibilidade de um privado mais extenso. Esses dias, amigo meu, o qual considero um dos melhores escritores vivos que conheço, relatou o perigo de um jovem solitário morar sozinho, porque é a velha extensão de seu quarto, recinto fechado, dessa vez tratando-se de um apartamento inteiro à disposição. E o meu tem o quarto sobrando para quando meus pais oram voltam de Santa Catarina, como assim planejo no mês que vem, abril.

Pois bem: agora tenho não só um quarto para ouvir música, ver filmes, ler, chamar de meu, mas um apartamento e praticamente um prédio à disposição. Concorre a esse extasiar, o fato de que a segurança condominial diminui relativamente. Me sinto quase que enfrentando zumbis em uma pandemia. Me sinto como o protetor desse pequeno e quase desinteressante universo. Além de mim, as formigas fazem questão de aparecerem. Visitam minha cozinha diariamente, entram por trás do balcão embutido na parede, percorrem um espaço milimétrico por entre o buraco por onde passa o fio da internet. Se inserem na minha pia, buscam migalhas de torradas, bebericar um aguado refrigerante esperando o dia da entrega das garrafas para reciclagem, tentam alguma migalha de pão por sobre a mesa da cozinha/sala ou até se aventuram em terras mais íngremes, como o pote de bolachas ou a geladeira. As minúsculas formigas e sua organização invejável são um grande obstáculo na busca pelo sossego, mas por ora me deixam um tapa menos solitário.

Quando fui buscar meu almoço deste sábado, cruzei por um catador de reciclados com uma camisa de número 7 do Grêmio. Peguei o troco do restaurante e lhe depositei moeda em mãos. Fiquei depois pensando que valeria até deixá-lo com uns 10 reais, mas pensar na minha própria condição ainda me impede disso. Por que não cedermos um almoço para quem mais necessita de vez em quando? Elogiei sua camisa e falamos um pouco do Grêmio que ele, de alguma forma, acompanha, seja por transmissões cada vez mais por internet, menos na televisão aberta que facilitava a todos (hoje jogam Caxias e Inter pela semifinal), ou pelo rádio, bem um pouco mais universal, mas que, por tempos, Pelotas sofria de não ter transmissão da dupla Gre-Nal pelo meio do cada vez mais dispensável AM (que me perdoem os torcedores Bra-Far-Pel pela heresia de querer que algum gremista ou colorado acompanhe seu clube do coração em nossa terrinha).

O catador falou que já teve oportunidade de ir na Arena e que achou "muito massa". Mas quer mais também de Luis Suárez, pois este "é muito caro", o que concordei sobre querer render ainda mais um pouco - queremos sempre mais. Mas qual parâmetro possível de comparação entre o ser muito caro, o salário de milhões, em relação a um trabalhador braçal, autônomo, que agradece qualquer moeda que o entreguem? Como é difícil visualizar alguma justiça nesse mundo. Renato Russo - vejam só, do nada, Renato Russo e Luis Suárez no mesmo parágrafo - Renato, pessoa muito chato da qual não sei se seríamos amigos, creio que foi até bondoso quando afirmou que "o mundo anda tão complicado". Creio que o mundo está impossível, em suas injustiças, perda de valores, convívios, chantagens, relacionamentos entre as pessoas. Mas, de alguma forma, ainda acredito na solidariedade, dentro dos nossos possíveis - talvez um dia dar-lhe 10 reais e não apenas um. É preciso tratar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque, na verdade, não há muitos mesmo.

Por fim, após meu almoço, enquanto degustava a sobremesa dita gratuita - vai nessa - apareceu por nossa rua um cachorro que por vezes vejo, um perneta de três patas. Atropelado ou vítima de algum outro problema que lhe amputou, ele, maltratado pelo calor dos últimos dias, foi digno do que restou de minha marmita, a qual agradeceu deliciando-se tão logo depositei ao chão para que se servisse. Mastigou até o que eu não esperava e percebi que precisava dar-lhe água contra esse calor todo. Só depois percebi que lhe dei minha água mineral ao invés da torneira, mas vai que ele merece, pois água das torneiras pelotenses não é lá coisa que se recomende. Bebeu também e fez a expressão que me pareceu contente, como quando percebemos contentes os cachorros, sobretudo - porque os gatos são mais difíceis de leitura - penso eu. Fiquei feliz e talvez agora eu tenha um novo companheiro. Enquanto aqui ainda habito este velho prédio, antiho, surrado, pouco chamativo, quase desabitado. Eu, um casal de conveniência, as formigas, um cachorro perneta para ocupar nossa quadra e dar-me mais motivos por mais dias. Não sei se ele me agradece ou agradeço a ele. Enquanto escrevi percebo que da janela voou um pó para dentro do meu doce (vai nessa) gratuito de maracujá. A sorte nem sempre me sorri.

26/10/2022

Inferno de antes

Faz muito tempo que eu não faço poesia

E como era

E como seria?

Há muito tempo não sorrio todo um dia

E quem me dera

E quem diria?

Se eu quiser isso aqui é um forró

Como é que pode

Mas tenha dó!

Hoje eu e André levamos um cão para sala

Era aula de latim

Não de latir

Nos seguiu porque queria uma mordida

No nosso hambúrguer

E não nele

Faz muito tempo que eu não faço poesia

Essa eu passo

E volta fria

Há muitos dias não sorrio todo um dia

Mas de que jeito

Anatomia

Há muito espero um ataque fulminante

E vem depois

Não veio antes

Prepara o inferno tá chegando mais um Dante

O quanto antes

O quanto antes...

07/09/2021

Ascendências e descendências

Venho aqui para tentar esboçar um ensaio. Ensaiar um esboço. Pensava eu nos bichinhos domésticos, que curtem suas camas improvisadas, com tecidos e retalhos, acomodam-se, deitam e sonham. Sonham o quê? Não pensam em seus antecedentes nem em seus descendentes após certa idade. Tirando o carinho maternal que oferece o bico das tetas para escoar o leite aos filhotes. Depois creio que passa. Essa concepção de ascendência e descendência fode muito a humanidade. Tentarei explicar e driblar algumas contradições que esse pensamento possa vir a ter.

Embora os conhecimentos de História muito nos engrandecem, a nós que buscamos um mundo melhor, observando malditos erros passados e vendo-os se repetir no presente, planejando, infelizmente que eles voltarão a ocorrer no futuro. Porque, apesar dos avanços tecnológicos através dos séculos, a humanidade, por essência, erra em ciclos. Será que aprendemos com os erros? Ou será vontade das classes superiores, dominantes, donas do poderio bélico, das finanças, será vontade dela repetir os passados e garantir a estagnação, o conservadorismo, a manutenção do status-quo. Será isso, sim.

Penso em tantas guerras que formulamos em nome de antepassados. Em judeus e palestinos a degladiar-se pela terra santa. Nos séculos que persistem com os mesmos ou semelhantes ideais, apesar do cada vez mais desparelho poderio de um lado em relação ao outro. O desequilíbrio das balanças. O pesar de um dos lados da gangorra. Em nome de antepassados, sujeitos lunáticos (com perdão aos lunares pelo emprego do termo), lunáticos querem uma volta de um monarquismo, reivindicam as heranças da família Bragança - com o perdão da rima.  Uma faixa em protesto bolsonarista pelos centros do país pede para os ministros do STF se ligarem, porque, ali no asfalto, no lado plano - que acredita inclusive em Terra plana - ali não é favela. Depreciam a favela de todas as formas. Retiram seus direitos mais fundamentais, da alimentação e moradia. A cidade nega a favela. Não lhe oferece empregos ou oportunidades. Lá atrás, na vida dos que conseguem se tornar mais velhos (pelos 15, 18 ou 24 anos), lá atrás, para esses favelados não lhes foi oferecido estudo. Assim a banda toca. As feridas abertas e cada vez mais inchadas de uma sociedade desigual. Uma sociedade em que, se as desigualdades foram reduzidas por uma penca de anos, novamente se acentuaram. E chamo a atenção sempre para o agravante: nossa população é crescente. Apesar dos inúmeros fatores-morte a que estamos submetidos, são mais nascimentos do que mortes. As feridas seguem crescendo e inchando. Onde tudo isso irá parar?

O preço da cesta básica consumindo cada vez mais dos parcos salários. Os índices de desemprego no alto. Mesmo o preço dos combustíveis lá no alto, impedindo que muitos trabalhem com entregas, de mercadorias ou passageiros. Acumulam-se pessoas nas favelas e há quem tenha pedido a elas o bom senso de um distanciamento social nos mais elevados índices de Covid - situação vista hoje como passado, embora a pandemia não tenha acabado. Acabou com a vida de quase - ou mais, em números extraoficiais - de 600 mil brasileiros. Praticamente duas cidades de Pelotas. Mais do que uma Caxias do Sul, certamente. Além dos números definitivos (?) como são as mortes, uma infinidade de pessoas com sequelas da maldita doença. Uma infinidade de desamparados por uma economia que tenta controlar números e cifras, mas esquece das pessoas. Sucateia sindicatos, cargos, empregos. Obriga o cidadão a trabalhar no que lhe for possível, geralmente contrariado em serviços terceirizados ou autônomos, ou sub-empregos, com suas incertezas e sub-salários, abaixo da linha do salário mínimo. Cidadãos que convivem nas entrelinhas da pobreza e da miséria, escanteados do centro do asfalto, movidos para o alto dos morros, onde ampliam-se e implantam-se cada vez mais casas simples de um ou dois cômodos, materiais doados ou encontrados, obras que desafiam os solos e os mais complexos projetos de engenharia, mas, a exemplo do povo que as constrói, insistem de ficar em pé. A surpresa, quando caem, quando descem dos morros e barrancos é como a casa improvisada havia se sustentado? Como não havia caído antes? São as feridas cada vez mais abertas, subsequentes, conseguintes e inchadas.

E volta-se para a faixa que ameaça o STF com a promessa de que, ali embaixo, na linha do asfalto - dos crentes ou não da Terra plana e outras abilolagens - eles não são como a favela. Vociferam isso em tom orgulhoso. Se acham grandes e maiores. Peitam as instituições, não conhecem e não toleram limites para suas atrocidades. Enquanto possuem o suficiente para seus carros importados, blindados, para suas fantasias verde e amarelas da roupa para fora, enquanto desmatam terrenos, florestas, tempo e clima do país, enquanto possuem condição de subverter pessoas em seus empregados quase escravizados, para eles está de bom tamanho. Para eles funciona o país. Malditos os sejam. Enquanto escanteiam pessoas para o alto dos movediços morros, enquanto as tratam como dejeto e esgoto. Malditos os sejam.

Com suas fantasias de linhagem, de família Bragança ou não, de traços europeus ou não, de italianos ou alemães ou não, enquanto se acham superiores pela cor da pele, de forma mais ou menos generalizada, mais ou menos dita da boca para fora, enquanto se acham superiores aos demais mestiços desse país, aos indígenas povos originais dessa região continental, de matas e florestas diversas a serem devastadas. Eles se acham superiores por seus emissores de gás carbônico por meio de motores ranger estrangeiros. Se acham superiores pelo prato de comida que conseguem comer aos fins de semana, pelos restaurantes que conseguem frequentar, pelas viagens ao exterior que ainda conseguem fazer, pelos champanhes e pelas festas que consomem. Se acham superiores. Possuem empresas ou ações, possuem empregados, possuem patrimônio, possuem heranças de família Bragança ou não, vindas de outras gerações, de outro século, de outro continente, ou de outro continente investem em bolsas, ações, medidas de um complexo mercado financeiro. Possuem mansões em condomínios fechados com segurança particular, câmeras, heliportos ou simplesmente embarcaram nessa fantasia ainda mais mentirosa para aqueles classe econômica média que supõem-se ricos, como se, financeiramente, não estivessem muito mais próximos de se tornarem os próximos pobres.

Malditas linhagens e heranças e heranças segregadoras, racistas, impositoras, imperiais, histórias que se repetem e não conseguimos mais romper o laço, encontrar as raízes de tamanhos problemas em 500 e poucos anos. Violência que atinge mais a negros, que atinge os territórios indígenas, que devasta faunas e floras, coisas que me devastam desde meus mais profundos interiores da mente. Enquanto isso eles vociferam e ecoa na minha cabeça a mensagem, o vozerio, o griteiro, a imagem do cartaz prometendo medidas contra o Supremo Tribunal Federal porque ali, ali naquele asfalto, naquele mar de construções desde tempos escravistas, de heranças memoriais de um país de abortos e racismos, ali, para eles, fica o recado: ali não é favela.

Um post que vi perdido pela internet apontava que uma cliente pobre sempre admite sobrar fraldas e pergunta para quem ela poderia doá-las. Enquanto isso, uma cliente mais rica, quando sobra fraldas, pergunta para quem ela pode vender. É essa mentalidade. O senso de cada um por si, que a humanidade poderia distinta da sobrevivência dos animais, mas não tem. A humanidade feroz, umbiguista, individualista. Eles que se acostumam a vender tudo, incluso a própria alma. Eles que acostumam-se a caminhar por cima de corpos, embora estejam ao nível "baixo" do asfalto e as demais pessoas é que aglomeram-se no alto, sobre os morros. Eles que enxergam números, saldos, cadernetas, poupanças, preços e não distinguem mais valores. Porque seus antepassados escravistas também não os viam. Porque o racismo e o racismo estrutural os impede de enxergar. Ou, tanto pior, enxergam e nada mudam. E nada fazem pelo bem do outro. Porque estão intrínsecos com seus ideais materialistas, pensando na própria sorte de uma família protegida para dentro das grades de um condomínio de segurança máxima. Como ouvi no documentário A Ponte (2006), sobre a periferia de São Paulo, eles andam de carro blindado, mas uma hora terão que descer. Terão que se defrontar com seus erros e com a realidade. Ou, talvez por outro viés, talvez a favela, a favela de ferida tão inchada, em sub-espaços que já não comportam mais gente, a favela vai invadir, vai ocupar seu lugar pelo asfalto, vai reivindicar o que é dela. Vai buscar pelos espaços que a sociedade para sempre as negou de usufruir. Porque, conforme eu apontei, pode-se ter reduzido a desigualdade por um determinado tempo, mas a sociedade novamente grita em gritos de fome, reclama seu espaço para moradia, requer sua educação, sua saúde básica, sua oportunidade, recobra por um ganha-pão, por um emprego melhor do que o caminho da prostituição ou das drogas.

E tudo isso a humanidade faz sem saber como termina o dia, como termina o mês. Se vítima da fome ou da violência. Se vítima de um sistema que a encarcera de oportunidades, não somente para dentro das prisões com as chaves jogadas fora. O lado mais pobre, onde a corda arrebenta, faz o seu cotidiano com o receio do que será para seus filhos. Jovens, adolescentes que engravidam e têm o parto, que criam filhos não se sabe como é possível. Algumas vítimas de aborto antes das crianças nascerem, outras acumulam funções, sendo mãe e pai ao mesmo tempo, pelos ausentes que puxam fora. Essa sociedade se preocupa cotidianamente como vai terminar o dia, mas também gostaria de garantir algo de vida e oportunidade para seus descendentes. E essa angústia não tem sequer palavra que a traduza, tamanha é. Essa é uma diferença da humanidade em relação aos bichinhos. Ao gato ou ao cachorro que consegue, de barriga alimentada pelo dia, dormir um sono mais tranquilo. Enquanto a nossa luta é incessante e o futuro é difícil de visualizar. Para alguns, como eles próprios relatam, é impossível. Essa é a diferença.

Admiro e invejo os cães e gatos, os deitados sob o conforto de um lar. Porque, mesmo que me encontre em determinado momento dessa maneira, vivo ansioso por um futuro que a mim não pertence. Eu, que tal qual um dos principais provérbios machadianos "não quero deixar de herança para filhos a miséria dessa existência", mesmo eu sob essa condição que poderia me aferroar uma aparente tranquilidade, fico pensando um futuro que poderia ter sido. E não será.

Um futuro que não será para mim e muito menos será para outros excluídos dessa realidade maléfica e de crueldade implacável. Não será para eles e, pelo caminhar trôpego da humanidade, também não será para a ampla maioria de seus infortunados descendentes.

01/09/2021

Os diferentes estágios do inferno em um sábado à tarde

Ela esperava aflita com o celular colado ao ouvido. As sobrancelhas desenhadas dançavam tanto quanto fosse possível nos movimentos ritmados da testa franzida. Após sucessivos toques na espera que ele a atendesse, desistia, levava o celular para dentro da bolsa e pisava firme contra a calçada, de vez em quando levando às mãos ao quadril. Mas a impaciência vencia aquela queda de braço e, entre uma olhadela ou outra para o relógio de pulso, ela percebia o avançado da hora e sacava novamente o celular de dentro da bolsa. Nervosa, nem a confiança de quem mesma arruma o depósito garantia que não voassem antes uma escova ou algum cosmético antes de encontrar o telefone novamente. Não precisava digitar, o número do marido, cada vez mais evidentemente ex, estava no dígito para chamadas rápidas, mas também estava naquela lista de chamadas recentes. Todas dela, nenhuma atendida.

E as crianças... As crianças! De vez em quando ela, aérea das ideias, esquecia os pequenos que deveriam estar de encontro com sua mão para não fugirem, ou ao menos muito próximos, dentro do campo de vista. Ela estava à beira da estrada para praia. O movimento era intenso. Não era o mesmo de domingo, realmente. Mas o de sábado também trazia os entrocamentos aqui e logo adiante. Será que estão parando pela lombada? Não, é porque travou o trânsito mesmo. Que droga de horário! O trânsito, o passar da hora, mais uma olhada para o pulso, o relógio, que bonito era o relógio, seu pai o havia presenteado. As crianças! Pedro ia parar quase no acostamento. Rodolfito, em homenagem ao cantor argentino, se aproximava da cerca de arame, eles que aprontavam tanto juntos, mas também gostavam de explorar cada qual para seu canto. Um quase querendo ser atropelado no movimento intenso da estrada, o outro no mínimo querendo espetar o dedo no arame farpado da propriedade vizinha. Uma fazenda por ali, ou pelo menos a extensão de terra com proprietário, pois não conseguia, ao espichar o olho, localizar algum plantio no terreno que se estendia à frente da casa, lá adiante nos fundos, quase invisível. Quem sabe plantavam algo lá atrás? E o que te importa? Não vem ao caso. O Pedro... o Rodolfito. Onde estava a Laura? A Laura então se apresentou como a mais encrencada dos três, pois havia encontrado uma cobra.

Ela dedicou os primeiros cinco minutos a manter-se longe do celular, era o que precisava ser feito. Dar uma boa bronca em Laura. Que perigo correu! Perto da cobra. Poderia perfeitamente ter sido atacada em um ligeiro bote e ela, enquanto mãe, jamais saberia. Ela tentando a ligação. Ele sem atender. Quantas tentativas já havia ligado na insistência? Mais de 20 certamente. A Laura. Olha aqui, Laura. Laura, não chore. Laura, você precisa entender. Laura... E o Pedro e o Rodolfito? Agora o mais novo, Rodolfito, subia pelos ombros de Pedro a tentar romper a cerca de arame farpado e se agalhar na árvore. As árvores. Ao menos alguma sombra naquela espera maldita que prolongava arrastados minutos, cada qual podendo reservar uma surpresa como essa de Laura ou dos meninos podendo se machucarem, perto dos arames, um corte ali. Aí a urgência da carona para os compromissos dela viraria uma desabalada carreira rumo ao hospital para estancar o sangramento do... do... de quem? do Rodolfito só podia ser. Fito desce daí! Agora, menino! Pedro, ajuda ele a descer. Se subiram é porque conseguem voltar, ora, onde já se viu? Descia Rodolfito ainda aos risos e guizos, soltando o galho da árvore e retornando os pés para a segurança do chão.

Segurança. Era isso que ela desejava e não tinha mais. O marido que sumia, o marido que não atendia. Está bem que das outras vezes não costumava passar da terceira ligação, mas ela também demorava mais a ligar, as ligações eram espaçadas, ela lhe dava o benefício da dúvida. Mas hoje não tinha como explicar em pleno sábado. A ligação da chefa. A urgência em retornar ao posto de trabalho. Aquele trabalho com salário de estágio. Ora, ela não poderia ter chamado outro? Não, bradou a chefa que os demais haviam se organizado, viajado juntos para mais longe, quase um acampamento, uma ideia idiota, é bem verdade, ainda agosto, nem bem calor fazia, mas deram sorte, ora, pegaram um rico fim de semana de sol. E ela achou que poderia curtir ao menos a praia. Mas mal chegaram, ela que pegaria algo da lojinha de conveniência, a que ela tinha cartão, tinha desconto, tinha pontos de vantagem, achava o atendente bem apresentado. Mas a ligação da chefa interrompeu tudo, nublou a tarde de descanso dela. Que descanso? Essas crianças imprevisíveis, com mais manobras nas mangas do que o próprio diabo. Laura aquietou-se, sentou-se sobre uma pedra, para longe da cobra, para longe de qualquer outra criatura viva. Ainda bem. Mas e o Rodolfito, que ainda ria e produzia guizos naquele momento em que descia de sua última travessura, o Fito onde está? O Fito sim quis contato com a natureza, aterrissava seus pequenos tênis sobre um carregado formigueiro. Novamente ela de olhar arregalado, a boca escancarada, aberta, mas mutada, sem produzir um ruído. Que chance teria esse moleque de sair ileso dessa vez? Os raios sobre o mesmo lugar, ou sobre outros lugares, tantos são os locais que uma criança pode arruinar um final de semana. E a chefa também, a chefa que vá ao inferno, pessoa desorientada das ideias. Mas só haviam loucos naquela cidade?

O Fito. Mas o que foi que eu te falei??? E de fato nem ela recordava o que havia falado, mas de prontidão estava com a mão espalmada a rebater as canelas do menino contra qualquer arruaceira que despontasse rumo a locais piores para picar o garoto. Tirou os tênis do filho, bateu-os contra a pedra em que Laura estava sentada. Laura que estava quieta já não gostou do ajuntamento sobre sua pedra, Laura que desafia frente a frente a cobrinha do mato, agora só queria descanso, mas de qual maneira? Com aqueles irmãos. O pequeno tudo bem, se ao menos o Pedro mais velho o ajudasse na criação, mas, pelo contrário, desvirtuava de vez o mais novo. Onde estava o Pedro que para longe da pedra se encontrava? O Pedro sabe-se lá como superou a barreira de arame, achou algum furo, algum buraco por onde embrenhar-se e percorria o terreno vazio à frente daquela propriedade, fazendo ou o que fosse. Cada qual pior dizia ela consigo mesma. Pedro! Pedro, pelo amor de Deus! E dos gritos dela, se antes Pedro não o havia despertado, partia um cachorro à alta velocidade. Aqui será ocultada a raça do animal para que não sejamos acusados de preconceito contra qualquer raça que você não a julgue violenta. Tudo bem, saibam que havia raça, ah, se havia naquele cão. Uma das bem conhecidas, tanto maior seria a implicância com os donos, pais de pet e simpatizantes que a defendem, enfim. O cachorro partia em direção a Pedro, ela partiu para um cálculo mental, tentou calcular a hipotenusa daquele triângulo-retângulo para a salvação de seu pequeno menos pequeno, Pedro percebeu o cachorro, claro que percebeu, só por isso tentava voltar. Pedro na dianteira, o cachorro a se aproximar. Pedro ou o cão. Pedro ou. O cão parou de repente, porque uma invisível coleira o isolava daquele intruso. O menino, vendo-se em plena segurança, achou graça do episódio. Eram o diabo. Se não cada um deles, ao menos a união fazia a força para duelar com as ocultas fortalezas subterrâneas do inferno.

Ela enxugou a testa. No movimento aproveitou para olhar o relógio de pulso. Nada do marido. Olhou para Laura, que agora ajudava o outro intruso, o do fomigueiro, tal qual aquele filme infantil, o Fito se livrava das últimas formigas e, tamanha a sorte que os acompanha - será? - nada de Rodolfito reclamar de possíveis picadas. Que assim prosseguissem na viagem para o retorno. Mas quê viagem?! Qual retorno? Se não havia carona. Nada do marido atender o celular. Tentou a 24ª vez. Não precisava contar, estava ali de pronto o registro na agenda telefônica.

Pensava ela no atraso, na bronca da chefa, mas dos outros que acampamento o quê, em pleno agosto, nem calor estava, mas aquele sábado estava, escolheram bem o dia, aquilo sim que era sorte, um fim de semana fora, um fim de semana de descanso, quiçá de aventuras e algo mais, será que Glória era a fim de Flávio, parecia para ela que sim. Que fossem para o inferno. Só não desejou isso porque era capaz de aparecerem ali, caírem de paraquedas. Era possível. Ainda pensou que eles que se meteram mato a dentro e ela, parada ali ainda menos de hora, consultou o relógio para conferir se era menos de hora e já havia episódio com cobra, formiga e cão e sabe-se lá o que mais Noé salvou para exclusivamente, passado milhares de anos, aprontar com ela naquele sábado. Com esse único objetivo a arca estava cheia quando a Terra ficou definitivamente cheia d'água. Era para alinhas as pragas todas contra o seu bem estar naquela sucessão de acontecimentos inimagináveis.

Quer saber? Assobiou o mais alto que podia, o silvo serviu de chamado para os pimpolhos que se reuniram em volta dela, estranhamente ordenados como se um chefe militar conferisse uma inspeção inesperada. Só faltou baterem continência, coisa que ela abominava. Abominava mesmo, por que casou com um que serviu ao exército? Nem ela sabia mais onde tinha se metido com sua vida. Com aquele despistado, com aquele perdido, ordinário, vagabundo e outros adjetivos impublicáveis nesta feita. As crianças ali, todas, as três juntas e prestando atenção, talvez a primeira vez em meses, porque mesmo no mesmo recinto, dentro de um carro Pedro mexia com seu joguinho estilo aqueles game boys antigos, machismo na chamada que era mais absoluto na época, a menina sempre avoada, a olhar pela janela paras as mais fronteiriças distâncias onde a vista alcançava, ela pensava que Laura sentia a separação do casal antes dela, era esperta a menina, disso ela tinha certeza, era inteligente, só não tinha medo de cobra. Se é que isso era defeito. E o menor ainda a tirar meleca das narinas, esperava ela que rompesse com esse hábito o quanto antes. Enfim, os três reunidos. Ela aparentou cautela, mas pegou e arremessou seu celular longe. Caiu passando a cerca, ricocheteou ainda em um dos galhos, não daqueles que Fito subira, mas em outro e espatifou-se na grama, talvez a batida com a grama sem o contato suficiente para destruí-lo, mas em acesso de lucidez, ela tão louca e tão lúcida, olhou para o chão úmido apesar do sol que fazia, pensou na mudança do tempo e que logo logo aquela porcaria jamais imploraria atenção novamente ao marido.

Nem o celular, nem ela. Pegou Fito pela mão por ser o menor, aproveitou a atenção dos demais e foi caminhando. Não vamos esperar a carona? Perguntou Pedro. Seu pai não vem. Voltou para a loja de conveniência do atendente interessante, mirou a plaquinha na frente que apontava a necessidade de ajudante em um turno. Aproveitou para mandar dois diabos para o inferno em sua vida, o que ela tentava ligar e a que ligava para ela, e reunir os três diabinhos em torno de si. Ao menos comida não vai faltar, pensou por último, vendo as crianças novamente se distribuírem pelas prateleiras, Fito tentando alcançar o que era alto demais para ele, Laura com noção até compras saudáveis. Só não tinha medo de cobra. O atendente sorria e ela também.

28/08/2020

O Cãomício de Wolf

Era uma época de simulacros. Estavam por toda parte. Desde a dissimulação necessária nos meios políticos, entre os doutores, deputados, juízes, desembargadores, promotores, oficiais dos mais diversos cargos, até os astros esportivos, simuladores de falta de ataque no basquete, de pênaltis no futebol, de bloqueadores no vôlei que nunca encostavam na bola que ia direto pra fora. Alguns desses casos esclarecidos pelo salvo conduto garantido pelas imagens da arbitragem de vídeo. Nos casos políticos, vocês sabem, a dificuldade era maior de conseguir flagrantes e respectivos aprisionamentos previstos nas legislações.

Havia também os simuladores conjugais, maridos e esposas dissimulados para suas fugidias galanteadoras. Rompedores do fastio diário que acometia dois a cada três casais, sendo eu bastante bondoso ao inventar tal estatística. Tudo para facilitar a compreensiva esperança que vocês querem alimentar. Mas esse caso a seguir desafia a lógica do pensamento humano, uma intervenção divina da natureza em uma época em que tanto objetificamos pessoas. O caso referido é da personificação animalesca, que também não é o maior absurdo que vocês já ouviram sobre. Provavelmente conhecem ou até são os donos (pais) de pet que humanizam ao máximo seus queridos mascotes.

Parece que a dona tinha a grafia para as idas ao veterinário como Wolf, o legítimo lobo alemão. Mas aqui escreveremos Rolf, que era como a dita cuja mãe de pet pronunciava. O Rolf era um cão sabujo criado em um quintal meio triste, de concreto, mas a Alessandra garantia que assim era mais fácil de limpar suas fezes. Começando a descrição me vem à mente o filme Roma, do nosso querido mexicano Alfonso Cuarón. Parece que ele quis ilustrar da forma mais direta possível que é pra pensarmos na merda que é a vida. Enfim, a do Rolf não era tão ruim assim, porque ele dispunha do seu espaço, embora concretado em suma. Havia para ele umas proibidas hortinhas nos cantos do pátio. O cão era esperto e subia ao canteirinho de tijolos quando Alessandra ou seu marido Vinicius não estavam de olho.

Ademais do espaço, o sabujo contava com brinquedos de borracha e tempo para curtir a companhia humana, agitando seu rabinho como comprovação de lhe apetecer esse período. As refeições eram o principal caso em questão. O Rolf se alimentava, sim, pelo menos duas vezes ao dia garantidamente, mas mesmo assim não parecia contente com os horários e se fazia de louco.

O almoço de Alessandra era pontual, ao meio-dia. Vinicius nem sempre voltava em casa para almoçar, atarefado que era. Mas afirmamos o compromisso com a inocência do Vini quanto ao matrimônio, sendo o caso discutido do simulacro o do cão do casal. À essa altura, na descoberta protestante de Rolf, os dois humanos já haviam procriado, um pequeno cabeçudo com a alcunha de Francisco, o Chico. O Chico era uma verdadeira comemoração virtuosa de Alessandra e Vinicius porque era muito comportado, nada manhoso, respeitador dentro do possível para uma criança de três anos.

Eis que surgiu o problema em quatro patas. O Rolf almoçava cinco minutos antes da Alessandra servir o que ela e Chiquinho (e/ou mais Vini) iriam comer a cada metade de dia de cada dia. Mas o aventureiro sabujo percebia que o estômago lhe advertia antes das 11h55, então por que esperar? Rolf emitia um latido enjoado, manhoso, ardiloso em busca de atenção. No primeiro dia foi às 11h50.

Rolf manteve sua postura austera nos dois almoços seguintes, mas tornou a latir, já em curtas ondas sonoras de formato uivante, isso às 11h45. O prognóstico foi piorando para a cada vez mais escabelada Alessandra. Dali uns dias, às 11 e trinta já estava composto o solo canino do sabujo. Um espetáculo apreciado por exatamente ninguém da vizinhança. Vinicius esteve presente nesse almoço embrulhado após a irrupção ousada do quatro patas.

- Mas que diabos esse cachorro tá querendo?! - perguntava o inocente mediante a primeira vez que presenciava tal fastigante cena.

Como afirmado, era um espetáculo apreciado por ninguém da vizinhança. Ninguém humano, porque o complô canino prestava atenção na atuação simulacra de Rolf, que já nem mais tinha fome naquele horário matinal, mas gostava de gozar seus adiantamentos. Os cachorros vizinhos, inclusive, estes almoçavam era mais tarde, só a sobra dos adultos donos. Mesmo que implorassem à volta da mesa, eram convidados a se retirarem, esperavam de estômagos roncos até alguma sobrinha, um osso bastante desgastado em seu conteúdo em volta, uma sobrinha de arroz no carreteiro e coisas do tipo. O Rolf era o espertalhão daquela turma separada por grades.

Certa noite, eles foram até a divisa máxima, cabeça para o lado de fora, posição favorita para tentar morder o homem de azul e amarelo, o carteiro.

- Rolf, seu arruaceiro. - Liderava o grupo do bairro um esquisito bull terrier.

- Fui criado em casa desde nascença.

- Você é um fingido. Tem dado certo seu plano?

- Indubitavelmente. Eles me servem porque os chateio o bastante. E Alessandra sempre foi querida.

- Raios que os nossos nos fazem esperar a cada pecador dia.

- E por que não tentam como eu faço? Comecem um pouco mais cedo que o horário habitual. Nem perceberão.

No dia seguinte mandaram brasa e arrebataram um bife mais cedo do que sonhavam. A eficácia era comprovada de forma ligeira. O recado era passado de grade em grade, percorrendo como corrente elétrica o bairro adiante. O alarido no horário de almoço, ou melhor, pelas manhãs, estava acabando com qualquer concentração filial para dever de casa, adulta para home office e até dizem para a concentração dos próprios cozinheiros e cozinheiras para as requeridas refeições. A cachorrada ficou ensandecida.

Um vizinho, disposto a dar um basta na estonteante situação, chamou Alessandra e Vinicius de lado para conversar. Falaram na calçada, em direção ao centro da pouca movimentada rua, porque não queriam que os cachorros ouvissem.

- Sei que o seu, o tal Rolf começou a rebelião.

- A rebelião?

- Não se façam de bobos. Ele era quieto, nem dávamos por sua presença e de mês para cá começou a invocar esses satânicos rituais que embriagam nossos descontados ouvidos. Estou fazendo projetos para o filho do prefeito e mais dois vereadores e não posso me concentrar com essa balbúrdia diariamente.

- O Rolf até que anda quieto. Não tem nos incomodado... não tão cedo.

- O problema é que esse sabujo de uma figa plantou a semente nas cabeças terroristas. Agora o bairro inteiro reivindica o direito a almoço e antes mesmo da gente! Vou denunciá-los por perturbações à ordem, percebam que para mim, arquiteto renomado, é fácil que colha assinaturas dos mais diversos para encurralar vocês. Queridos, vocês não têm escolhas, ouviram?!

- O que quer que façamos?

- Livrem-se do líder do bando. Isso vai acalmar a revolta dos demais.

Alessandra ficou sem chão enquanto Vinicius era a própria expressão reflexiva. Com o dedo indicador ainda em riste, o vizinho arquiteto renomado, amigo de prefeito e vereadores e juízes, desembargadores, com e sem vergonhas retirou-se. De costas para o casal, ele ainda falava sozinho mas isto porque era meio amalucado das ideias.

À noite, os cães se reuniram, até onde poderiam se reunir, lembrando episódios de passagens históricas em que presidiários se comunicavam com outras celas em códigos, principalmente os presos políticos em suas acomodações denominadas solitárias. Mas no caso o código dos cães eram os latidos que os donos entendiam nada, embora eles sim entendiam o legítimo português (brasileiro) praticado em oratória por seus donos.

- Ouvimos que você será removido, Rolf. É um ultimato.

- Como sabem? Estive dormindo boa parte do dia.

- Eles ignoram nossos ouvidos hipersensíveis - gabava-se o mesmo bull terrier da outra vez. Por ser o futuro assumidor da chapa, será idenficado aqui. Chamava-se Sam.

- Iremos dar uma trégua? - Perguntava uma poodle aqui não identificada, porque tanto faz a raça, naquela lei canina eram todos iguais.

- Não daremos. Mesmo que me custe a remoção dessa casa, senhoras e senhores, vocês devem continuar lutando por seus direitos. Peço somente que não percam a razão em atos descambados em violência, mas usem-a a seus favores se forem ameaçados, como provavelmente serei, conforme me dizem. Estarei preparado para o que der e vier.

- Nunca o esqueceremos, capitão.

- Você nos ensinou lições incríveis - reforçavam outras vozes caninas de casas adiante.

A verdade é que aquele coro, o falatório que avançava madrugada foi o estopim para que o arquiteto, com a cabeça pressionada pelo travesseiro, tentando ouvir seus próprios pensamentos, agir. No dia seguinte começou a protocolar o ato contrário ao sabujo Rolf, pela perturbação da ordem alheia. Nem três dias depois, foi de casa em casa, para o desconhecimento de Alessandra e Vinicius, e colheu assinaturas contrárias ao líder da gangue. Apenas a senhora dona da poodle não assinou, mas dizem que ela é meio surda mesmo. Os pais de pet na categoria gato assinaram todos. Eterna rivalidade.

Com um mandato em mãos, a famosa carrocinha dos desenhos apareceu naquela pacata rua e para os que presenciaram, foi a maior batalha campal de todo ano, em que, ao final dele, pelas épocas natalinas, os vizinhos comemoravam o fato de não haver roubos, assaltos e coisa pior naquela temporada. Mas a remoção de Rolf foi uma trabalheira poucas vezes vista para aqueles fiscais da prefeitura, que perderam quase hora inteira naquela humilde casa de chão concretado. Com muita relutância, Rolf subiu na carroceria do veículo e com um aceno de pata e longos uivos periclitantes, despediu-se de seus saudosos companheiros.

Os dias seguintes foram de tranquilidade, mas não demorou para Sam e seus capangas recomeçarem a exigência de comida o quanto mais cedo fosse possível. Entre as assinaturas caninas em um documento passado de boca em boca, de grade em grade, com a marca da pata carimbada de cada um, queriam o almoço antes dos humanos, mínimo de duas refeições diárias a todos os companheiros, água trocada diariamente e limpeza diária dos resíduos, que eles, coitados não tinham culpa ou opção melhor, diferente dos gatos e suas caixinhas de areia (que também precisam ser sempre higienizadas).

Sobre este último fato, Alessandra, em entrevista, garante que até dessas coletas escatológicas sente falta e tenta reaver na Justiça a guarda de seu querido Rolf, hoje já se encaminhando para uma idade respectivamente idosa entre os cães. Os colegas o aguardam de patas abertas para uma saraivada de uivos. A prática na luta pelos seus direitos passou de grade em grade e percorreu do bairro para o sentido centro da cidade. Vinicius já nem consegue se concentrar direito no trabalho, porque os cães centrais do município já lhe perturbam em função do processo iniciado, mal sabe ele, na sua própria casa.

- Mas que diabos esses cachorros estão querendo?! - Brada o Vinicius, repetitivo e infortunado enquanto produz bolinhas de papel que são sempre arremessadas contra sua lixeira no canto do escritório (ele nem sempre acerta).

As reuniões caninas, que são combinadas entre meia-noite e 1h30 da manhã, que também não é para abusar do sono dos seus donos, que ainda os alimentam apesar das represálias, as reuniões agora são para debater o futuro dos cães de rua, circundantes das casas em busca da sobra dos almoços dos gradeados. Sam é contrário a fornecer comida para esses ditos por ele vagabundos, mas Diva, uma jovem sem raça identificada, acolhida por um outro casal e que dá muito valor a seu novo lar, sabendo das dificuldades de ser órfã nas ruas, está disposta a aplicar um golpe no bull terrier. Ela quer se candidatar no próximo pleito. Os debates caninos, esses ainda vão longe. Enquanto isso, os "pais de pet" da cidade entendem cada vez menos o que está acontecendo.

10/06/2020

Se eu tivesse...

Caminhava a passos firmes pelas ruas, com a mente divagante. No dia, logo cedo conferiu no banco estadual que havia entrado seu humilde salário. O contentamento era completamente efêmero, em seguida cedendo lugar para a frustração de quem pouco ganha. O valor ultrapassava do considerado mínimo, mas não chegava ao piso de sua categoria. Chutava pedras pelo caminho e contou bitucas de cigarro largadas a esmo. Nada lhe sobrava aos finais de mês e ele pensava que não podia reclamar muito, que ainda estava empregado apesar dos 15 a 16% de desemprego assolando o país. Mas também pensava que havia cursado o ensino superior para desfrutar de algo bem maior, sem depender da mãe idosa ou da tia solteirona sem filhos que lhe mesava quase 10% do salário dela, outro picorrucho.

Alimentação ok. Duas refeições e uns complementos. Café da manhã desconhecia com a graça santíssima trindade que oportunizava um emprego no turno vespertino. Dormia sempre tarde e acordava hora antes do almoço no local de maior desconto que conseguia próximo ao apartamento de segundo andar em prédio com quatro, um cubículo meio centro, meio bairro. Contas, contas e mais contas a pagar. Havia cancelado o streaming para filmes online. Detestava tanto o que precisava ser pago, que lhe comia os dígitos salariais como se fosse um furioso pacman, quanto o processo de ida aos bancos e lotéricas. Boletos a dar com o pau. Sentia a falta do pai que podia fazer isso por ele no começo de sua vida adulta. Passados.

Distraído, o sinal de trânsito a revesgueio de sua visão quase acabou com uma perna atropelada, mas resultou mesmo foi em dois longos buzinaços e um xingamento à sua idosa mãe. Ele não deixou por menos: 1 a 1 no placar de ofensas enquanto o do Honda Civic cantava pneu na rua asfaltada havia três anos. Desgraçado. Desgraçados. Havia um de óculos escuros no banco de carona a rir da quase-tragédia, balançando a cabeça, em lapso notado por trás do insufilm escuro. Típicos consumidores de milk shakes repugnantemente doces em drive-thrus.

Continuou sua sina de pensamentos, considerando que não era exatamente mesquinho ou mão-de-vaca, apenas queria um salário mais digno, o mínimo de luxo que não fosse sua mensalidade a custo da sobrevivência básica: comida-água-luz-telefone. Ainda herdara da mãe o perfeccionismo para não atrasar impostos. E votar em esquerda, sempre que possível, apesar do centrão querer se apoderar de tudo. E tantos gritos de - fora fascista! - fora racista! - fora machista! em nada resultarem nos últimos três processos eleitorais. Duras derrotas. Severos golpes. Golpe ou impeachment? Golpe, ele tinha certeza.

Pensando numa duplicata oportuna de seu salário e poderia ajudar a tantos outros. A dívida com o Freitas, o empréstimo do Gabriel, o disco que prometera a Victória. Isso, isso, isso. Mas ajudar além, nada de restrições ao grupo de amigos classe-média, a maioria ainda parasitas das próprias famílias, fato que, sendo ele assim também considerado, o incomodava. Imputava mudanças que tardavam a vir e nunca vinham.

Queria ajudar àquela ONG de gatos de Santa Maria. Ou era Cachoeira do Sul? Se houvesse nas duas cidades, ajudaria ambas. Gostava mais de gatos desde que a Chiquinha aparecera. Nem se lembrava do porquê a felina tricolor se chamar Francisquinha, seria do seriado mexicano que era retransmitido havia décadas pelo Sistema Brasileiro de Televisão? Talvez. A Francisca completava 11 anos no mês passado e morava com a mãe dele, o que seria para a bichana uma avó. Questão de pátio, jardim, lugar para caçar, coisa que o apartamento de segundo andar dele, naquele cubículo meio centro, meio bairro não disponibilizava para a castrada gorduchinha.

Ajudaria a ONG dos cães meio afastada do município, não tinha dúvida. Era para os lados do Capão do Leão e tinha sempre dezenas, senão centenas de cães esperando um melhor destino, uma adoção convincente, em um trabalho sério de seus conterrâneos. Lembrou de seus tempos a ajudar crianças em vulnerabilidade social, em especial meninas, e daria uma ajuda mensal para o instituto do prédio amarelado na baixada do centro em direção ao bairro, era perto de onde ele morava. Auxiliaria, sim. Ajudaria também o extremo oposto da vida, o lar de idosos em que ele serviu sopa durante três semestres, não fechou dois anos. Será que ainda estavam por lá as donas Dercy, Jurema, Faustina e Dilminha? Era possível que a resposta fosse qualquer uma das combinações: 100%, 75%, 50%, 25% ou até todas inscritas na lista definitiva das paredes e tábulas de cemitério. Impossível saber sem visitar. Enfim, ajudaria com pagamento ao invés de servir sopa nos jantares cedo, elas recolhidas pouco depois do horário destinados às galinhas. Antes mesmo dos gatos saírem às caças noturnas. Já havia citado a ONG dos gatos? Já, havia pensado nos tigrados, sim, só não sabia se Santa Maria ou Cachoeira e isso não fazia diferença, porque ele não possuía em mãos os recursos necessários.

O que mais ajudaria? Gatos, cães, crianças em vulnerabilidade social, lar das idosas... Albergue para os moradores de rua. Isto sim, melhores condições sanitárias, reforço na refeição que dispunham. Mereciam. Acha ou desconfia que não somente aqueles que nunca dormiram na rua ou passaram frio sem ser por imprudência de não obedecer a regra materna de levar um casaco. Aqueles desgarrados mereciam melhor decência nas acomodações. Compraria jogos de cama, toalhas, itens de higiene. Se sentir sujo era terrível. Mesmo ele, que não era fã do banho diário, principalmente entre maio e agosto, sabia responder que era brabo não se aceitar higienicamente.

Claro que esse aumento, a duplicata salarial resultaria em uma namorada digna de seus atributos, jantares romanescos e passeios indefinidos na turva mente, ao gosto dela. Ela receberia seus agrados e presentes trimestrais, não mais do que isso para não acostumar mal. Mas importava saber mesmo onde aplicar a grana para o bem estar do próximo, muito além da Clara, da Brenda ou da Francine. E mesmo da Vanessa. Será que não era Santa Maria a ONG dos gatos? Não importava.

Recuou em puro reflexo em uma esquina quando um Renault passou chispando pela poça d'água, com os respingos quase o atingindo. Movimento digno da realidade sobrepujando a ficção do filme Matrix. Filho de uma égua. Fosse político investiria na melhora gradual e sistemática do transporte público, ao invés desses barbeiros imbecis financiarem seus modelos prateados, uns iguais aos outros.

Com um salário político então, ou mesmo assessoria de um deputado poderia pensar além das ONGs de cães, gatos, Santa Maria, Cachoeira do Sul ou Capão do Leão, lares de meninas, orfanatos, idosas, crianças com câncer, assistências para os deficientes visuais e bem estar dos albergues noturnos. Podia ajudar também às agremiações esportivas e aos atletas independentes, patrocínios pontuais para homens e mulheres competirem e alavancarem suas carreiras. Eles não esqueceriam. Mensalidade e carteira de sócio na mão naquele clube de sua preferência, pendendo a fechar as portas, não fosse sua ajuda em três dígitos mensais. O velho Carlos agradeceria muito a ele, poderia sentir os pesados tapas sobre o ombro, a gratificação do amigo pela ajuda prestada.

Em tudo isso ele pensava, martelando como o mundo, o seu mundo, seria melhor com um salário digno. Não era coisa para ele e sim para todos que estivessem ao alcance. Já não se importaria do dinheiro não sobrar no fim do mês, pois as aplicações seriam justas e com retornos, sorrisos que não competiam aos preços das prateleiras. Dobrou outra esquina quase chegando a seu cubículo meio centro, meio bairro, quando notou na calçada, em frente ao prédio vizinho, um mendigo que ele sabia quem era. - Ora, de novo esse...

- Uma moeda, senhor, pra garantir a janta.
- Hoje não tem.
- Ontem também não tinha.
- Talvez amanhã...

E o mendigo notou que ele já estava com as chaves na mão esquerda e que o barulho dos bolsos só poderiam ser o seu exclusivo desejo.

04/04/2020

é sobre isso tudo

Man on the Moon é uma canção da banda norte-americana R.E.M., presente na disponibilidade dos mais diversos meios, de fitas a cds e ultimamente na internet e por que não pen drives, desde 1992. Sou posterior a ela. A música inaugura o disco-coletânea com as melhores da banda de três letras, sigla para Rapid Eye Movement (Rápido Movimento dos Olhos). Poético, não?

Essa música me lembrou a menina da fronteira da qual todos gostávamos no ensino médio. Todos, isto é, o resumido grupo de meus amigos próximos, dos quais hoje um está praticamente casado na cidade, um apareceu disfarçado dia desses por esses textos e outro é acrobata no circo mais reconhecido do mundo. Adianto que nenhum teve sucesso com a fêmea em questão.

E por que Man on the Moon lembra a moça, levava vocês ao mundo da lua? Não exatamente. Simplesmente um post meu na internet em que ela curtiu a dita cuja música. Ainda trocamos alguns likes políticos mas sem a pendência de uma conversa. Acredito que ela hoje esteja quase casada e em São Paulo. Isto mesmo, dor de corno maior ainda é adquirir tal condição para paulista. Mas quem sabe voltou à cidade? Algo me indicou isso por esses dias. Confusos dias pandêmicos, entendam. Vida confusa como a América Central, etc.

Entreguei várias pistas no texto que eu colocaria adiante numa organização mais organizada. Mas é que continuo ouvindo o disco das melhores do Movimento Rápido dos Olhos. Losing my Religion, sucesso que o DJ Rui Jordão tocava nas noites de Programa Replay na Rádio Cultura de Pelotas invade meus instintos. E conta o negro velho que essa música era presença constante nas festas pelas quais assumia a trilha sonora. "O pessoal gostava de colocar outras coisas, mas eu mandava rock também, não tinha ruim", garantia meu amigo de companhia esportiva nos debates semanais, muitas vezes transformado em mim de monólogo.

Voltando à fêmea-figura-chave desse texto (obrigado Jordão pela participação, diferente de Miguel na música histórica, atravessamos o (rio) Jordão, vejam só), voltando a ela, creio que a principal história de nosso envolvimento foi quando ela tentava vender ingressos para sua festa de formatura. Na verdade vendia ingressos para uma festa, erroneamente denominada churrasco, que arrecadaria cash, money, grana para a futura formatura de final de ano. Se não me engano ela era ano mais nova e se formaria só no ano seguinte. Organização de escola elevada, top 20 do estado e 100 nacional, se não me engano. Não confiem, muito posso me enganar, mas entendam que era um colégio de primeiro mundo.

E nós, voluntariado chinelão de saída do Centro rumo às Três Vendas para comprar os ingressos da moça. Fomos retardadamente a pé em um calor insuportável, recordo que uma das primeiras vezes em que precisei tirar a camiseta na rua tamanho o sol escaldante. Utilizei-a para proteger a superfície da fronte e aliviar a queimadura inerente aos cabelos. Nosso ginasta também adotou essa medida, com um físico esbelto muito mais atlético, evidentemente. Os demais nos acompanhavam em um grupo com quatro pessoas. Falávamos das mais diversas bobajadas nerds e conhecimentos por qual caminho deveríamos seguir para chegar em tempo recorde nessa jornada imprudente. Nos encontraríamos em ponto médio entre ambas as partes (mentira, quilômetros mais perto delas do que de nós).

Sim, educação fazer as damas caminharem menos nesse período em que ninguém ali sequer tinha idade para a carteira habilitadora ao trânsito. Exceção era o alto alemão de São Lourenço que dirigia sem carteira, mas aqui não iremos dedurá-lo. Educação, educação, please, monsieur. d'accord, mon ami. s'il te plait, para quem ficou curioso de como é 'por favor' en Français.

Caminhamos naquela lua braba do meio-dia em direção ao ponto de encontro e, quando telefonados, que algum dos debilóides possuía o contato, descobrimos que elas já haviam encerrado o almoço e regressado à escola que ficava ainda milha adiante. Diabos, seguimos porque queríamos chegar lá, embora já não disfarçássemos a irritação com a enrolação das ditas criaturas. Ao que estávamos informados (embora muito mal informados!), a soma de garotas disponíveis nessa compra de ingressos se dava em duas: ela e + uma amiga. Ok. Éramos quatro. Apesar das conversas variantes, no fundo todos devíamos imaginar quem ali tinha chance com as preciosidades. O ginasta, ano mais velho, era nossa aposta sigilosa, embora o mais alto também levasse algum currículo consigo. O hoje quase casado e eu gostávamos apenas de esticar as pernas em tardes escaldantes. Ééé, vai vendo.

Quando chegamos ao destino da escola chique, estava se encerrando o intervalo deles entre as aulas matinais e vespertinas, também conhecido como horário para almoço. Elas almoçadas, nós completamente suados e desconfigurados da boa aparência. Ao chegarmos, reparamos que a tal amiga não era de nosso total agrado, que teu Deus nos perdoe. Meio sem jeito e, embora cada um quisesse falar e expressar suas mais singelas emoções peito pra fora, estávamos quase mudos, talvez do cansaço somado à mórbida timidez de cada um. Efetuamos a compra em tempo recorde (ademais que o recorde não viria na tortuosa caminhada, ao menos algo para o guiness book faceirar-se).

(será que as capas do Guinness Book já utilizaram todas as cores existentes ou a humanidade segue a inventar colorações para compor esse modo chamativo de ilustrar as coisas curiosas?)

Cada um com seu bilhete premiado, só faltava um dos abobados deixar o vento levar a entrada até a boca de algum boeiro e aumentar o drama dos gaúchos que saíram sem noção a pé pelas ruas da cidade. Mas todos os bolsos estavam impecavelmente costurados e ninguém mosqueou a esse nível. Mal terminamos a compra e elas precisavam entrar para as aulas da tarde. Rigorosa que era a escola, tomariam uma senhora mijada em caso de atrasos, ainda mais se vissem nosso baixo nível ali, como se não bastasse, uniformizados com as cores da outra escola. Barbaridade.

Ainda deu tempo de tirarmos uma foto com um cão de rua que nos acompanhou nessa jornada. E digo, moças e rapazes, foi um dos mais fieis companheiros vistos por essas bandas. Não se importou de andar lado a lado com os guerreiros por dobras e dobras, quebradas, calçadas e meios de rua não movimentadas, patas sobre o concreto quente e nós com tão pouco a poder oferecer. Vira-latas, não por acaso, venceram a copa de enquetes do colega jornalista León Sanguiné. Melhor raça com sobras e ganas de vantagem. Nenhuma dúvida.

Pois bem, crianças e crianços, encerramos a lida naquela batalha árdua por quase merda nenhuma, não fosse o espírito puritano da aventura adolescente entre amigos. Sinto saudades desses tempos. Sinto falta desses tempos, melhor dizendo, na possibilidade de um dia quererem traduzir essa bagaça. Embora bagaça e outras gírias não sejam o mais indicado para futuras traduções. Sobre os amigos, é aquilo que recordo. O quase casado, o ginasta hoje em terras estrangeiras - preciso me atualizar como ele está em meio a esse caos mundial, me cobro a fazer isso - e o amigo que, se eu enviar mensageiro veloz o link certo, será o primeiro a relembrar essa epopeia de hormônios em alta na época e saudosismo latente nos cansados olhos da atualidade.

Como disse um dos músicos, o do violino do filme Titanic (1997) - que pela primeira vez assisti não digo esses dias porque foi exatamente ontem - "cavalheiros, foi um prazer tocar com os senhores". A menina-flor-campestre do Alegrete merece felicidades, o máximo que possa colher na lida dessa vida. Recordei dela pela última vez para remendar com o começo dessas linhas ao som de The Sidewinder Sleeps Tonite (A Cascavel Dorme Hoje à Noite), do mesmo disco referido do R.E.M. Agora a faixa cambiou para Stand, a de número 13. E é em um Rápido Movimento dos Olhos que encerramos aqui, para agradecermos sobretudo aos amigos que entrincheirados conosco encararam essa e outras. Ah, sim, há outras... Vontade de uma rapadura de amendoim com suco de limão...


28/05/2018

Todos infelizes

Respeito e estimo melhoras a nós sintomáticos da depressão, que ora brota de trás de um quadro ou debaixo do tapete. E realmente desconfio dos que nada sentem perante os problemas que nós comunitariamente atravessamos enquanto sociedade doente.

No dia de hoje, houve sol, calor que interrompeu uma sequência invariável de dias frios. Nem sinal de chuva. Nem sinal de pedra no peito. Nas caminhadas, nos trajetos que faço, sempre me pedem moedas. Uns se justificam que não são ladrões. Geralmente desses desconfio que em algum momento com algumas pessoas, são ladrões. Geralmente eu não os julgo, porque a formação deficitária e a falta de oportunidade são o que leva muitos a serem assim. Ou, ao menos, a me pedirem trocados, os quais não tenho saído com para evitar maiores volumes nos meus bolsos que circundam minhas pernas magras.

Preocupantemente já saio com o celular criando volume ao bolso da minha perna direita, os fones de ouvido brancos conectados em músicas de tempos passados e raramente sucessos da atualidade. Passo por catadores de lixo seguidamente, em malabarismos e desafios de equilíbrios em carrinhos ou sacolas ou até na cabeça se conseguissem tais quais aquelas pessoas que recolhem galões de água no deserto. Procuram plásticos e demais recicláveis em meio às sobras. Infelizmente se acostumam dessa maneira. Felizmente que ao menos devem se acostumar a esse programa que nos enjoa somente de ver. Infelizmente se acostumam por não acharem outra saída imediata para combater a fome ou as mais diversas necessidades que passam.

Semana passada a prefeitura lançou a campanha do agasalho. Mas falta tanta coisa a essa gente. A mim, falta a saúde mental, como a tantos outros. Não nos espanta isso diante dos cenários que nos cercam. Mesmo o pessoal que ascenderia da pobreza para uma classe média estaria sujeito às mais diversas presas pecaminosas, coabitando com pressões e com os mais diversos problemas. Arrumar um emprego é estar se adequando a regras que não queremos seguir e convivência com gente com a qual não queremos conviver ou, algumas vezes, sequer desejamos que a pessoa exista, tamanho o desgosto de sua presença. Invejas, cobiças, ostentações, intolerâncias, ignorâncias, estupidez em seus mais raros e possíveis estados físicos ou mentais.

Pilhas de e-mails não respondidos. Já nem esperamos que os respondam. O mesmo asco que sinto ao lê-los não respondidos, os que recebem do outro lado devem pensar pela lotação de bobagens em suas caixas de entrada. Todos infelizes.

Os dilemas entre pressionar por respostas, procurar alternativas e se gastar, gastar energia com isso ou apenas deixar passar e partir para outra. Se perde pela insistência e o cansaço. Ou se perde pela falta de insistência. Todos infelizes.

A lua que me acompanha na volta para casa a pé é muito bela. Um cenário perfeito para roubarem o celular que eu já temia perder à luz do dia. Felizmente sobrevivo mais esta jornada. O asfalto e a iluminação estão bem posicionados nessa rua, as paradas de ônibus novas levam vidro em suas confecções, mas o clima de insegurança permanece em alto teor. Quase tudo certo, mas alguns erros são grotescos.

A saúde mental sabe que o básico dos básicos está em condições quando chega-se em casa. Na internet, lê-se os mais diversos absurdos das mais diversas pessoas. Anarquistas que debocham, gente que acha que político é tudo igual, estes debocham, pessoas pedem intervenção militar em um país castigado antigamente pelos militares no governo. Inflações altas, corrupção deslavada, vozes silenciadas, torturas, exílios e mortes. Tudo ignorado por esses infelizes desconhecedores da história brasileira. Ou simplesmente pessoas de mau caráter. Não duvidem, anda por aí gente sem escrúpulos, canalhas e calhordas das piores espécies que existem.

Interrompem ao parágrafo os gritos dos coletores de lixo oficiais do governo. A coleta dos reciclados está suspensa pela crise no setor dos combustíveis, paralisações de caminhoneiros e de petroleiros na semana. Pautas diversas sendo jogadas, arremessadas espalhafatosamente ao ventilador. Um país em pleno caos. Todos infelizes.

A cadela pertencente aos vizinhos segue latindo desde que o caminhão passou. Ela deixa meus pais infelizes enquanto eles assistem à televisão da sala. A cadela parece seguir incomodada e outros cães da vizinhança se manifestam. Pedem intervenções ou querem intervir. Todos infelizes.

03/04/2015

Cãoindo

Às vezes tenho um jeito
De cão caído da mudança
Não sei se me faço de vítima
Ou realmente sou nessas andanças


http://www.anuariocaes.com.br/images/upload/andar-de-carro-com-o-cachorro.jpg

Onde fui, eu errei.