Por ordem cronológica de preparação, o filme seguinte a ser analisado é A Chinesa (1967), um dos mais políticos de Godard enquanto fase da primeira Nouvelle Vague, iniciada em Acossado (1960), com roteiro do companheiro François Truffaut. Em A Chinesa, feito após 2 ou 3 Coisas que Eu Sei Dela e antes de Weekend, Godard já havia começado seu relacionamento com a atriz alemã/francesa Anna Wiazemsky, destaque no ano anterior no filme A Testemunha. Anna estreia nos filmes de Jean Luc com papel de importância em A Chinesa.
Jean Pierre Leaud e outros atores compõem nesse filme uma célula comunista, com as locações internas em uma casa altamente decorada com material político. O filme é todo composto por debates, discussões, pensamentos e manifestações de cunho político, com atuações locais ou mediante os problemas globais. Os jovens escutam a tradução da Rádio de Pequim e buscam se manter informados sobre as guardas vermelhas impulsionadas na China. Claramente, se vê que a célula comunista está com novos membros e os debates são de iniciação e com foco na continuidade das atividades. No início do filme, um companheiro deles aparece ensanguentado e rapidamente o acodem e o posicionam em uma cadeira. Quando questionado quem teria feito isso com ele, afirma, para alguma surpresa, que foram outros ditos comunistas, da Sorbonne, numa dissidência ocorrida sobre a situação russa (diante da Soviética de 67). Jean Leaud considera isso positivo, pois marca as opiniões contrárias e o posicionamento da célula enquanto modelo político.
As paredes da casa em questão estão sempre decoradas com frases de efeito. Uma delas afirma que se devem combater ideias vagas com ideias claras. O filme tem andamento quase como um manual para recrutar, se politizar e entender questões político-globais. Nenhuma surpresa que tenha sido vetado/censurado de exibição qualquer no Brasil da época. A pensa os objetivos da ditadura cívico-militar brasileira, atuaram como a censura previa atuar: sem espaço para manifestações pró-comunismo.
Um convidado discursa para a célula sobre a perspectiva global após a morte de Lenin. Abre-se espaço para novas pesquisas, perspectivas e formulações. Sementes já foram plantadas. Eles debatem que as classes sociais vivem em constante choque, ebulição, movimento: há classes que ora surgem, outras desaparecem como movimento de atuação social. "Essa é a história da civilização." E essa pressão, essa luta de classes acabaria sob uma ditadura com base nas escolhas do proletariado? É negado. Desde 1921, Lenin afirmava que a ideia de classes sociais não se dissiparia sequer com essa organização social.
No filme, também se considera que revoluções só são possíveis tendendo-se, entendendo-se, buscando-se revoluções. Não acontecem por acaso ou não sendo almejadas. Para alcançar objetivos, é preciso focar na prática desde o bairro, a vila, a cidade, com exemplos práticos e não especulativos, imaginários. Além dos debates, diga-se, com o objetivo em tempp real, o filme é entrecortado com espécies de entrevistas com os membros da célula, com suas histórias pessoais de como aderiram à ideologia, de onde conheceram, o que têm passado e quais objetivos possuem na causa. Dentro disso, comentam situações cotidianas e de relevância para as discussões políticas.
Diferentes lugares de fala são apresentados. Veronique, a personagem de Anna Wiazemsky vem de uma família de banqueiros e estudava filosofia. Percebeu as desigualdades impostas pelo capitalismo (classes sociais, campo x cidade, agricultura x indústria), percebeu que somente estudar filosofia vinda de um bairro operário era uma contradição muito grande, mas tenta aplicar os conhecimentos em busca de uma teoria mais justa, que possa ser praticada. Segundo ela, queimar livros também não seria bom, pois assim não se consegue criticá-los.
O personagem de Jean Leaud levanta uma questão sobre linguagem (lá vem Godard). Se fosse uma sociedade de cegos, se prestaria mais atenção ao que é dito, em conversas verdadeiras, com atenção ao interlocutor. É uma crítica que ganha espaço cada vez mais em uma sociedade de muitos falantes e poucos ouvintes; poucos ouvintes ativos, poucos interpretadores, reflexivos, pensantes, questionadores.
Após o descanso da noite, os personagens despertam pela manhã e vão em direção a varanda da casa. Alongam e realizam exercícios enquanto pronunciam frases de teoria marxista como se fossem um exército a cantar durante os exercícios físicos. Uma sátira godardiana. O personagem de Jean Leaud então ministra a próxima conversa sobre os tons e directrizes da guerra na Ásia. Satiriza a ação dos países, cada qual representado por óculos escuros com suas bandeiras, enquanto o Vietnã está limitado a pedir socorro. Estados Unidos enviaram mais bombas ao país asiático do que durante a Segunda Guerra (princípios para quê? Ásia para os norte-americano?), União Soviética muito teoriza e pouco aplica. A China de Mao pede atenção, mas não teme o imperialismo e o capitalismo (como até hoje permanece). Nas palavras de Mao, esses impositores seriam como tigres de papel, ferozes na aparência, mas, para China, inofensivos aos objetivos. Inglaterra e França, consideradas potências mundiais, são passivas e não demonstram posicionamento profundo, como em outras guerras modernas - até sobre a passividade no caso Israel-Palestina.
Percebo que Godard também utiliza muito das armas de fogo, de representações de conflitos como apenas brinquedos, como se os personagens, os adultos brincassem com essas arminhas, como crianças. E as guerras não são assim? Com homens velhos a regular, a controlar, a ordenar distantes da linha de frente por objetivos econômicos, sem a real dimensão da desgraça de cada frente, do saldo de cada bombardeio. Assim como na psicologia infantil, são nas brincadeiras que muito é demonstrado e pode ser interpretado.
Ao longo do filme, Godard defende a corrente maoísta, considerando os segmentos da esquerda europeia como reformistas, insuficientes, impotentes. O exemplo maior a ser estudado, segundo a demonstração do filme, é a China (até por isso leva o nome, A Chinesa).
O personagem de Jean Leaud e Veronique escutam um discurso, escutam música e que os comunistas devem combater em duas frentes, entre elas, a arte. Leaud anuncia que é difícil para ele fazer duas coisas de uma vez, só consegue uma. Veronique simula uma DR de casal, que não o ama mais, justifica e diz que ele entenderá. O exercício era para mostrar que ele consegue sim fazer duas coisas ao mesmo tempo, no caso foi entender a questão e ouvir música. Questionável resultado, pois às vezes abdicamos da atenção de uma música ou a rebaixamos para segundo plano enquanto nos dedicamos em cheio a algo mais urgente e relevante. Complicado atuar em duas frentes, mas fica o debate da cena.
Prossegue mais um debate sobre linguagem, o que envolve a exclusão do personagem loiro Henri na célula. Por dissidências, foi votada sua saída. Ele comenta o episódio enquanto prepara um café da manhã, ou coisa parecida. O debate sobre linguagem é interessante no sentido de que, para se expressarem, discursarem, pautarem uma revolução, deveriam os comunistas armas discursos, panfletos, anúncios e transcrições na mesma linguagem considerada burguesa, tradicional? Há como romper esse obstáculo rumo a uma libertação, a uma alternativa? São questões de estilo ou há como revolucionar dentro daquilo (a linguagem) que é consagrado, inteligível e usual? Henri acreditava na coexistência pacífica das formas distintas enquanto Veronique era mais radical, pelo rompimento total. A própria Veronique encontra um escritor em um trem e conversam para atualizarem-se. Ela comentam que seus inimigos são os generais, os burocratas (...) e os intelectuais reacionários - um grande grupo. O debate dela com o escritor no trem vai da ideia de Veronique fechar ou explodir as universidades, como a causa inicial do filme do membro da célula após ataque na Sorbonne. Veronique crê que a educação é reprodutora dos paradigmas das autoridades e contribui para o reacionarismo, por isso deseja fechá-las e intimidá-las, propondo até ataques a professores e estudantes, na intimidação aos demais. O escritor se posiciona contra, porque essa ideia é dela e de mais dois ou três, não é uma atitude geral e revolucionária. É diferente do atentado proposto por uma mulher argelina, Djamila, que explodiu um café, "mas em nome da revolução", enfatiza o escritor. "Você não pode fazer a revolução pelos outros", transmite em um sentido da necessidade de acompanhamento, de retaguarda. Veronique nisso deseja que para aplicar as teorias revolucionárias que tem aprendido, ela precisaria da prática e o exemplo descrito era o modelo dela de atuação necessária.
Nas contestações aos planos, o escritor afirma que uma revolução precisa de bases firmes para o prosseguimento, que apenas atos isolados ou tomadas de poder sem uma base forte e planos vigentes se tornam ações temporárias e interrompidas, com altos riscos de apreensões e retenções. Quando a palavra volta para Henri, ele destaca o marxismo como uma espécie de ciência, de método e que os argumentos para atuações da célula eram válidos, mas estavam bagunçados; considerava falta de métodos.
O filme encaminha seu final com o suicídio de Serge, um dos convidados à célula que tinha a missão de assassinar um ministro russo como protesto. Assim, a missão recai para Veronique. Enquanto isso, segue uma entrevista com o excluído Henri, que não sabia do suicídio de Serge, conforme revelou, e não sabia mais sobre os companheiros, ex-companheiros de célula. O personagem de Jean Leaud chega a aparecer como comerciante de verduras, um simples feirante, também deixando que por centavos as pessoas tentassem acertar legumes em sua cara, como aqueles games norte-americanos ou japoneses.
Com muita referência ao famoso livro vermelho de Mao e com uma trilha sonora que o homenageia, o filme A Chinesa chega ao fim com a dissolução da célula daqueles jovens franceses e o futuro sempre incerto das organizações comunistas. Seria a China um modelo a ser seguido? Pelo comunismo da época ou pelo destaque econômico de décadas seguintes? Questões.
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Referência ao filme Alemanha Ano Zero, sobre o pós-Segunda Guerra |
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