Viver sua Vida é o segundo filme de Jean Luc Godard assistido nessa revisão de sua obra. O estrelato da atuação está por conta de Anna Karina, dinamarquesa que tornara-se a esposa e principal musa de seus filmes subsequentes. Geralmente os filmes de Godard trazem diálogos densos e muitos aspectos passíveis de análise. Cheguei a revisar se não havia escrito sobre esse filme anteriormente, porque é um de meus favoritos: de Godard, da Nouvelle Vague, da França e do cinema em geral, pode-se chegar a tanto. Lutaria por um top 100.
Revisei não haver escrito para não me repetir. Uma certeza assistindo a Godard é não ver o filme novamente com a mesma métrica. A vida pessoal, os tentáculos da subjetividade, o aprendizado e a experiência com outras visitas ao cinema em entretempos garantem novas observações e formulações acerca de Godard.
Adianto que reassistindo aos filmes, processo iniciado em Acossado (1960), o entendimento da obra como um todo se faz mais simples. Acredito que a primeira morada aos filmes de Godard impressiona a cada cena. Se espera filosofias densas - e as encontra. Há o que a França e a Europa poderiam entregar à época. Modernidades, espaço para o feminismo, para críticas aos governos, espaço para política, campo que ganhou cada vez mais renome nos filmes de Godard depois tomados em cores. Assim sendo, reassistir a Godard permite várias leituras, aspectos que chamem mais ou chamem menos atenção. Ora apareçam, ora subvertam em relação a outras observações. É uma leitura nada linear, nada fechada, há espaço para analisar a postura dos atores, a emblemática e cultural Paris da época, analisar fragmentos de diálogos e fazer recortes precisos como revistas, submetendo e adicionando cores, temperos e aspectos.
Em Viver sua Vida, a primeira impressão ao sair da imersão do filme foi colidir a análise do conto que o novo affair de Nana (Anna Karina) apresenta já na parte final da película. Uma analogia sobre o caso de uma fábula europeia em que um pintor havia enlouquecido pela precisão e impressão causada por sua própria arte. Ele fez um retrato da esposa e enlouqueceu saboreando a obra. Se encantou mais pela tela do que pela esposa de verdade, em carne e osso. Sem muito roteiro nesse micro conto, relatado em pouquíssimos minutos, o desfecho do folclore é que quando o pintor se deu conta que ainda existia a esposa - além da tela - ela já estava morta. Fim. É de se refletir a aplicação desse folclore antigo para os tempos de rede social online, em que a população como um todo é convidada a ser pintora de seus quadros, a retratar a si e aos outros. Autorretratos forjados, alegria artificial, adicionada e compartilhada. E o narcisismo de acreditar que suas obras possam superar os originais, a existência terrena. Não creio ter passado por isso enquanto dedicação a alguém, o que escrevo não supera a pessoa. Mas quantos podem achar que sim? E a hipervalorização de si mesmo em outros casos é uma realidade cada vez mais aparente.
Tempos antes desse folclore trazido sobre o pintor abobalhado pela própria tela, há um debate interessantíssimo entre Nana e um potencial cliente de sua nova profissão de prostituição. O velho senhor traz argumentos sobre a comunicação, coisas que possam parecer batidas para estudantes de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas, mas que tão oportunamente apareciam em cinema no início dos anos 1960. Das filosofias mais densas sobre o poder das palavras, do que pode ser exprimido ou deva ser silenciado, os debates em Viver a Vida procuram sair do banal ao amor. Na verdade, essa tendência já estava presente em Acossado, quando a jornalista norte-americana e seus colegas aprofundavam temas em entrevista coletiva com um escritor local, saindo das pautas mais comuns do trabalho para filosofias que encontrassem o amor, objeto maior de debate nesses dois primeiros filmes revistos.
Em Viver sua Vida, o senhor, potencial cliente para Nana, adverte que nunca se há certeza de um amor à primeira vista, que, na inexperiência dos 20 anos, ele é uma construção moldada a fragmentos. Nunca se conhece o todo, ou ao menos, e dando abertura otimista, se demora a conhecer esse almejado todo. Décadas. A experiência de casos, e ao longo da vida, permite identificar no outro, no potencial cônjuge elementos que completem ou repelem. Assim é a busca do amor que é, em grande parte, a busca maior na vida.
O mesmo interessante senhorzinho observa que a Vida parece composta por duas realidades. A vivida em si, quase no automático, e uma espécie de superior, digamos assim, de superioridade composta e interpretada através dos pensamentos. Pensar sobre a Vida não é vivê-la. A metáfora perigosa aplicada é um caso nos Três Mosqueteiros (obra francesa) em que o um personagem teria de firmar uma bomba e explodir uma adega. Quando vai fugir após colocar a bomba, ele, muito abestalhado, começa a refletir na corrida sobre o estranho movimento natural que é colocar pé ante pé para correr ou caminhar. Nisso, ele pára a refletir, esquece de fugir e se torna alvo da bomba implantada. Ele nunca havia parado para pensar sobre a Vida. Quando parou, foi vítima da circunstância. Não que pensar seja perigoso (para muitos é, não querem que você pense), mas há circunstâncias em que é melhor fugir.
Viver a Vida, um dos melhores filmes de Godard e nem trouxe aspectos mais concretos sobre a dificuldade financeira e queda para prostituição na vida de Nana, uma simpática jovem que era vendedora em uma loja de discos.
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