Alphaville talvez seja meu filme favorito de Godard. E o talvez aqui ainda é totalmente humano. Alphaville é um lugar robotizado no futuro, onde o controle sobre os cidadãos e as mentes é total e as pessoas são ou condicionadas à tecnologia ou eliminadas. O lugar obedece à lógica das máquinas e tudo é programado. Desde a chegada do estrangeiro Lemmy Caution em um hotel, a recepção é feita por sedutoras programadas. "Sedutoras de nível 3."
Godard usa elementos sutis ou não para expressar sua preocupação com a sociedade futura. A eliminação de estrangeiros e o seu controle total. Quem não se adaptar à tecnologia e às ordens da lógica será eliminado. Até a forma de eliminação é calculada e tem bases, por exemplo, na solução final contra os judeus na Segunda Guerra. Ao invés da frieza das manipuladas câmaras de gás, as pessoas seriam eliminadas em um teatro enquanto assistissem a uma apresentação qualquer.
O Alpha 60 é o grande cérebro programado para controlar Alphaville. Godard está atento às artimanhas das guerras. Em certo momento, enquanto Caution, jornalista estrangeiro, está conhecendo as estruturas do colossal Alpha 60, o recepcionista afirma que os Países Exteriores em breve entrarão em guerra com Alphaville, então, pela lógica programada, Alphaville resolveu invadi-los antes que isso ocorra. É a lógica e a disputa e o interesse que, por exemplo, os Estados Unidos usam no plano global a várias décadas, seja para justificar obtenção de petróleo, seja para intervir em questões ideológicas, como ocorreu na busca por recursos em Guatemala, Honduras, Nicarágua, embargo a Cuba, guerra em Vietnã, Camboja, intervenção na África em Ruanda, Angola, Líbia, ditaduras na América do Sul e assim por diante.
Alphaville demonstra a preocupação com o estrangeiro, com o que não se adapte. Eles dizem respeitar, precisar dos cérebros mais fortes e ao mesmo tempo temê-los. É a linha tênue entre a necessidade do controle desses ou eliminá-los. É uma sociedade mecanizada, onde a Bíblia está presente nos quartos de hóspedes em hotel e assim se imagina, se conclui que a teocracia estaria por tudo. Também no quarto de Cautton é apresentada a forma como as pessoas lidarão com a saúde no futuro: "os tranquilizantes estão no banheiro, senhor". Não é se você precisar, senhor. É óbvio que você vai precisar. A sociedade não tem como se sustentar sem esses medicamentos de uso controlado.
Godard sempre foi muito cuidadoso nos usos da linguagem, desde seus primeiros filmes. Experiência que ele vai ampliar ao longo da carreira até seus últimos filmes, mais técnicos, documentais. Em Alphaville, foi abolido o uso da pergunta "por quê?". Caution, enquanto jornalista estrangeiro, está acostumado a investigar e utilizar esse interrogativo. Já os cidadãos na Alphaville sequer reconhecem o significado do por quê. Um dos receptores para Cautton explica que não se usa mais "por quê" e sim apenas "para quê", porque tudo é guiado pelo objetivo, pela causa e pela consequência. É a lógica que controla e subverte qualquer saída dela. É interessante pensar que na mesma década, apenas dois anos após seria lançado o livro com tantos aforismas e pensamentos acerca disso, A Sociedade do Espetáculo, do também francês Guy Debord.
Durante o filme e suas investigações, Lemmy Caution é inquerido em diferentes interrogatórios, quando querem saber sobre seu passado e sentimentos. Os sentimentos, obviamente, também foram abolidos de Alphaville. Seduções e atos sexuais também são programados como tarefas das mais banais. Durante suas ações, Caution chega a excursionar com uma tentativa de nome falso: Ivan Johnson (algo até enfadonho e repetitivo, como um nome comum dos russos, mas com uma mistura proposital).
"Desde que está aqui, não entendo o que está acontecendo", afirma Natasha von Braun (Anna Karina), demonstrando que Lemmy Caution causa esse efeito na programada cidade de Alphaville: confusão, sentimentos humanos. Caution questiona Natasha sobre literatura e sobre conhecimentos básicos que parecem banais a nosso mundo, mas que em Alphaville foram abolidos.
Ao início do filme, Lemmy encontra Henry Dickinson, que conta que são comuns os suicídios. "E o que acontece com quem não se adapta e não se suicida?" Bom, aí eles te matam. Soa como uma ditadura, não é? Natasha von Braun é a filha do mentor Dr. von Braun. Palavras de sua lembrança foram eliminadas. Em comum com a Novilíngua do 1984 de George Orwell, em Alphaville também se proibem e eliminam palavras. Em Alphaville, a Bíblia e o Dicionário podem ser a mesma coisa na busca por respostas. A população não diferencia um desses livros do outro. No Dicionário as palavras somem e são abduzidas ou adaptadas, reprogramadas. Consciência é uma palavra inexistente. Ninguém deve pensar nela. Ternura também foi abduzida. São repaginadas em comum com os ministérios organizados na sociedade oceânica do 1984.
"O que faz com que a madrugada se ilumine?" A Poesia. A Poesia foi abolida. Até havia escritores, mas eles vivem na Zona Proibida (novamente em comum com 1984), "escreviam coisas incompreensíveis". Usam das palavras proibidas e dos sentimentos. Godard sempre quebra momentos de tensões com anedotas sejam mais ou sejam menos conhecidas. São casos de folclore, ditados populares ou provérbios de diferentes culturas. Alphaville quer controlar todos esses testemunhos. "Farei os cálculos necessários para não existir fracasso", afirma o poderoso Alpha 60. "Pois eu lutarei para que o fracasso exista", rebate Lemmy Caution.
"Você tem ideias estranhas, sr. Caution", afirma o professor von Braun. "Seriam consideradas sublimes na era das ideias. Mas em breve homens como você não existirão mais. Serão convertidos em algo pior do que a morte. Serão lendas", dando a entender que caíriam na vala comum do esquecimento, da eliminação. Um dos métodos sublimes apresentados no filme, no limiar cômico, é uma forma de eliminação dos inimigos do Estado que consistia em posicioná-los em uma cerimônia sobre um trampolim de piscina, deixá-los recitar suas últimas palavras e serem baleados, como um paredão de fuzilamento, mas artisticamente à beira da piscina. Um grupo de mulheres como a um nado sincronizado recolhia os corpos recém caídos na água. Métodos de tortura e execução, sem perder o brilho. A referida Sociedade do Espetáculo.
Entre quem poderia ser adaptado, selecionado, recrutado à sociedade de Alphaville, Godard levanta a crítica de que muitas vezes os selecionáveis eram alemães, suecos, norte-americanos. Será o preconceito daquela sociedade em favor dos que se trocam prêmios Nobel a cada ano, ou serão esses mais adaptáveis pela frieza sentimental? Perguntar não consolida a acusação.
Este filme de Godard é bem completo aos objetivos quando revista sua obra. Tem ação, tem suspense, tem altas doses de sua vasta filosofia, tem ideias distópicas, tem humor, tem o drama com disfarce/espaço a romance, tem a pesada crítica sobre as sociedades daquela guerra fria e com projeção ao futuro da inteligência artificial.
Ao começar a crítica de Alphaville, o foco seria a inteligência artificial, que está atingindo o ápice de desenvolvimento e preocupação agora pelos 2020 e poucos, rumo a 2030. Robotização, programação, substituição, algoritmos, subtração das importâncias culturais, desemprego. O final é especial, quando tenta salvar Natasha von Braun e ela tem dificuldade de proferir as palavras que deseja, do fundo de sua alma, Lemmy afirma que só ela poderá dizer o que quer, ou estará morta como os demais mecanizados de Alphaville. Será essa a crítica derradeira de uma sociedade que se comporta à luz da Inteligência Artificial e esquece de pensar, esquece de interpretar, esquece de raciocinar, esquece de sentir por si. Necessita de aspectos programados para responder simples (ou não tão simples) perguntas. Como você se sente?
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