O tenente Gedir, muitas vezes, em sua carreira militar, deve ter respondido "pronto" aos chamados dos superiores. Prontidão e disposição não lhe faltaram na maior parte da vivência de seus 76 anos. Negro alto e de bom vigor físico ainda quando o conheci. Não sei ao certo a forma como devo trata-lo em parentesco. Bastante conviveu com minha vó após a separação do casamento dela e de meu respectivo e biológico avô. Momentos de minha infância em que compartilhei com ele, que já entrava para a terceira idade.
É véspera de Natal e acompanho meu pai na missão de dar carona para vó. Ela vai visitar seu grande amigo no lar de idosos no Centro. Há poucas pessoas na rua e o caminho até lá flui sem maior trânsito. O prédio é histórico, ao lado da principal igreja da cidade, e ocupa praticamente toda a quadra. A tecnologia do portão permite um chamado por interfone. Com a autorização de lá dentro, adentramos o espaço. Cumprimentos para todas as pessoas na entrada.
"Tio Geda", como sempre acostumei a chamar, está na sala. Sentado em uma poltrona, ele ergue os olhos e o humor ao nos localizar. Sorri com a força da alma, mas o corpo pouco lhe respeita as vontades. Ao contato visual e depois físico de sua mão, noto seus dedos quase fechados fixamente. Após a visita, vó me informa que ele fraturou um deles.
A sensação de liberdade não compõe o cenário, talvez, na maior parte da vida. Perder essa pouca saída deve dar a noção do antes e do depois. Do passar do tempo. Um homem em seu aprisionamento. A prisão do próprio corpo, castigado por décadas e décadas de álcool, que não o obedece e não se molda mais como era antes. O aprisionamento do espaço em volta. Um adulto em confinamento e cuidados como se voltasse a ser criança. Mas sem poder correr. Só poder teimar.
Ao perambular o olhar aos arredores da cena, os demais idosos parecem mais próximos da morte do que de qualquer coisa. É um cenário pouco agradável e, apesar da amplitude do espaço interno, da beleza do prédio histórico e da aparente limpeza, é um local contagiante negativamente. As luzes da árvore de Natal são as mais artificiais já vistas, pois o que há em volta pouco brilha no tempo presente.
São estrelas que podem ter brilhado e iluminado céus no passado, mas que atualmente representam o esquecimento de quem não as mira mais. Na parede, há enfeites natalinos de isopor, um com o nome de cada ocupante da casa. Dona Rita, seu Disney... Uma bota de isopor, se não me engano, para cada. O isopor é frio, é incolor, nada sensitivo. Mas é duradouro, não se debate aos efeitos temporais. Mais vale a nossa curta e degradável passagem, ou a insistência do inanimado mas resistente material?
Ó, tio Geda, eu que sempre olhei para cima para acompanhar seu semblante com minhas interpretações ainda pouco curiosas. Hoje, mais atento a alguns detalhes, o vejo com a melancolia e a nostalgia a transbordar dos úmidos olhos. Tão delicada é a situação, me pego no dilema de não saber se é melhor para ti rememorar os acontecimentos que tornaram tua vida tão vívida e tão válida. Ou se é melhor não resgatar o passado inalcançável de nossa existência.
Conversamos, sim, sobre o Grêmio Atlético Farroupilha, instituição que a bastante jogos ele foi, como sócio e companheiro na carreira de tantos torcedores que passaram e permanecem a passar por lá. Amigo do velho Trem, do conselheiro Alci Moraes. Amigo que muito considerei da infância, conforme me levou, no privilegiado local das cadeiras, para minha primeira partida em estádio de futebol. E, no longínquo 2002, o Farroupilha goleou o São Paulo da cidade vizinha por 3 a 0 naquela oportunidade. E, até hoje, o tricolor onde exerço estágio é o único clube em que eu nunca fui a jogo para torcer contra.
O sol ainda valente e alto, mas é quase hora da janta. Vamos a nos despedir. Meu pai repete a frase que tanto ouvi na juventude, seja pelo legal na sonoridade, seja por meu pai sempre repetir frases, por mais aleatórias que sejam. "Tio Geda é Tio Geda." A pronúncia me lembra do inglês "together".
Despedida e desejo de bom Natal ao Tio Geda. Os desejos mais fundos de que não ceda ao aprisionamento. Missão difícil, pois não é o mesmo militar que realizou operações a nível nacional. Nem mesmo as mãos, que tanto encestaram a laranja no basquete, escapam dos efeitos do medonho tic tac. Hoje, mal conseguem êxito no mais simples aperto de cumprimento ou despedida. A energia do aperto de mãos se transfere. Aperta meu coração. O tempo não aperta pause. Nenhum clique do mouse altera essa direção.