Diários de bordo. Acho bacana começar um texto assim (diários de bordo), mas na verdade sempre me perguntei sobre quantos dias antes e quantos dias existem depois das anotações. Mais dramático é se as anotações são as últimas coisas que ficam, que persistem, que ultrapassam a barreira imposta pelo tempo, quando o autor, sem saber, acaba partindo desta para outra. Também penso muito em câmeras fotográficas. Em como estragadas podem perder registros únicos. Registros últimos. E se for roubada, o ladrão se importa com as fotos salvas no cartão de memórias?
São preocupações minhas que ora veem à tona. Tenho feito uma coleção de camisas de futebol. Não chega a peitar os maiores colecionadores, donos de bazares, sites, lojas virtuais, improvisos por grupos de whatsapp, mas tenho minhas peças e me orgulho e curto cada uma delas, de verdade, todas com alguma beleza, singularidade, história especial, de maior ou menor grau. Ao passo que avanço a quantidade de cabides e itens dobrados em prateleira, recordo meu avô sobre uma cama fria de hospital, com poucos tecidos para taparem-lhe as longas e cada vez mais finas canelas. De qualquer forma terminaremos assim. Ou partiremos um pouco mais saudáveis do que definhados. Podemos partir de repente, de uma maneira surpresa. No caso dele, todos já estamos preparados para o findar chegar em algum momento. Além do mais, independente do tempo que ele perdure com suas agravantes questões de saúde, ele é o recordista de idade de nossas famílias, passando os 90 e relutante em chegar aos 91, caso sobreviva até o próximo novembro.
Embora destaque seus problemas físicos, se alimentando cada vez menos e com veias e ossos cada vez mais salientes por conta disso, minha mãe observa que ele está razoavelmente bem de cabeça. Não creio que chegaria assim daqui a mais do que seis décadas. De maneira alguma projeto isso. Um dos casos que me trouxe aqui a relatar é porque estava quase adormecendo após o almoço e em um acesso de teimosia tamanha, como se fosse um desses senhores idosos, me recusei a levantar e escrever as poucas linhas que eu havia pensado. Lamento muito por tê-las perdido para sempre em um vácuo no espaço não arquivado pela memória. Os malditos neurotransmissores queimaram o arquivo, rasgaram a folha, jogaram fora os poucos versos. Nem sequer eu recordo do que se tratavam. Isso que me chateia. Não consigo sequer restituir a temática de meu pensamento naquela matinê. Assim acredito que, se minha mãe estivesse viva aos 130 para me conferir nos meus inalcalçáveis 90, duvido que ela se refiriria a mim como estando "bem de cabeça". Não vou estar "bem da cabeça". Provavelmente nem estarei, como sabem.
E a sentença sobre meu avô também é bastante duvidável, pois o sr. Lino estava querendo sair para pescar em um desses dias, logo no estado em que ele se encontra, definhado sobre a cama. Em outro momento, com maior juízo, vejam só, se recusou a partir para pesca porque ele quer aguardar o verão. Ficamos no aguardo se ele resiste a esse final de inverno, passagem por primavera e alcance o sonho da próxima pescaria, ou continuará a pescar seus últimos sonhos por agora. Quanto a mim, sigo me martirizando muitas vezes pelo que não tenho culpa, meus tecidos de variados clubes e seleções espalhados pelo sofá enquanto meu avô não escolhe o que vestir, escolhem por ele, no restante de suas últimas peças. É quase setembro e ainda está um pouco frio para os padrões de despedida de inverno.