24 de agosto de 2021

Registros e não registros

Diários de bordo. Acho bacana começar um texto assim (diários de bordo), mas na verdade sempre me perguntei sobre quantos dias antes e quantos dias existem depois das anotações. Mais dramático é se as anotações são as últimas coisas que ficam, que persistem, que ultrapassam a barreira imposta pelo tempo, quando o autor, sem saber, acaba partindo desta para outra. Também penso muito em câmeras fotográficas. Em como estragadas podem perder registros únicos. Registros últimos. E se for roubada, o ladrão se importa com as fotos salvas no cartão de memórias?

São preocupações minhas que ora veem à tona. Tenho feito uma coleção de camisas de futebol. Não chega a peitar os maiores colecionadores, donos de bazares, sites, lojas virtuais, improvisos por grupos de whatsapp, mas tenho minhas peças e me orgulho e curto cada uma delas, de verdade, todas com alguma beleza, singularidade, história especial, de maior ou menor grau. Ao passo que avanço a quantidade de cabides e itens dobrados em prateleira, recordo meu avô sobre uma cama fria de hospital, com poucos tecidos para taparem-lhe as longas e cada vez mais finas canelas. De qualquer forma terminaremos assim. Ou partiremos um pouco mais saudáveis do que definhados. Podemos partir de repente, de uma maneira surpresa. No caso dele, todos já estamos preparados para o findar chegar em algum momento. Além do mais, independente do tempo que ele perdure com suas agravantes questões de saúde, ele é o recordista de idade de nossas famílias, passando os 90 e relutante em chegar aos 91, caso sobreviva até o próximo novembro.

Embora destaque seus problemas físicos, se alimentando cada vez menos e com veias e ossos cada vez mais salientes por conta disso, minha mãe observa que ele está razoavelmente bem de cabeça. Não creio que chegaria assim daqui a mais do que seis décadas. De maneira alguma projeto isso. Um dos casos que me trouxe aqui a relatar é porque estava quase adormecendo após o almoço e em um acesso de teimosia tamanha, como se fosse um desses senhores idosos, me recusei a levantar e escrever as poucas linhas que eu havia pensado. Lamento muito por tê-las perdido para sempre em um vácuo no espaço não arquivado pela memória. Os malditos neurotransmissores queimaram o arquivo, rasgaram a folha, jogaram fora os poucos versos. Nem sequer eu recordo do que se tratavam. Isso que me chateia. Não consigo sequer restituir a temática de meu pensamento naquela matinê. Assim acredito que, se minha mãe estivesse viva aos 130 para me conferir nos meus inalcalçáveis 90, duvido que ela se refiriria a mim como estando "bem de cabeça". Não vou estar "bem da cabeça". Provavelmente nem estarei, como sabem.

E a sentença sobre meu avô também é bastante duvidável, pois o sr. Lino estava querendo sair para pescar em um desses dias, logo no estado em que ele se encontra, definhado sobre a cama. Em outro momento, com maior juízo, vejam só, se recusou a partir para pesca porque ele quer aguardar o verão. Ficamos no aguardo se ele resiste a esse final de inverno, passagem por primavera e alcance o sonho da próxima pescaria, ou continuará a pescar seus últimos sonhos por agora. Quanto a mim, sigo me martirizando muitas vezes pelo que não tenho culpa, meus tecidos de variados clubes e seleções espalhados pelo sofá enquanto meu avô não escolhe o que vestir, escolhem por ele, no restante de suas últimas peças. É quase setembro e ainda está um pouco frio para os padrões de despedida de inverno.

21 de agosto de 2021

poema do peixe

como um filme de terror se defronta a vida

como se a vinda aqui nada valesse

como se brinda a vida em um fim desses?

como se ainda motivo aparecesse


tento escrever agora altivo

de dentro para fora ou de fora para dentro:

qual motivo?

que me leva a vir aqui sedento


não me dou por vencido facilmente

mas basta ser algo que eu o queira 

já não quero muita coisa, realmente 

e quando quero muitas vezes é besteira


quero mesmo é prosseguir por esse rio 

caudaloso é o destino do poema

que acena a uma aventura e outras mil 

pelo fio da criação não há problema


o verbo querer é tão presente

tão presente mas também em outros tempos

muitas vezes eu gritei com todo aumento

eu queria e eu queria aos quatro ventos


aos quatro cantos ou quantos eles fossem

será que eu queria o sabor tão desejado?

por exemplo fosse ele algodão doce

é provável da minha parte rejeitado


outros jeitos, outros queijos tentativa

preocupante é o estado da gengiva

sangra fácil anunciando corrosiva

a erosiva relação com a saúde 


ataúde é uma palavra só lembrada

pelas últimas andanças dessa estrada

pode ver como rima mas se opõe 

ao estado de saúde - sol se põe


lamurento posso enfim ficar

no cerrar desses versos, no cessar

lamacento nas encostas desse rio 

para dentro dos cardumes juvenil


como um peixe se desvencilha das amarras

pelo trânsito para longe das mortalhas 

escorrega jovial pelo cardume 

enquanto jogam pescadores uni duni 


à espreita tanta coisa se é feita

na tentativa de pausar esse peixe 

santa ceia , santa é a semana

que engana os destinos desse feixe


mas melhor por aqui se despedir

antes que nosso herói seja pescado

pela boca morra pela isca

ou pela rede a debater-se acompanhado


quem não acompanha agora nada

não entende o prazer das nadadeiras

em sincronia a mover-se à correnteza

gentileza pelas forças dessa água


e o peixe vai contente ou apenas vai 

desovar adiante outros canais

pelas ovas que perpetuam a espécie 

que iludem perfeição - até parece 


a natureza nisso se renova

no processo geracional desses peixes

que no cardume se somam formando feixe

misturando uns e outros muitas ovas


e assim nosso rio poema se povoa 

tanto faz agora se queres lagoa

ou abertura para o mar formar laguna

das espumas dessa água nada muda


quanto ao peixe nosso descrito tão querido

permanece a nadar assim sortido

sol se vai e depois retorna a pino 

e nosso peixe segue só por seu destino


criatura natureza assim tão besta 

criticarão o animal ao final desta

se não desta talvez em outra frase

pois sua vida não se encontra assim oasis 


ou quase, ou quase...


nosso peixe sai da água assim mergulha 

quando volta após passar pela secura

se reúne a outros peixes na tertúlia 

e se esconde ao mergulhar em água escura


reaparece o peixe esse em água pura

cristalino limpo e vulnerável 

ao voo coordenado da gaivota

mete o bico pega o peixe pelas costas


morre assim o nosso peixe idiota

não se preocupa 

lembra a ova?

essa choca 


e poema assim a ninguém machuca 

mas ao final: a quantos choca?

Nota de agradecimento em nome da saúde

De todos os males do mundo, é pior mesmo é sofrer da própria saúde. Claro que na pobreza se está mais suscetível a problemas de saúde, pela exposição, pelo desgaste, pela falta da alimentação adequada, nutrientes e aquela coisa toda. Mas vim mesmo agradecer a todos aqueles que se prestam a ajudar os outros. Não somente os mais reconhecidos e renomados médicos que realizam os procedimentos, mas aos atenciosos enfermeiros e técnicos de enfermagem, aos acompanhantes e pacienciosos lado a lado dos enfermos. Agradecer pela boa vontade, pela perseverança, por não desistirem em nome de outro ser. Aos que acolhem pessoas a seus cuidados, até sararem ou até o final, tornando menos dolorosa a passagem. Agradecer a quem recolhe animais abandonados nas ruas, os trata, os encaminha a veterinários, lhe cedem vacinas, medicinas e carinho. Cães, gatos e todos os bichos que vagam perigosamente pelas ruas. Obrigado a quem batalha pelo cuidado deles. Há muitas pessoas más, mas também há quem faça tudo isso valer a pena. Portanto, venho no mais puro bel prazer do agradecimento, do meu muito obrigado, para que minha gratidão por ora transcorre de um peito a outro, como deve ser, no exercício da tão bela lição que é a solidariedade. Não estaríamos aqui sem as justas parteiras, profissionais da enfermagem, médicos de plantão, abnegados, cuidadores, voluntários. Você já agradeceu por quem realmente merece ler, ouvir, sentir esse reconhecimento verdadeiro? Pois não perca tempo, enobreça seu estado de espírito ao máximo ao sentir-se grato e transmita isso na boa palavra, na carinhosa atitude. Que se iluminem os caminhos a partir disso e que em algo recompensados possamos ser também. Uma fé não obrigatoriamente alcançável a todos, mas, por ora, por mais que me culpe posteriormente, por agora quero apenas acreditar. Acreditar nessa benevolência, nessa boa vontade, nesse estado de gratidão, muito questionado em outros momentos, mas que, em meio a tudo isso, de ruim e de bom, me permito. 

Obrigado.

20 de agosto de 2021

Sacrifício

Mesmo envolto a filmes de terror nos últimos dias, me surpreendi tamanho plano ousado que minha mente ornou. Percebia uma casa muito cinza e afastada, por onde transitavam muitas pessoas que eu desconhecia. O movimento intenso daria ideia incluso de um comércio, bazar em funcionamento, mas não era o caso. Era como se morassem ali ou ali estivessem refugiadas e assim poderia ser também o meu caso. Ou o que eu fazia por ali? A casa tinha um aspecto acolhedor, mas decadente. Era a morada, mas era estranha. Era uma casa de proporções esquisitas, onde poderíamos associar sua figura a um grande templo. Fato é que as sensações que nos causavam eram meio horripilantes, sem saber o que decerto iria ocorrer logo adiante. A suspeita eram dos moldes da bruxaria.

Entre tubos de diferentes tamanhos e formatos que se amontoavam sobre os móveis, como se esquecidos ou recém-usados e ainda não passados pelo lava-louças, lembro de aparecer por entre meus dedos um bilhete. Um bilhete tão misterioso quanto todos os entornos daquelas curiosas cenas. Tentei fixar meus olhos somente naquele papel parcialmente amassado e em caligrafia apressada ou relaxada quando foi manuscrita. Seriam códigos que fugiriam a meu entendimento? E o fluxo de pessoas, ora tão numeroso, tudo desaparecia e as trevas se faziam presentes, como se de repente uma vela fosse rapidamente assoprada, transformando o estado cinzento em mais trancafiada e aprisionante penumbra.

Percebo esse código em papel de repente em outro espaço, quando me deparo em uma espécie de shopping, talvez semelhante aos estabelecimentos Angeloni de Criciúma, ao sul de Santa Catarina. Era semelhante àquele estabelecimento ou de lá lembrei por causa do número musical que se apresentava: um músico diante de uma razoável plateia. Conforme ocorre com os músicos de centros comerciais, as pessoas mais seguiam suas atividades de admirar vitrines ou seus telefones celular do que prestavam atenção, mas sempre uma quantidade reduzida também o escuta e acompanha das melodias. Pois outro músico, talvez transformado em eu mesmo, se depara, após o dedilhar de algumas notas que está sozinho. Tão sozinho quanto na penumbra daquela casa cinzenta e esquisita.

Ele olha ao redor e, com o perdão da utilização da letra daquela música, acha melhor parar de olhar. Ou ao menos parar de tocar. Ninguém o escuta. Pois o código. O código o é entregue mais uma vez. Por alguma mão sorrateira que por ali passa, ou surge diante dele, como na superfície de alguma mesa próxima, ou mesmo o músico o encontra de seu bolso (como é possível surgir assim do nada?). Enfim, ele tem o bilhete em mãos, olha atento àquela combinação ridícula que lhe foge aos conhecimentos em significado. Mas tem para ele que aquela é a salvação de sua carreira musical. Ele precisa copiar aquele código para acessar ao sucesso. Para, ao menos, copiar seu parceiro que tocava para meia dúzia, dúzia inteira ou até três ou quatro dúzias de gente num shopping estilo estabelecimentos Angeloni em Criciúma.

Ele precisa ser escutado, é sua razão de ser e existir, ele não se importa, naquele momento, de fazer o tráfico com o mais temido diabo em troca de sua merecida plateia. A razão da existência musical, tocar para alguém ouvir. Ele aceita os termos de uso e sai em desembaraço do código que sacie sua vontade de receber os louros advindos de um tímido aplauso ao final de cada canção - algo do tipo. Com o código transcrito para sua mente ou para outro papel, ou dito em voz alta, na tentativa da convocação do diablo que lhe conceda a glória, o músico (será eu?) é novamente transportado.

Está agora em uma estrada vazia, sabe que essa mesma estrada vazia, interiorana, sem residências que a circundem, leva em direção àquela mesma casa sinistra, deslocada, opressiva, cinzenta e morada dos mais impiedosos segredos e feitiços, dos confins porãonizados da humanidade. Mas, ao manobrar uma camionete - ou desta mesma camionete ser apenas um secundário personagem no banco de carona - o músico atolado até o pescoço com as bruxarias se depara com uma cena de lhe tirar o fôlego. E ainda bem aqui tratamos de um músico de instrumentos de corda e não um soprador de saxofone, por exemplo. Isto porque sem o fôlego ele fica ao deparar-se com uma fileira de corpos em um pequeno vale - talvez escavado - que se desenha na estrada. A estrada é vazia de movimentos e entulhada de neve. Sobre essa neve estão deitados uma parelha inteira de corpos. Os corpos ele custa a assimilar se são humanos ou de algum antílope que por ali habite, onde Canadás será que estava? São humanos ou são alces depositados sobre a neve? As autoridades sabem desse absurdo? Onde está a sua camionete? Era o carona e foi chutado pelo motorista, para observar àquela audaz e impiedosa cena? Sejam alces, sejam humanos deitados naquela clareira que muda radicalmente os tons inebriantes do constante volume de neve que se acumula pela estrada, sejam do que forem aqueles horripilantes corpos antes escondidos, sejam esquecidos ou lembrados, ele tem certeza de uma única palavra sobre aquela quantidade de corpos: sacrifício.

Ainda sobre meu avô

Foi após eu firmar o obituário de meu avô que ele deu para não morrer. Os dias no hospital arrastam-se, como o cinza ininterrupto desse mês de agosto. Os cães estão loucos, ensandecidos aqui em frente ao apartamento. São uns cuidados pela vizinhança, que lhes fornece alimentação e água, em troca de uivos para luas cheias e alguma sensação de segurança que eles transmitem. Mas o assunto é mesmo meu avô, que segue como uma partida de futebol esquecida de ser finalizada aos 90. Sobre a cama, com as canelas cada vez mais finas, com a musculatura a sumir conforme não come nos últimos tempos. Sobrevive pelo soro e perde muito sangue e muito líquido pelos problemas em seu sistema urinário. O câncer que teve pela próstata ameaça voltar, se é que já não voltou e falham na nomenclatura ao dito cujo.

Percebi a fragilidade do panorama de meu avô ao comprarem para ele alguns iogurtes da marca do solzinho, destinada preferencialmente às crianças. Aí chega o ponto em que eu queria adentrar, a, mais uma vez, semelhança entre o estado dos mais jovens e dos mais velhos. A necessidade dos cuidados de outrem. A impossibilidade de se virarem com seus próprios recursos. Para além da saúde deficitária do ancião, aqui em casa discutimos os valores financeiros que ele a cada dia nos custa, porque precisa de um revezamento de cuidadoras, com o preço pela casa dos 100 reais por turno. Entre duas, vão-se praticamente 200 reais a cada findar de tarde. A da madrugada recebe mais, o chamado adicional noturno. Algumas batem cabeça no horário, com atrasos ou impossibilidades avisadas em cima da hora, privando minha mãe de qualquer sombra de sossego.

Digo para minha mãe relevar essa situação, porque logo ele parte ou melhora. Estamos cientes de que segue mais próximo de partir, justamente por não ter forças mais para alimentação. Segue conectado às sondas e, a bem da verdade, em momentos de fúria e de últimas provas de rebeldia, arranca os cateteres posicionados em seu corpo. Quando questionado por um bem humorado enfermeiro, se, caso fossem soltos, libertados seus braços, se meu avô iria se comportar ou arrancar novamente os cateteres, o meu ascendente de raízes polonesas admitiu: "vou arrancar, sim." O profissional agradece a sinceridade dele e segue seus trabalhos, mantendo meu avô delicadamente atado, na impossibilidade de arrancar-lhe o que o mantém vivo.

Houve um caso de amigo de meu pai, um engenheiro bastante mais novo, que, ao se dar por conta da situação sobre a cama do hospital, arrancava os seus conectores da vida. Acabou realmente por morrer e talvez fosse isso que desejasse, após problema neurológico que o acometeu. Estar nessa situação vegetativa, sobre um leito e extremamente dependente de terceiros, deve afetar as percepções de o que é estar vivo. Eu, em tão melhor situação sinto esses questionamentos, imagino-me na situação deles.

Enfim, como uma criança, em que a memória oscila entre aprendizados ou nomes antigos e entre o esquecimento das coisas mais básicas recentes, meu avô segue lá com sua capacidade intelectual também cada vez mais fraca. Chama pelos que já não o podem atender, relembra momentos, traça resumos de sua vida passadas nove décadas. Aguarda pelo apito de encerramento e busca alguma compaixão com o temido júri do juízo final. Enquanto isso, permanece imóvel sobre a cama, tentando domar seus instintos rebeldes e alternando entre o cansaço, a fraqueza, mas também a disponibilidade em que desata a falar como em um dos últimos confessionários.

Sem mais poder nos oferecer as cadeiras que bem construía nos conhecimentos da carpintaria e com um leque de piadas cada vez mais reduzido, meu avô vai se apagando, mas mantendo acesa sobretudo a discussão de quem arca com seus últimos dias, entre cuidadoras que levarão mais do que dois salários e sua possibilidade de alta ainda não se sabe para onde, entre as existentes casas geriátricas ou os aprontes da filha da esposa de seu segundo casamento. E, para meus compromissos com a verdade, nunca ouvi tanto sobre meu avô como nesse último mês. Talvez, se organizássemos a massa de tópicos sobre uma gangorra, o mês atual venceria o total de vezes em que ele era mencionado em todos os meses anteriores em minha casa. Em resumo, nunca se falou tanto dele. Nem tão bem, nem tão mal, mas apenas cada um avaliando onde pode inserir-se nos cuidados feitos, em contravontade, mas querendo manter uma imagem perante a família e a sociedade, além de uma aparente consciência tranquila. Próximos capítulos nos aguardam. 

A gente começava a ler as pessoas pela foto

10 de agosto de 2021

Aos vermes

Posso escrever quantos poemas eu quiser
Sem querer
Posso fazer mais poucas coisas
Contei aqui mais três

Posso seguir esse como uma estrada
No automático
Posso terminar nos contornos da Via Láctea
Ou do mar Báltico

Posso utilizar um Dicionário de Rimas
Acho que desde o Jornalismo não usava mais
Elas sempre vieram até mim: Dopamina 
Fazendo sentido ou não - tanto faz

Há coisas dentro da minha cabeça
A maioria não te interessa - se não tudo
As pessoas tem gostos e preferências estranhas
Vivendo no mesmo mundo

Pelas entranhas menos ainda interessa
Tudo passa com ou sem pressa
Os microrganismos não pensam nisso
Minha gata Melissa também não
Nem os vermes de qualquer tamanho

Não pretendo

Não pretendo deixar filho
Nem conhecer o Japão
Nem me jogar sobre os trilhos
Nem na frente do caminhão

Não pretendo votar em direita
Ou conviver com quem
Nem converter em pesetas
As vidas de algum Iêmen

Não pretendo cursar cinema
Ou mais alguma matemática
Nem resolver mais problemas
Além do que me mata

Não pretendo ver (mais do que) 2 mil filmes
Nem ler (mais do que) 300 livros
Nem me esconder no insufilm
Da estrada para lugar nenhum

Só é livre quem vence o ridículo
Se não for assim deve ser desperdício
Não queria me desperdiçar 
Mas também não quero vencer

Não pretendo me despedaçar
Nem unir os pedaços
Não pretendo me amarrar
A outros colapsos

Vastos são os erros
Na flor do asfalto os acertos
A economia é o soterro
Por sobre seus desafetos
Sem tetos
Considerados insetos
Ao sistema

Não pretendo vencer o sistema
Porque não posso

Curvado

Tive um último sonho. Estava na minha antiga escola, no pátio adjacente ao ginásio. Não lembro o que fazíamos para passar o tempo. Estavam todos lá. De repente, houve uma chamada e segui os demais que iam entrando para o ginásio. Ocorreria algum evento. Era Olimpíada. Havia como que classes posicionadas junto à linha lateral da quadra. Poderia ser um local de espera improvisada para realmente entrarmos em cena, ou poderia ser a tribuna, também no improviso, para assistirem aos fatos. Conforme foram tomando posição, escolhi uma cadeira. Percebi que fiquei na divisória entre nossa cor e a adversária. Havia dois meninos, que na época não sabíamos, hoje sabemos que são gays. Eles nos provocaram, à espera de vencer. Eram dos oponentes da ocasião. Realmente eram de outra turma. Um me acertou uns tapinhas no rosto. No sonho eu estava indefeso, sem reação de reflexo para impedir.

Aguardei ali as diretrizes daqueles jogos. A coordenadora surgiu ao centro, como se fosse um show business. Só faltava o microfone descer do teto por um fio, em direção à sua mão. Mas talvez ela realmente erguesse um microfone. Estimado público.

Do nada traziam uma caixa com algo dentro. Ela anunciava a atividade, capturar o coelho cinza. Achei absurdo. Alguns se prontificaram em ajudar na caça. Seria uma equipe contra a outra. Provavelmente com vitória de quem capturasse antes. Me repousei o corpo contra a parede, as mãos para trás. Não quero. Não vou. Um colega tenta me convencer. Sem chance. Deixa o coelho. Que tipo de jogo é esse?

Ela de repente abre a caixa antes das equipes se posicionarem devidamente em volta. O coelho naturalmente dispara. Foge. Eu meio que comemoro. Até vou um pouco em direção a ele, talvez tomado pela curiosidade de onde vai parar o bicho. Ele vai pela única saída em que não precisa driblar o público. O coelho cinza some. Fico aliviado e aflito. Onde ele vai se esconder? Até quando? Alguns se prontificam para capturá-lo para o grande número, afinal, o que vale é o jogo, o que acham ser lúdico. Idiotas. Eu fico paralisado. Esperando e não esperando encontrá-lo. Muitas coisas na vida são assim. Se espera e não se espera encontrar. Quer e não se quer.

Mediante a ineficiência dos demais em encontrar o sofrido bichinho, saio daquela paralisia, mas não retorno à posição de origem, nada da lateral junto à parede, onde eu torceria junto ou não, mas me recusaria a participar daquela brutalidade, daquela selvageria. Pensei em todos os ritos de caça, nos mais e nos menos necessários, alimentação ou dito esporte. Malditos os últimos.

Percorro o ginásio rumo à saída pelo qual eu havia entrado, é uma abertura do solo ao teto. Antes, próximo da trave, da goleira, sou interceptado pela coordenadora, com um sorriso amarelo de quem falhou e deixou o coelho escapar, e também um antigo colega, o único melhor do que eu na matemática do fundamental. A coordenadora era professora de matemática. Ele se pergunta porque eu ando encolhido, curvado, cabisbaixo, de má postura ereta. Apenas respondo que sou assim. A coordenadora faz coro. Eles ficam ali a me analisar. Eu tomo o rumo da saída. Curvado, virguloide, decepcionado. Com tudo. Com todos.


4 de agosto de 2021

Vôlei de Praia brasileiro é eliminado antes da semifinal pela primeira vez



Fotos: COB

Por: Henrique König

O Vôlei de Praia foi instituído nos Jogos Olímpicos em Atlanta, 1996. Desde então, ao menos uma medalha era conquistada pelas duplas brasileiras no torneio. Mas em Tóquio 2020 não teve jeito. As quatro duplas, duas de cada naipe, foram eliminadas antes da fase semifinal. Nem o gostinho de uma disputa pelo bronze. Apesar dos ainda bons resultados no Circuito Mundial, uma das modalidades que mais trouxe alegrias para os brasileiros fica em alerta. É preciso se perguntar o porquê as coisas ocorreram assim.

A dupla favorita do Brasil era Agatha/Duda, mas elas não passaram pela dupla alemã da atual campeã olímpica, Laura Ludwig. A experiente atleta da Alemanha mudou de companheira, jogando com Margareta Kozuch. Mas as próprias alemãs foram eliminadas na fase seguinte, nas quartas, para uma dupla norte-americana.

Foi nas quartas que Ana Patricia e Rebecca pararam nas suíças Hiedrich e Verge-Depre. Ana Patricia relatou um dia de logística muito complicada, pois não dormiu e passou por diversos sintomas. Isso refletiu em sua atuação muito abaixo em todos os fundamentos. Rebecca tentou conduzir o jogo, mas não foi páreo para as europeias. Eliminação brasileira antes da semi.

Este foi o panorama também entre os homens, que tiveram os mesmos algozes. A dupla da Letônia, um país encostado à Rússia e ao Mar Báltico, com cerca de 2 milhões de habitantes, ou seja, uma Curitiba. Plavnis e Tocs venceram as duas duplas do Brasil.

Nas oitavas, eliminaram Bruno Schmidt e Evandro. Fica o lembrete que Bruno passou pela covid-19, foi internado, correu mesmo riscos sérios contra sua vida e sua participação em Tóquio foi considerada heroica. Na fase seguinte, nas quartas, Plavnis e Tocs passaram por cima de Alison e Álvaro pelo placar de 2x0.

É hora de lamber as feridas e tentar entender o que deu errado nas areias pelo lado brasileiro na Tóquio 2020.

Confira o número de medalhas do Brasil no Vôlei de Praia nas Olimpíadas:

1996: 1 ouro e 1 prata

2000: 2 pratas e 1 bronze

2004: 1 ouro e 1 prata

2008: 1 prata e 1 bronze

2012: 1 prata e 1 bronze

2016: 1 ouro e 1 prata

2020: 0

Multicampeã mundial, Ana Marcela fatura Maratona Aquática na Olimpíada


Foto: Jonne Roriz - COB

Por: Henrique König

Ela buscou o ouro dela. Na noite de terça-feira (3), já dia 4 de agosto no Japão, Ana Marcela fez história pelo Brasil e conquistou a quarta medalha dourada do país na Tóquio 2020. A nadadora fez uma prova de muito fôlego e superação para ultrapassar adversária e ficar com a primeira posição no último trecho da Maratona Aquática.

A liderança era da alemã Leonie Beck durante a maior parte da corrida, mas Ana Marcela Cunha cravou o tempo de 1h59min30.8s. Ficou um corpo de vantagem sobre a segunda colocada, a holandesa Sharon van Rouwendaal e quase dois segundos de vantagem para a australiana Kareena Lee, que fechou o pódio. Leonie Beck perdeu a medalha no último trecho.

Em sua trajetória, Ana começou com o 11º lugar no Mundial de 2011. Ficou fora da Olimpíada de Londres 2012. No Rio de Janeiro, se preparou mal na logística para a prova, com problema incluso de alimentação e terminou em 10º nas águas cariocas em 2016. Mas no Circuito Mundial, ela é tetracampeã. Soma mais de 25 de ouros em etapas pelo mundo, mais de 50 medalhas ao todo. Ela precisava de uma glória olímpica. E ela veio.

Ana Marcela do Brasil se torna a quinta brasileira campeã em competições individuais em Olimpíada. Tudo começou com Maurren Maggi no salto em distância, passou por Sarah Menezes e Rafaela Silva no Judô e desembarcou em Tóquio com Rebeca Andrade, o mito da Ginástica Olímpica, e Ana Marcela Cunha na Maratona Aquática.

Lembrança aquática também para a dupla bicampeã: Martine Grael e Kahena Kunze, vencedoras no Rio 2016 e em Tóquio 2020 no Iatismo. É o Brasil das águas!

1 de agosto de 2021

Pelos finais (e inícios)

Moro no último prédio da última cidade ao Sul do Brasil, o último país em muitos indicadores. Ok, não é a última cidade, mas nenhuma cidade mais ao Sul do Brasil é maior do que a nossa. Rio Grande pode dizer o mesmo, se assim desejar, pois fica mais ao Sul. Porto Alegre pode se referir a si mesma como a capital mais ao Sul, nenhuma outra é maior do que ela no sentido meridional. Enfim. Moro literalmente no último prédio, na última quadra de uma das ruas importantes, onde estão prédios da administração pública, jornal, poder legislativo, associação de professores e servidores da educação pública e muito mais. Também estou. Com apenas uma volta da chave - me mentiram que eram duas - saio a passear e a explorar o novo bairro e suas peculiaridades.

Prédios essencialmente antigos com mais ou com menos desgaste. Recordo, quando retornava desses passos, de uma família negra a passear. A criança empurrada pelo pai em um carrinho assim projetado, enquanto a mãe colocava na linha um cachorro enroupado contra o frio. Reparei nos prédios que nos cercavam, no estilo colonial português, mas na mão de obra escrava. Hoje menos de 1% das pessoas pensa nisso quando cruza por essas históricas ruas, que tanto presenciaram.

Ao morar em um prédio - o último da última maior cidade? - tenho reparado mais para cima, os cartazes de vende-se ou aluga-se, muitos espaços vazios. Muita gente nas ruas. O contraste é tremendo. Acumulam-se em portas de bancos, marquises, calçadas, prédios públicos e privados em busca de algum aconchego. Muitos preferem ficar assim e não seguir as ordens de abrigos municipais. Riscos contra as noites de temperatura quase negativa. Meu amigo relata que à porta do banco com o qual trabalha para suas transações, os moradores de rua o têm ocupado (invadido? a gosto de quem lê... barbaridade) para suas refeições mas também necessidades fisiológicas. O mundo selvagem do nosso centro. Haja trabalho para quem lida com a limpeza do espaço. Haja constrangimento aos clientes. E quem age pelos infratores, que permanecem nas ruas? Haja polêmica. Só fica também a lembrança que as instituições bancárias e seus banqueiros aumentam o lucro trimestral ano após ano, faturam de bilhões a trilhões - para quem sabe contar até tudo isso. Os bancários até sabem, mas nunca têm essa quantidade em mãos. Quanto aos ali depositados, contentam-se com algumas moedas para uma refeição. Embora não se faça mais refeição com pouco níquel.

Pela praça, quando eu ia em direção ao centro do centro, as crianças se enfileiravam para brincar nos espaços públicos, sobretudo nos balanços, escorregadores e gangorra. Os pais a vigiar, o vozerio a ecoar ao longe. Quando regressei, com a noite se aproximando os brinquedos já estavam vazios, a penumbra a tomar forma. As últimas poderiam protestar a ordem do recolhimento rumo às suas casas. Ordens dos pais. Enquanto isso, descia de um carro, a poucos metros dali, uma senhora com muita dificuldade de locomoção, necessitando da ajuda das mais jovens pessoas de sua família. Seguiram em passos retesados, os sapatos como âncoras, como revela a música de La Vela Puerca.

Os grafites contrastam ou muitas vezes complementam-se com a pintura viva de alguns prédios antigos. Os espaços vazios também se fazem notar, em uma ou outra esquina. O mato cresce desordenado. É o panorama do final do centro. Para outro lado, rumo ao bairro ferroviário (amo chamar assim) Simões Lopes, um maluco de esquina se assemelha a qualquer trabalhador marítimo, de touca, barba por fazer, dentes pouco cuidados e a balbuciar besteiras. Cumprimentou-nos e perguntou sobre as gurias. Disse que é bom e tem que ter, que a ele faziam falta. Me questiono se realmente fazem e confesso que - hoje - são raras noites. Para outro transeunte, ele cumprimenta um suposto primo. Tudo invenção daquela mente mirabolante. Logo adiante, um outro tenta adentrar um portão, provavelmente da empresa em que trabalha, portão extenso, de ferro e que serve para qualquer manobrista de caminhão contorná-lo com facilidade. Assim espero que seja e não uma cena de arrombamento...

Em outra madrugada, escutei um suposto assalto. Com as janelas todas cerradas como manda o horário - mas poderia ser desde mais cedo da noite - um suposto assaltante a atormentar um suposto passista. O ameaçado insistia em voz tentando manter a calma, porém um pouco trêmula na execução da fala. Dizia não portar objetos de valor em um traduzido "já te disse que tenho nada" e complementou "só queria dar uma banda". O relógio marcava 4 horas da manhã. Eles seguiram caminhando rumo aos fundos desse fim de Centro, para onde a vila se instaura e muitos anônimos para nós mas bem conhecidos entre eles, se empilham nos intuitos da sobrevivência, em busca do aluguel ou da moradia mais barata, em busca de um sonhado despertar melhor em algum dia.

No regresso para minha casa, pela narrada caminhada, antes de encontrar a família negra e pensar sobre a mão de obra dos 'portugueses' prédios, passei pelo edifício onde uma amiga morava. Ela transferiu-se para Brasília. O prédio está pintado de forma diferente e, aos meus olhos, nunca pareceu tão pequeno, assim em azul. A rua que por ali corre ganhou uma camada asfáltica, coisa que me inclina a dizer que chega a ser bagaceira. Passados alguns dias da operação de recapagem, o cheio da camada asfáltica ainda se ergue contra nossas narinas, é inebriante, um químico poderoso. Passo por portas de ferro baixadas - são as lojas - passo por igreja que também por milagre em pleno domingo encontra-se fechada. Mesmo em pandemia, a missa deve ter sido mais cedo. Pela rápida excursão aos rumos do Simões Lopes encontramos uma aberta. Enfim, a mais próxima de minha casa, histórica construção que ergue-se coberta por plantas, cartão postal local, apelidada carinhosa ou ofensivamente de "cabeluda", encontra-se  fechada. Seus singelos bancos ordenados e distribuídos para um gramado e um jardim também não recebem hóspedes. Pela pousada próxima de minha morada, um sujeito não alterou a posição entre o meu ir e vir, pois permanece com seus tênis Adidas depositados sobre a mesinha de centro. Tremendo tédio que o inebria tanto quanto a camada asfáltica afetou-me minuto atrás.

Com mais uma volta para abrir e mais uma para fechar, regresso ao último prédio da última quadra da última maior cidade do Brasil, um dos últimos países em alguns indicadores. O que estou fazendo comigo? Quais serão os próximos passos? Emaranhado de incertezas, mas com certeza a chave da porta vira menos do que eu achava que precisaria virar. E isso não é metáfora. Ou é?

Pensava que o inferno era quente

E o inverno era frio

Mas não era diferente

E frio foi o que sentiu

Sobre meu avô

Queria iniciar este texto com somente impressões de mais um domingo de movimento quase nulo no centro de nossa requintada cidade. Mas o estado de saúde terminal de meu avô, com quem logo destaco que pouco convivi, interrompe meus pensamentos e os redireciona. Imagino minha avó que foi casada com ele por muitos anos e com o qual teve duas filhas, minha mãe e minha tia. Meu avô que para exemplo dos mais positivos dentro de casa creio que não serviria, mas foi trabalhador nos caprichos da marcenaria, ramo com o qual eu precisaria renascer para tirar algum sustento/proveito. Aos seus chegados 90 anos, passava a queixar-se bastante de dores no quadril, situação comum aos carpinteiros.

A prima de minha mãe, portanto não filha de meu avô, mas que o tinha como um pai, por ter crescido sem o seu biológico, me contou certa vez das dores de cabeça que o atingiam pelo esforço repetitivo das batidas ou pelas algazarras que as mulheres da casa promoviam, em incessantes bate-bocas. Minha tia contou que meu avô posicionava a parte metálica e, portanto, gelada do martelo sobre sua testa, a fim de relaxar a pressão que a testa exercia. Hoje quem ameaça parar de funcionar não é a cabeça, mas a insuficiência cardíaca. Ele está transferido. Passados 90 anos desse imigrante filho de talvez alemães ou talvez poloneses pela inconstância total do sobrenome Venzke, nomenclatura que muito me faz pensar sobre minhas raízes mais para o centro ou mais para o leste da Europa. Na dúvida que me surge, simpatizo com a fragilidade da Polônia ao competir no mais visto futebol ou mesmo em outras modalidades, agora em clima olímpico e ela com dificuldades para somar um mísero ouro. Mesmo assim, ao longo da história é uma Polônia forte, muito por conta das polêmicas Olimpíadas realizadas nos tempos da Guerra Fria, em que o leste europeu competia forte com países como Bulgária, Romênia, Checoslováquia e a mais forte União Soviética, ainda insuperável por outro país que não sejam os Estados Unidos da América.

Mas voltando a meu avô, a única vez que o vi junto à minha vó, pois quando nasci já haviam terminado o relacionamento havia muitos anos, a única vez que os vi juntos foi no enterro de minha tia-avó. E conversaram como velhos amigos em uma conversa longa e até despropositada pela ocasião. Chegavam a se empolgar e a atrair a atenção dos demais comparecidos. Minha família e suas oportunidades como geradora de vergonhas alheias. No caso também a minha vergonha, pois eram meus ascendentes. Eles conversaram como um velho casal. E de fato eram, com o único porém de que não trocavam tantas palavras e de forma tão efusiva havia no mínimo um par de décadas - ao menos dentro do meu campo de visão - pode ser que tenham feito isso em outra ocasião. Mas como cada um passou a morar para uma ponta extrema de nossa cidade, creio que a raridade daquela ocasião era tremenda.

Pois imagino minha avó a chorar caso se confirme a notícia que nem tanto tememos, pois dentro de minha família há um consenso da passagem da vida e que, se não há mais o que tirar de positivo, qual o realmente mal dele partir? Não estamos em busca dos recordes por longevidade, embora sejam interessantes de observar nas famílias alheias. Meu avô hoje é o mais velho vivo, aos 90. Minha avó está prestes, na outra semana, se assim permitirem, completará 88. A família de minha mãe costuma parar de forma octagenária, como foi o caso da tia-avó do enterro em que minha avó e meu avô se encontraram - falecida aos 87.

Imagino minha avó a chorar pelas lembranças que com certeza evocará, das mais distantes às memórias ainda possíveis de acessar mesmo através da idade idosa. Por exemplo, ela deve ter em mente a longa conversa realizada no velório da irmã. Deve recordar juventude (jovens se casavam) e anos iniciais da vida adulta ao lado dele. Eles que tão pouco têm a ver, mas sinto como se completassem. Ele extremamente calado, ela extremamente falante. Ele calmo como água de poço, minha vó elétrica, tagarela, agitada, ansiosa como poucas pessoas. Se houvessem diagnósticos passados para essas doenças da mente, certeza que incluiriam medidas para conter tamanha ansiedade que a envolve. 

Imagino minha avó a chorar porque das pessoas que duram tanto em nossas vidas e assim partem, as memórias permanecem, mais ou menos mexidas, isto conforme a idade avança e urge a batalha incessante contra outro alemão, o identificado mal Alzheimer. Minha avó não chegou a ser assim diagnosticada, mas passa por um processo até considerado natural de esquecer coisas recentes e trazer à baila acontecimentos de décadas anteriores, sobretudo da juventude e dos primeiros anos da vida adulta. Às vezes evocando personagens que estão apenas no meu imaginário pela falta total de convívio, como "Tiemília", os "Mackdanze", entre outros. Talvez o chamado Adão Bom Vizinho. Pessoas de meu total desconhecimento. Só não totalizado porque minha avó os transporta à nossa casa com histórias desses tempos mais do que remotos.

Imagino minha avó chorar porque mesmo que falasse mal do ex-companheiro, algo de proveitoso teve, nem que seja minha sagrada mãe e sua irmã. Algo de positivo teve, do contrário eu não estaria aqui. Eu que já os amaldiçoei por aqui estar, mas reconheço a importância deles para esse processo evolutivo e progressor da espécie humana. Trecho positivista demais para meu duvidável gosto. Mesmo com tantos os problemas que os levaram à separação e em maior ou menor parte superação, algo de um permanece sobre o outro. Eles que nunca romperam de vez o matrimônio em processo de divórcio. Meu avô arrumou outra companheira para a ponta oposta da cidade e eu os visitei algumas dezenas de vezes - não muitas. Eram encontros anuais e mais algumas vezes. Recordo que meu avô também nos visitava. Eles vinham de moto, formigas atômicas como as do desenho animado. O trânsito se tornou cada vez mais violento e as dores nas pernas - e quadril - de meu avô logo limitaram também essas visitas.

A violência tomou conta de bairro e lembro algumas histórias de tentarem invadir-lhes a casa por meio de golpes de prestação de serviço e também de pedidos de auxílio. Diabos que enganam velhos parcialmente indefesos. A família para meu avô foi muito mais a dos netos de sua segunda companheira. Não reclamo, pois, tão pouco afeto a outras pessoas e mesmo parentes, ainda pude usufruir do outro avô que minha avó nos forneceu, o tenente Gedir, muito prestativo e companheiro, mais jeitoso e carinhoso do que meu avô jamais seria, mesmo distante ou mesmo próximo. Tanto faz. Jamais reclamo sobre isso e, diferentemente à minha irmã, eu o entendo e perdoo qualquer falta. De minha parte, estamos livres e quites. Eu o agradeço por eu estar aqui hoje. Hoje, agora.

Termino com meu reiterado desejo de que meu avô não sofra e, se tiver que ser essa a viagem derradeira, de moto ou seja qual veículo for, que ele a faça e livre-se das dores no quadril, nas pernas, na postura e que jamais tenha novamente que consertar uma cama, uma cadeira ou posicionar o frio do martelo sobre sua testa. Este foi um breve relato sobre meu avô.